Discursos João Paulo II 1990

2. Durante os colóquios pessoais, pude comprovar, não apenas as disposições e propósitos que os animam, mas também a vitalidade religiosa em suas Igrejas particulares; vitalidade que procuram consolidar na verdade, na esperança e na caridade, conscientes de nelas serem “ princípio visível ” de comunhão e os primeiros responsáveis em promover a reta transmissão da fé e o respeito da disciplina comum de toda a Igreja, pondo em prática os imperativos da nova evangelização (cf. Mt Mt 18,20).

Foi múltipla a problemática que fizeram presente ao sucessor de Pedro e aos Organismos da Sé Apostólica, que o ajudam no pastoreio da Igreja universal e no serviço de “ confirmar os irmãos ”. Também os Senhores, como os demais Bispos que já os precederam nesta visita, à cabeça das urgências que vêem na realidade presente do dileto Brasil, apontaram um conjunto de circunstâncias, que atingem o homem concreto. Este sofre, pelos reveses da crise econômica, e por motivo de situações que afetam a sua dignidade humana e o seu direito a uma vida que melhor corresponda à sua condição de pessoa.

3. Em mensagem ao Episcopado brasileiro, quatro anos atrás, referia-me a desafios de natureza cultural, sócio-política e econômica, particularmente interpeladores e estimulantes do seu zelo pastoral, no momento que então vivia seu país. E resumia-os no grande “ desafio do contraste entre dois Brasís: um, altamente desenvolvido, pujante e lançado no rumo do progresso e da opulência; outro, refletindo-se em desmesuradas zonas de probreza, de doença, de analfabetismo e de marginalização ”. E denunciava também os “ mecanismos ” que alimentavam esse contraste.

Desde então, o Brasil viveu momentos de grandes esperanças, mas conheceu também desilusões. Vibrou com a consolidação de sua estrutura política democrática, mas se viu também a braços com uma das mais sérias crises econômicas de sua história, com profundos efeitos negativos na vida de todo o povo; sobretudo, quebra de confiança pela frustração das tentativas para reverter tal situação.

De um modo geral, permanece o quadro que então tracei: possivelmente, mais acentuado em algumas áreas e atenuado em outras. Hoje, como então, ele se apresenta como gigantesco desafio, para seu zelo e solicitude pastoral.

Em tal quadro havia uma antecipação, sintética da problemática que foi recentemente enunciada, com outra perspectiva, na segunda parte da Encíclica “ Sollicitudo Rei Socialis ”. O “ fosso ” que divide a família humana, divide a família brasileira (cf. Mt Mt 18,20). Também ela precisa do empenhamento de cada Brasileiro na construção de um futuro melhor, em que todos vivam e se beneficiem com a solidariedade de todos, no respeito ao bem comum. Este, no centro de tudo deve pôr o homem, criado “ à imagem e semelhança de Deus ”.

4. Chegam-nos ecos - e os Senhores confirmaram - que, no panorama social de seu país, realmente, algumas sombras continuam e mesmo aumentam. Assim, a violência urbana está tomando proporções alarmantes. Não é menor o recrudescimento da violência no campo e nas estradas. A marginalização ainda marca dolorosamente vastas áreas do interior do país. Nas grandes cidades, as favelas, os “ cortiços ”, os mendigos e menores abandonados, constituem mancha, terrivelmente chocante, em meio à opulência de uns poucos. Torna-se cada vez mais preocupante a disseminação criminosa dos tóxicos, com a sequela de crimes e de mortes que acompanham o seu tráfico clandestino. Igualmente preocupante se apresenta a onda de atentados contra a propriedade e a segurança das pessoas, provocando a reação do revide, a todo o custo, e do medo generalizado.

A isso se vêm juntar outras afrontas à dignidade das pessoas e ao seu senso de justiça, quais são: as notícias de escândalos financeiros, de par com a insensibilidade dos responsáveis diante da imoralidade propalada nos meios de comunicação social e nos espetáculos públicos.

Esta referência à realidade, como nos é noticiada, não envolve o juízo de que tudo é negativo no Brasil; nem poderia ser de outro modo, porque a Providência do Pai celeste vela com amor, por todos os homens. Mas não dispensa as providências humanas, nem dispensa de obrigações de caráter ético, nem nos dispensa a nós da preocupação pastoral, diante da situação de tantos nossos semelhantes.

5. Essa situação, amados Irmãos, é tanto mais chocante, quanto contrasta com a índole do dileto Povo brasileiro, como se deduz da sua história e do comportamento geral das pessoas em momentos difíceis, mesmo nos últimos tempos. Os Brasileiros têm-se mostrado avessos a formas de radicalismo e de extremismo, propensos à tolerância e compreensão, prontos para a solidariedade humana e para o acolhimento das pessoas em condições precárias.

Há nisso uma riqueza humana, que cabe também aos Senhores aproveitar e orientar, para que possam ser superados os momentos difíceis de hoje; e para que a Igreja continue no papel despretencioso que, historicamente, procurou desempenhar, na formação da fisionomia humana, espiritual e moral de sua grande Nação.

Sinto-me feliz em repetir-lhes, hoje, aquilo que já dizia na aludida mensagem ao Episcopado brasileiro: “ A Igreja, conduzida pelos Bispos do Brasil, dá mostras de estar identificada com o povo; e quer continuar a se debruçar especialmente sobre os pequenos e os desassistidos, a quem consagra um amor, não exclusivo nem excludente, mas preferencial ”. Essa profunda sensibilidade e essa efetiva solidariedade com os pobres lhes hão de ditar o caminho para sua ação pastoral, no campo social; ação indispensável para se garantir a paz, “ a tranquilidade da ordem ”, em seu imenso país.

6. Permanecem válidas as orientações apresentadas durante a minha peregrinação apostólica pelo Brasil, nomeadamente, quando me dirigi aos Bispos da América Latina, no Rio de Janeiro, aos construtores da sociedade pluralista, em Salvador da Bahia, e ao Episcopado Brasileiro, em Fortaleza. Sublinhei, então, que a Igreja, como tal, não pode intervir diretamente na esfera política.

Mas é fora de dúvida a legitimidade e necessidade da intervenção da Igreja no campo social, para aplicar a Palavra de Deus à vida dos homens e da sociedade, oferecendo princípios de reflexão, critérios de julgamento e diretrizes de ação; visando, obviamente, que o comportamento das pessoas esteja em sintonia e coerência com as exigências de uma ética humana e cristã.

Ao intervir, a finalidade da Igreja é interpretar essas realidades complexas que incidem na existência humana, à luz da fé e da genuína tradição eclesial, examinando a sua conformidade ou não-conformidade com o ensinamento do Evangelho, quanto ao homem e à sua vocação, terrena e ao mesmo tempo transcendente (cf. Mt Mt 18,20).

Assim, conforme já proclamava em Fortaleza: é direito e dever da Igreja a prática de uma pastoral social; não na linha de um projeto puramente temporal, mas da formação das consciências, por seus meios específicos, para que a sociedade se torne mais justa. O mesmo devem fazer os Bispos... É seu dever preparar e propor na própria Diocese o programa de tal pastoral social, dentro da unidade da Igreja e no respeito das legítimas atribuições dos homens públicos.

7. A doutrina social da Igreja “ pertence, pois, não ao domínio da ideologia, mas ao da teologia moral ”(Ivi, 41). A Igreja tem consciência de que nenhuma realização temporal se identifica com ela, como Reino de Deus; mas que todas as realizações não deixam de refletir e, em certo sentido, antecipar a glória do Reino, que esperamos no fim da história, quando o Senhor retornar (cf. Ivi, 48). Para a Igreja universal, a sociedade civil é o campo onde se devem exercitar as virtudes cristãs, em cuja força transformadora ela acredita.

O Reino de Deus é destinado a todos os homens; e a todos incumbem exigências éticas. A Igreja, na sua leitura dos problemas sociais, se coloca num eixo que transcende os limites da história humana em sua pura dimensão temporal. Ela jamais confunde o Reino de Deus com a construção da Cidade dos homens. Nem absorve esta Cidade, como pretenderiam os esquemas de diversas formas de cristandade política, nem por ela se deixa absorver, na linha de outras sistematizações, que pretendem reduzir a ação evangélica ao comprometimento sócio-político.

O cristão, inserido pela regeneração batismal na vida misteriosa de Cristo ressuscitado, como o ramo na videira, vive no mundo; mas não é do mundo (cf. Jo Jn 15,19), conforme explanava a conhecida Carta a Diogneto. Iluminado pela luz da fé, também na ação social ele manifestava a vida no Espírito, pelo exercício das virtudes, com as quais “ redime o tempo ”(cf. Ef Ep 5,17 Col 4,5).

Será, portanto, nos fundamentos da prática das virtudes, da correlativa fuga do pecado e da “ libertação soteriológica ” (cf. Ef Ep 5,17 Col 4,5) que os Pastores, “ destacados ” para benefício dos homens em suas relações com Deus, hão de encontrar a fonte inspiradora e alimentadora de sua posição de Pastores e da atuação de seus fiéis leigos no campo social. No empenho em superar os desafios da hora presente no Brasil, estou certo de que os Senhores saberão proceder de molde a que seus esforços de evangelização não sejam baldados, pelo fato de confundir-se o Reino de Deus com um projeto puramente temporal e político.

8. O Concilio Vaticano II, em diversos momentos, nos chamou, a nós Bispos, “ mestres e educadores na fé ”. Como guias espirituais do Povo de Deus, devemos, portanto, empenhar-nos incansavelmente na tarefa de orientá-lo e educá-lo, sempre à luz da autêntica doutrina social da Igreja. Merecem especial realce dois aspectos deste nosso empenho, intimamente ligados entre si, conforme tenho acentuado noutras ocasiões.

O primeiro é a educação para a justiça, formando os homens para orientarem a própria vida, em sua totalidade, de acordo com os princípios evangélicos da moral pessoal e social; vida que se expresse num testemunho cristão profundamente vivido. E com a educação para a justiça está intimamente conexa a educação para a liberdade (cf. Libertatis conscientia, 80. 94). .

O segundo aspecto é o de uma educação para o trabalho, que a todos mostre a dignidade que ele tem, à luz do Evangelho, e sua prioridade na vida econômica e social; e ainda, seu valor, como direito e dever da pessoa humana, conforme explanei na Encíclica Laborem Exercens, cujo ensinamento, posteriormente, foi condensado na Instrução “ Libertatis Conscientia ”.

A educação para o trabalho deverá ser, ao mesmo tempo, educação para a solidariedade, que se apresenta como a linha mestra da proposta da Igreja, a fim de que prevaleça, entre os homens e nas estruturas sociais, o ideal cristão da fraternidade. Só a solidariedade fraterna é capaz de levar à superação das desigualdades sociais, dentro de uma mesma nação ou nas relações internacionais. O sustentáculo e a alma da solidariedade, para um cristão, encontram-se na caridade, nunca disjunta de justiça.

9. Meus amados irmãos,

Que o Espírito da verdade lhes dê clarividência e clareza em sua atividade apostólica, na comunhão com toda a Igreja. É assim, que a sociedade brasileira de hoje poderá refletir, avivada continuamente, a substância cristã que a mesma Igreja, no passado, entre luzes e sombras, soube inocular no que de mais íntimo e autêntico há na alma do Povo brasileiro.

O momento que se vive no Brasil não deixará de trazer riscos em seu labor pastoral. Não lhes faltarão horas de interrogação. Mas, à semelhança de São Paulo, devemos apoiar-nos, sempre, na grande certeza: Cristo ressuscitado! Tudo podemos n’Ele. Ele nos dará a força (cf. Fil Ph 4,13).

Por outro lado, estou certo de que encontrarão estímulo e entusiasmo, a fim de levar por diante a nova evangelização, também no campo social, na identidade profunda de seu povo: um povo que acredita na Igreja e dela espera ânimo e diretrizes em sua vida cristã, para superar dificuldades pessoais e sociais.

Sob a sua solícita e avisada orientação, a esperança cristã há de responder à necessidade de esperança de todos os que buscam sinceramente soluções para os problemas humanos. Tem de ser dado testemunho de que conserva todo o seu vigor a mensagem do mistério da Encarnação, que quer todos os homens filhos de Deus e solidários na sorte de seus irmãos. De comunidades animadas pela esperança se irradiará a luz para a sociedade brasileira: a luz do Redentor do homem e Senhor da história: “ Jesus Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre ”(He 13,8).

Os cristãos que sabem pôr na “ Consoladora dos aflitos ” a sua confiança, jamais serão desamparados. E os fiéis brasileiros, como bem conhecem, confiam em Nossa Senhora Aparecida. Por sua intercessão, imploro para suas pessoas, para suas Dioceses e para todo o Brasil os favores divinos, com a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA PENITENCIARIA APOSTÓLICA


E DOS COLÉGIOS DOS PADRES PENITENCIEIROS


MENORES, ORDINÁRIOS E EXTRAORDINÁRIOS,


DAS BASÍLICAS PATRIARCAIS DA URBE


Sábado, 31 de Março de 1990




Senhor Cardeal
Reverendíssimos Irmãos Bispos
Caros Prelados e Oficiais da Penitenciaria Apostólica

Sede bem-vindos à casa do Pai! Recebei e transmiti a minha saudação aos vossos co-diocesanos, ou irmãos de hábito nas respectivas famílias religiosas. Como bispo de Roma, e sucessor de Pedro, sinto a necessidade de recordar a vós sacerdotes, bem como a vós que vos aprestais a receber dentro em breve o presbiterato, o principal dever de vos dedicardes, constante e pacientemente, ao ministério da penitência, da reconciliação e da paz. Deus, com efeito: Reconciliavit nos sibi per Christum et dedit nobis ministerium reconciliationis... pro Christo ergo legatione fungimur tamquam Deo exhortante per nos: obsecramus pro Christo, reconciliamini Deo (2Co 5,18-20).

A fonte divina do perdão, que é para nós a raiz vigorosa da qual deriva a força perseverante para nos dedicarmos ao ministério do sacramento da Penitência, é a "Charitas Christi": a saber, o amor d'Aquele que pro omnibus mortuus est, ut et qui vivant, iam non sibi vivant, sed ei qui pro ipsis mortuus est et resurrexit (2Co 5,15).

O sacerdote é assim chamado a restituir aos mortos no espírito a vida divina. Sacerdote e hóstia, com Jesus Sacerdote e Hóstia na Eucaristia, ele deve de igual modo ser vítima imolada e penhor de ressurreição, quando escuta as confissões sacramentais. Pela imposição das mãos por parte do bispo, todo o presbítero é consagrado e totalmente oferecido ao seu ministério em prol das almas a ele confiadas. E dado que esta oferta corresponde a um verdadeiro e fundamental direito dos fiéis, torna-se oportuno, a respeito disso, quanto eu disse aos padres penitencieiros das basílicas patriarcais da Urbe, no discurso do dia 31 de janeiro de 1981: "Desejo esclarecer que a sociedade moderna é, com razão, ciosa dos direitos imprescritíveis da pessoa: como — então — precisamente naquela mais misteriosa e sagrada esfera da personalidade, na qual se vive a relação com Deus, se haveria de negar à pessoa humana, a um fiel, quem quer que ele seja, o direito de um colóquio pessoal, único, com Deus, mediante o ministro consagrado? Porque se quereria privar cada fiel, que vale qua talis diante de Deus, da alegria íntima e muito pessoal deste singular fruto da graça?" (Insegnamenti IV, 1, 1981, p. 193). Na confissão coletiva o sacerdote poupa, sem dúvida, esforços físicos e talvez também psicológicos, mas, quando infringe a norma gravemente obrigatória da Igreja nesta matéria, ele defrauda o fiel e priva-se a si mesmo do mérito da dedicação, que é testemunho do valor de cada uma das almas remidas. Toda alma merece tempo, atenção, generosidade, não só no contexto comunitário, mas também, e sob um aspecto teológico dir-se-ia sobretudo, em si mesma, na sua incomunicável identidade e dignidade pessoal, e na delicada reserva do colóquio individual e secreto.

Na confissão sacramental seguida pela absolvição a pessoa é reconciliada com Deus e com a Igreja: sob este último elemento em particular versa a disciplina canônica relativa ao sacramento da Penitência e, em geral, ao fórum interno, matéria da qual vos ocupais nos encontros com a Penitenciaria Apostólica. Exorto-vos a considerar atentamente que a disciplina canônica relativa às censuras, às irregularidades e a outras determinações de índole penal ou cautelar não é efeito de legalismo formalista: pelo contrário, é exercício de misericórdia para com os penitentes, para os curar no espírito e por isso as censuras são chamadas medicinais.

A privação, de fato, de bens sagrados pode ser estímulo ao arrependimento e à conversão; é advertência ao fiel tentado, é magistério de respeito e de culto amoroso pela herança espiritual que nos foi deixada pelo Senhor, o qual nos fez dom da Igreja e, nela, dos sacramentos. Não é por acaso que a Penitenciaria Apostólica, emanando um documento destinado aos confessores, assim se exprime: Suprema Ecclesiae bona ita ipsi Ecclesiae cordi debent esse et sunt, ut non modo iugiter de illis tradatur doctrina et circa ea iugiter exerceatur pastoralis sollicitudo, sed etiam iuridica adhibeatur tutela, eo vel maxime quia in illis bonis stat, et illis spretis vel iniuria affectis patitur mystica Ecclesiae communio.

Na iminência da Santa Páscoa, é belo recordar o sentido pascal da nossa caridade, exercida mediante a celebração do sacramento da Penitência: nela se renova a ressurreição espiritual dos nossos irmãos, e por isso é digno e justo gaudere... quia frater tuus hic mortuus erat et revixit, perierat et inventus est (Lc 15,32). Na Encíclica Dives in misericordia expressei aquilo a que se poderia chamar a teologia do perdão: dela deriva o caráter pascal do sacramento da Reconciliação: Paschale ideo mysterium culmen huius revelationis et exsecutionis est misericordiae, quae hominem potest iustum facere, iustitiamque ipsam reficere (n. 7).

Com estes sentimentos vos confio à Virgem Santíssima, Mãe do Redentor e Mãe da Igreja, refúgio dos pecadores, e com benevolência paterna vos concedo a Bênção Apostólica.



                                                                     Abril de 1990

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO SENHOR GILBERTO COUTINHO PARANHOS VELLOSO


NOVO EMBAIXADOR DO BRASIL JUNTO DA SANTA SÉ


POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


Segunda-feira, 2 de Abril de 1990




Senhor Embaixador,

1. É para mim grato dar-lhe as boas-vindas, no momento em que tenho o prazer de acolher Vossa Excelência, aqui no Vaticano, no ato da apresentação das Cartas Credenciais, como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República Federativa do Brasil junto à Santa Sé.

Esta feliz circunstância proporciona-me a oportunidade de verificar, uma vez mais, os sentimentos de proximidade espiritual que o povo brasileiro nutre, para com o Sucessor de São Pedro; ao memso tempo, dá-me o ensejo de reiterar a expressão de meu afeto sincero para com esse povo, e de estima pela sua nobre Nação.

Agradeço vivamente as palavras amáveis que me dirigiu. Em especial, agradeço os pensamentos deferentes e a saudação que o Senhor Presidente da República, Doutor Fernando Collor, desejou fazer chegar-me. Peço a Vossa Excelência a fineza de retribuir a saudação, de minha parte, com os melhores votos de todo o bem.

2. Referiu-se o Senhor Embaixador ao momento de esperança que se vive em seu país e aos anseios de suas gentes por ver renovada a sociedade brasileira. A isto correspondem propósitos de empenho e devotamento, que confessam os responsáveis pelos destinos da Nação, no sentido de eliminar desequilíbrios sociais e guiar a caminhada do autêntico progresso, para que o Brasil tenha o lugar condigno no concerto dos povos.

Creio poder dizer que a mesma esperança ilumina o olhar confiante do mundo, voltado neste momento para seu país-continente. é pelo menos essa a atitude de Igreja e são esses os meus votos sinceros: que cada Brasileiro se sinta sujeito ativo de tal esperança, a fim de encontrar a coragem e generosidade para aqueles esforços que exige de todos a superação de contrastes, a que Vossa Excelência aludia; e para melhoria das condições de vida de todos, participando no bem comum, que sempre, em sua genuína concepção, tem no centro o homem.

3. Sublinhou o Senhor Embaixador os amistosos vínculos que no passado existiram e continuam, entre a Santa Sé e a República Federativa do Brasil. Disso são indício as boas relações recíprocas, aqui egregiamente geridas por seus ilustres predecessores, em cuja esteira Vossa Excelência manifesta o desejo de colocar-se, no desempenho de seu alto mandato. A mesma boa vontade, posso assegurar-lhe, persiste da parte desta Sé Apostólica, para que a Igreja continue na missão que lhe é própria, em terras brasileiras, a serviço do homem, que é sempre o caminho da mesma Igreja.

Do homem brasileiro, em concreto, trouxe e conservo bem viva lembrança grata, da minha peregrinação pastoral pelo Brasil, há cerca de dez anos, a que o Senhor Embaixador aludiu, em termos obsequiosos, que agradeço. Espero que, em sua Providência, Deus me conceda a oportunidade de reatar essa peregrinação. Seria motivo de alegria para mim o reencontro com o querido povo brasileiro, que continua bem presente no meu coração e do qual faço menção em minhas preces, neste ano em uníssono com os meus Irmãos Bispos do Brasil, em visita “ ad limina Apostolorum ”.

4. Em outra perspectiva, evocava o Senhor Embaixador, a contribuição desta Sé Apostólica para o bom entendimento entre os povos e para a cooperação solidária, que cada vez mais se impõe na família humana, a fim de ser promovido o bem comum a nível mundial, mediante o empenho em tornar menos rígidas contraposições e mais fácil o estabelecimento de um diálogo profícuo, para uma paz menos ameaçada e com as características de “ tranquilidade na ordem ”.

Trata-se de aspirações essenciais de cada homem; e de objetivos que só serão alcançados, percorrendo os caminhos do respeito dos direitos humanos. Esses caminhos, por sua vez, precisam da luz daqueles princípios universais que tornem mais fácil a todos a convivência, num clima de relações fraternais e reconhecimento da dignidade das pessoas, abertas para os valores transcendentes.

Uma ordem temporal mais perfeita, como é sabido, só poderá ser alcançada, na medida em que os programas de desenvolvimento material forem acompanhados do desenvolvimento espiritual e moral, que abranja as dimensões culturais, transcendentes e religiosas do homem e da sociedade (Cfr. Sollicitude Rei Socialis, 46). Uma civilização de cunho puramente materialista condena o homem, em sua luta por sobreviver, ao embate constante com a ambiguidade entre o desenvolvimento da pessoa e a multiplicação das coisas, a titubeação entre o “ ser mais ” e o “ ter mais ” (Cfr. Redemptoris Hominis, 16). Daí a obrigatoriedade para todos de uma relação honesta com a verdade sobre o mesmo homem e sobre o mundo.

5. Olhando o panorama do Continente latino-americano, em particular o que nos oferece de momento o Brasil, faço de seu rico patrimônio espiritual e com a colaboração de todas as camadas sociais, aí sejam superadas as dificuldades de hora presente. Frisava Vossa Excelência que se trata de uma Nação jovem, que acredita em si mesma, cheia de esperança num amanhã melhor, consciente do seu futuro e empenhada em libertar-se de entraves ao desenvolvimento e realização que todos desejam.

Para alcançar determinadas metas de progresso e desenvolvimento, como se sabe, é indispensável a solidariedade, tanto no interior de uma Nação como a nível internacional. Tal solidariedade, no plano ético, obriga a evitar abusos de liberdade por parte de uns, em detrimento da liberdade de outros; e a todos obriga também a comungar a “ determinação firme e perseverante pelo bem comum ”, de maneira que t odos se sintam verdadeiramente responsáveis por todos (Sollicitude Rei Socialis, 38).

No plano económico, por exemplo, é preciso suscitar uma solidariedade que, a nível regional, nacional e internacional - respeitando a justiça e a equidade - faça prevalecer a verdade de que os bens deste mundo foram criados com a destinação de servirem a todos os homens e a todos os povos.

Nesta linha, como sucede também noutros países, dois desafios ingentes se apresentam ao Brasil nesta hora, que reclamam solidariedade: o da dívida externa, que tanto desalenta legítimas aspirações e retarda o ritmo do desenvolvimento; e o da defesa do meio ambiente global e do uso dos seus muitos recursos naturais, com clarividente moderação.

6. Para enfrentar os indispensáveis esforços que se lhe impõem, conta sua nobre Nação com grandes valores. Entre outros, os princípios cristãos, inspiradores de sua identidade, de suas virtudes tradicionais e das próprias instituições. A solidariedade, já muito valiosa no plano puramente humano, cresce quando se transpõe para o plano cristão, ao considerar que todos os homens são iguais perante Deus, como seres criados à “ sua imagem e semelhança ”, e que todos são chamados a serem seus filhos, em Jesus Cristo, Redentor do homem.

Comungando, portanto, as esperanças dos Brasileiros, desejo certificar-lhe, Senhor Embaixador, a decidida vontade da Igreja, para colaborar, dentro da sua missão própria, em todas as iniciativas que visem servir a causa do “ homem todo e de todos os homens ”. Assim, prosseguirá no seu empenho em promover a consciência de que os valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da defesa dos mais necessitados devem inspirar a vida privada e pública. A fé e adesão a Jesus Cristo impõem aos fiéis católicos, também no Brasil, tornarem-se instrumentos de reconciliação e de fraternidade, na verdade, na justiça e no amor.

Senhor Embaixador,

Antes de concluir este encontro, reitero o pedido de transmitir ao Senhor Presidente da República os meus melhores votos. E quero dizer a Vossa Excelência que pode contar com a estima, boa acolhida e apoio desta Sé Apostólica, no desempenho de suas altas funções, que lhe desejo feliz e fecundo de frutos e alegrias.

O meu pensamento vai, nesta hora, para todos os Brasileiros e para quantos conduzem os seus destinos. A todos desejo felicidade, em crescente progresso e prosperidade. Estou certo de que Vossa Excelência se fará intérprete destes meus sentimentos e esperanças. E, por intercessão de Nossa Senhora Aparecida, imploro para a sua pessoa, para seu mandato e para seus familiares, assim como para todos os amados filhos da nobre Nação brasileira, copiosas bênçãos de Deus Todo-poderoso.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE A VISITA OFICIAL


DO PRESIDENTE DE PORTUGAL


Sexta-feira, 27 de Abril de 1990


Senhor Presidente,


1. Ao dar-lhe as boas-vindas, é-me grato saudar cordialmente todo o dilecto Povo português, na pessoa de Vossa Excelência, da Senhora sua Consorte e do distinto Séquito que o acompanha, nesta visita oficial ao Sucessor de Pedro.

É bem conhecido que a casa do Bispo de Roma está sempre aberta para todos os Representantes dos Povos. Mas revestem-se sempre de importância gestos como este. Esta visita tem particular importância por se tratar do mais alto Representante duma Nação de maioria católica; e por se tratar de um País da Europa, num momento de profundas mutações, a nível nacional e no contexto do Continente.

Ao longo dos séculos, a Igreja em Portugal, desempenhando a sua missão própria, soube conservar íntegra a fé cristã, ao partilhar as vicissitudes desse nobre Povo, como próvida guardadora, promotora e garante daqueles valores religiosos, morais e culturais que, de certo modo, plasmaram a identidade da Nação.

2. As cordiais relações que hoje existem entre a Santa Sé e Portugal vêm de há séculos, como tenho sublinhado noutras ocasiões. Não me permite o coração, em que vive gratidão profunda, passar em silêncio aquele momento particular em que elas bem se expressaram: refiro-me à minha visita pastoral à nobre Nação lusa, em 1982.

Estas boas relações, além do mais, assentam em vigentes compromissos concordatários, de cuja assinatura passa este ano o cinquentenário. Em Portugal como em toda a parte, com as relações oficiais, a Igreja visa sempre servir, facilitando a própria missão que, no fundo, é também serviço do homem todo e de todos os homens.

O direito e dever de os cidadãos participarem no bem comum pressupõem e hão-de manifestar uma consciência recta e esclarecida, quanto à diversidade e complementaridade de formas, níveis e funções, com que cada um deve demonstrar-se verdadeiramente responsável por todos. Com a sua doutrina social, a Igreja quer, precisamente, ajudar a formar as consciências, fortalecendo as bases morais e espirituais da sociedade; quer apontar caminhos, para que toda a actividade humana reflicta a dignidade e nobreza do homem e se processe em sintonia com as exigências e directrizes duma ética humana e cristã.

3. Apraz-me, Senhor Presidente, enquadrar esta histórica visita no contexto das comemorações centenárias dos descobrimentos portugueses: do que já se designou entre vós como “ encontro dos mundos ”, agora comemorado, para “ recordar o passado, celebrar o presente o projectar o futuro ”. Tudo isto pode ter impacto num momento de viragem, começado há cerca de três lustros, a partir de conhecidos acontecimentos. Não menor dentre eles, foi o que globalmente se chamou a “ descolonização ” de vastos territórios, até então vinculados à Nação portuguesa.

A Sé Apostólica tem vindo a acompanhar, com vivo interesse, o processo de renovamento e de nova colocação de Portugal na Europa, que se estende do Oceano Atlântico aos montes Urais. Move-a sempre o desejo sincero de favorecer as iniciativas que possam proteger e harmonizar os direitos e os deveres das pessoas e dos povos e consolidar a paz.

Registo ainda, com agrado, a disponibilidade, mormente nos tempos mais recentes, da parte do Estado português, para com a missão da Igreja, como anúncio, sacramento e ponto de referência da salvação de Deus, oferecida aos homens.

4. Oxalá perdure este bom entendimento, para que continue a processar-se a concreta afirmação da Igreja na vida da comunidade nacional; para que haja espaços de liberdade efectiva, que permitam aos fiéis católicos contribuir, como podem e devem, para a criação e transmissão da cultura, conforme a entende o Concílio Vaticano II (cf. Gaudium et spes GS 53). Isto, especialmente nos nossos dias, constitui uma das maiores tarefas da convivência humana e da evolução social.

Bem comum de cada Povo, ao mesmo tempo que expressão da sua dignidade, liberdade e criatividade, a cultura é o testemunho, sempre em devir e a ser enriquecido com novas experiências, da trajectória feita por esse Povo na própria caminhada histórica.

Perante o fenómeno da “ cultura científica e tecnológica ”, incapaz só por si de dar resposta à premente busca da verdade e do bem, que inquieta o coração do homem; perante tentativas de prevalência de uma cultura que parece divorciada da transcendência, relegando a religião para o domínio das superestruturas, a Igreja tem clara e plena consciência de dever inserir a sua proposta nesse vasto âmbito a fim de aí tornar presente a força do Evangelho (cf. Evangelii nuntiandi EN 18-20).

Consciente de ser “ parceiro ” espiritual, presente e actuante nas diversas áreas da sociedade, a Igreja não requer privilégios, como não ignora que a sua mensagem é “ transportada ” para os lugares de criação e transmissão de cultura em “vasos de barro”. Contudo, também em Portugal, ela quereria servir mais o homem, por um acesso menos íngreme e menos obstaculizado a esses “ lugares ”, mormente ao mundo da instrução e ensino, a todos os níveis, dos meios de comunicação social e da família, célula fundamental da sociedade. Ela quereria contribuir para a solidez da hierarquia dos valores, nas mentes e nos corações das pessoas, bem como na opinião pública.

5. Com efeito, à força de se ouvir apregoar o valor duma dimensão determinada da liberdade, pode perder-se o sentido do homem na sua globalidade: do homem, ser social; da pessoa humana, com a sua natural e estrutural abertura para a transcendência, e com a sua sublime vocação para viver em comunhão com Deus e com os outros.

Pelo que se refere à indeclinável relação com Deus, Criador e Pai comum, relação essa que a todos interpela, corre-se o risco de uma espécie de neutralidade, sob o pretexto de viver a “ máxima expressão da liberdade ”, o direito de ser “ laico ”.

Por tudo isto, com acerto se buscam em Portugal vias para lançar e suscitar um empenho renovado em educar para o exercício responsável da liberdade e em favorecê-la pela participação no desenvolvimento, que a todos proporcione o nível de vida verdadeiramente humano, no plano material, social, cultural e espiritual; vias para promover a civilização do trabalho, pois o trabalho é sempre a chave de toda a questão social (cf. Laborem exercens LE 3); vias, enfim, para incrementar aquela exigência directa da fraternidade humana, que é a solidariedade, a todos os níveis: entre as pessoas físicas e entre as organizações e instituições, incluindo o Estado.

6. Há, no entanto, uma dimensão mais ampla da solidariedade - como explanei na Encíclica “ Sollicitudo Rei Socialis ” - que assenta na igualdade fundamental de todos os povos e no respeito necessário das suas legítimas diferenças. Ele deve levar “ a ver o outro-pessoa, povo ou nação - não já como um instrumento qualquer... mas como um nosso “ semelhante ”, um “ auxílio ”(cf. Gen Gn 2,18-20), que há-de tornar-se participante, como nós, no banquete da vida, para o qual todos os homens são igualmente convidados por Deus (Sollicitudo Rei Socialis SRS 39).

No caso de Portugal, sucede que a descolonização o colocou perante novas perspectivas: como “ sujeito ” de solidariedade, no âmbito da Comunidade Europeia; e como fautor de solidariedade, mormente para com os povos independentes, que continuam a falar a língua portuguesa e se encontram em momento exigente e delicado, no empenho por se afirmarem como verdadeiras nações.

A genuína solidariedade, como se sabe, exige de Portugal que as boas relações com esses países se vão concretizando em colaboração; que vão além de compaixão vaga pelos males sofridos por tantas pessoas; e que se traduzam numa determinação firme e perseverante de contribuir para o seu maior bem, sempre com o sentido de que todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos (Sollicitudo Rei Socialis SRS 38).

Sim, todos somos verdadeiramente responsáveis por esses povos, que aspiram à paz, à liberdade civil e religiosa; povos que precisam de ser mais ajudados no seu desenvolvimento humano, social e cultural.

Senhor Presidente,

Sei que o seu nobre país já procura fazer isto, como Nação solidária e membro da Comunidade Europeia. Oxalá se incremente e frutifique tal colaboração. Conforme já dizia, há quase dez anos, em análoga circunstância, subsiste, da parte de Portugal, um compromisso de continuidade histórica com o seu estar no mundo, que há-de demonstrar-se co-responsabilidade no bem comum dos povos desses territórios de recente independência e da inteira família humana.

Neste momento, ao reafirmar a estima pela sua nobre Nação, da parte da Sé Apostólica, e o seu interesse pelo maior bem de todos os Portugueses, num progresso seguro e em crescentes prosperidades, faço os melhores votos também pela pessoa de Vossa Excelência.

E imploro a assistência do Alto, para que se continue a construir Portugal, como espaço humano, fraterno e cristão, em que todos os cidadãos se sintam felizes, se deixem iluminar pelos autênticos valores do seu património cultural e vivam em plenitude a história pessoal, solidários entre si e com todos os homens, sob as bênçãos de Deus Todo-poderoso.




Discursos João Paulo II 1990