Discursos João Paulo II 1990

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA NACIONAL


DOS BISPOS DO BRASIL REGIONAL SUL-4


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Sábado, 24 de Fevereiro de 1990

Meus amados Irmãos no episcopado


1. Sejam bem-vindos a este encontro! É sempre um momento de alegria profunda o breve “ convívio ”, que me proporciona a visita “ ad limina Apostolorum ” de “ irmãos ” meus no Colégio episcopal. Hoje, os Senhores, Bispos do “ Regional Sul-4 ” da Conferência nacional dos Bispos do Brasil, que abrange as Dioceses do estado de Santa Catarina.

Depois de falar brevemente com cada um, posso alegrar-me pela sua profissão de fé, ao venerar os túmulos dos Bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo. E quero agradecer terem partilhado comigo e com os vários Organismos centrais da Sé Apostólica de Roma, a serviço de minha “ solicitude por todas as Igrejas ”(2Co 11,28), que é também dos Senhores, consolações de Deus e provações, lutas e esperanças. Disto é feito o pastoreio das greis diocesanas que lhes estão confiadas.

Pastores “ segundo Deus ” que querem ser, dispostos a agir sempre como “ bons administradores da multiforme graça divina ” (cf. 1P 5,2 1P 4,19), vieram a esta visita acompanhados espiritualmente por suas Comunidades eclesiais. Ao saudá-los, cordialmente, desejo estender minha saudação também aos fiéis de suas Dioceses: aos sacerdotes, seus íntimos colaboradores, aos religiosos e religiosas e todos os consagrados, bem como aos comprometidos no apostolado, enfim, a quantos compartilham e a quantos dispensam seu ministério episcopal.

2. Durante os nossos breves colóquios, pude comprovar a impressão que tinha, quanto à vitalidade religiosa de suas Igrejas particulares, que senti bem próximas no meu coração de Pastor, ouvindo as confidências que faziam. Os catarinenses são conhecidos como povo honrado, pacífico e trabalhador, que cultiva valores humanos, religiosos e morais capazes de iluminar os diversos campos da existência. Isso é fruto de uma evangelização que vem de longe; ela deixou marcas profundas e abriu caminhos para se plasmar uma ordenada comunidade humana, integrada por pessoas provenientes de diversas culturas: dos portugueses-açoreanos aos alemães; e dos italianos aos polacos; sem esquecer, naturalmente, populações indígenas, que se fundiram no povo catarinense, no Povo brasileiro.

Essa gente, laboriosa e fiel a Deus - cuja adesão e afeto ao sucessor de Pedro me confirmaram - com o próprio brio, vem contribuindo para se construir no Brasil uma sociedade à medida e digna do homem todo e de todos os homens. Isso tem-se concretizado em empenho pela preservação da família, no amor ao trabalho e no perdurar da convivência fraternal, animada por espontânea solidariedade.

Estas características têm feito de sua região autêntico celeiro de vocações para a consagração, na vida sacerdotal e religiosa: uma graça para a evangelização do Brasil, e não só; está a demonstrá-lo, a participação no conhecido “ Projeto Igrejas-Irmãs ”.

3. Não ignoro, por outro lado, e também os Senhores me falaram que, em Santa Catarina, começam a agudizar-se os desequilíbrios sociais que avassalam outras regiões vizinhas. Uma moderação relativa em termos de propriedade, de produção e de urbanismo, começa a ressentir-se dos inconvenientes do fenômeno dos grandes aglomerados populacionais, aonde afluem tantos pobres, sem terra, sem teto e sem meios de sobrevivência. Assim, há ameaças de desestabilizar as comunidades, destroçar as famílias, tradicionalmente sólidas e sãs, e alterar a hierarquia dos valores até agora cultivados.

Deste modo, enquanto se alargam as solicitações no seu campo de trabalho pastoral, compreendo e compartilho a sua preocupação, perante desafios que hoje se apresentam à evangelização em suas Dioceses. Índice de tal preocupação podem considerar-se algumas decisões do seu Regional Sul-4, que constam no mais recente Plano de Pastoral.

4. Encontros como este fazem-me lembrar a experiência descrita no Livro dos Atos dos Apóstolos, quando Paulo e seus companheiros, chegados a Jerusalém, referiram àquela Igreja quanto o Senhor operara por seu “ ministério ” do Evangelho. Esclarecidas algumas questões, foram dadas graças a Deus e feitas algumas considerações, em ordem à futura evangelização (cf. At Ac 21,17-22).

No exercício do meu múnus de sucessor de Pedro, desejoso de poder sempre “ confirmar os irmãos ”, também eu lhes apresento hoje algumas considerações sobre a Evangelização, tarefa essencial da Igreja, como na América Latina tanto se tem evidenciado, nos últimos tempos. Evangelizar constitui, realmente, a graça e vocação próprias da Igreja, a sua identidade mais profunda.

Desde o apelo que lancei em Porto Príncipe, no Haiti, em 1983, para uma nova evangelização, os Irmãos Bispos latino-americanos fizeram questão de assumir como lema - nas comemorações do quinto centenário da chegada da Boa Nova a este Continente, suscitar aí um novo impulso evangelizador. Também entre os Senhores, Bispos brasileiros, tem sido palavra de ordem nestes tempos mais recentes, a Nova Evangelização, o que muito me alegra.

5. Permanece válido quanto o meu predecessor Paulo VI, de saudosa memória, sintetizou na conhecida Exortação Apostólica “ Evangelii Nuntiandi ”. Suas análises e diretrizes têm tido, obviamente, o desenvolvimento e as aplicações que solicitam situações peculiares, antigas e novas (cf. Hb He 1,1-3).

Estas exigem de nós, Bispos, que vivamos corajosa e fielmente, esta dimensão do mandato apostólico-episcopal, que o Espírito Santo nos conferiu. Mas “ ensinar todas as gentes ”, para nós, Pastores, envolve também a verificação da autenticidade dos dons concedidos aos batizados em ordem ao anúncio da Boa Nova.

Evangelizar, como sabemos, é o testemunho que o Filho do homem dá de si mesmo, perpetuado na missão da Igreja. A própria Encarnação é evangelização: já que o Verbo, feito carne, é a última e definitiva Palavra que Deus dirige à humanidade, depois de lhe ter falado muitas vezes e de muitos modos. Evangelizar foi a tarefa, por excelência, do Senhor Jesus, como foi também a dos Apóstolos: “ Ai de mim se não pregasse ” o Evangelho (cf. 1Co 9,16). De modo análogo, isso deverá constituir preocupação de todo o batizado, consciente da sua dignidade e missão eclesial.

Muito se tem repetido que o grande Evangelizador e o autêntico Evangelho são o próprio Jesus Cristo, tal qual nos é historicamente apresentado pela Sagrada Escritura e transmitido pela genuína Tradição. Esta, sabemo-lo, é a forma pela qual Deus “ dialoga ” sem interrupção com a Igreja, Esposa de seu amado Filho; é a forma de o Espírito Santo - pelo qual a voz do Evangelho ressoa viva na Igreja e, por ela, no mundo - introduzir os que crêem na verdade plena (cf. Const. Dei Verbum DV 8).

6. Nascida da ação evangelizadora de Jesus, a Igreja é, por sua vez “ enviada ” por Ele a evangelizar. De evangelizada, ela se torna evangelizadora, luz das nações e sinal da presença do mesmo Cristo (cf. Exort. Apost. Evangelii Nuntiandi EN 15); e, seu Corpo místico, ela é sacramento de salvação para todos.

Entre Jesus Cristo, a Igreja e o conteúdo da evangelização há um nexo, um vínculo inseparável: “ Quem vos ouve é a mim que ouve; e quem vos rejeita é a mim que rejeita ”(Lc 10,16). Daí a insistência com que São Paulo ensina que ninguém deverá pregar-se a si mesmo; mas sim, Cristo Jesus, como Senhor (cf. 2Co 4,5); e ainda, que a evangelização não consiste em bem falar ou em fazer prodígios; mas sim, em anunciar Cristo, que salvou a humanidade, pela virtude do Mistério Pascal, feito de Morte e Ressurreição (cf. 1Co 18,22-23).

No esforço da nova evangelização - “ nova em seu ardor, em seus métodos e em suas expressões (AAS 75 [1983] 778) “ cabe aos Senhores salvaguardar, em suas Igrejas particulares, a integridade e a autenticidade do conceito de evangelização e do estilo de evangelizar, tais como os proclama a Igreja universal.

Trata-se de um compromisso assumido com o episcopado, e é algo que concerne à própria essência da Igreja. Esta, como sabemos, progrediu na sua missão evangelizadora, ao longo da história, na medida em que se manteve fiel a Jesus Cristo, na medida em que seguiu as pegadas do seu Senhor.

7. Ao enfatizar, pois, um aspecto ou um determinado conteúdo do Evangelho, há que estar atento a não o fazer em detrimento de outros aspectos ou conteúdos, de igual, se não mesmo de maior importância. Ao adaptar o anúncio da fé à mentalidade e cultura dos evangelizandos, não pode haver mutilações nem alterações do único Evangelho, evitando confusões de métodos com outros processos humanizantes.

Diante de qualquer redução da verdade evangélica, o nosso múnus de Pastores e Mestres da Fé impõe iniludivelmente a obrigação de discernir, clarificar e aplicar remédios para os desvios, quando isso for necessário. A transcendência da mensagem do Evangelho não pode ser jamais obscurecida por uma legítima atenção dada a problemas de ordem social. Assim, num contexto como o do Brasil, onde se impõe também à preocupação dos Pastores uma promoção humana autêntica, a integridade do anúncio evangélico tem de se refletir em todo o magistério e em toda a ação de quem recebeu, com o dom apostólico-episcopal, a responsabilidade de ensinar, santificar e reger a Igreja de Deus.

8. É muito elucidativo verificar como, durante os dois milênios de presença da Igreja no mundo, os mensageiros da salvação de Jesus Cristo souberam lançar mão da solidariedade, sem esquecerem nunca a elevação do homem, o valor transcendente da sua humanidade e o sentido da sua existência, na perspectiva daquele “ mistério da economia divina, que uniu a salvação e a graça com a Cruz ”(Enc. Redemptor hominis RH 11).

Começou por proceder assim o Mestre . Ao passar “ fazendo o bem ”, curando as enfermidades e promovendo a justiça e a solidariedade entre os homens do seu tempo, Ele distinguia, com clarividência, o plano de Deus e o plano de César. A salvação que anunciava era transcendente, escatológica: com o início neste mundo, sim; mas com a sua consumação no mundo que há-de vir (cf. Exort. Apost. Evangelii Nuntiandi EN 27).

Assim procederam também os primeiros cristãos. Na pureza e no entusiasmo da primitiva vivência pascal, eles partilhavam os bens e assistiam os necessitados; mas sem por isso esquecerem os deveres da oração e da pregação da Palavra. Os primeiros Diáconos, aliás, foram instituídos para que os Apóstolos pudessem continuar a dedicar-se, com assiduidade, ao que era específico da “ missão ”: “ Nós persistiremos na oração e no ministério da Palavra ” (Ac 6,2 Ac 6,4). Eles estavam atentos a tudo; mas numa atuação pastoral ordenada.

9. Ao longo da história, a Igreja, anunciando o Reino de Deus, tem sido, ao mesmo tempo, promotora de condições humanas cada vez melhores, onde se implanta; mas, sabemo-lo, ela, como “ enviada ”, tem procurado sempre harmonizar o valor transcendente e a dimensão social do homem.

Como em toda a parte, também o homem brasileiro, sejam quais forem as suas condições sociais, espera e deseja descobrir a sublimidade da sua vocação, a grandeza do amor ao próximo e o sentido de sua atividade nas “ insondáveis riquezas de Cristo ” (Ep 3,8). Conforme foi explanado na Constituição conciliar “ Gaudium et spes ”, a Igreja, com a sua “ missão ”, tem de o ajudar a encontrar-se com Cristo. A Igreja particular e os Senhores, como Bispos, nela responsáveis últimos do êxito da “ missão ”, têm de proporcionar tal ajuda.

Assim, ao promoverem a abertura para a dimensão social da evangelização, não deixem de ter presente que isso permanece expressão eclesial da “ missão ”. Dando espaço à assistência e promoção humana, e dando em seus corações de pais e pastores preferência aos “ mais pobres ”, façam com que mantenham o primado dos bens da salvação; façam com que se respeitem as finalidades específicas dos ministérios ordenados com que estes se alimentem na oração e na Palavra de Deus, sem reduções nem ambiguidades.

A este propósito, nunca é demais recordar que a Sagrada Escritura não pode ser distorcida nem usada a bel-prazer, para justificar e defender posições pessoais, de carácter político-partidário. Conserva toda a atualidade a admoestação do Apóstolo Pedro: “ Sabei isto: que nenhuma profecia da Escritura resulta de uma interpretação particular, pois que a profecia jamais veio por vontade humana; mas os homens, impelidos pelo Espírito Santo, falaram da parte de Deus ”(2P 1,20-21)..

Quanto ao exercício da “ missão ” por parte de cada batizado, façam de tudo para que ela seja atuada ordenadamente, no respeito das atribuições de cada um. O recente Sínodo dos bispos foi muito preciso nesta matéria. Um é o campo e o estilo de intervenção de um leigo. Necessariamente outro será o campo e o estilo de intervenção de um batizado a quem foi conferido um ministério ordenado.

10. Queridos Irmãos no episcopado,

A evangelização terá muito a ganhar no respeito destes princípios, que já aplicam e continuarão a aplicar, estou certo, com abundantíssimos frutos, nos diversos setores da vida eclesial no meio do seu povo, tão profundamente ligado à Igreja. Que nenhum receio venha ensombrar a vossa esperança: “ Não se perturbe o vosso coração ”(Jn 14,1), disse-nos o Senhor na última Ceia.

Peço a Deus que derrame a força do seu Espírito sobre os Senhores, para que, com a sua orientação solícita e corajosa, suas Igrejas particulares sejam cada vez mais evangelizadas e evangelizadoras. E que irradiem aquela esperança que a vida cristã pode suscitar, como caminho eficaz para melhor serem superados problemas humanos, de carácter individual e social.

Voltem às suas Dioceses, pois, com renovada confiança! Jesus Cristo, que os chamou para pastorear o seu rebanho, não cessará de estar com os Senhores, a assisti-los nos seus trabalhos e a fazer com que o seu ministério episcopal dê muito fruto em amor e santidade. Acompanha-os a minha lembrança na oração, para que em cada um prossiga a ação d’Aquele que, “ segundo os seus benévolos desígnios, opera em nós o querer e o agir ”(cf. Fl Ph 2,13). E que a Mãe da nossa confiança, Nossa Senhora Aparecida, guie seus passos e ilumine suas mentes, como “ esperança nossa ”.

Com estes votos dou-lhes, extensiva às suas Comunidades diocesanas, a Bênção Apostólica, que seja para todos os catarinenses penhor de favores divinos, pela intercessão de Santa Catarina.



                                                                        Março de 1990



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA NACIONAL


DOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL SUL-1


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Terça-feira, 20 de Março de 1990




Queridos Irmãos no episcopado

1. No exercício do seu múnus episcopal, a serviço da Igreja de Deus no Estado de São Paulo, vieram visitar o Bispo de Roma, sucessor de Pedro, para professar a sua comunhão hierárquica. Dou-lhes as boas-vindas e os saúdo com o “ ósculo da caridade ”, nesta visita “ ad limina Apostolorum ”.

O próprio Senhor Jesus confiou a Pedro e aos seus sucessores a autoridade suprema, imediata e universal, em ordem à cura de almas; e o constituiu na chefia dos Apóstolos, com caráter de perenidade em seus sucessores: para que, com ele, o Episcopado permanecesse unido e único (cf. Const. Lumen gentium LG 18); e para que, servindo fraternamente, no exercício da autoridade universal, ele “ confirmasse os irmãos ”; conservando-se assim a comunhão hierárquica entre a Cabeça e os membros do Colégio episcopal, a fim de o Povo de Deus no Novo Testamento ser orientado, com sabedoria e prudência, em seu peregrinar para a eterna bem-aventurança (cf. Lumen gentium LG 21).

Agradeço ao Senhor Cardeal, Dom Paulo Evaristo Arns, as palavras amáveis que me dirigiu, em nome também dos outros Metropolitas e numeroso grupo de Irmãos Bispos que integram o “ Regional Sul-1 ” da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

2. Quereria, antes de mais, exprimir-lhes, em nome do Senhor, a minha gratidão, pela generosidade em seu labor pastoral. Sei bem que o exercício do ministério de um Bispo diocesano comporta não poucos sacrifícios e grande espírito de entrega. Particularmente, no momento que está atravessando o seu País. Podem estar certos, amados Irmãos, que os acompanha sempre a minha oração e lembrança afetuosa. Nelas são abrangidos também os sacerdotes, religiosos e religiosas, seminaristas e todos os fiéis das Províncias eclesiásticas de São Paulo, Botucatu, Campinas, Ribeirão Preto e Aparecida.

Após os encontros privados e com base nas informações havidas anteriormente, posso apreciar a vitalidade religiosa das Comunidades confiadas a seu cuidado; e a boa vontade que os anima, como Bispos, em manter e testemunhar a comunhão efetiva e afetiva de uns com os outros, com os demais Bispos brasileiros e com todo o Colégio que serve a Igreja espalhada pelo mundo.

Pude auscultar também suas justificadas preocupações, relacionadas com o seu serviço de Pastores: quanto à escassez e à formação de sacerdotes, bem como ao exercício da “ missão ” dos ministros ordenados; quanto à inspiração das comunidades eclesiais de base; quanto à catequese e ao ecumenismo; sem esquecer a problemática de ordem social. Esta se estende num vasto leque de assuntos prementes, a partir de situações, de que constitui “ amostra ” bem significativa sua região paulista.

Tendo em conta que, em cada grupo de Pastores de um “ Regional ”, considero presente o Episcopado brasileiro, sobre problemas sociais refletiremos noutra oportunidade. E dado que tem havido convergência, da parte dos Senhores, em expor questões relacionadas com a vida litúrgica das comunidades, apresento-lhes algumas considerações sobre este ponto.

3. Ainda há pouco mais de um ano, celebrávamos o vigésimo quinto aniversário do primeiro documento do Concílio Vaticano II, que foi a Constituição sobre a sagrada Liturgia. Para assinalar a efeméride, escrevi uma Carta Apostólica - “ Vicesimus quintus annus ” - dando graças a Deus, por tudo quanto se beneficiou desse Documento a vida da Igreja, e sublinhando suas linhas fundamentais. Ao mesmo tempo, exortava a que se continuasse a promover a renovação litúrgica, à luz da Sacrosanctum Concilium e dos documentos dela derivados, bem como dos livros que atualmente estão em uso na Igreja, e que são, também eles, fruto daquela Constituição.

Recordando ainda, com emoção, os momentos de alta intensidade espiritual que vivi no Brasil, durante as celebrações litúrgicas, que constituíam o ponto culminante das minhas visitas às várias Igrejas locais, desejo encarecer aos Senhores a importância e o lugar da Liturgia em suas comunidades, e a necessidade de incrementar cada vez mais entre os fiéis a formação litúrgica e o espírito de oração. Espero contribuir assim, para que as Igrejas que lhes estão confiadas cresçam em sua vida cristã.

4. Que trouxe à Igreja a renovação preconizada pela Sacrosanctum Concilium? Trouxe-lhe, antes de mais, uma nova concepção da Liturgia. Desta, tinha-se antes uma idéia que não ia habitualmente além dos aspectos exteriores: cerimonial, rubricas e normas para a realização correta dos atos litúrgicos. Embora tais aspectos sejam também dignos de respeito, a Constituição veio dizer-nos que a Liturgia é algo mais. Nela se trata da própria ação de Cristo Sacerdote; ação em que Ele associa a Si mesmo a Igreja. Isto é, ação da Cabeça e dos membros (SC 7). Celebrar a Missa, os Sacramentos, a Liturgia das Horas, é tornar presente e atual a ação de Jesus Cristo Sacerdote, realizada em seu Mistério pascal. “ Assim, a Liturgia se torna o " lugar " privilegiado de encontro dos cristãos com Deus, e com Aquele que Deus enviou, Jesus Cristo ”(cf. Jo Jn 17,3) (Vicesimus quintus annus, 7).

Colocando a Liturgia no contexto da história da Salvação, atualizada na Igreja, o Concílio não só lhe reconhece o papel eminente na vida da mesma Igreja, mas apela também para a responsabilidade dos cristãos; todos eles são chamados a integrar-se na ação litúrgica. Daí que, ao longo de toda a Constituição, a idéia-força seja a da participação. Não é assistir a um ato que outros executam; é celebrar algo, ou melhor, Alguém. E em tal celebração todos estão e se devem sentir comprometidos; todos e cada um, a seu modo, hão de tomar nela parte ativa e consciente.

5. Essa nova concepção da Liturgia trouxe à vida da Igreja pós-conciliar muitos frutos. Como é do conhecimento dos Senhores, fez com que se aprofundasse a reflexão teológica sobre o culto cristão, ajudou a superar formalismos, e reduziu a distância entre clero e povo nas celebrações, encorajando iniciativas em favor de uma participação viva e pessoal, libertando o cristão do papel de mero “ espectador ” e levando-a a progredir na sua unidade com Deus e com os irmãos (cf. SC SC 48).

Pessoas que, anteriormente, se contentavam com o mero cumprimento do preceito da Missa dominical, sentiram-se interpeladas pelo novo estilo da celebração, pelas palavras e gestos; e descobriram que também elas, afinal, tinham uma função a cumprir na comunidade cristã (cf. SC SC 26).

A celebração de alguns Sacramentos, à luz dos novos textos (pense-se no Batismo e no Matrimônio) veio pôr frequentemente problemas de exigência espiritual, e de verdade e coerência moral; tornou-se ocasião para muitos cristãos tomarem consciência das próprias responsabilidades.

O reconhecimento de que a oração pública da Igreja é oração de todos, fez com que a Liturgia das Horas deixasse de ser privativa dos Sacerdotes e dos Religiosos, para se tornar realmente a oração de todo o Povo de Deus, da Igreja orante (Introdução Geral à Liturgia das Horas, nn. 1 e 20).

Na aplicação da Sacrosanctum Concilium , houve, certamente, deficiências, hesitações e abusos. Mas não se pode negar que, onde as comunidades foram preparadas, com a devida informação e a catequese, os resultados são positivos. Com razão se afirmou na mais recente Assembléia extraordinária do Sínodo dos Bispos que “ a renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar ”(Relação final, 7 de dezembro de 1985, II, B, b, 1).

6. Pensando especialmente no Brasil, sinto-me feliz em reconhecer que ali a reforma litúrgica, de modo geral, foi favoravelmente acolhida e posta em prática. É meritório o esforço que os organismos responsáveis desenvolveram, no sentido de tornar a celebração litúrgica acessível às várias camadas da população. Agora é preciso que a obra começada não degenere e vá lançando raízes profundas.

Para tanto, permito-me solicitar vosso cuidado na formação litúrgica do clero, dos religiosos e dos seminaristas: são ou virão a ser os formadores imediatos do sentido litúrgico do Povo de Deus (Relação final, 7 de dezembro de 1985, II, B, b, 1). Esta formação litúrgica, de base e continuada, tem que fundar-se sobre uma acertada e autêntica inculturação.

É bem conhecida a enorme riqueza das culturas locais no Brasil, assim como a variedade de atos de culto tradicionais e manifestações da religiosidade popular. Mas é também um dado de fato que essa riqueza, quanto maior e mais variada fôr, tanto mais exigirá discernimento e uma administração prudente e vigilante. Toda e qualquer celebração litúrgica, por mais assimilada e inculturada que seja, ainda que se realize no mais ignoto rincão, da terra, é sempre celebração da Igreja universal.

Uma educação litúrgica esclarecida e bem orientada ajudará os fiéis a libertarem-se da confusão semeada por seitas e movimentos religiosos e a apreciarem corretamente o significado das palavras, gestos e atitudes corporais, bem como a conhecerem cada vez melhor o valioso simbolismo dos sinais e dos elementos materiais, usados na celebração.

7. Fazendo esta reflexão com Pastores que o Senhor pôs à frente das Igrejas locais do Brasil, tenho consciência de que, como principais dispensadores dos mistérios de Deus e primeiros promotores da pastoral litúrgica, é de sua atuação que depende, em grande parte, a reta compreensão e a prática esclarecida da Liturgia em suas comunidades.

Sucessores dos Apóstolos, não cessamos de ouvir do Senhor: “ ide e evangelizai ”. Meio, por excelência, de evangelização é, sem dúvida, a atividade litúrgica: “ lex orandi, lex credendi ”. O que forem as celebrações litúrgicas da Igreja no Brasil, será a sua capacidade e criatividade para suscitar, manter e desenvolver a verdadeira fé apostólica.

Além do trabalho de promoção, cabe-nos, como Bispos, velar por que na vida litúrgica de nossas Dioceses não venham a introduzir-se desvios, que falseariam a verdadeira natureza da Liturgia. Na " Vicesimus Quintus Annus ” observava que se “ verificam, por vezes, omissões e aditamentos ilícitos, ritos inventados prescindindo das normas estabelecidas, atitudes ou cânticos que em nada favorecem a fé e o sentido do sagrado, abusos em pôr em prática a absolvição coletiva... ”. Tais iniciativas, “ longe de estarem ligadas à reforma litúrgica ou aos livros que a partir dela se publicaram, contradizem-nos frontalmente; além disso, desfiguram a reforma e privam o povo cristão das riquezas autênticas da Liturgia da Igreja ”(n. 13).

8. Quanto à celebração do sacramento da Reconciliação, relembro aquilo que disse na Exortação Apostólica Reconciliatio et paenitentia. O Sacramento da misericórdia e do perdão há de ser vivido com um sentido de grande confiança na salvação divina e um sincero desejo de conversão, buscando nele a reconciliação com Deus e com os irmãos. Mas, para que isso aconteça, é fundamental que os cristãos tenham o justo sentido do pecado pessoal e de seu alcance social: a minha comunidade é pecadora, porque eu sou pecador; Cristo é o Cordeiro de Deus, que morre para tirar o pecado do mundo; e o pecado do mundo é um pecado bem concreto, porque é o meu pecado.

Deste modo, só quando alguém se reconhece pecador é que pode sentir e também uma necessidade do perdão e da salvação; e então recorre a Deus, para que Ele o reconcilie consigo como Pai, com os homens seus irmãos e se sinta purificado, graças ao sangue derramado por Jesus Cristo, com um “ espírito novo ”.

A Reconciliatio et paenitentia tratou das três formas de celebração deste Sacramento, bem como das características de cada uma delas (n. 32). A celebração com absolvição geral coletiva requer particular cuidado, por não ser a forma ordinária de celebrar o Sacramento. Como aí se indica, trata-se de uma forma para acorrer a situações de grave necessidade. Nalgumas regiões e em determinados momentos, compreende-se e legitima-se o recurso a ela. Tal fato, porém, não pode levar a esquecer que o modo normal da celebração é sempre o da Confissão individual. É ao Bispo que, no âmbito da própria Diocese, compete julgar se existem realmente situações de grave necessidade, tendo em conta os critérios estabelecidos pela Conferência Episcopal.

9. É verdade que “ a Liturgia não esgota toda a ação da Igreja ”; mas é também verdade que ela é “ simultaneamente o cimo para o qual se dirige essa ação da Igreja, e a fonte donde promana toda a sua força ”... Ela “ arrasta e inflama os fiéis, na caridade urgente de Cristo ” (SC 10).; “ alimentados pelos " sacramentos pascais ", os impele a viverem unidos no amor ”(Missal romano, Post-communio da Vigília Pascal).

Assim, vivida conscientemente, a Liturgia deve ser a fonte permanente de inspiração e o estímulo atuante para se viver fraternamente em comunidade. Sobretudo a comunhão com Cristo, na Eucaristia, há de levar os cristãos a uma comunhão cada vez mais transformadora e mais perfeita com os irmãos: comunhão nos bens, não só nos espirituais, mas também materiais. Em países com gritantes desigualdades sociais entre os habitantes, poderá ver-se com mais clareza como o viver a Eucaristia tem repercussões também nas relações interpessoais e comunitárias.

Na Liturgia, especialmente na Eucaristia, celebra-se a realidade fundamental da Páscoa: morte e ressurreição de Jesus Cristo, morte e ressurreição do batizado, com Cristo. Na ação litúrgica devem encontrar espaço todas as realidades da vida quotidiana do cristão, pois é com todos os aspectos de sua pessoa que também ele tem de “passar deste mundo ao Pai”. Ao participar na celebração, o cristão terá presente suas aspirações, alegrias, sofrimentos, projetos, bem como os de todos os seus irmãos. E colocará todas estas intenções na Oração que sua comunidade, com toda a Igreja, dirige ao Pai, por Cristo Salvador, na unidade do Espírito Paráclito.

Entretanto, a legítima e necessária preocupação pelas realidades atuais da vida concreta das pessoas não pode fazer esquecer a verdadeira natureza das ações litúrgicas. É claro que a Missa é algo mais do que uma festa da união fraterna; é muito mais que uma refeição de amigos ou que um bodo para os pobres. Também não é o momento de “ celebrar ” a dignidade humana, reivindicações ou esperanças meramente terrestres. É o Sacrifício que torna Cristo realmente presente no Sacramento.

Todos os atos litúrgicos celebram o Mistério pascal; e a Eucaristia é o Banquete pascal, a que o próprio Senhor Jesus nos convida, para se nos dar em alimento, como Pão que desceu do céu, penhor de vida eterna, penhor da Sua Páscoa eterna (cf. Jo Jn 6,51). Está nisto a função primária de toda a Liturgia: “ reconduzir-nos a trilhar, infatigavelmente, o caminho pascal aberto por Cristo, no qual se aceita morrer para entrar na vida ”(Vicesimus quintus annus, 6). .

10. Meus amados Irmãos no Episcopado,

A Liturgia é lídima expressão da fé da Igreja universal, no momento de prestar culto a Deus, santificando e edificando os fiéis. É uma atividade que se ordena para o sobrenatural; e a fé é o primeiro elemento de nossa vida sobrenatural. Isto significa que o Credo deve estar sempre na base da Liturgia, como profissão de nossa fé sentida, vivida, cantada e rezada.

É a fé que une os cristãos na Igreja. A primeira condição para haver Liturgia é que o culto seja verdadeiro e objetivo, tendo na devida conta e lugar a natureza de Deus e a natureza do homem, com as relações condensadas pelo próprio Cristo, quando disse: “ Adorarás ao Senhor teu Deus e a ele só prestarás culto ”(Mt 4,10).

A Liturgia pode, de certo modo, dizer-se a teologia do povo cristão, o qual - como outrora os discípulos de Jesus - continua a pedir aos seus Pastores: ensinem-nos a orar (cf. Lc Lc 11,1). Temos, portanto, de ser mestres de oração em nossas Igrejas particulares. Para elas somos os primeiros liturgos. Com elas e para elas somos, antes de tudo, “ ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus ”(1Co 4,1). Como Bispos, somos os primeiros responsáveis por fazer rezar o povo fiel, os primeiros zeladores da pureza e nobreza das celebrações, para uma Liturgia digna e fervorosa.

Voltem a suas Igrejas particulares, com a confiança renovada de que o Senhor, o Senhor ressuscitado está com os Bispos do “Regional Sul-1”, até ao fim; com os Senhores está a Igreja toda; e está o apreço e gratidão do Bispo de Roma, com afeto de irmão, reavivado por esta visita “ ad limina ”.

Pela intercessão da Mãe da nossa confiança - Padroeira do Brasil, que tem a sua Casa materna em Aparecida, no território de seu regional - continuarei a implorar a proteção do Bom Pastor; e penhor desta, para suas pessoas e suas Comunidades diocesanas, seja a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA NACIONAL


DOS BISPOS DOS BRASIL DO REGIONAL LESTE-1


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Terça-feira, 24 de Março de 1990




Queridos Irmãos no episcopado

1. Sejam bem-vindos a este encontro fraterno, para mim motivo de alegria. Ao receber os Senhores, Bispos da Igreja nas províncias eclesiásticas do Estado do Rio de Janeiro, que constituem o Regional Leste -1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em sua visita “ ad limina Apostolorum ”, dou graças a Deus, nosso Pai e fonte de toda a consolação (cf. 2Co 1,3). É um momento de intimidade e de comunhão na fé e na caridade, que nos une como Pastores da única Igreja, santa, católica e apostólica.

Em nome do Senhor, presente no meio de nós, como prometeu (cf. Mt Mt 18,20), começo por lhes agradecer a visita, preparada com esmero, e a partilha de suas preocupações e alegrias, bem como dos projetos e esperanças que trazem no coração. E quero exprimir também apreço pela dedicação no “ campo de Deus ”, como seus “ colaboradores ”, cada um segundo a graça recebida (cf. Mt Mt 18,20). Vejo em seu empenho uma concretização da caridade pastoral, com que se devotam ao rebanho de Cristo.

Agradeço a saudação e as afirmações de nobres sentimentos, que me dirigiu o Senhor Cardeal, Dom Eugênio de Araújo Sales, em nome de todos. E, ao saudá-los, o meu pensamento se dirige, com afeto, às Dioceses que representam, saudando ao mesmo tempo seus sacerdotes, religiosos, religiosas e todos os fiéis.


Discursos João Paulo II 1990