Discursos João Paulo II 1985 - Segunda-feira, 24 de Junho de 1985

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NA CONCLUSÃO DO XI CONGRESSO EUCARÍSTICO


NACIONAL REALIZADO EM APARECIDA


Domingo, 21 de Julho de 1985





Amados Congressistas,
peregrinos de Aparecida,
queridos irmãos e irmãs do Brasil,
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!

1. O MEU PRIMEIRO pensamento, hoje, vai para o “Deus conosco” no Santíssimo Sacramento da Eucaristia, centro das celebrações que se realizam nestes dias, nesta Casa de Nossa Senhora, onde se sente uma presença particular da Mãe celeste. Aí, acolhendo seus filhos, hoje como ontem, Ela continua a repetir: “Fazei tudo o que Cristo vos disser!”(cf. Jo Jn 2,5). É Ele o centro das atenções. N’Ele estão postos os olhos de todos. Para Ele, com a minha adoração, em uníssono com todos vós, vai a ação de graças, a reparação e a súplica de misericórdia: “Bendito, louvado e adorado seja o Santíssimo Sacramento da Eucaristia!”. Em espírito, volto a Aparecida, nestes dias do undécimo Congresso Eucarístico Nacional.

Em espírito volto ao Brasil, revivendo gratamente as jornadas de cinco anos atrás, rumo a Fortaleza, onde se realizava o precedente Congresso. Hoje, como então, penso no lema que aí vos congrega: “Pão para quem tem fome”. Toda a espécie de fome: do corpo e do espírito. E peço a Cristo que faça ouvir a cada congressista e a cada romeiro: Eu sou o Pão da Vida (Jn 6,35), realmente presente, no Sacramento do Amor.

2. Mais do que em espírito, quis estar nesse Santuário Nacional pelo meu Enviado Especial, o Senhor Cardeal Dom Sebastiano Baggio, amigo do Brasil e a quem – estou certo – o Brasil conhece e estima. Como em manifestações análogas de afeto pelo dileto Povo brasileiro – recordo a concessão da segunda Rosa de Ouro, precisamente ao Santuário de Aparecida, em mil novecentos e sessenta e sete – o Sucessor de Pedro quer estar aí, com a Igreja que está no Brasil, com todos vós, “santificados em Jesus Cristo e chamados à santidade”(cf. 1Co 1,2) , unido à vossa oração, para que Deus abençoe o Brasil.

Assim me uno a todo o povo, sob o olhar da Mãe de Deus e nossa, em torno do Altar, para proclamar a verdade fundamental da nossa fé e da vida cristã: que todo o Santo Sacrifício da Missa é uma renovação incruenta do sacrifício oferecido na Cruz por nosso Senhor Jesus Cristo: nele se perpetua através dos séculos o seu Mistério pascal: todas as vezes que celebramos a Eucaristia “anunciamos a morte do Senhor”(cf. 1Co 11,26) ; mas anunciamos também a sua vitória sobre a morte, a sua ressurreição. Anunciamos o mistério da Redenção, ou seja, anunciamos que o Amor é mais forte do que a morte, mais poderoso que o pecado; anunciamos que “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho, para que todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jn 3,16).

3. Por isso, a Eucaristia está no centro da comunidade dos fiéis, é sacramento de reconciliação, no sentido que perpetua a aliança de Deus com o seu Povo, prefigurada no Sinai: “É o Sangue da aliança (o selo do Novo Testamento) derramado por muitos em remissão dos pecados”(Mt 26,28) . A Eucaristia, centro e ápice da vida cristã, reconcilia, purifica, cancela as raízes do pecado, aumenta a caridade e torna mais sólida a comunhão eclesial. Nós, na Eucaristia, tornamo-nos o que recebemos: “consanguíneos” de Cristo, irmãos entre nós. A Igreja vive da Eucaristia, com ela se edifica, se fortalece. Não existe Igreja sem Eucaristia, nem Eucaristia sem Igreja.

Neste dias pensai, rezai e vivei como família de Deus em vossa terra. Se o amor de Deus estabelecer-se profundamente em vossas existências, criareis bases profundas de unidade como Igreja, único corpo místico de Cristo. E unidos com vossos pastores, num só coração e numa só alma, gozareis todos de abundância de graça, haurida constantemente na fração do pão da Eucaristia e da Palavra de Deus (cf. At Ac 2,42 Ac 4,33) , para manterdes e testemunhardes a identidade cristã: “Nisto precisamente todos reconhecerão que sois meus discípulos se tiverdes amor uns pelos outros”(Jn 13,35) .

4. Seja a última palavra de súplica à Mãe de Deus e nossa, a criatura mais estreitamente unida ao mistério da Redenção do homem e do mundo, ao Sacrifício de Cristo, que se perpetua na Eucaristia:

Ó Mãe, que assististes a Igreja primitiva, daqueles que eram perseverantes no ensino dos Apóstolos, na união, na fração do pão e nas orações, vivendo o desígnio do Criador de sermos irmãos, fazei de nós exemplos de partilha fraterna e de empenho na aproximação dos homens entre si!

Ó Mãe, fazei que, pensando no passado, olhando o presente e projetando o futuro melhor da família brasileira, todos saibam dizer não à indiferença, ao desinteresse, à violência e a toda a forma de desamor; e sim à solidariedade, à fraternidade, à paz e ao amor, porque Deus é amor!

Ó Mãe! fazei que a Eucaristia seja retamente entendida e seriamente celebrada, participada e vivida! Que este Congresso Eucarístico tenha como fruto um renovado culto da Eucaristia, pela adoração e pelas obras de caridade: “para que todos tenham a vida e a tenham abundantemente”; para que todos descubram e se encontrem pessoalmente com Aquele que disse: “Eu sou o Pão da Vida”.

Ámen!

E com o coração inundado pela alegria deste encontro, juntamente convosco, com Cristo-Eucaristia, a todos abençoo: em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo!



                                                              Setembro de 1985

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL


DO BRASIL - REGIONAIS NORDESTE 1 E 4 -


EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


16 de Setembro de 1985



Senhor Cardeal e veneráveis e queridos Irmãos no Episcopado,

1. SEJAM BEM-VINDOS a este encontro, ponto culminante de sua visita “ad limina Apostelorum”, que prepararam com esmero e estão a realizar com espírito de fé e de comunhão eclesial, como pude verificar no decorrer dos colóquios individuais. Reunidos em nome do Senhor e confiando que Ele está no meio de nós (cf. Mt Mt 18,20), eu os acolho hoje coletivamente com viva benevolência, vendo mais do que representadas, presentes nos Senhores as queridas gentes de suas Dioceses, dos “Regionais” Nordeste-l e Nordeste-4 da CNBB, que abrangem os Estados do Ceará do Piauí e do Maranhão. Trata-se de regiões das mais pobres do imenso Brasil. Por isso, neste grupo de Irmãos Bispos, vejo Pastores sacrificados, que assumem no quotidiano as angústias e esperanças de seu povo, cujas condições de vida, já bem conhecidas, após o nosso contato pessoal, avivaram no meu animo sentimentos e apelos, expressos quando tive a alegria de encontrar-me com esse povo, em Teresina e em Fortaleza, em 1980.

Desejei levar então ao homem nordestino uma palavra afetuosa de conforto e de esperança, no espírito das Bem-aventuranças; em seu favor lançava um apelo da auxílio, a todo o Brasil e a todos os homens de boa vontade, em nome do Senhor Jesus; Ele, ao mesmo tempo que proclamava “bem-aventurados os pobres em espírito”(Mt 5,3) , dizia também: “Vós sois todos irmãos”(Mt 23,8 cf. João Paulo II, Discurso no Aeroporto de Teresina, Piaui 8 de julho de 1980). Dessa grata visita pastoral trouxe no coração mais esclarecido o motivo de amor divino, subjacente à palavra do mesmo Cristo, quando se quis identificar com os “mais pequeninos”, atingidos pelos males da fome, sede, necessidade de peregrinar, nudez, doença e cárcere (cf. Mt Mt 25,35-40).

2. Vêm de longe, quase se poderiam dizer endêmicos, os problemas e desafios que se apresentam à atividade pastoral no Nordeste brasileiro, a porem aos Pastores da Igreja a inquietante interrogação: como evangelizar populações imensas, tão pobres, e compartilhar as angústias nascidas de sua pobreza, que reveste, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo? Como edificar a Igreja, com a caraterística que a distingue de “sinal e salvaguarda da dimensão transcendente da pessoa humana” e promotora de sua dignidade integral, com estas “pedras vivas” quando a sua pobreza não é, muitas vezes, somente etapa casual de situações inelutáveis em consequência de fatores naturais, mas também produto de determinadas estruturas econômicas, sociais e políticas?

3. Não se pode deixar de evocar gratamente, nesta circunstancia, ao menos de maneira global, as plêiadas de missionários e pastores abnegados, virtuosos e dedicados que os precederam e devem ser considerados como fundadores da Igreja de Deus” (cf. Ef Ep 2,20) em suas Dioceses atuais, ou, para usar a expressão patrística, aí “geraram”, não sem sofrimento, Igrejas. Em sua época, eles não terão deixado, certamente, de interrogar-se quanto ao plano de Deus sobre a vocação de cada homem na construção da sociedade, para torná-la cada vez mais humana, justa e fraterna, e como atuar a prioridade das prioridades na evangelização: buscar primeiramente o reino de Deus e a sua justiça.

Os Senhores receberam a herança desta problemática, agudizada pela vertiginosa corrente de mutações culturais, sociais, econômicas, políticas e técnicas de nosso tempo, que abalam também o seu país-continente; agudizada, ainda, pelo fato de ter crescido, com a liberdade das pessoas, o seu sentido crítico, pelo que deixou de se considerar sagrado – no lar, nas escolas e nos vários ambientes – o que se diz, na igreja, a título de ensino religioso. Outrora o peso de certa tradição, apesar de tudo, ajudava o anúncio do Evangelho.

Para certificar os Senhores da atenção afetuosa e presença espiritual com que acompanho a sua não fácil atividade pastoral, permito-me adaptar uma palavra do Apóstolo, dizendo-lhes: “Damos graças incessantes a Deus por todos vós, fazendo menção de vós nas nossas orações; pois recordamos continuamente vossa fé operosa, vossa caridade paciente e vossa esperança constante em nosso Senhor Jesus Cristo, sob o olhar de nosso Deus e Pai” (1Th 1,2-3).

4. Não é minha intenção e não seria mesmo viável apresentar aqui um quadro completo das situações que interpelam o seu zelo pastoral, nem deter-me a especificar as tarefas que se lhes impõem. Sua experiência e clarividência, partilhadas em cíclicos encontros regionais, o fazem e me dispensam de correr o risco de sobreposições. Um único desejo me domina: contribuir para “que a vossa caridade cresça, ainda mais e mais, no conhecimento perfeito e em toda a percepção, a fim de que possais discernir o que é melhor... repletos do fruto da justiça que vem de Jesus Cristo, para louvor e glória de Deus” (cf. Fil Ph 1,10-11).

Limitar-me-ei, pois, a alguns tópicos que me foram ditados pelos relatórios e diálogo com os Senhores, na compartilha do seu empenho em “evangelizar aos pobres” o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo. Trata-se de um trabalho cada dia mais retomado, aprofundado e renovado, porque “pobres sempre os teremos conosco” (cf. Jo Jn 12,8), conforme a palavra do Bom Pastor e Mestre, que enquadra, de alguma maneira, a aludida prioridade das prioridades pastorais: “Buscai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33) .

5. Os povos e os grupos humanos, em geral, para poderem progredir, gradual e eficazmente, e não apenas satisfazer as imediatas necessidades vitais, precisam de solidariedade, para chegarem à indispensável e duradoura transformação das estruturas da vida económica. Mas não se apresenta fácil avançar pelo difícil caminho escarpado dessa transformação, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações, que faca desaparecer a confusão da liberdade com o instinto do interesse individual ou coletivo, ou ainda com o instinto de luta e de predomínio, sejam quais forem as cores ideológicas de que eles se revistam (cf. João Paulo II, Redemptor hominis RH 16). .

Se quisermos contribuir para melhorar a convivência humana, suscitando entre os homens essa solidariedade, temos de lhes apontar, com serenidade e paciência, misericórdia e compaixão, como fonte dessa solidariedade o amor, à luz da Paternidade de Deus, ou melhor, do Amor que é Deus, revelado em nosso Senhor Jesus Cristo.

6. Pelos seus relatos, pude aperceber-me de que os seus diocesanos os procuram para tudo, para encontrar solução aos problemas mais diversos: ajuda material e económica, emprego, transferência, melhoria de situação e de salário, internamento no hospital, matricula na escola, filho desorientado, pessoa idosa que se torna peso, pedido de intervenção, assuntos burocráticos pendentes, etc. Querem sobreviver, em plano pessoal, familiar e social. Ao ler e ouvir isto, vem-me à mente a compaixão de Cristo pelo povo, referida por Marcos (Mc 6,31).

Ao acolher o pobre, para servi-lo, dentro das possibilidades, fazemos o que Cristo nos ensinou, quando se tornou irmão nosso: o serviço ao pobre é medida privilegiada, embora não exclusiva, de nosso seguimento de Cristo. No entanto, o melhor serviço a prestar ao pobre é sempre a evangelização: “Dar-lhe testemunho, de maneira simples e direta, de Deus, revelado por Jesus Cristo no Espírito Santo” (Paolo VI, Evangelii nuntiandi EN 26) , Isso o dispõe a realizar-se como filho de Deus e o promove integralmente.

Quem vive imerso no mistério pascal de Cristo sabe que unicamente o Evangelho testemunhado e proclamado, como Ele o fez, leva à autentica e total libertação da humanidade: “Em nenhum outro se encontra a salvação; pois, debaixo do céu, não foi dado aos homens outro nome pelo qual possamos ser salvos” (Ac 4,12 cf. Puebla 1309) .

Sim, com imensas Dioceses e pequenos Presbitérios, compreendo bem o que sentirão quando os domina a compaixão das multidões, pois se trata de gente que busca caminhos de salvação, que confia, afinal, na “verdadeira religião, pura e sem mácula diante de Deus” (Jc 1,27) , e que espera encontrar no Pastor a autentica “sabedoria que vem do alto”, igualmente “pura e, depois, pacífica, indulgente, generosa, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem hipocrisia” (Jc 3,17) ; gente, enfim, que deseja encontrar-se com alguém que vive e “busca primeiramente o reino de Deus e a sua justiça” e que o testemunha e indica aos demais, com simplicidade.

7. Naquele pedaço de mundo marcado pelo esforço, pelas derrotas e vitórias do homem nordestino do Brasil, parte do grande mundo “criado e conservado pelo amor de Deus, que tombou na escravidão do pecado, mas que foi libertado do poder do Maligno por Cristo crucificado e ressuscitado, a fim de ser transformado segundo os desígnios divinos e alcançar o seu fim” (cf. Gaudium et spes GS 2), vive a multidão das pessoas que integram suas Comunidades eclesiais. 12 a riqueza de que dispõe o seu compromisso assumido com Cristo, Bom Pastor, que os Senhores querem satisfazer com generosidade e total doação. E é sobretudo uma multidão de pobres: – pobres, porque realmente em condições de necessidade que suscitam espontânea compaixão (cf. Mc Mc 6,34); – pobres, porque não são ouvidos por ninguém e se vêem forcados a escutar sempre os demais (cf. Sr 9, 16; Dt 1,17); – pobres, porque sós, sem terem alguém que os ajude a encontrar a salvação para a paralisia (cf. Jo Jn 5,7 ss.); – pobres, porque jovens, sem experiência e carecidos de orientação e de perspectivas para o seu desejo forte e generoso de entrar na vida, de vencer e servir(cf. Mt Mt 19,16 ss.); – pobres, porque dominados pelo desamor e pelo ódio; e não há dominador que mais escravize e avilte (cf. 1Jn 3,7 ss.); – pobres, enfim, porque longe de Deus que é Amor (cf. 1Jn 4,8), longe da Verdade que os torne livres (cf. Jo Jn 8,32). .

Todos estes são os pobres a evangelizar, a ajudar a tornarem-se os pobres das Bem-aventuranças; também para eles o Senhor deixou indicado um caminho de felicidade, de fraternidade e de paz: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça”. A nós compete ajuda-los a prosseguir essa busca, mesmo quando eles nos fazem sofrer, se tornam injustos conosco, nos ofendem e nos interpretam mal, suscitando contra nós o “ódio do mundo”, fazendo-nos ir ao Calvário, à procura do bálsamo e da coragem para orar com Cristo: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23,24) .

Na fidelidade a Deus assentam as bases do Reino e a nossa credibilidade de o estarmos a anunciar e a buscar primariamente a sua justiça. Os pobres querem as certezas da esperança que não desilude. Nunca se lhes pode deixar a perplexidade quanto ao fato de que Deus é o único bem absoluto. Está aqui o alicerce da solidariedade que os pobres esperam de nós e, ao mesmo tempo, da dissemelhança com o mundo que eles esperam ver em nós.

8. Neste contexto e dado o ambiente concreto de suas regiões pastorais, vem espontânea a pergunta: Cristo, fazendo sempre o que era do agrado do Pai, multiplicou o pão miraculosamente e matou a fome do povo que o rodeava... Mas as nossas obras assistências e caritativas não passam de gota no oceano das necessidades e, ainda por cima, hoje são postas em questão. Que fazer?

No mundo hodierno, como sempre, as organizações caritativas da Igreja, surgidas de iniciativas generosas e autónomas, continuam a ter amplo espaço e um lugar insubstituível, em subsidiariedade e coordenação com as providencias oficiais. O povo cristão seria infiel ao exemplo e à doutrina de Cristo se não procurasse dar a ajuda possível àqueles que sofrem de toda a espécie de pobreza. O capítulo vinte e cinco de Mateus, sempre inquietante, continua atual para os que dele fazem uma leitura objetiva. A mesma Igreja renegaria algo da sua história e quebraria uma tradição ininterrupta, se deixasse de exercitar a caridade e assistência concretamente: desdiria a glória de muitas de suas instituições e a heroicidade de muitos de seus Santos.

Estas obras da Igreja, aliás, se forem expressão da caridade genuína, como a descreve São Paulo na Carta aos Coríntios (cf. 1Co 13) , nunca deixarão de manifestar-se aptas e de contribuir eficazmente para a promoção e para a educação da sensibilidade dos homens, cada vez mais interdependentes uns dos outros (cf. Gaudium et spes GS 25): podem servir para reconciliá-los e fazer convergir as boas vontades, na participação e comunhão do empenho pelo restabelecimento da justiça para todos, da dignidade de todos e da fraternidade entre todos, numa só família humana.

Isto será conseguido tanto mais facilmente, quando nestas obras da Igreja – em sua pátria concentradas à volta do que tinha a nome programático de “misericórdias” – se buscar primeiramente o reino de Deus, que “não consiste em alimentos e bebidas, mas em justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Quem serve a Cristo com essas disposições é agradável a Deus e aprovado pelos homens” (Rm 14,17-18).

9. É com estas perspectivas – estou certo – na unidade da fé e da caridade no “mesmo Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam” (cf. Rm 10,12) , e na comunhão de doutrina e disciplina da Igreja universal, que se processa o empenho dos Senhores na evangelização dos pobres, dominado pela comum e partilhada preocupação de ter a “quem enviar” (cf. Rm 10,14 ss.): faltam os Sacerdotes, em número e à altura do momento e da crescente população. Coragem, amados Irmãos! A tarefa é árdua, mas não impossível. Estou-lhes presente, em comum imploração “ao Senhor da messe”.

O nosso trabalho de Pastores, como “colaboradores de Deus”, em seu “campo” e seu “edifício” (cf. 1Co 3,9) , tem de verificar a apologia do servo do Evangelho: em todas as nossas iniciativas pelo reino de Deus e da Sua justiça, que transcende as dimensões temporais e terrenas da equidade entre os homens, “uma vez feito o que se nos ordenou” cônscios da fidelidade total ao Senhor Jesus e ao homem por Ele remido, saibamos ancorar no “porto” da paz com Deus, conosco próprios e com os irmãos: “Fizemos o que devíamos fazer”(cf. Lc 17,7 ss.).

Centrado na bem-aventurança dos “pobres” e dos “operadores da paz” o labor pastoral saberá encontrar e suscitar amplas expressões de serviço aos irmãos, dentro da “opção preferencial pelos pobres”, sigilada em Puebla com um “compromisso” dos pastores que estão na América Latina, sem nunca se obscurecerem as exigências do Corpo místico: “Quem, em sua evangelização, excluísse um só homem de seu amor, não possuiria o Espírito de Cristo” (Puebla, 205) .

Concluo com a expressão de votos e confiança: que a união da Igreja que está no Nordeste do Brasil continue a resplandecer na unidade da Igreja universal, hoje aqui celebrada por nós. Disto faço oração, ao saudar, por intermédio dos Senhores, seus Presbitérios, as comunidades religiosas e demais comunidades cristas, as famílias, os jovens e crianças, os anciãos e quantos sofrem, enfim, todos os seus diocesanos. Levem-lhes a certeza de meu afeto e meu encorajamento a viverem a própria vocação crista, na edificação da Igreja, buscando primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, com a ampla Bênção Apostólica, que lhes dou, de todo o coração.



PALAVRAS DO PAPA JOÃO PAULO II


ANTES DA CELEBRAÇÃO


NO PALÁCIO APOSTÓLICO


Segunda-feira, 30 de Setembro de 1985



Meus amados Irmãos!

ESTAMOS AQUI CONGREGADOS, em Igreja, como sucessores do Corpo dos Apóstolos: é Eucaristia e Comunhão este nosso encontro com Deus. Agradecimento e caridade unem-nos em torno da Mesa da Palavra e do Pão da Vida, ao celebrarmos o Sacrifício da Cruz, a universalidade do Povo de Deus e a colegialidade de seus Pastores.

Vamos agradecer, com Cristo, bom e único Pastor, que nos quer sinais e testemunhas da misericórdia e do amor divinos: no Espírito da Verdade, a congregação de Pastores com que entramos no Colégio episcopal; e os nossos encontros fraternos: dos Bispos, sucessores dos Apóstolos, que regem a Igreja de Deus que está no Nordeste do Brasil, com o Sucessor de Pedro. E, juntos, vamos suplicar ao Pai pelas intenções da Igreja universal e das Comunidades confiadas aos seus cuidados pastorais: pelos Sacerdotes e Pessoas consagradas, comprometidos no serviço do reino de Deus; pelo aumento e boa formação de novas vocações; pelos Leigos, chamados à construção de uma sociedade mais de acordo com os planos divinos de amor e salvação; pelo fortalecimento dos laços de união e fraternidade nos lares e nas comunidades; pelos que sofrem, vítimas das intempéries e de desajustes sociais, pelos sem-casa, sem-trabalho e sem-terra; pela actuação das reformas que se apresentam necessárias e para que o amor prevaleça sobre toda a forma de divisão, de ódio e violência, pois só o amor constrói.

Rezemos, enfim, para que no Nordeste e em toda a parte do mundo, Deus seja cada vez mais glorificado, no homem, na Igreja e em Jesus Cristo, único nome pelo qual podemos ser salvos.

E para celebrar dignamente esta Santa Missa, reconheçamos e peçamos humildemente perdão pelos nossos pecados e omissões para com Deus, para com a Igreja e para com toda a Família humana.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DOS REGIONAIS NORDESTE 2 E 3


DA CONFERÊNCIA DOS BISPOS DO BRASIL


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Segunda-feira, 30 de Setembro de 1985



Senhor Cardeal,
Caríssimos Irmãos no Episcopado!

1. O ENCONTRO PESSOAL realizado com cada um dos Senhores, se para os Senhores é um gesto altamente significativo, de comunhão sacramental e hierárquica com o Sucessor de Pedro e portanto de autêntica colegialidade, se para os fiéis de suas Igrejas é motivo de edificação e de amadurecimento na fé, para o Papa é ocasião privilegiada para conhecê-los melhor e conhecer suas Dioceses, através dos Senhores, Pastores dedicados, que, com zelo e simplicidade e não sem sacrifício, se inserem na vida e problemas de sua gente. Aquilo que pude colher da rápida leitura dos Relatórios Quinquenais se completa assim e se enriquece prodigiosamente com os colóquios, infelizmente muito breves, que tenho o prazer de manter com os Senhores.

Por tudo isso lhes sou muito grato. É que, na medida do possível, tudo quanto me é dado ouvir, guardado no tesouro da memória e do coração, passa a fazer parte da “instantia mea quotidiana, sollicitudo omnium ecclesiarum” (2Co 11,28), e se torna objeto de minha constante oração por todos aqueles que, como os Senhores, são para mim irmãos muito caros no pastoreio do rebanho.

2. Neste encontro coletivo com os Bispos dos Regionais Nordeste-2 e Nordeste-3 da Conferência dos Bispos do Brasil - cujo significado o Senhor Cardeal Brandão Vilela tão amável e eloquentemente quis realçar - é impossível não evocar junto com os Senhores a porção nordestina do povo brasileiro, cujo rosto eu pude pelo menos adivinhar (se não conhecer), nas incalculáveis multidões que me foi dado contemplar, há cinco anos, em Salvador e Recife.

Como tive ocasião de manifestar naqueles dias memoráveis, e como tenho repetido tantas vezes desde então, trouxe do contacto com o Brasil a impressão de ter convivido com um povo dotado de uma alma visceralmente religiosa, faminto e sequioso de Deus e aberto aos valores espirituais.

Bem sei que esta “alma naturalmente cristã” é, no caso do Brasil, apesar do esforço missionário de ontem e de hoje, severamente ameaçada por fatores externos e internos. Externos: a crônica escassez de sacerdotes, deixando como ovelhas sem pastor inúmeros fiéis: o proselitismo insidioso e desleal de seitas e grupos religiosos acatólicos; a marcha avassaladora do secularismo, com suas várias faces; a crise dos valores morais. Fatores internos: certo clima de incerteza e ambiguidade no anúncio da fé e das verdades a crer; a consequente germinação de dúvidas e perplexidades no espírito de muitos católicos, sobretudo dos mais simples, quanto ao conteúdo e às exigências da fé; as divisões entre irmãos na mesma fé em torno de questões fundamentais; o perigo de ver delinear-se imagens de Igreja, que nem na teoria nem na prática correspondem com aquela que o Verbo de Deus feito Homem quis e fundou.

Diante deste quadro, com suas luzes que suscitam alegria e esperança e com suas sombras que não é justo nem prudente disfarçar ou ignorar, a responsabilidade aparece em toda a sua extensão e profundidade.

Inspirando-nos na imagem do Bispo que, há vinte anos, os documentos do Concílio projetaram, podemos dizer que aos Senhores, como a todos os Pastores da Igreja, urge o convite do “Supremo Pastor” (1P 5,4) a serem: - edificadores da comunidade eclesial, quer convocando os distantes e congregando-os na fé, na caridade e no culto de Deus Vivo, quer sendo para os fiéis sinais eficazes de unidade sobretudo em meio aos fermentos de divisão, quer tutelando essa unidade quando ameaçada ou em perigo; - anunciadores de Palavra e, por conseguinte, zelosos e luminosos mestres e doutores da verdade revelada, verdade sobre Deus e seu Cristo, sobre a Igreja e sobre o Homem: - pais espirituais, capazes de gerar inúmeros filhos de Deus em Cristo pelo Evangelho (1Co 1,15) e de educá-los na fé fazendo-os crescer até à estatura do Homem perfeito, Jesus Cristo (cf. Ef Ep 4,13); - pastores et guias prudentes, corajosos, mansos, dedicados, compassivos, que querem e sabem orientar pelos caminhos do Evangelho tantos que se encontram dispersos, extraviados, iludidos; - mestres de oração aplicados a ensinar aos fiéis os caminhos da oração e do louvor, da adoração e - por que não? - da contemplação; - santificadores do Povo de Deus que, pela palavra e pelos sacramentos, não desdenham de revelar aos outros aquilo que está para além dos horizontes deste mundo e desta vida, e que dá sentido pleno a este mundo e a esta vida.

A Palavra de Deus nas Escrituras, o Magistério da Igreja, a consciência de cada Pastor e a voz - mais ou menos clamorosa, mas sempre clara e imperiosa - dos próprios fiéis estão a dizer continuamente que um Bispo não realiza a plenitude da sua vocação e missão, se não cumpre com desvelo cada uma dessas dimensões do seu múnus episcopal.

3. Na fidelidade escrupulosa à sua missão, primordialmente espiritual e religiosa (cf. Gaudium et spes GS 42), a Igreja não pode desatender ao seu dever diante dos problemas que afligem o homem e, especialmente, das situações que o ofendem na sua condição de pessoa humana e de filho de Deus. Nas regiões em que os Senhores foram postos como Pastores, imensas massas humanas sofrem - e nelas Cristo revive de algum modo a sua Paixão - o drama do subdesenvolvimento e da marginalizarão com suas várias faces esquálidas: subnutrição quando não o espectro da fome, enfermidades, mortalidade infantil, etc. Diante da tentação, não hipotética nem tão rara, de refugiar-se no fatalismo, senti o dever de dirigir aos mais pobres entre os pobres, nos Alagados de Salvador, um forte apelo: Deus não quer vocês vilipendiados, rebaixados a urna vida infra-humana, mergulhados na miséria. Deus os quer criaturas humanas e filhos seus, revestidos da dignidade que isso comporta.

4. Com o pensamento voltado para aqueles irmãos nossos e levado pelo clima de confiança deste nosso encontro, Senhor Cardeal e Senhores Arcebispos e Bispos, não resisto ao desejo de propor-lhes uma reflexão que considero da maior relevância. Reportando-me a conceitos, que mais uma vez exprimi, recentemente, por ocasião do Dia Mundial da Alfabetização (cf. João Paulo II, Nuntius scripto datus ob diem alphabeticae institutionis inductioni per orbem dicatum, 7 de setembro de 1985: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, VIII/2 [1985] 594 s.), ouso afirmar que não existe possibilidade nem chance de desenvolvimento, de integração social (e portanto da vitória sobre a marginalização) nem de autêntica libertação! se não se começa por eliminar o analfabetismo, dar instrução, educação de base, cultura. A história antiga e recente de muitos povos confirma a verdade desta convicção. Não se opera verdadeira reforma de estruturas, não se cria a nova ordem social, não se realiza a genuína libertação com analfabetos.

Facilitar a alfabetização e a educação básica é um serviço fundamental que se presta a uma multidão de marginalizados. Um homem que aprende a ler e a escrever compreende melhor a necessidade da higiene, tem mais possibilidade de cuidar da saúde, conhece melhor os próprios direitos e deveres, sente o desejo de participar, começa a pôr-se de pé, começa a realizar a própria libertação, não a que lhe querem impor mas a que lhe convém.

Para que isso suceda, o processo de alfabetização deve respeitar algumas leis internas. Na impossibilidade de comentá-las todas, recordo urna das mais imperativas: a alfabetização deve ter por finalidade única a cultura e o desenvolvimento integral do homem alfabetizando. Este princípio deveria bastar para esconjurar qualquer processo de alfabetização que, por seus métodos ou seus objectivos mais ou menos velados, tendesse a “conscientizar” o alfabetizando, se a este termo se dá o sentido de condicioná-lo a uma determinada ideologia ou esquema mental de tipo sócio-político, diminuindo a sua liberdade de discernimento e de opções pessoais. Outra coisa é e se por “conscientizar” se entende “despertar a consciência da própria dignidade de pessoa humana com seus direitos e deveres”. Uma alfabetização que conduzisse enganadoramente o alfabetizando a uma sujeição ideológica não seria um processo de libertação, mas de uma nova escravidão, tanto mais grave quando vestida das aparências da libertação.

5. Como não sublinhar, neste ponto, a conaturalidade que existe entre a missão da Igreja e o esforço de instruir e educar? O título que ela recebeu desde as origens, de Mãe e Mestra, é a melhor expressão da sua vocação primogênia a ensinar e educar. Durante toda a sua história ela tem sido fiel à função educativa: basta pensar na actividade marcante dos Mosteiros e Abadias, na antiguidade; na criação das primeiras Universidades, na Idade-Média; na fundação de Ordens e Congregações religiosas com o carisma preponderante do ensino e da instrução; no grande número de instituições educativas criadas e mantidas pela Igreja em todos os quadrantes da terra. A contribuição da Igreja no campo educacional e cultural só pode comparar-se com a que ela presta e sempre prestou no campo da saúde e da assistência aos mais necessitados.

Essa verificação constitui, fora de dúvida, uma interpelação à Igreja para que, em contextos como aqueles em que os Senhores são chamados a agir, ela aceite o desafio de assumir também o papel de protagonista, junto com outros organismos governamentais ou privados, da obra de alfabetização. Ela o está fazendo em alguns Países e poderia fazê-lo em outros mais, com a viva consciência de que, fundada no amor do Redentor, está a servir para que floresçam a justiça e a caridade (cf. Gaudium et spes GS 76) e a dar assim uma contribuição válida para o desenvolvimento integral de imensas massas marginalizadas. A serviço dessas, ela se lança na única revolução que ela sabe e pode fazer: a revolução do amor. Neste caso, mediante a pacífica, construtiva, fecunda, eficaz e libertadora revolução do livro e da pena.

6. A importância vital deste tema diminuirá talvez a surpresa que poderia causar sua escolha em um discurso como este. Estou certo, ademais, de que os Senhores compreenderão nos seus justos termos, acolherão com generoso empenho e traduzirão em obras o grave apelo contido nestas considerações com as quais desejei assinalar este nosso encontro.

É um apelo que se dirige a Bispos do Nordeste mas também - por que não - aos Bispos brasileiros em geral: apelo a uma forma concreta do “misereor super turbam” (Mc 8,2) . No afã de participar do progresso material, moral e espiritual do País, não cabe aos Senhores propor soluções técnicas ou alternativas político-partidárias, mas é seu direito-dever oferecer uma contribuição profundamente humana como é a da alfabetização.

Contribuição de suma importância - repito - porque desencadeia consequências valiosas, na linha do desenvolvimento e da evangelização. Confio, pois, aos Senhores a tarefa de estudar e dar sugestões e a melhor colaboração a outras instâncias interessadas, com um plano de ajuda efìcaz à alfabetização e educação de base das populações analfabetas. Ninguém pretende que a colaboração da Igreja, orientada pelos Senhores, solucione o problema, que como os Senhores mesmos me informam, é ainda grave no País. Mas essa colaboração será certamente frutuosa para resolver uma parte do problema e provocar outros esforços. Milhões de famílias lhes serão gratas por isso. Deus os abençoará. E pode ser que um dia o próprio Cristo lhes diga, à soleira do seu Reino: “Eu era analfabeto e me ensinastes a ler, a escrever, e a contar”.


Discursos João Paulo II 1985 - Segunda-feira, 24 de Junho de 1985