Discursos João Paulo II 1986




                                                                 Janeiro de 1986

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL


SUL-1 EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


17 de Janeiro de 1986



Senhor Cardeal
e veneráveis Irmãos,
Bispos das Igrejas que estão no Estado de São Paulo

1. Dou graças a Deus, de todo o coração pela alegria intensa que constitui para mim este encontro com os Senhores, que integram o Regional Sul-l da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o qual abrange as Dioceses do belo Estado de São Paulo. Aguardei na oração a sua chegada, anticipando-a no meu espírito, com o vivo desejo de os ver e ouvir, um por um, e neste encontro todos juntos, para lhes comunicar algum dom que os possa “confirmar, ou antes, para que possamos consolar-nos juntos, pela fé que nos é comum, aos Senhores e a mim” .Que isso aconteça, para maior fruto de sua missão de Pastores, que velam e guiam o rebanho que o Senhor lhes confiou, de boa vontade, não como dominadores, mas como modelos do mesmo rebanho.

Com um só coração e uma só alma, adoremos a Cristo, que nos escolheu para o serviço do Evangelho, certos de que Ele está conosco, neste colóquio, síntese ideal daquilo que conversamos nas audiências privadas. Culmina aqui sua visita “ad limina”, com que desejaram reafirmar a comunhão entre os Senhores, Bispos da Região Paulista, e o Bispo de Roma, Sucessor de Pedro; e a perfeita união de mente e de coração que existe entre as suas Igrejas particulares e a Igreja de Roma.

2. Bispos de una região brasileira onde o anúncio do Evangelho e a edificação de Igreja remontam aos primórdios da história das Terras de Santa Cruz para aquém da descoberta, os Senhores são herdeiros e guardiães de uma tradição de valor inestimável. A essa tradição importa atender e a ela ir beber constantemente, não para que ela refreie a caminhada, mas permaneça impulso na mesma e força viva, e enriquecer, no cadinho da realidade presente, o “tesouro do pai de família que, avisado, dele sabe tirar coisas novas e velhas” .

É forçoso recordar aqui, como símbolo, um nome que está identificado com a história do Brasil cristão e, particularmente, com a história de São Paulo: o Beato José de Anchieta, “o Apóstolo do Brasil”. Ele despendeu a vida entre os seus “brasis”, no empenho generoso de “salvar as almas para a glória de Deus”. Guiado por uma visão realista e por um espírito evangélico admiráveis, e dedicando-se incansavelmente a múltiplas atividades, também de promoção humana e de cunho cultural, tudo ele soube orientar para o bem verdadeiro do homem, destinado e chamado a viver como filho de Deus, em fraternidade, em família. Anchieta era, antes de mais, um homem de Deus; e o segredo de sua tão ampla e eficaz atividade missionária e de promoção humana era a sua fé. A semelhança de Paulo Apóstolo, demonstrava saber em quem acreditava: “Scio cui credidi...”

Foi ele, juntamente com um punhado de irmãos, santos só de Deus conhecidos, que marcou o rumo da história de uma população ativa, laboriosa e empreendedora, impregnada de espírito cristão, que mais tarde se adentrou para o interior do imenso território brasileiro, levando uma mentalidade e um tipo de costumes que incidiram, certamente, sobre a Nação que se estava a plasmar, com a conhecida brasilidade. De algo me pude aperceber, durante a visita pastoral ao seu País, quando tive a alegria de estar com a sua gente, em São Paulo, Aparecida e São José dos Campos. Vivem na minha memória e saudade essas jornadas radiosas.

3. Estas evocações e referências ao passado, minimamente me desviam o olhar do presente, de uma vasta Região, que é uma amostra bem completa do Brasil, com a luz e sombras que o caracterizam. Mas prevalece a luz, como pude concluir dos encontros pessoais com os Senhores. Há no conjunto, os sinais que fazem do nosso tempo uma época histórica maravilhosa, pelo que a humanidade já alcançou e construiu; mas marcada também por inquietude, incerteza e sofrimento.

A ciência e a técnica, conjunta ao trabalho e ao espírito de iniciativa, semearam o solo paulista de fabricas e centros industriais fazendo afluir aí um grande número de brasileiros, em busca de trabalho e de dias melhores. Infelizmente, porém, a moldura esquálida de cidades grandes, onde emergem as favelas, dão contrastes demasiado vivos ao cenário, em que o homem deveria ser o protagonista da própria existência. A isto juntam-se múltiplos fatores que longe de favorecerem um tipo de vida autenticamente humana a deterioram ainda mais. Muitos, condenados a uma situação infra-humana, facilmente são tentados a enveredar por caminhos que não levam à vida: violência, erotismo, droga e materialismo prático. E sabemo-lo, um mal nunca se vence com outro mal.

Cristo escolheu e enviou os Senhores, neste momento histórico, para evangelizar entre esse povo as maravilhas do seu amor. A gente de suas Dioceses vive as contradições do nosso tempo, com todas as possibilidades de bem que encerra e com todas as formas, antigas e novas, de mal, que acompanham a caminhada do progresso.

4. Conhecer e compreender a realidade maravilhosa e tremenda que é o homem, com a sua circunstância captar a sua necessidade profunda de amar e de ser amado e avaliar as suas aspirações legítimas pela justiça, pela paz e pela fraternidade, são coisas indispensáveis aos Pastores de almas. E estou certo que os Senhores disto se preocupam. Contudo, a tarefa primária da nossa paternidade espiritual é anunciar e testemunhar Cristo, transmitir e servir a fé em Deus, não para alienar, mas que para que cada homem possa encontrar para a própria vida, com todas as suas dimensões, o sentido último, unificante e apaziguador.

Haveria muito que dizer-lhes, queridos Irmãos, na imensidade dos problemas com incidências pastorais de que me falaram, no quadro da concentração industrial, da agricultura sofrida, das mudanças culturais profundas e do acúmulo de verdadeiros dramas humanos: desemprego, falta de habitação, famílias sem lar, jovens e crianças abandonados à rua. E, dentro da vida eclesial, problemas de envelhecimento e rarefação dos Sacerdotes, decaimento da prática religiosa, avanço das seitas, com desconforto e desajuste de tantos cristãos, perplexos e a interrogar-se. E numerosos foram entre os Senhores os que me confidenciaram suas preocupações a respeito dos Seminários.

Cada um destes assuntos poderia ser objeto de permuta interessante entre nós, ou de uma alocução apropriada. Isto não se apresenta viável. Mas não deixou de ser útil que tivessem confiado ao Papa e aos Dicastérios Romanos os seus cuidados; mesmo sem lhes darem soluções imediatas, eles os registraram na memória do espírito e do coração, como problemas postos à Igreja para a sua pastoral comum.

5. Desejaria que os Senhores levassem da sua visita “ad limina”, com a reavidada consciência da Colegialidade episcopal, que serve o seu ministério pastoral e por ele deve ser servida, algo que pudesse ser, não novidade, mas “mensagem” para o Povo de Deus: mensagem vital. Isto tem sido e vai continuar a ser para mim objeto de súplica ao Deus da paciência e da consolação, implorando que tenham uns para os outros os mesmos sentimentos, segundo o espírito de Cristo, para que num só coração e com uma só voz, glorifiquem a Deus , em comungado “sentire cum Ecclesia”.

Gostaria de dispor de espaço para discorrer aqui, junto com os Senhores, sobre o significado e alcance da realidade da comunhão na Igreja, na linha em que o fez o recente Sínodo dos Bispos, em eco ao Concílio, passados vinte anos. Isso serviria o resplendor daquela eclesiologia de comunhão, que não pode reduzir-se às meras questões de organização, ou àquelas que se referem a meros poderes, mas que é o fundamento da ordem e harmonia na Igreja e, antes de mais, da reta relação entre a sua unidade e a pluriformidade .

A insofismável conexão da mesma Igreja com Cristo, “que é sempre o mesmo, hoje, amanhã e por todos os séculos” , e que jamais pode dissociar-se do mistério da sua Cruz e Ressurreição, confere à fórmula antiga e sempre nova do “sentire cum Ecclesia” a prioridade absoluta em nossas programações e atuações pastorais. Co-responsabilidade apostólica, comunhão eclesial e conversão e reconciliação permanentes constituem os gonzos em que assenta esse “sentire”.

E, não seria necessário frisá-lo, trata-se da única Igreja de Jesus Cristo, que no Símbolo professamos una, santa, católica e apostólica, com a sua índole escatológica, luminosamente apresentada no número oito e no capítulo sétimo da “Lumen Gentium”. Ainda que fora do seu corpo se encontrem elementos de verdade e de santificação, essa Igreja, como sociedade constituída e organizada neste mundo, subsiste na Igreja Católica.

O conhecido cânone trezentos e trinta e três do Código de Direito Canônico, ao lembrar que o Romano Pontífice está sempre em comunhão com os Bispos e com toda a Igreja no desempenho do seu múnus, lembra também o direito que lhe assiste de determinar o modo de melhor o desempenhar; e faz referência, no cânone seguinte, às pessoas e às instituições que ele pode mandatar, de diversas formas, para, “em seu nome e por sua autoridade” desempenharem encargos, “para bem de todas as Igrejas”.

6. E sentir com a Igreja, amados Irmãos, alegrar-se com ela por tudo o que é verdadeiro, justo e válido nas instituições temporais a serviço do homem; ver com satisfação os esforços que visam promover os direitos e as liberdades fundamentais da pessoa humana; preconizar com ela as reformas que tenham como objetivo uma sociedade mais justa; animar mesmo os responsáveis pelo bem comum e empreender essas reformas, de acordo com os princípios éticos e cristãos. Mas sentir com a Igreja não se coaduna com reduzir ao sócio-político a sua missão. É sentir com a Igreja desenvolver uma pastoral específica para os pobres, assumindo o compromisso com a opção preferencial – não exclusiva, por certo, mas prioritária – por anunciar-lhes a mensagem da libertação plena: a mensagem da Salvação; mesmo lembrar aos pobres que eles estão próximos do Reino de Deus, que não lhes é permitido reduzirem-se à miséria, que devem fazer tudo o que é lícito para a superar; dizer aos que estão no bem-estar que usufruam do seu trabalho e diligência honesta sem se fecharem, mas pensando nos que estão carentes e sabendo partilhar com eles.

Mas é fazer tudo isto com a finalidade primária de que cada homem encontre a Cristo e com Ele percorra os caminhos da vida; é fazer com que Cristo nasça nos seus corações, pela ação do Espírito Santo, por meio da evangelização, anúncio da libertação do pecado e da comunhão com Deus. Deste modo, sentir com a Igreja não se compadece com aceitar os graves desvios que algumas “teologias da libertação” trazem consigo.

7. A preocupação de “sentir com a Igreja” não deixará, por certo, de estar subjacente à generosidade com que se dedicam ao próprio múnus, na sua tríplice dimensão: de anunciar o mistério da Salvação e de velar pela qualidade da sua apresentação; de presidir a oração do Povo de Deus e velar por que os Sacramentos sejam celebrados como se deve; e de ser, enfim, pais e pastores de todos, como o Bom Pastor, com particular atenção aos mais diretos colaboradores.

A este, aos seus queridos Sacerdotes, quereria referir-me, brevemente, pois são os autênticos educadores na fé, tarefa que exige muita clareza em “sentir com a Igreja”. Sobre a grande importância e urgência a dar a formação permanente dos Sacerdotes e dos candidatos ao Sacerdócio, já me detive com outro grupo de Irmãos Bispos brasileiros. Os membros do Presbitério e os que se preparam para integrá-lo, hão-de verificar sempre as condições de “sal da terra” e de “luz do mundo”. Por isso se lê no “Presbyterorum Ordinis” : “Pelo chamamento e pela ordenação, são segregados, de algum modo, do seio do Povo de Deus, não para se separarem desse Povo ou de qualquer homem, mas para se consagrarem totalmente à obra para que o Senhor os assume”: a favor dos homens, sim, mas nas coisas respeitantes a Deus.

Como sugestão, na “Relatio finalis” os Padres do último Sínodo, em vista de uma melhor aplicação do Concílio, expressaram-se assim: “A formação dos candidatos ao Sacerdócio deve merecer o máximo cuidado. Nesta formação cuide-se da formação filosófica e do modo de ensinar a Teologia proposto pelo Decreto "Optatam Totius"”.

8. Outro empenho que a situação sócio-cultural, que pude auscultar falando com os Senhores, indica como particularmente urgente é o da pastoral familiar. A família é a célula fundamental da sociedade, viveiro das gerações futuras e “igreja doméstica”. As profundas e rápidas transformações que caracterizam o nosso tempo e a sua Região Paulista exigem da Igreja uma renovada solicitude neste delicado setor da pastoral.

Impõe-se, despertar nas consciências a preocupação pelas realidades espirituais e eternas e o senso do primado dos valores morais, que são os valores da pessoa humana como tal . E para obviar a potenciais forcas desagregadoras da instituição familiar, que o progresso moderno, com os seus recursos, pôs nas mãos do homem, é necessária uma continuada evangelização, mediante assídua e incisiva instrução religiosa, catequese, prática sacramental e oração.

Para tudo isto há que aproveitar os bons préstimos dos movimentos e organizações eclesiais para a espiritualidade e apostolado da família. Ao que me resulta, eles tiveram uma certa florescência em suas Comunidades e ainda agora aí se encontram operantes, com bom êxito. Que sejam estimulados em seu empenho na salvaguarda e promoção do amor vivido segundo Deus e em ajudar as famílias a serem fermento ativo, para a animação cristã do ambiente A Igreja, que transmite o ensino de Cristo, proporciona critérios seguros para que os casais cristãos possam realizar-se e ser felizes na própria escolha de vida, em fidelidade ao ideal do amor-comunhão e aos deveres que lhes impõem a fecundidade e a educação dos filhos.

Nesta linha, vai um apelo à pregação, em particular à homilia, dado o seu alcance e função, “sempre cuidadosamente preparada, substanciosa e adaptada e reservada aos ministros sagrados”. E vai um apelo também às escolas e meios de comunicação de massa: é preciso envidar todos os esforços em prol de uma moralidade de base que tem sido força secreta do Povo brasileiro.

9. Meus amados Irmãos:

Não quereria terminar este grato encontro sem ir em espírito ao Santuário de Aparecida, bem conhecido e caro pela incidência na vida cristã no Brasil, e sobretudo em suas terras, que dele estão mais próximas. Ele eleva o nosso pensamento para Maria Santíssima, a Mãe de Jesus, que “brilha, como sinal de esperança segura e de consolação, aos olhos do povo de Deus peregrino” . No mistério de Cristo, Ela tem um lugar muito particular: o da mulher que acolhe jubilosa o amor de Deus e se lhe entrega completamente; e o da mãe, que gera o Verbo Encarnado, acompanhando o seu crescimento humano e a sua missão; e dilata depois a sua maternidade a toda a Igreja. Ela constitui modelo ideal de amor ao Pai, de união com Cristo e de docilidade ao Espírito Santo, de serviço à Igreja e de caridade para com todos os homens. Assim importa apresenta-la, cultuá-la e imitá-la.

Que Nossa Senhora Aparecida ajude as Comunidades diocesanas consagradas aos seus cuidados de Pastores e ajude todo o querido Povo brasileiro.

Que os inspire no seu devotado ministério quotidiano e realidade da Igreja-comunhão. E que os acompanhe a certeza do meu afeto e da minha oração, para que Deus abra caminho e torne eficaz o seu generoso trabalho pastoral.

Levem uma saudação muito cordial aos Presbitérios, aos Religiosos e Religiosas, aos Leigos comprometidos nos ministérios ou em tarefas específicas de apostolado e a todos os Fiéis – crianças, jovens, adultos e anciãos – de suas Comunidades, com uma ampla e afetuosa Bênção Apostólica.



                                                        Fevereiro de 1986

MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DA ABERTURA


DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE DO BRASIL


12 de Fevereiro de 1986

Meus amados irmãos e irmãs em Jesus Cristo,
queridos Brasileiros:

1. Promovida pelos senhores Bispos, vai começar mais uma Campanha da Fraternidade neste dileto País. Nesta Quaresma, tempo de conversão e penitência, ela se destina a preparar a Páscoa: a passagem do Senhor. É chamado a maior empenho em vivermos como filhos de Deus e todos irmãos em Cristo: é apelo à salvação e à ajuda fraterna, para que todos tenham a Vida, se tornem livres em adesão à Verdade e trilhem o Caminho da purificação do pecado e da libertação do mal que ele traz consigo, em plano pessoal, social e estrutural.

É apelo a todos os que peregrinamos para o “novo Céu e nova Terra” nesta “terra de Deus, terra de irmãos”.

É este o tema da Campanha que hoje tenho a alegria de abrir. É um programa-convite, sobre o qual as pessoas e comunidades da Igreja que esta no Brasil vão refletir e rezar. Mas interpela todos os homens de boa vontade, para que se conscientize e realize no imenso solo brasileiro o desígnio divino que o quer, cada vez mais, “terra de Deus, terra de irmãos”.

2. Páscoa é “passagem do Senhor”. Celebrar a Páscoa é evocar a experiência do Povo escolhido, quando foi libertado da escravidão do Egito e Deus lhe fez o dom da “terra prometida”, depois de purificado; mas Páscoa, para nós, é sobretudo reviver o Mistério pascal de Cristo; não apenas como fato histórico, mas como realidade que se perpetua, torna presente a sua morte e ressurreição, na Liturgia e no centro da vida e peregrinação eclesial, comunitária e pessoal dos cristãos.

Para animar esta caminhada, hoje lembro apenas dois quadros da divina pedagogia: o primeiro, tracejado por Cristo, encerra a história de um homem rico que “todos os dias se divertia com luxo”, enquanto “jazia ao seu portão, coberto de chagas e desejoso de matar a fome” com o que “caía” da sua mesa, o pobre Lázaro; o outro quadro, mais sintético, é o da profecia de Jeremias: “os pequeninos pediram pão, e não havia quem lho desse” . Em ambos há denúncia do pecado: o amor de si mesmo levado até ao desprezo de Deus, no irmão pobre, na idolatria.

3. “Terra de Deus, terra de irmãos” – que dizer: reconhecer Deus como Senhor, Legislador e Juiz; acolher Cristo e reconhecer que Ele, quando da sua Páscoa na terra dos homens os proclamou “todos irmãos” .

E Cristo continua a passar, nas áreas indígenas, rurais e urbanas do Brasil, convidando a todos a terem parte na sua Páscoa, identificando-se com:

– o irmão sem terra e sem trabalho, a gritar a falta de sentido da própria existência sofrida;

– o irmão sem casa, que dorme pelas beiras das calçadas, a gritar o frio de não ter lar, do desamor e falta de calor humano;

– o irmão analfabeto, “sem voz nem vez”, gritando a sua condenação ao subemprego e mendigando a própria participação;

– o irmão doente ou que vive atrás das grades da cadeia, a clamar: eu não quero ser um marginal;

– o irmão sedento, porque houve o flagelo da seca, a aumentar a sua sede de justiça, amor e fraternidade;

– o irmão faminto, que mostra toda a sua fome de pão e fome de Deus.

Todos estes deixam entrever o rosto de Cristo. Para todos estes é necessário a “terra de Deus” tornar-se cada vez mais “terra de irmãos”. Ajudemo-los!

É este o caminho da fraternidade, em direção à Páscoa litúrgica e à Páscoa eterna, onde Cristo nos espera, para dizer: “a Mim o fizestes”! “Vinde benditos de meu Pai, entrai na posse do reino que vos está preparado desde a criação do mundo” .

Para que vos prepareis esta acolhida de Cristo, dou-vos a bênção, em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amen!



                                                               Março de 1986

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL LESTE-1


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Sábado, 1º de Março de 1986

: Senhor Cardeal,
queridos Irmãos no Episcopado

1. Com sentimentos de íntima alegria lhes apresento a minha cordial saudação, neste encontro coletivo, momento culminante de sua visita “ad limina Apostolorum”. Com o Apóstolo, dou graças a Deus, por Jesus Cristo, a respeito dos Senhores, Arcebispos e Bispos do Regional Leste-1 da CNBB, que abrange as Províncias eclesiásticas do Rio de Janeiro e de Niterói, região muito bela de seu País-continente. Nesta ação de graças se inclui o meu fraterno apreço pelo testemunho de zelo e dedicação, com simplicidade e pobreza, com que procuram estar presentes ao rebanho que o Senhor lhes confiou e inserir-se e comungar na vida e problemas de seu povo.

Ao falar-lhes, guia-me a intenção de os “confirmar”, ou antes, aproveitar esta ocasião privilegiada “para que possamos consolar-nos juntos, pela fé que nos e comum”(cf. Rm Rm 1,8 Rm Rm 1,11) . Em nós se perpetua o Corpo Apostólico, em virtude da consagração sacramental e da comunhão hierárquica: a Colegialidade, que estamos a viver e celebrar, nesta hora, sob o signo do respeito, entreajuda e amor recíprocos e fraternais. Ilumina-nos Cristo e a sua Palavra, quando apontava na unidade da caridade a quinta essência do discipulado.

2. A presença dos Senhores – cujo significado foi tão eloquentemente expresso pelo Senhor Cardeal Dom Eugênio de Araújo Sales – reaviva no meu ânimo aquele mundo de sentimentos, vividos quando visitei o Brasil e me foi dado encontrar-me com o povo de suas terras, mais precisamente, com multidões imensas na “Cidade maravilhosa” do Rio de Janeiro. Das muitas e gratas imagens que vivem na minha memoria da inolvidável visita pastoral, de há quase seis anos, aflora hoje ao meu espírito a da luz, com os seus mil e um cambiantes.

Hoje, recordo em especial: a luz que se derramava, naquela manhã, do morro do Corcovado, como que a desprender-se da estátua que aí figura a “Vida”, que “era a luz dos homens” e “resplendece nas trevas”: Cristo Redentor. Ela atenuava os contrastes; e os homens na Cidade apareciam menos diferenciados, mais iguais em humanidade. Simultaneamente, porém, a luz já filtrada pelos bosques circunstantes que, a custo, iluminava o Vidigal, projetando aí, sobre os homens das favelas, sombras; sombras que os imobilizam e marginalizam e os fazem aparecer profundamente diferenciados em humanidade.

Corcovado e Vidigal, luz e sombras, assumidos como símbolos, parecem refletir as situações humanas, sociais e religiosas de sua vasta Região pastoral, onde a natureza foi pródiga em espargir beleza, diante da qual nos vem espontânea a glorificação do Criador, diretamente com o Salmista (Ps 104 [103], 2; Ps 148), ou então traduzido pelo “Pobrezinho” de Assis, no seu “Cantico das Criaturas”.

3. É neste quadro que eu situo o seu labor quotidiano de Bispos. Sei que os preocupa encontrar o caminho para que gradualmente desapareçam as “sombras”; desapareça, em particular, “o abismo que separa os "excessivamente ricos", pouco numerosos, das multidões dos pobres, daqueles que vivem na miséria”; sei que desejam, também os Senhores, à semelhança de São Paulo, compartilhar com todos, “Não só o Evangelho, mas a própria vida”(cf. 1Th 2,8) ; sei que se empenham em suscitar “coraçõoes puros” de maus sentimentos, que vitalmente digam Não à indiferença, ao desinteresse, a todas as formas de desamor; e Sim à solidariedade, à fraternidade, e ao amor, porque “Deus é amor (1Jn 4,16)”. (cf. João Paulo II, Discurso na visita à Favela do Vidigal, Rio de Janeiro, 2 de Janeiro de 1980).

Ao mesmo tempo – dizem-no os seus Relatórios – vejo-os Pastores preocupados em acertar com o modo melhor de levar cada pessoa, “onde quer que esteja, no lar, no local de trabalho ou de encontro, no transporte, na rua, no hospital, no presídio...” a ouvir o convite do Papa e a conseguir, juntamente com os outros e com toda a verdade, rezar como Cristo ensinou: Pai nosso... venha a nós o vosso reino” (cf. Cf. João Paulo II, Visita ao Corcovado, 3, Rio de Janeiro, 2 de julho de 1980)

A intenção do Pastor do rebanho do Senhor não pode ser outra: apressar a vinda do reino de Deus, levando os fiéis a viver e operar em comunhão de caridade, como verdadeira família. Para isto servem e são indispensáveis os meios de acesso aos dons de Cristo, feitos à Igreja e ao mundo: profissão da fé, vida sacramental e litúrgica, participação efetiva na vida comunitária, sob a orientação dos legítimos pastores, a fim de que resplandeça em todas as comunidades locais, congregadas pela pregação do Evangelho, o corpo da inteira fraternidade, unido por meio da carne e sangue do Senhor (cf. Lumen Gentium LG 26). Mas precisam também de ser iluminados por idéias esclarecidas acerca do mesmo reino de Deus.

4. Estas idéias, subjacentes às alocuções que tenho dirigido aos grupos de Irmãos Bispos brasileiros que os precederam, representam os fundamentos de nossa missão de Bispos, constituídos pais da Igreja, para dispensar os mistérios divinos, mestres e pastores, com autoridade recebida de Deus. Sabemos bem, amados Irmãos, que a continuidade de Cristo que asseguramos não é algo meramente histórico. Na pessoa dos Bispos... é o próprio Senhor Jesus Cristo, Pontífice supremo, que continua presente entre fiéis (cf. Lumen Gentium LG 21).

Ao difundir multiforme e abundantemente, a plenitude de santidade de Cristo, rezando e trabalhando, devemos ajudar com o próprio exemplo aqueles que governamos e estar sempre cônscios de que é “o Espírito Santo quem unifica na comunhão e no ministério e enriquece com diversos dons hierárquicos e carismáticos a Igreja, através dos tempos; é Ele que dá vida às instituições eclesiásticas, sendo como que a alma delas” (Ad Gentes AGD 4). Entretanto, há uma só Espírito, como há uma só esperança no chamamento que recebemos (cf. Ef Ep 4,4).

Como Pastores, guardiães da comunhão de fé e de caridade na Igreja, impõe-se-nos saber descobrir, fomentar e coordenar da melhor maneira os diversos ministérios e carismas, com que o Senhor quer enriquecer o seu Povo.

5. O recente Sínodo dos Bispos, ao falar da maior consciência da Igreja, de sua missão ao serviço dos pobres, dos oprimidos e marginalizados, após Concílio, anotou, em termos de dever para a mesma Igreja, a função da “denunciar, de maneira profética, toda a forma de miséria e de opressão”, defendendo e fomentando em toda a parte os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana (cf. Synodi Episcoporum Extraordinariae 1985 Relatio finalis, II, D, 6). Isto, obviamente, sem prescindir nunca dos intocáveis – passe a expressão – “direitos” de Deus.

Quando se fala de denúncia profética, é preciso determinar bem o significado que toma o termo “profética”, no contexto do Novo Testamento e como participação no múnus profético de Cristo hoje; ademais, supõe-se o enquadramento do impulso que leva a fazer a “denúncia” no conjunto dos dons e carismas do Espírito Santo, na atual economia da graça.. E então podemos dizer que há movimentos de renovação e de reforma na Igreja, e por vezes fora dela, que dependem de pessoas e atitudes proféticas, que intentam fortalecer a esperança e podem dirigir a humanidade para um novo porvir.

Para ser algo mais do que simples designação nominalista a “denúncia profética” precisa de verificar as devidas condições, contidas na Revelação divina e na Tradição – como é conhecido – e que foram esboçadas nas Conclusões da Conferência de Puebla (Puebla, 377 ss.). Dentre estas condições, limito-me a mencionar: a conformidade com a fé e a aceitação do dom do discernimento na comunidade, com prontidão para se submeter ao juízo da mesma comunidade. Só quem sente não verificar as condições devidas, ao fazer uma “denúncia profética”, busca evitar esse juízo – lê-se no Pastor Hermas – mostra as suas artes apenas no cantinho dos cristãos fracos e vacilantes (cf. Hermas, mand. 11, 2 ss: Funk, 505). .

6. Em toda a pastoral social e na ação dos leigos na sociedade, é preciso entender e respeitar integralmente a missão salvífica da Igreja em relação ao mundo, como frisava ainda o Sínodo dos Bispos; e desenvolver essa atividade sempre na perspectiva da mesma Igreja.. Como Mãe e Mestra, ela exorta os seus filhos a saberem discernir e iluminar, as situações, os sistemas, as ideologias e a vida política... a partir do Evangelho, lido pelo seu ensino social. Quer dizer, os cristãos devem apoiar-se na Doutrina ou Ensino Social da Igreja, onde se expressa “o que ela possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade” (Paulo VI Populorum Progressio PP 13) .

Por outras palavras: o trabalho pastoral e o empenho cristão no campo social devem aparecer como decorrência da fé; e não como fruto de ideologias. Nem o Evangelho nem o ensino social da Igreja que dele provém são ideologias; pelo contrario, representam para estas “poderosa fonte de questionamento”. Entretanto, a originalidade sempre nova da mensagem evangélica precisa de ser permanentemente defendida das tentativas de ideologização (cf. Puebla, 539) .

Só quando têm consciência clara da motivação de Fé, da qual decorre o compromisso apostólico global, e este enquadrado na missão salvífica da Igreja, é que a pastoral e a ação social poderão impregnar do fermento do Evangelho, purificar e ordenar as realidades temporais e pô-las ao serviço da instauração do reino de Deus.

Sobre esta plataforma comum, impõe-se que todos falem a mesma “língua”, aprendida na fidelidade a Cristo e na obediência ao Evangelho, sem reduções nem extrapolações, que haja uma só “luz” para a leitura dos “sinais dos tempos”, em “clima” de serena e genuína caridade. E então a gente entenderá e receberá a mensagem da reconciliação e do amor, que a Igreja no Brasil quer viver e proclamar.

7. Neste ponto, quereria ter uma palavra afetuosa para os seus Sacerdotes, seus Presbíteros, os seus queridos Padres. Desejaria possuir o ascendente da santidade que exortava Inácio de Antióquia, para lhes encarecer a mensagem bem atual do glorioso Mártir: “conservai-vos unidos, pela graça, na única fé e em Jesus Cristo... ao mesmo tempo filho do homem e Filho de Deus, para obedecer, em harmonia de sentimentos, ao Bispo e ao Presbitério, partindo um mesmo Pão, Pão que é remédio de imortalidade e nos faz viver em Jesus Cristo para sempre” (S. Ignatii Antiocheni Ad Ephesios: ss.) .

Partir um mesmo Pão, à mesa do Senhor, é sinal e fonte da unidade na caridade (cf. Mt Mt 5,23). O Concílio lembrava que toda a legítima celebração da Eucaristia é dirigida pelo Bispo, acentuando: “Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário”(Presbyterorum Ordinis PO 6) .

Sei que os Senhores têm Sacerdotes muito bons, verdadeiro “dom de Deus à Comunidade”. Ajudem-nos a encarar sobre este aspecto sua vida doada; a viver com disponibilidade e maturidade, o equilíbrio dos santos, entre as mil e uma solicitações do ministério para que se sentem poucos; a testemunharem sempre a própria especificidade de “tomados de entre os homens e constituídos a favor dos homens, nas coisas respeitantes a Deus” (He 5,1).

8. Ainda na perspectiva do serviço do Reino, quereria hoje lembrar a solicitude que lhes merece outra componente eclesial, constituída pelas pessoas consagradas: Religiosos e Religiosas e membros dos Institutos Seculares. Não é demais reafirmar aqui o apreço que todos temos pela contribuição das Famílias religiosas para a vitalidade da Igreja no Brasil. Os Institutos Seculares, mais recentes, de modo diverso, dão igualmente uma contribuição valiosa. É história honrosa e atualidade consoladora.

Nesta linha, desejo fazer especial menção – que é também apelo – daqueles que se consagram para o serviço exclusivo do Reino nas formas da vida contemplativa, testemunhando o absoluto de Deus na oração, no silêncio e na imolação escondida: são “honra da Igreja e manancial de graças celestiais” para a mesma e para o mundo.

Todos auspiciamos que, num País imenso como o Brasil, marcado pelo dinamismo de Nação jovem e de jovens e, por isso, tão necessitado da luz da esperança, com a sua dimensão escatológica, se intensifique a vida contemplativa e se multipliquem os oásis de paz, para alertar e ajudar tantos que, espiritualmente, vagueiam por desertos, atormentados pela sede de Deus.

A par destes contemplativos, há os muitos que vivem a sua doação “por amor do Reino dos céus”, dividida entre a adoração de Deus e as várias atividades que são carisma de seus Institutos: ministério, pastoral, ensino, assistência e serviço aos irmãos sob múltiplas formas. É nossa tarefa, como Bispos, apoiar, promover e coordenar estas forças vivas, no conjunto da missão da Igreja. As suas atividades são, de fato, inseparáveis dessa missão evangelizadora e santificadora.

9. Não nos permite o tempo discorrer aqui sobre a natureza da vida consagrada e o seu papel eclesial tão luminosamente ilustrados pelo Concílio Vaticano II. O mais recente Sínodo dos Bispos não deixou de encarecer esse papel das pessoas consagradas, no seu enquadramento mais indicado: “Hoje temos muita necessidade de santos; é graça que devemos impetrar continuamente de Deus”. E prossegue: “os Institutos de vida consagrada, mediante a profissão dos conselhos evangélicos, devem estar conscientes da sua especial missão na Igreja de hoje; e nos devemos encorajá-los nesta missão”(Synodi Episcoporum Extraordinariae 1985 Relatio finalis, II, A, 4) .

É óbvio que as atividades próprias de cada comunidade de pessoas consagradas, segundo a índole do Instituto, enriquecem a vida das Igrejas locais. Este enriquecimento, supondo o respeito pelos princípios e normas que regulam as relações mútuas entre o Bispo e as pessoas consagradas, depende muito também da compreensão cordial, unidade sincera e disponibilidade pobre, para se trabalhar em conjunto, de modo orgânico e programado, para o maior bem e eficaz serviço do Reino.

Tem de haver, portanto, de parte a parte, generosidade e atenção ao Espírito, que não deixará de iluminar e animar a complementaridade do Corpo místico de Cristo. É por Ele que “todo o Corpo, alimentado e unido pelas junturas e articulações, se desenvolve com o crescimento dado por Deus” (Col 2,19 cf. Ef Ep 4,16).

Praticamente para a concretização disto, há diretrizes claras no conhecido documento “Mutuae Relationes”. Pude aperceber-me, em nossos colóquios, que se empenham em atuá-las; e só me resta encorajar os Senhores na sua preocupação em defender a vida consagrada, promover a fidelidade dos Consagrados e ajudá-los a inserirem-se, conforme a própria índole, na comunhão e na ação evangelizadora de suas Igrejas particulares.

Ao concluir, desejo assegurar-lhes que estão bem presentes no meu afeto em Cristo e na minha prece, com a vastidão de suas tarefas; como está também o vosso povo. Suas alegrias e suas tristezas, suas esperanças e suas ansiedades, são também minhas no Senhor.

Recomendo-os à proteção materna de Maria Santíssima, com as Comunidades eclesiais a que presidem, onde Ela, a Mãe da Igreja e Mãe da nossa confiança, é tão venerada e invocada sob os títulos mais significativos e interpeladores – Nossa Senhora da Conceição, da Piedade, das Dores, das Graças, da Consolação, do Rosário, da Esperança, da Glória, sem esquecer, naturalmente, Nossa Senhora Aparecida. Que esta devoção mariana continue a servir para o povo fiel retemperar a própria fé em Cristo e modelar sua vida cristã pelo exemplo da humilde “serva do Senhor”!

Seja penhor de minha comunhão com os Senhores e suas Comunidades diocesanas a minha afetuosa Bênção Apostólica.






Discursos João Paulo II 1986