Discursos João Paulo II 1983




                                                                 Fevereiro de 983





SAUDAÇÃO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DE PEREGRINOS DE ANGOLA


4 de Fevereiro de 1983



Senhor Cardeal e amados irmãos e irmãs,

Para mim muito grato este encontro, num momento de júbilo, em Cristo e em Igreja. A todos saúdo cordialmente: aos que estais presentes e aos muitos - estou certo - que representais nesta hora: outros em grande número sem dúvida, desejariam aqui estar a participar na nossa alegria e a congratular-se connosco e, sobretudo, com o Senhor Cardeal Dom Alexandre do Nascimento.

Ao Senhor Cardeal, com estima e fraterno afecto, quero reafirmar, diante deste selecto grupo da sua terra e de seus amigos mais afortunados, o meu apreço: pela sua dedicação à causa da Igreja e pelo zelo posto ao serviço dos homens-irmãos, mormente depois do chamamento à Ordem episcopal no ministério de Pastor das Dioceses de Malanje, Lubango e Ongiva. Tenho presente também a sua generosa colaboração, em plano nacional, quer como primeiro responsável da Cáritas, quer no seio da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé, nestes últimos tempos como Vice-Presidente. E não se calou ainda o eco de uma sua recente provação e testemunho como homem da Igreja, diante do mundo inteiro. Bem haja, Senhor Cardeal! E que o Altíssimo - cujos caminhos são insondáveis - o ajude a continuar!

Continuar, sim, porque o Cardinalato, com a honra que representa, é um novo apelo e convite:

- à sua pessoa, antes de mais, com as amplas perspectivas que se abrem ao seu empenho pastoral;

- às duas Comunidades diocesanas que serve e comungam, de modo particular, esta distinção, e dela irão receber estímulo, por certo, para responder cada vez mais e melhor a Cristo Redentor do homem, vivendo, purificando e expandindo a mensagem da Salvação e, fraternamente, colaborando com todos os homens de boa vontade na construção, no seu meio ambiente, de um mundo cada vez mais humano e mais cristão: Deus quer que, em Cristo, “sejam reconciliadas consigo todas as coisas” (Col 1,20);

- à Igreja que está em Angola, a celebrar o quinto centenário da evangelização de plagas angolanas: que cada vez mais, “Igreja evangelizada”, ela possa levar por diante a sua missão evangelizadora;

- a toda a Nação angolana, em momento de procura e de esperança; para ela vão os meus votos de feliz êxito nesta procura e de muitas prosperidades a satisfazer a sua esperança, numa autodefinição e constante promoção do progresso e da paz, assentes sobre os auténticos valores da pessoa humana, com toda a sua dignidade.

Destes votos faço prece, que confio ao Coração de Cristo, pelas mãos de Nossa Senhora - tão venerada em Angola - ao dar-vos a Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS PORTUGUESES


DA PROVÍNCIA ECLESIÁSTICA DE BRAGA


POR OCASIÃO DA VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


4 de Fevereiro de 1983



Amados Irmãos em Cristo,

1. Ao saudar-vos cordialmente, aqui congregados na caridade do Espírito Santo, desejo-vos graça e paz, da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo. E vamos continuar o colóquio fraterno, iniciado pessoalmente em Fátima, há meses, e prosseguido nestes dias, no encontro com cada um de vós. Considero actuais as sentidas palavras de apreço e estímulo dessa manhã de treze de Maio último; e dirigindo-me a vós, penso também nos demais Irmãos Bispos portugueses, com quem irei encontrar-me proximamente; e penso nas suas Comunidades diocesanas e em todos os filhos de Portugal.

Neste momento, para mim muito grato, a vossa afirmação de inequívoca devoção e fidelidade é algo que transcende as pessoas e se reveste de um significado particular. Estais em visita “ad limina Apostolorum”: convosco estão em vossas Dioceses, certamente por vós mobilizadas neste sentido, a testemunhar a vitalidade perene, nas Circunscrições da Província Eclesiástica de Braga, da Igreja una, santa, católica e apostólica, garantida pela promessa do Senhor: “Estarei sempre convosco, até ao fim do mundo” (Mt 28,20).

Ao celebrarmos aqui a unidade na caridade, em Igreja, recordo muitas imagens e episódios da minha recente visita pastoral ao vosso País e peregrinação a Fátima. Nunca esquecerei aquele dia cinzento de quinze de Maio, quando tive a alegria de ver, em contraste nítido com as condições climáticas, a irradiante simpatia e a calorosa hospitalidade das gentes da vossa bela região; experimentei-as nomeadamente em Coimbra, Braga e Porto, onde havia encontros marcados; mas o mesmo se repetiria, certamente, nas outras terras, por mim envolvidas em igual estima, mas que não me foi possível visitar.

Aceitai, ainda uma vez, a minha gratidão, pelo acolhimento generoso, afável e simples, à boa maneira portuguesa. Muito obrigado!

2. Viestes aqui reafirmar a Fé de que sois cultores e mentores no seio das vossas Comunidades eclesiais, visitando os lugares marcados pela presença e testemunho supremo da Fé, dado pelos Apóstolos; viestes tomar contacto directo com os Órgãos centrais do governo pastoral do Bispo de Roma ao serviço de toda a Igreja; e viestes, sobretudo, “videre Petrum”: para “ver a Pedro”.

Estou certo - e disso faço oração confiante ao Senhor - de que esta vossa visita “ad limina Apostolorum” não deixará de produzir, só por si, muitos frutos entre os fiéis confiados à vossa solicitude pastoral. Depois, o vosso testemunho de viva comunhão com o Sucessor de Pedro, na sua sinceridade, exprime também prontidão disponível para aceitar as normas e directivas da Sé Apostólica e dos Organismos centrais que a servem, o que pode comportar, alguma vez, renúncia a posições e preferências pessoais, no campo do opinável, em vista do bem comum de todo o Povo de Deus, Igreja una e única.

Com fraterna confiança, sincero afecto em Cristo e simplicidade cordial, quero dizer-vos que, do teor dos vossos relatórios e mesmo do nosso colóquio pessoal, transparece a consciência que tendes de a época em que vivemos nos exigir um esforço continuamente renovado e uma comunhão operante, cada vez mais vivida, assídua e sapiente, para responder às suas interpelações. Mas, “tendo em conta que a prova, à qual é submetida a nossa fé, produz a constância”, regozijo-me por verificar que estais serenamente dispostos a empenhar-vos para esta “constância ser acompanhada de obras perfeitas . . . sem nada descurar” (Iac. 1, 3 s.).

O mesmo Senhor Jesus, pelos “seus”, já nos prevenira, amorosamente, que haviam de vir momentos destes, pelo facto de os homens “não terem conhecido nem o Pai nem a Ele” (Cfr. Io Jn 16,1 ss.); a tristeza não pode invadir os nossos corações. Temos o “Consolador” e n’Ele a realidade da promessa indefectível: “Estarei sempre convosco” (Mt 28,20).

3. Intentam ir ao encontro da generosa boa vontade de que estais animados as minhas palavras de hoje, o mesmo que visavam as que vos dirigi em Fátima, desejosos como estamos todos, de amoldar-nos ao Bom Pastor (Cfr. Io Jn 10,1 ss.), o que constituiu o ponto de referência daquilo que então vos dizia.

Não é minha intenção repetir senão a benevolência com que então vos falei, de alguns problemas que se apresentam com maior acuidade para o vosso labor pastoral quotidiano, animado de zelo que vai até ao sacrifício, iluminado por caridade esclarecida. Estando neste grupo de Irrnãos Bispos uma boa parte dos altos responsáveis pelos destinos da Conferência Episcopal Portuguesa, isso dá-me o ensejo para explanar um pouco mais as breves referências que na altura lhe fiz.

Sei bem que estais conscientes, todos e cada um de vós, do quanto nos é urgido pelo nosso tempo, tempo de mutações profundas também entre vós, um imperativo de sempre do “mandamento novo”, à luz do que fizeram os Bispos desde os primórdios da Igreja: eles “uniram, as suas forças e vontades, para promoverem o bem comum e o de cada uma das Igrejas” (Cfr. Chistus Dominus, 36). E com isso, mais não faziam do que viver e testemunhar a certeza de formarem um só corpo, em que a graça a cada um conferida, segundo a medida com que Cristo quer concedê-la, tem de convergir “para a edificação da Igreja”, conservando a unidade do Espírito no vínculo da paz, pois “há um só Deus e Pai de todos, que . . . actua por meio de todos e se encontra em todos” (Cfr. 1Co 14,12 Ep 4,2 ss. ).

4. A Conferência Episcopal, como é sabido, tem estes objectivos: ser espaço de encontro e diálogo, na vivência da Colegialidade efectiva e afectiva entre os Bispos: “nisto todos reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes” (Jn 13,35); ser aquela “secretária” ou “banca de trabalho” em grupo, à qual os Bispos hão-de “sentar-se para «calcular» e avaliar bem os meios de «edificação» e de «defesa» do reino de Deus” (Cfr. Luc Lc 14,28 ss.), com uma planeada, programada e orgânica pastoral, compartilhada; e ser, ainda, entidade representativa, “ad intra” e “ad extra” do âmbito eclesial. Como é óbvio, porém, o condão de representar só lhe poderá advir da realização plena dos dois primeiros objectivos, em sintonia com a vontade de Deus e com o seu amor pelo homem. esta sintonia, o “ser” mais profundo de uma “Igreja evangelizada”, que impelirá um grupo de Bispos a buscar caminhos para uma actuação como a de Cristo, que passam entre a rigidez árida do fechamento por “justiça” legal e a “terra de ninguém” dum activismo pretensamente “empenhado”, “aberto” e “pluralista”, o qual, a prazo mais ou menos curto, se demonstrará desintegrante de forças, amolecedor de vontades e estéril, se não nocivo, para o reino de Deus.

Sabe-se que uma estrutura, quando não serve ou não funciona com ritmo regular, de acordo com a própria identidade e finalidade, se deteriora, passando a embaraçar ou sobrecarregar o esforço daqueles que dela não podem prescindir. Organização eclesial, ao serviço do Povo de Deus, uma Conferência Episcopal não pode afastar-se da sua vocação originária, sob pena de degenerar em burocratisrno; como não pode parar, nem descurar nunca as suas bases de sustentação: a comunhão, a participação e a luz de protótipo de “Igreja evangelizada”, da parte de todos os que a integram.

Manter estas bases de fidelidade a si mesma, numa Conferência Episcopal, em que cada Bispo-membro é uma “pedra viva”, com lugar e função bem precisos, não se compadece com a indiferença, o desinteresse ou a passividade; isso poria em risco, se não a solidez, pelo menos a segurança e garantia de uma continuidade e qualidade de rendimento. E para “comungar”, “participar” e ser “luminosa Igreja evangelizada” com os outros, exige-se a observância de um “código”, que é um todo orgânico e se chama “Bem aventuranças”. Possíveis “elefantíases” em qualquer dos “oito capítulos”, não escapa facilmente à advertência, tão dorida quanto amorosa, do Mestre: “Quem não ajunta comigo, dispersa” (Mt 12,30).

5. Construir e defender e consolidar constantemente o reino de Deus, a partir de uma visão realista e da avaliação ponderada das situações e dos meios à disposição - são ainda as parábolas de Cristo a guiar-nos (Cfr. Luc Lc 14,28 ss.) - para além de não admitir soluções de continuidade, requer perspicaz tempestividade. Foi ainda o Senhor a comparar o reino de Deus, a Igreja afinal, ao “fermento” que tem de ser activo para levedar a massa, ao “campo” que tem de ser cultivado com esmero, sempre, mesmo frente às contrariedades que podem ir do tempo não favorável, até ao inimigo que, na “sementeira” já feita, sobressemeia o joio (Cfr. Matth Mt 13,4 ss.; Iac. 5, 7 ss.).

Tanto o prever para providenciar, como a paciência e delicadeza do bom agricultor, aplicados ao trabalho de uma Conferência Episcopal, levar-nos-iam a recordar o que dizia o meu Predecessor, de venerável memória, Paulo VI, acerca da evangelização, que é “algo rico, complexo e dinâmico”; mas que, numa sua síntese afortunada, consiste em “testemunhar, de modo simples e directo, Deus, revelado por Jesus Cristo, no Espírito Santo, para que os homens se salvem”; isto é, sejam levados a encontrar Cristo, Redentor do homem, que “é sempre a base, o centro e o vértice da Salvação” (Cfr. Evangelii Nuntiandi EN 17 EN 26 EN 27 Redemptor Hominis, 13).

Continuo, pois, a pedir ao Senhor que na vossa função de Pastores, comungada como Conferência Episcopal, vos empenheis em realizar o ideal de “guiar, ir à frente”, para fazer o reconhecimento do caminho, detectar perigos e garantir a marcha do Povo de Deus que está em Portugal (Cfr. Allocutio ad Lusitaniae Episcopos in urbe «Fatima» habita, 3, die 13 maii 1982). Para tanto, impõe-se saber discernir, com clarividência, os sinais dos tempos e dos acontecimentos, fazer a sua leitura, com a prevalente solicitude de “apascentar” e de prevenir arremetidas de lobos, mesmo camuflados, que “arrebatam e dispersam” o rebanho.

E entretanto, não quero deixar de congratular-me com a actuação da vossa Conferência, em momentos de impasse para os portugueses, com intervenções a propor e a defender os rectos princípios humanos e cristãos; estas, caindo no humo ainda rico de profunda religiosidade do querido povo português, não têm deixado de dar consoladores frutos, nestes últimos tempos, pelos quais só temos que agradecer a Deus providente e misericordioso.

6. Sei, amados Irmãos, que compartilhais estas considerações; e que estais ben cônscios da necessidade de as actuar, cada vez com maior proficiência; cônscios, sobretudo, da necessidade de animar constantemente com uma evangelização intensa a prática cristã e a vida sacramental das vossas comunidades e de levar todos os filhos de Portugal a encontrar a Cristo, Redentor do homem. E seria o momento de descer a concretizações em vários campos da vossa acção específica, como Conferência Episcopal: da vida litúrgica, à catequese, ao relacionamento com religiosos e religiosas e sua inserção na pastoral, ao serviço da caridade, ao empenhamento social de testemunho cristão, à pastoral de família, dos jovens e dos migrantes, à religiosidade popular, às relações “ad extra” do âmbito eclesial, etc., até às carências com que lutais, para atender a tudo isto, nomeadamente por falta de meios e escassez de pessoal. Confio à vossa sapiência, enriquecida pela experiência vivida, fazer estas concretizações, certo de que dareis prioridade a uma urgente pastoral das vocações, olhos e coração fixos no Pai celeste que bem sabe que vós precisais de muitas coisas (Cfr. Matth Mt 6,33).

Pois bem: “Eu estarei sempre convosco”, prometeu-nos o Senhor. Coragem! sem deixar que se perturbe o nosso coração, sejamos perseverantes! O Papa, em virtude do seu múnus, forte somente pela “consolação de Deus recebida” (2Co 1,4), ao falar-vos, não visa senão “confirmar-vos” como Irmãos, nas vossas boas disposições e confiança em Deus.

Recomendo-me às vossas orações e às das vossas Comunidades eclesiais, ao renovar-vos a certeza do afecto em Cristo e constante lembrança na prece, com que acompanho os vossos anelos de Pastores e a situação da Igreja na vossa terra. E que seja a Mãe da Igreja, a Mãe da nossa confiança - tão invocada e com títulos tão expressivos entre vós, desde Nossa Senhora de Balsemão a Nossa Senhora dos Remédios, sem esquecer Sameiro e Fátima - a apresentar as nossas súplicas ao Pai das misericórdias, em particular no iminente Ano Santo da Redenção. E dou-vos, a vós, e às vossas Dioceses, a Bênção Apostólica.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS PORTUGUESES DAS PROVÍNCIAS


ECLESIÁSTICAS DE ÉVORA E DE LISBOA


POR OCASIÃO DA VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


11 de Fevereiro de 1983



Amados irmãos em Cristo,

1. Com grande alegria que, neste encontro, pela vossa grata presença, em espírito volto a Portugal. Ao saudar-vos cordialmente, desejando que graça e paz vos sejam dadas em abundância, neste momento forte da vossa visita “ad limina Apostolorum”, sem me deter a salientar o seu significado - aliás já realçado pelo Senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa - dou graças a Deus por esta ocasião privilegiada de afirmação e vivência comum daquela Colegialidade efectiva e afectiva que nesta hora continua a tradição que vem da “disciplina primitiva da Igreja, segundo a qual os Bispos do mundo inteiro comunicavam entre si e com o Bispo de Roma, no vínculo da unidade, da caridade e da paz” (Lumen Gentium LG 22).

Em nome do Senhor vos recebo, veneráveis e amados Irmãos Bispos do centro e sul de Portugal e dos arquipe1agos da Madeira e dos Açores, que integrais as Províncias eclesiásticas de Lisboa e Évora. Com a maior estima por cada um de vós e por cada uma das vossas Comunidades diocesanas, que aqui tornais presentes, de alguma forma, desejaria - se o tempo mo permitisse - fazer referências individuais, a fim de evidenciar e estimular o vosso generoso labor pastoral e manifestar, com o afecto em Cristo pelas pessoas, o meu apreço pelo património cultural e cristão que está confiado à vossa solicitude.

Não podendo fazê-lo, obedeço apenas ao impulso de um vivo sentimento de gratidão, relembrando as saudosas jornadas de Lisboa, Fátima e Vila Viçosa, da minha recente visita pastoral à vossa terra e peregrinação mariana: mais uma vez, muito obrigado!

E seja-me permitido reviver particularmente os momentos de Cenáculo - “com Maria, Mãe de Jesus” - em Fátima: convosco e a multidão dos peregrinos, juntamente com toda a Igreja, Corpo místico de Cristo, quis aí “unir-me com o nosso Redentor, na sua consagração pelo mundo e pelos homens todos”; e invocar Nossa Senhora, como Mãe da Igreja, dos homens e dos povos, para nos ajudar a viver, com toda a verdade, a consagração de Cristo pela inteira família humana (Cfr. Homilia in area Templi Sanctuarii Fatimensis habita, die 13 maii 1982, Actus consecrationis totius mundi ad Beatam Mariam Virginem, die 13 maii 1982).

2. Desta evocação - que em mim continua a ser prece confiante - faço tema para estas minhas palavras fraternais, a continuar os colóquios pessoais que tivemos e o encontro de há dias, com os Irmãos Bispos que vos precederam na visita “ad limina Apostolorum”. Para responder às interpelações do nosso tempo, marcado pelo fenómeno, não isento de perigos, da socialização, (Cfr. Gaudium et Spes GS 6 et 25) frisava então a necessidade de conjugarmos esforços, sobretudo no espaço privilegiado para isso, que é a Conferência Episcopal; e deixando concretizações à vossa sapiente experiência, apontava em particular duas pistas de reflexão e procura: a evangelização e a prioritária tarefa de uma intensiva pastoral vocacional.

Estou certo de que a arte e o zelo de que tendes dado prova e as boas disposições de que acaba de fazer-se intérprete o Senhor Cardeal-Patriarca, hão-de saber encontrar o sentido para a caminhada de mãos dadas e desembaraçada, para responder a tais desafios. Hoje, cingindo-me mais à responsabilidade pessoal de cada Bispo, a valer-se sempre do apoio, orientações e estímulo da Conferência que integra, quero apresentar-vos algumas considerações acerca da necessidade de “viver, com toda a verdade, a consagração de Cristo pela inteira família humana”; isto é a nossa vocação de Bispos, que como todos sabemos é: servir, em Igreja, na fidelidade ao homem visto no mistério da Redenção, de modo que “todos nos considerem como ministros de Cristo” (1Co 4,1).

3. A responsabilidade pessoal de cada Bispo, não é absorvida, substituída ou suprimida pela Conferência Episcopal; nem esta pretenderá diminui-la ou cerceá-la, mas tão-somente servi-la. É cada um dos Bispos, à frente da sua Igreja particular, que tem a tríplice missão de santificar, ensinar e governar, identificado com Cristo, na união com todo o Colégio Episcopal e na comunhão com o Sucessor de Pedro, no qual o Senhor instituiu o princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade de fé e comunhão. Sempre ao serviço do Corpo de Cristo inteiro, coordenado e unido, por meio de todas as junturas . . . a fim de se edificar a caridade” (Ep 4,16), “o Bispo deve ser considerado como o sumo sacerdote do seu rebanho, de quem deriva e depende, de algum modo, a vida dos seus fiéis em Cristo” (Christus Dominus CD 41).

E com este enquadramento doutrinal, viria ao caso descrever a imagem que vós, amados Irmãos Bispos portugueses apresentais à Igreja e ao mundo: uma imagem de simplicidade e pobreza de vida, de pundonor no cumprimento do dever, de zelo e dedicação pelo maior bem das almas, de fidelidade à Sé Apostólica e de amor ao Papa. uma tradição que honrais e que vos honra, conhecidas como são as vicissitudes históricas em que tem transcorrido a vida da Igreja na vossa pátria, especialmente de há dois séculos a esta parte.

Situados no presente, na simplicidade cordial deste encontro de Irmãos, sei que comungais as angústias e esperanças, as tristezas e alegrias da gente da vossa terra, a viver um voltar página na sua história; e vejo-vos em horas em que talvez nos vossos ânimos lateje a interrogação: “Que havemos de fazer?”.

4. Era já grande, mas aumentou após a minha visita pastoral a simpatia que nutro pelo querido povo português: um povo bondoso, marcado pela própria história e em fase de procura, corajoso, resistente e persistente no afrontar as adversidades; sensível e capaz de identificar-se com os outros, sobretudo na provação; entusiasta pelos grandes ideais - pense-se nos seus missionários - hospitaleiro e respeitador, até a uma certa timidez simpática em relação a outrem; e sobretudo, de vincada religiosidade, que se exprime em confiança na Providência, esperança e temor de Deus, que, não obstante os desvios ou malformações, no fundo são riqueza de vida e cultura, em que lançou raízes profundas a “boa semente” da mensagem do Evangelho de Cristo, que não tem deixado de desabrochar em frutos de graça e santidade, ao longo dos séculos.

5. Perante situações novas mundiais, descritas nas páginas luminosas da Constituição Gaudium et Spes e situações locais, talvez em vias de definição ou pelo menos de reajustamento, quero dizer-vos, amados Irmãos: conservai a fidelidade ao homem, com o qual Cristo Redentor se uniu, de certo modo, com o qual deseja encontrar-se; a fidelidade ao homem concreto da vossa terra, também ele “o caminho que a Igreja escolhe sempre”, como tive oportunidade de dizer na minha primeira Encíclica (Cfr. Redemptor Hominis RH 14).

E sabemos onde encontrar os pontos de apoio de uma tal fidelidade: “Presidindo em lugar de Deus ao rebanho de que somos pastores” (cfr. Gaudium et Spes GS 20), para mantermos credibilidade, o nosso ser fiel ao homem passa pela fidelidade a Deus, de modo que “todos nos considerem como ministros de Cristo” (1Co 4,1).

Isto, obviamente, a começar no seio da mesma Igreja: nos Presbitérios, onde devemos ser e ser vistos como “pais e irmãos” dos nossos sacerdotes; nos nossos Seminários, inclusive Seminários menores, onde devemos ser “de casa”; no âmbito das comunidades religiosas que vivem e operam nas nossas Circunscrições, onde devemos ser e aparecer como “irmãos”, sem desprestígio das próprias atribuições; entre as fileiras dos leigos, onde há-de ser desejada a nossa presença de “Pais na fé” e prontamente aceite a autoridade como “serviço” de chefia, orientação e apoio estimulante. Enfim, enviados pelo Pai de família a governar a sua família, tenhamos sempre diante dos olhos o exemplo do Bom Pastor, que veio servir e não ser servido (Cfr. Gaudium et Spes GS 27).

Depois, também fora do âmbito eclesial, em diálogo no mundo actual com o homem que é o nosso diocesano, nosso concidadão e nosso irmão, ao menos em humanidade, que igualmente todos nos considerem como ministros de Cristo, convicta e profundamente unidos à Sua consagração pelo mundo e pelos homens. Reveste-se de uma dimensão social o nosso ser de Pastores, como promotores dos valores humanos e colaboradores no bem comum, atendo-se aos requisitos impostos pela nossa identidade.

6. Não é o momento agora para desenvolver a questão de programas sociais da Igreja. Para nós, homens da Igreja, é sempre motivo de regozijo contarmos com programas humanos, entendendo o homem na plenitude da sua verdade e dignidade; caso contrário, impõe-se-nos fazer o que está ao nosso alcance para que eles o sejam cada vez mais; isto, sem medo e sem abdicações, porque sempre motivados pelo “amor que lança fora o temor . . .”, nunca disjunto do preceito: “Quem ama a Deus, ame também a seu irmão” (1 Io. 4, 18-21). E as manifestações de amor - explica o Apóstolo Tiago - são imperativo da fé em nosso Senhor Jesus Cristo, que não se compadece com a acepção de pessoas, se traduz em obras e não se coaduna com as más paixões: “Será julgado sem misericórdia aquele que não for misericordioso” (Iac.2, 13).

À luz desta apresentação da Fé, facilmente se descobrem três linhas para nortear uma pastoral que se debruça sobre a situação social daqueles que se deseja levar a encontrar Cristo, Redentor do homem: verdade, presença activa e participação, e misericórdia. Sem dúvida que o objectivo primário da actividade pastoral permanece sempre a evangelização. Mas evangelizar visa também “renovar toda a vida da sociedade, a partir de dentro . . . E modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores reais, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida dos homens” (Cfr. Evangelii Nuntiandi EN 18 et 20).

Quando numa sociedade se adverte mal-estar, surgem espontâneas interrogações radicais sobre a sua reorganização, de molde a poder encontrar e actuar medidas que eliminem esse mal-estar, tantas vezes gerado por carências básicas na alimentação, na saúde, na educação, na habitação e no emprego. E tais perguntas incidem, como norma, na política económica, social, agrícola, salarial, creditícia, tributária, etc. As medidas de emergência, de caridade, de beneficência e de assistência, são de lançar, impulsionar e desenvolver; são sempre beneméritas. Mas, resolverão elas os problemas de fundo?

7. Uma transformação benéfica para todas as estruturas da vida económica é caminhada difícil, que não se fará, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações, que possa obviar as arremetidas de instintos, que existem no fundo de cada homem, e se manifestam nas “más paixões”, sobretudo do ter, do poder e do prazer, que não raro levam a confundir liberdade com interesse individual ou de parte” (Cfr. Redemptor Hominis RH 16).

Ninguém possui, em campo económico-social, o exclusivo das soluções. Nós concorremos, juntamente com todos os homens de boa vontade, para a busca daquelas que se apresentam mais idóneas. Temos, porém, o privilégio de verdades e certezas da Fé - sobre Jesus Cristo, a Igreja e o homem - que queremos viver e testemunhar, como proposta, convite fraterno e mesmo interpelação solícita pelo maior bem do nosso semelhante. Todo o homem, de facto, criado à imagem de Deus e re-criado por Misericórdia do mesmo Deus na Redenção de Cristo, nos impele a “dar gratuitamente o que de graça recebemos” (Cfr. Mt 10,8).

Fortes e seguros na Verdade, cultivada na intimidade com Aquele que a si mesmo se definiu a “Verdade” (Cfr. Io Jn 14,6), impõe-se uma presença activa e uma participação dos filhos da Igreja, com a sua consciência de cristãos, naquela zona de conflito entre a verdade e o erro, entre uma concepção da vida que salvaguarda a transcendência da pessoa humana, concepções mais ou menos imanentistas e materialistas do homem, onde as armas patentes são os meios de informação e de comunicação social, especialmente a imprensa e os meios audiovisivos. Igual presença e participação, pela verdade e em favor do homem com a sua dimensão transcendente se exige nos domínios da instrução e da educação e nos centros de cultura. Frente às arremetidas do permissivismo moral ou ao simples instalar-se de um certo relativismo comodista que, sob a capa da liberdade ou à sombra de posições que pretendem fazer “moda” - do laicismo até ao secularismo - permanecem “sagrados” alguns valores fundamentais, que são um bem incontestável não somente da moral cristã, mas também da moral simplesmente humana, da cultura moral, como sejam o respeito pela vida humana desde o momento da concepção, o respeito pelo matrimónio, com a sua unidade indissolúvel, e o respeito pela estabilidade da família. Em todos estes campos, quando os frutos do trabalho da inteligência e da vontade dos homens não são genuinamente humanistas, facilmente se tornam uma ameaça para o homem, deixando-o a braços com interrogações, que não favorecem a serenidade e a alegria de viver.

Aqui, não quereria deixar sem uma palavra de apreço o esforço que estais a fazer, concretizado particularmente na vossa Rádio e na vossa Universidade católicas, para as quais vai um aceno de simpatia, de apoio e estímulo, a sempre mais e melhor, com a ajuda de Deus.

8. A par da vida, culto e defesa da verdade, numa presença activa e participação na vida da sociedade, a Igreja, por cada um dos seus filhos precisa, hoje mais do que nunca, pôr em prática a misericórdia, entendida como “um estilo de vida e característica essencial e contínua da vocação cristã”, em actuação daquele “processo autenticamente evangélico, que consiste na prática perseverante do amor, não obstante todas as dificuldades de natureza psicológica e social” (Cfr. Dives in Misericordia DM 14).

Não há tempo nem seria o caso, de recordar o que expus na Encíclica Dives in Misericordia sobre “esse elemento indispensável para dar forma às relações mútuas entre os homens, num espírito do mais profundo respeito por tudo o que é humano e pela fraternidade recíproca” (Cfr. ibid.). Além de vivida e testemunhada, a misericórdia tem de constituir objecto de ardente e constante oração.

Sim, a oração! Esta palavra leva-nos novamente a Fátima: “O mundo e o homem foram consagrados com o poder da Redenção; foram confiados Àquele que é infinitamente Santo; foram oferecidos e entregues ao próprio Amor, ao Amor misericordioso . . . E quanto nos penaliza tudo aquilo que na Igreja e em cada um de nós se opõe à santidade e à consagração! Quanto nos penaliza que o convite à penitência, à conversão e à oração não tenha tido aquele acolhimento que devia! Quanto nos penaliza que muitos participem tão friamente na obra da Redenção de Cristo!” (Cfr. Actus consecrationis totius mundi ad Beatum Mariam Virginem, die 13 maii 1982).

Mas tenhamos confiança e continuemos a invocar Maria. o que neste momento faço, aqui convosco, a concluir estas palavras fraternas, com o prevalente intuito de “vos confirmar” como irmãos muito amados; e faço-o com o pensamento nas vossas terras, nas vossas greis diocesanas e em apelo a todos os queridos fiéis de Portugal, para que respondam ao chamamento da Senhora da Mensagem, com particular empenho no iminente Ano Santo da Redenção.

“Coração Imaculado de Maria ajudai-nos a vencer a ameaça do mal, que tão facilmente se enraiza nos corações dos homens de hoje, e que com os seus efeitos incomensuráveis, pesa já sobre a nossa época e parece fechar os caminhos do futuro! . . . Que se revele, uma vez mais . . . a força infinita do Amor misericordioso! . . . Que se manifeste para todos, no vosso Coração Imaculado, a luz da Esperança!” (Cfr. Actus consecrationis totius mundi ad Beatum Mariam Virginem, die 13 maii 1982).

E com o coração em prece, com todo o afecto em Cristo, por vós dou a todos os fiéis confiados à vossa solicitude de “ministros de Cristo” a Bênção Apostólica.





MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS FIÉIS DO BRASIL POR OCASIÃO


DO INÍCIO DA QUARESMA


E DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE


16 de Fevereiro de 1983



Caríssimos Brasileiros, irmãos e irmãs,
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!

1. Começa a Quaresma. A Igreja vai procurar, mais intensamente, ajudar-nos a refletir sobre a nossa identidade profunda de filhos de Deus e de irmãos de todos os homens, na grande família humana.

Com a Quaresma vai iniciar-se no Brasil mais uma Campanha de Fraternidade - em boa hora e com inegáveis benefícios promovida pelos Senhores Bispos, há vinte anos - que hoje tenho a alegria de abrir.

Fraternidade: Deus e Pai de todos nós foi quem nos chamou a construir nossa vida sobre a concórdia, a paz e o amor, que levem à fraternidade. E por seu Filho Jesus Cristo nos ensinou a nos esforçar para “ser perfeitos” parecidos com o mesmo Pai do Céu, sempre misericordioso, para sermos bons irmãos, em família, iluminada pela prática das bem-aventuranças evangélicas (Cfr. Matth Mt 5,5 ss.; 23, 8).

, pois, firme e com inabalável confiança neste ensinamento, que hoje proclamo e vos convido a fazer coro comigo: “Fraternidade sim violência não!”.

2. E parece-me ouvir já o eco desse coro. Tenho ainda gravadas e vivas as saudosas jornadas de minha peregrinação pelo Brasil; lembro bem as multidões em festa, contagiadas por entusiasmo juvenil - dos queridos jovens brasileiros, que “o Papa não esquecerá nunca mais” - a saudar, proclamando um ideal, com sabor de compromisso: “O Papa é nosso irmão!”.

Mais um irmão, entre tantos irmãos! E que beleza o “convívio de muitos irmãos juntos!” (Cfr. Ps Ps 133,1).

Pareceu-me, então, que tinha razão quem me dissera ser essa bela e imensa Nação como “uma família”. Observei a conhecida cordialidade que o Brasil apresenta ao mundo, deixando a impressão, aliás difundida, de ser o Povo brasileiro, por índole, averso à violência e amigo da paz.

E no entanto, também no Brasil, sob a aparente e sincera afabilidade, existe a violência. que no fundo de cada coração humano permanece sempre a marca deixada pela queda original, com a presença da concupiscência, de que fala o Evangelista João, cujas manifestações não provêm do Pai celeste, mas do mundo, ou do “príncipe deste mundo” que é o demônio (Cfr. 1 Io. 2, 8 ss.; Jn 12,31).

Por isso, na convivência e nas estruturas sociais, nem sempre se apresenta sem “sombras” a fraternidade. Quer dizer, não disjunta do pecado, que tem sempre uma dimensão social, a violência ensombra a harmonia e perturba a serenidade dos irmãos, da família.

3. “Sim à fraternidade, não à violência”: Deus vivo, rico em misericórdia e que é Amor, nos quer seus filhos e bons irmãos. Para isso convida e exorta à conversão e à reconciliação: uma vez mais nesta Quaresma, pelo Papa e com esta Campanha da Fraternidade. Convida e exorta a todos sem exceção:

- a Igreja que está no Brasil, a viver e a afirmar-se cada vez mais como Igreja evangelizada, convertida e reconciliada, livre para proclamar que Deus é Amor, que o amor é mais forte do que a morte, o pecado e a violência; para proclamar a todos que se abram à “revelação do amor e da misericórdia, que tem na história do homem uma forma e um nome: chama-se Jesus Cristo!” (Cfr. Redemptor Hominis RH 9);

- cada Brasileiro, especialmente os queridos jovens, a abrir-se à misericórdia e ao amor: amor autêntico, até ao dom de si mesmo, a serviço dos grandes valores e ideais da dignidade e nobreza de toda a pessoa humana; ao amor genuíno, que elimine a ânsia imoderada do ter, do prazer e do poder, e se volte, em diálogo, para o “ser” de cada homem, criado à imagem de Deus; amor verdadeiro que aproxima os homens e, sem eliminar “diferenças”, em todos respeita a “igualdade fundamental”, sabe percorrer os caminhos da misericórdia, para construir solidamente a família humana, a família dos filhos de Deus, num continuo “sim à fraternidade e não à violência!”.

Esta mensagem, mais do que voto é prece a Deus, rico em misericórdia; e em vista do iminente Ano Santo da Redenção, quero conclui-la com este apelo: Abri as portas a Cristo! E abençoo-vos cordialmente.

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.



                                     

                                                        Março de 1983




Discursos João Paulo II 1983