Discursos João Paulo II 1990

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS BRASILEIROS


DA REGIÃO PASTORAL NORTE


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Segunda-feira, 21 de Maio de 1990




Caros Irmãos no Episcopado,

1. Muito me alegra sua presença aqui. Muito me apraz acolhê-los, e dar-lhes minhas afetuosas Boas-vindas, neste encontro colegial, após os individuais, por ocasião da visita “ ad limina Apostolorum ” de sua região pastoral Norte.

Aos Senhores, pastores zelosos, minha fraterna saudação, na comunhão eclesial, e a expressão da minha oração “ a fim de que o nome de Jesus, Nosso Senhor, seja glorificado em vós e vós nele, segundo a graça do nosso Deus ”(2Th 1,12).

Nos encontros destes dias, cada um dos Senhores me foi referindo as esperanças e as expectativas do povo de Deus que está em sua região eclesiástica. Mas é evidente que o princípio e fundamento de toda e qualquer análise, de toda e qualquer iniciativa pastoral está sobretudo na proclamação da Palavra de Deus. Para que esta seja cada vez melhor escutada, meditada e vivida. Na catequese, na liturgia, e na vida cristã.

De modo muito particular, eu desejaria convidá-los a meditar hoje comigo sobre um dos aspectos mais importantes da vida eclesial, que interessa cada um dos Senhores e a toda a Igreja que está no Brasil. Refiro-me à Vida Religiosa.

2. Todos sabemos que a Evangelização do Brasil tem sido feita sobretudo através dos Religiosos, que chegaram a este País nos meados do século XVI. Assim foi com os Jesuítas, e depois com os Carmelitas, os Beneditinos, os Franciscanos, e outros mais. É ainda aos Religiosos que se tem de atribuir o grande mérito da revitalização cristã no Brasil, no século passado.

Hoje, a presença dos Religiosos nos quadros da Igreja no Brasil continua sendo altamente significativa. Bem poderia repetir agora para os Senhores o que lhes dizia a eles em São Paulo, em 3 de Julho de 1980: que sua “ presença é para a Igreja no Brasil não um supérfluo facilmente dispensável, mas uma necessidade vital ”.

3. Eu desejaria agora repropôr à sua solicitude pastoral alguns aspectos particularmente importantes dessa qualificada presença e atividade. A saber: Os Religiosos enquanto testemunho específico da santidade da Igreja; Os Religiosos em sua relação com os Pastores.

Em primeiro lugar, os Religiosos constituem testemunho qualificado da santidade da Igreja. São-no em virtude de sua vocação e de sua consagração religiosa. Ainda há pouco, em minha visita pastoral nas ilhas de Cabo Verde, falando a Religiosos e Religiosas na cidade de Praia, eu insistia que “ a santidade pessoal na Igreja evangelizada é pressuposto fundamental, é condição insubstituível para que possa haver uma Igreja evangelizadora... pois só na medida em que a Esposa de Cristo se deixar amar por Ele e O amar, é que ela se tornará mãe fecunda no Espírito ”(25 de Janeiro de 1990). Essa busca permanente da santidade pessoal, precisamente enquanto constitui a missão primeira e fundamental de cada Religioso, constitui também um enriquecimento indispensável para toda a Igreja; a qual “ tem consciência de que, no amor que Cristo recebe da parte das pessoas consagradas, o amor de todo o Corpo se dirige de maneira especial e excepcional ao Esposo, que ao mesmo tempo é a Cabeça deste Corpo ”(Redemptionis donum, 14).

É precisamente essa permanente busca da santidade que confere à Vida Religiosa sua identidade própria e lhe dá um lugar bem definido na Igreja; não, por certo, no plano das estruturas, e sim “ na linha dos carismas; mais exatamente no dinamismo daquela santidade que é a vocação primordial da Igreja ”.

4. Aos Senhores, caríssimos irmãos no Episcopado, lhes cabe o honroso e oneroso encargo de irem zelosamente cuidando desse carisma fundante da Vida Religiosa, de o irem amorosamente promovendo e protegendo, de acordo com sua característica própria (Mutuae relationes, 9). À sua atenção solícita e ao seu fraternal cuidado eu desejaria confiar hoje a Vida Religiosa no Brasil.

O primeiro dever do Religioso e da Religiosa é o de não esquecer a originalidade peculiar do carisma de cada família religiosa. Não pretendendo, portanto, reduzi-las todas a um único modelo de vida comunitária, a saber, a inserida nos meios populares. Para a Igreja é igualmente importante a vida contemplativa e o trabalho dos Religiosos e das Religiosas na educação, no atendimento dos doentes, ou em outras formas de ação apostólica. Seja qual for o compromisso do Religioso ou da Religiosa na ordem temporal, jamais se poderá prescindir daquela dimensão espiritual que deve ir informando toda a sua existência, chamada a dar testemunho de Cristo aos irmãos. Os Religiosos, mais especificamente que os outros, são os testemunhos vivos dos conselhos evangélicos. Por isso não se pode reduzir a missão profética global da Vida Religiosa a um empenhamento exclusivo em projetos, aliás bem meritórios, de promoção que seja somente social.

Aos Senhores, como Pastores solícitos da Igreja, cabe-lhes a missão de irem acompanhando todas as iniciativas apostólicas dos Religiosos, apontando-lhes os possíveis desvios, orientando-as esclarecidamente no sentido de se recuperar e promover sempre a genuína natureza da Vida Religiosa. Muito em especial lhes recomendo que ajudem os Religiosos e Religiosas a manterem corajosamente a fidelidade ao carisma dos Fundadores. Ajudarão assim a Igreja a enriquecer-se enormemente e cada vez mais com a beleza e a variedade de todos esses carismas. Cada um deles é afinal o fruto maravilhoso de uma peculiaríssima experiência do Espírito de Deus.

De igual modo, recomendo aqui ao seu apreço pessoal e à sua paterna solicitude a promoção e o acompanhamento dos Institutos de Vida Contemplativa, cuja presença na Igreja se torna tanto mais importante quanto são maiores as necessidades pastorais do povo.

5. Em segundo lugar, haveria que sublinhar a íntima unidade que devemos fomentar entre a ação pastoral dos Religiosos e a missão específica que os Senhores receberam enquanto Pastores do povo de Deus.

Recordarão certamente as diretrizes do Concílio Vaticano II, na Christus Dominus (nn. 11, 28, 34 e 35). Recordarão igualmente as orientações contidas no capítulo 6° de Mutuae relationes. Seria muito bom que cada um dos Senhores refletisse sobre elas.

A presença numerosa e a ação competente dos Religiosos e Religiosas no panorama da Igreja no Brasil não há dúvida que encarece e que pode facilitar uma colaboração cada vez mais estreita e um sentido cada vez mais profundo da unidade eclesial. A esse propósito, devo aqui recordar-lhes a grande responsabilidade que tem cada um dos Senhores sobre o trabalho pastoral que em sua própria diocese realizam os Religiosos e as Religiosas; e a que têm os Senhores todos em conjunto, sempre que os Religiosos, através de seus organismos próprios, emanam diretrizes para sua ação pastoral no Brasil como um todo (Christus Dominus CD 34-35). Não precisaria recordar que a isenção de que gozam muitas famílias religiosas se refere só à sua disciplina interna e não ao seu trabalho apostólico externo.

Aliás, o sentido mais profundo de tal isenção seria, afinal, o de criar laços mais diretos entre esses Religiosos e o Papa, de modo a que este pudesse mais diretamente contactá-los para qualquer serviço da Igreja Universal.

Eu creio sinceramente que, acima de tudo, é importante, é mesmo indispensável, um permanente contato, um diálogo bem fraterno, uma orientação bem segura, de cada um dos Senhores com os Superiores Religiosos dos Institutos a trabalharem em cada uma de suas dioceses. Assim se tornaria muito mais fácil o devido entrosamento da ação apostólica desses Religiosos com as diretrizes pastorais dos Senhores.

Bem sabemos o sofrimento que é para todo o Corpo da Igreja e para o Sucessor de Pedro, quando, precisamente entre os Religiosos, surge alguma atitude ou manifestação de menor apreço ao Magistério e às orientações da Igreja. As da Igreja Universal, às dos Pastores locais. Estes, quantas vezes se vêem cumprindo seu ministério em meio de tanto sofrimento pessoal e de tantas incompreensões, sem nunca esmorecerem na sua união e fidelidade ao Sucessor de Pedro, centro visível da Unidade da Igreja de Jesus Cristo.

6. Minha recomendação final, seria também esta: crie-se, no âmbito de cada uma de suas dioceses, um clima de íntima união de corações e de consoladora fraternidade; entre os Senhores e seu presbitério, no qual se encontram os numerosos Religiosos que com os Senhores arduamente colaboram; entre os Pastores e as Religiosas que com entusiasmo incansável contribuem para a construção do Reino de Deus.

E com estas considerações pastorais, caros Irmãos no Episcopado, eu os desejo confiar todos à proteção de Nossa Senhora, Mãe da Igreja. Seja a Santíssima Virgem a conduzi-los em seu generoso labor apostólico, para a formação das novas gerações. Seja Maria a interceder pelos Senhores, a fim de que nunca lhes falte quem generosamente se consagre à pregação do Evangelho e às obras de caridade em favor dos humildes, dos pobres, dos que mais sofrem.

A todos os Senhores e a todos os fiéis das suas Comunidades diocesanas dou, de coração, a Bênção Apostólica, invocando sobre seus propósitos e projetos pastorais o auxílio do Senhor, Sumo e Eterno Pastor.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO BRASIL EM VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Quinta-feira, 31 de Maio de 1990




Caros irmãos no Episcopado,

1. Unidos pela mesma alegria pascal, me é grato dar-vos a minha mais cordial bem-vinda a este encontro culminante da vossa visita “ ad limina ”. Antes de mais nada, agradeço vivamente a saudação deferente com a que fazeis-me chegar também os sentimentos de adesão e afeto de vossos fiéis diocesanos, que constituem uma porção da Igreja de Deus no Brasil, tão amada por mim.

Ao mesmo tempo, dou ferventes graças a Deus que me oferece esta oportunidade de compartilhar com vossos anseios e esperanças e dos sacerdotes, religiosos, religiosas e demais agentes de Pastoral que, com abnegação não isenta de sacrifícios, colaboram em servir às comunidades eclesiais que o Senhor vos confiou.

Desde o dia de Pentecostes, que foi como o dia do nascimento da Igreja por obra e graça do Espírito Santo, Pedro está proclamando a todo o mundo: não há outro nome no qual possamos encontrar a salvação, senão o nome bendito de Jesus Cristo (cf. At Ac 4,12). Quantas vezes, ao longo destes 20 séculos, o sucessor de Pedro, com os Pastores em comunhão com ele, vem repetindo o mesmo anúncio aos homens, sempre tentados a buscar a salvação noutros nomes e noutros cultos.

Os Senhores estão vendo: um dos problemas que mais vigorosamente estão interpelando hoje sua solicitude pastoral de bispos no Brasil é o da evangelização e correto direcionamento dessa imensa riqueza do povo brasileiro, que é seu tão enraizado, mas às vezes confuso, sentido da religiosidade.

Tal sentido, é favorecido pela índole cordial e pela visão transcendental da vida, características das várias raças que foram constituindo seu povo; dele aproveitou-se a evangelização; tanto no período colonial, como no século passado. No entanto, é por todos conhecida aquela tendência a superstição que já o Apóstolo Paulo observava aos Atenienses: “ Homens atenienses, em tudo vos vejo muito religiosos. Porque, indo eu passando e vendo os vossos monumentos sagrados, encontrei também um altar, sobre o qual estava escrito: Ao Deus desconhecido. Aquele, pois, que vós adorais sem o conhecer, esse eu vos anuncio ” (Ac 17,22); sabia o Apóstolo, conhecedor como era da natureza humana e do espírito religioso da época, como ali se buscava uma multidão confusa de nomes e de cultos. Mas agora se tratava de anunciar a salvação que realmente todo o homem procura, através do único Nome, que é o de Nosso Senhor Jesus Cristo.

2. Dos vários aspectos desse sentido religioso originário, dois deles nos chamam particularmente a atenção:

- o sincretismo, que se pode manifestar em várias áreas;
- e a crescente proliferação das seitas, resultante de uma fácil e injusta exploração dessa religiosidade popular mal entendida.

3. O sincretismo religioso, é um fenómeno realmente complexo, e ainda não foi plenamente estudado. Com o desenvolvimento da atividade industrial no Brasil, e com a consequente migração interna do campo para as cidades, se tornou mais fácil a influência das práticas espiritualistas, bem como a exploração folclórica, inclusive turística, dos símbolos, ritos e das festividades populares, em que esses novos cultos se mantêm e se desenvolvem. E o resultado é por demais conhecido: alguns aspetos míticos e demiúrgicos, provindos de crenças das mais diversas origens e sentidos, vieram a misturar-se confusamente com os mistérios fundamentais da fé cristã.

O sincretismo, como sabem muito bem, se vem manifestando hoje em dia nas mais diversas áreas: desde os desvios graves da piedade popular, até a um mal entendido ecumenismo; desde as práticas da macumba, candomblé, umbanda até à aliciação proselitista de muitas seitas - como o espiritismo e outras de tipo pentecostal; desde o constante recurso à superstição até à exposição incompleta da doutrina genuína.

4. Nota-se também que, em alguns setores, se tem manifestado a tendência para superestimar todas as manifestações da religiosidade popular, como se nelas a evangelização tivesse descoberto finalmente a forma indiscutivelmente adequada de levar a essa população o autêntico anúncio evangélico. Os Senhores estão vendo como tal posição, no fundo, poderia acabar significando uma evangelização às avessas. Ficaria bem aqui o ensinamento do meu predecessor, Paulo VI: “ Nem o respeito e a estima para com essas religiões, nem a complexidade dos problemas levantados são para a Igreja um motivo para ela calar diante dos não-cristãos o anúncio de Jesus Cristo. Pelo contrário, ela pensa que essas multidões têm o direito de conhecer as riquezas do mistério de Cristo, nas quais nós acreditamos que toda a humanidade pode encontrar, numa plenitude inimaginável, tudo aquilo que ela procura às apalpadelas a respeito de Deus, do homem, do seu destino, da vida e da morte e da verdade. Mesmo perante as expressões religiosas naturais mais merecedoras de estima, a Igreja apoia-se, portanto sobre o fato de a religião de Jesus... pôr o homem objetivamente em relação com o plano de Deus, com a sua presença viva e com a sua ação... Por outras palavras, nossa religião instaura efetivamente uma relação autêntica e viva com Deus, que as outras religiões não conseguem estabelecer... ”(Evangelii nuntiandi EN 53). Fica, por isso, sempre atual o que já foi comentado em 1986 por ocasião da celebração de Assis da Jornada Inter-Religiosa de oração em favor da Paz, onde se afirmava que era preciso evitar “ não só o sincretismo, mas inclusive qualquer aparência de sincretismo que é totalmente contrário ao verdadeiro ecumenismo ”.

É certo, caros irmãos, que devemos estima e respeito as legítimas tradições religiosas, como por exemplo, às autenticamente africanas. Nelas podemos encontrar excelentes valores, como o são o respeito pela vida e pela natureza e um amplo sentido do mundo do além, constante ponto de referência da própria vida diária. Estes e outros valores podem até constituir uma espécie de “ preparação evangélica ”, para usarmos a expressão de Eusébio de Cesaréia, assumida pela “ Lumen Gentium ” e pela “ Evangelii nuntiandi ”. Outra coisa, porém, será o acolhê-las e inseri-las no contexto da Mensagem cristã. Isso não o poderíamos fazer sem um cuidadoso discernimento. é necessário purificar devidamente todos os elementos que forem claramente incompatíveis, por exemplo, com o Mistério da unicidade e transcendência absolutas de um Deus pessoal, ou com aquele relacionado com a Economia da Salvação, em que Cristo é o único Caminho para a redenção do homem; é bom lembrar também todo o tema relacionado com as exigências da Lei moral cristã.

5. Entre os Senhores, caros irmãos, estão surgindo generosas e variadas iniciativas para uma pastoral específica e orientadora dos negros e dos índios. Dos Senhores se espera que acompanhem tais iniciativas com prudência e com zelo. é certamente válido e necessário o esforço de uma inculturação autêntica da mensagem evangélica, no sentido de se conseguirem novas formas de seu anúncio, com elementos novos e devidamente purificados, hauridos das culturas dos povos que se evangelizam. Mas é claro que, para o caso concreto do Brasil, isso aí não poderia significar um desfiguramento daquela única família que é o povo brasileiro. Precisamente a grande riqueza de seu País, seu testemunho de enorme relevância para o mundo de hoje é, como eu dizia em minha homilia de 7 de julho de 1980, em Salvador da Bahia, sua “ comunidade humana multi-racial. Um verdadeiro tapete de raças... amalgamadas todas pelo vínculo da mesma língua e da mesma Fé... uma cultura impregnada, desde o primeiro momento de sua existência pelos valores da Fé e da capacidade que tem esta Fé para integrar raças e etnias as mais diversas ”. A Igreja não pode separar as pessoas, por sua raça, segundo uma forma invertida mas nem por isso menos injusta de racismo. A Igreja deve ser sobretudo e em toda a parte o instrumento construtor da unidade. Deve conseguir unir todas as raças em um só Povo. Seria, portanto, inconcebível que no seu próprio seio, pudesse fomentar-se a formação de grupos separados, a partir das diferentes características raciais. A 12 de outubro de 1987, dizia eu, em Nova Orleães, a representantes dos Movimentos negros dos Estados Unidos: “ Não existe uma Igreja negra, nem uma Igreja branca... mas existe e deve existir, na única Igreja de Jesus Cristo, uma casa para negros, para brancos, para todas as culturas e raças ”. Esse tema da discriminação já foi objeto de firme desaprovação do Concílio Vaticano II (Nostra aetate NAE 5), inclusive dos meus imediatos predecessores (Populorum progressio PP 63 Octogesima adveniens, 16) e, finalmente, também de várias e recentes manifestações de minha parte.

6. O outro grande desafio, caros irmãos no Episcopado, é o fenômeno da proliferação e constante expansão das seitas, em toda a América Latina e particularmente em seu País. é um problema que muito tem preocupado os Senhores e seus irmãos no Episcopado, em todo o Continente. é um dos temas mais interpelantes que se apresentam a seus audaciosos projetos de evangelização, nesse final de milênio. É um fenômeno complexo, que, a cada momento, vai tomando novas características.

Suas causas são ainda, em parte, objeto de investigação e análise dos estudiosos e peritos. Uma delas é certamente o desenraizamento sócio-cultural de grandes faixas da população: ao ter de migrar, do campo para a cidade, ou de uma região para outra, dentro do seu imenso País, essa gente vai perdendo as referências da sua prática religiosa, muitas vezes ligada a lugares, a usos e a práticas tradicionais muito próprias do meio em que até então vivia. Essas pessoas e famílias, introduzidas assim em tão novas situações, e em ambientes bastante diferentes que muitas vezes lhes são estranhos e até agressivos para com seus valores e seu modo de viver e de pensar, trazem consigo uma formação cristã ainda muito precária, uma Fé ainda tão fraca e já perturbada pela crescente secularização, elas não encontram a devida assistência pastoral, e sim o impacto da sociedade de consumo e a pressão dos meios de comunicação social, tornam-se, evidentemente, uma presa fácil para o fanatismo das seitas. Algumas destas se caracterizam pela agressividade de seu proselitismo; outras oferecem ao povo desprevenido a ilusão de uma resposta imediata para suas enormes carências espirituais, afetivas e mesmo materiais. é inegável que muitos fatores de ordem econômica e social contribuem para que as seitas surjam e se desenvolvam. O que ocasiona uma mudança de vida tão rápida quanto superficial e inconsistente. As pessoas tendem a oscilar entre frequentar a seita e ir às práticas religiosas na Igreja, ou deixar-se simplesmente cair no indiferentismo religioso.

Não há dúvida, meus caros irmãos, que as seitas têm muito êxito, e que sua ação e influência na vida cristã de vosso povo é relevante e pode tornar-se desastrosa. Trata-se, pois, aqui, de um dos desafios mais urgentes para o zelo pastoral dos Senhores. Torna-se cada vez mais evidente a urgência de um redobrado esforço na evangelização. Nesta, caros irmãos, se hão de envolver todos: os sacerdotes e os leigos, sobretudo os mais bem formados. Sua solicitude de pastores, os levará a uma ação salvadora em todas as áreas em que se pode afirmar o sincretismo que afasta da unidade e da verdade: “ Caritas Christi urget nos ”.

Na magnífica missão da nova evangelização, hão de os Senhores ajudar suas comunidades a tornar-se cada vez mais abertas, acolhedoras, sensíveis às condições reais das pessoas que vão chegando; procurando orientá-las através de uma autêntica Catequese, quer a nível de mesma Pastoral Catequética, quer através das orientações que se dêem nas diversas celebrações eucarísticas, ou mesmo com os Movimentos eclesiais, que dão vida a muitas das Dioceses e Paróquias do vosso País.

7. Antes de concluir nosso encontro, desejo vos dar um encargo particular: sede portadores para vossos sacerdotes, para os religiosos, religiosas, diáconos, seminaristas e para todos os fiéis diocesanos, da minha afetuosa saudação e Bênção. Fazei-lhes saber que o Papa acompanha com grande solicitude os acontecimentos do vosso nobre País, e que cada dia pede ao Senhor que ampare e ilumine com a sua graça a todos os homens de boa vontade que trabalham pelo bem comum e pelo contínuo progresso humano e espiritual da Nação.

À Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, peço pela vossa constante missão evangelizadora nas vossas Comunidades eclesiais, para que Cristo Nosso Senhor, seja cada vez mais conhecido, amado e acolhido no coração de todos os brasileiros.

A todos dou de coração minha Bênção Apostólica!



                                                                         Junho de 1990

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL LESTE-2


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM »


Sábado, 9 de Junho de 1990




Caríssimos Irmãos no Episcopado,

1. Este encontro, no contexto da visita ad limina, de per si é expressão da afetiva e efetiva comunhão entre os Senhores e com o Sucessor do Apóstolo Pedro. Para mim, ele constitui ocasião privilegiada de cumprir o mandato do Supremo Pastor, confortando-os com minha palavra, nas fadigas do ministério episcopal.

Dirijo-me aos Senhores enquanto Pastores das Igrejas que compõe a Regional da CNBB, Leste-2.
Julgo útil, em continuação do que tenho dito aos Irmãos Bispos de outras Regionais, que os precederam nesta “ Visitatio ad Petri Sedem ”, apresentar-lhes mais algumas considerações de ordem prevalentemente pastoral. Desejo, hoje, compartilhar minha solicitude a respeito de uma realidade humana que é, ao mesmo tempo, uma persistente instância para a Igreja: a Família.

2. Como bem sabem, entreguei a toda a Igreja, a seu tempo, uma Exortação Apostólica, a Familiaris Consortio, precisamente sobre este tema. Recolhia nela, como é praxe, as reflexões e conclusões de um Sínodo episcopal; e esforcei-me por examinar, nesse Documento, as questões e desafios - mesmo, e sobretudo, os mais difíceis e delicados - que a Família apresenta à Igreja, no plano da Fé e da Moral, em várias situações e no contexto da vida cotidiana.

Seja-me permitido insistir, manifestando-lhes um vivo desejo e um insistente pedido: desejo e peço que tenham sempre presente no ministério e façam presente aos sacerdotes e fiéis o conteúdo bem atual daquele Documento. Se conhecido, mais do que tem sido desde a sua publicação em 1981, se proposto aos filhos e filhas da Igreja, especialmente aos casais, se aplicado às diversas situações pastorais da família, ele pode iluminar muito a ação pastoral em tão delicado campo de nosso ministério e do apostolado dos leigos.

Sobre a importância da família na América Latina e, em especial no Brasil, e sobre a nossa comum preocupação pastoral por ela, tive a oportunidade de manifestar-me anteriormente à Familiaris Consortio no discurso em Puebla, na minha visita pastoral no México, em 1979; e, em seguida, na alocução feita no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, em 1980.

As múltiplas questões que, desde então se têm levantado, a respeito do tema, a nível mundial, são por demais conhecidas aos Senhores. Isso me induz a examinar dois aspectos contraditórios e, no entanto, complementares, da família em seu país: de um lado, a sua relevância histórica e cultural na sociedade brasileira; de outro lado, o estado inquietante em que ela se encontra, por motivo de numerosas e diversas influências.

3. Que a instituição familiar tenha sempre ocupado - e, em princípio, ocupe ainda - lugar importante no tecido social brasileiro, parece não haver dúvida. Nem é difícil perceber que esse lugar relevante é resultado da importância da família nos três povos que confluíram originariamente na formação sócio-cultural do Brasil: o português, o indígena nativo da terra, batizada com o nome de “ Santa Cruz ”, e o africano.

A literatura brasileira, o testemunho dos historiadores e as pesquisas sobre a antropologia e a cultura de sua Nação, põem no devido relevo a presença e a influência da família na formação do povo brasileiro ou, em sentido inverso, registram os graves inconvenientes que se fizeram sentir, cada vez que se atenuaram ou vieram a faltar essa presença e influência.

Não é preciso conhecer profundamente a realidade brasileira para saber quanto foi importante a família, por exemplo, na transmissão e preservação da fé cristã e católica entre o povo. Até há relativamente poucos anos atrás, mesmo faltando quase completamente os recursos normais - número suficiente de sacerdotes e outros agentes de evangelização, estruturas eclesiais, organizações pastorais - a fé se mantinha não só no interior das famílias, com admirável pureza e integridade, como também se propagava de geração em geração a essas famílias. Elas foram também, sem dúvida, as fiéis, e ativas transmissoras de nobres e insubstituíveis valores humanos, culturais, éticos e espirituais. Seria ainda necessário frisar que das melhores famílias cristãs surgiram sempre, normalmente, numerosas e ótimas vocações para o sacerdócio e para a vida religiosa?

4. O que sobre a evolução da família no Brasil se conhece, quer através de estudos científicos sobre a matéria, a partir das informações contidas em seus planos e relatórios pastorais e nos boletins das Assembléias Gerais da CNBB, quer pelas notícias dos meios de comunicação social, indicam uma crise que não se deve minimizar.

Parece certo que também em suas comunidades, a família, profundamente atingida pelos diversos aspectos da revolução social, não consegue mais ser - como o desejava a Conferência de Medellín (1968) - formadora de pessoas e evangelizadora.

Se eu tivesse que mencionar, embora sucintamente, alguns graves problemas que ameaçam a família brasileira, citaria, em primeiro lugar, a extrema fragilidade dos casamentos, de que resultam as inumeráveis separações dos casais, em todos os ambientes sociais, em todas as idades e em todos os níveis de cultura. O influxo negativo dos mass-média, invadida por programas que não só ridicularizam valores familiares como a unidade, a fidelidade e a perenidade do casamento, chegando até a preconizar o contrário; a tendência moderna à instabilidade e a não assumir nada de definitivo; e uma legislação, relativa ao divórcio, considerada muito permissiva infelizmente. Ora tudo isto conduz a uma dissolução das famílias, que constitui algo de inquietante, para os Senhores, um verdadeiro desafio pastoral.

Não podemos ignorar outras causas da derrocada das famílias como sejam as condições infra-humanas de moradia, de alimentação e saúde, de instrução, de higiene em que vivem milhões de pessoas no campo ou nas periferias, muitas das quais com imensas “ favelas ”, das vossas cidades.
Outro problema grave no vosso País, que concerne à família, é o do número enorme de crianças da rua: muitas delas são abandonadas pelos pais, outras nasceram fora de qualquer união estável daqueles que as puseram no mundo. Estas centenas de milhares de crianças, que vagueiam pelas cidades, são presas fáceis da delinquência e, muitas vezes, candidatos indefesos à sua prática.

5. Caríssimos Irmãos no episcopado, eu penso, como os Senhores e, hoje, muitas pessoas responsáveis em todos os setores da sociedade pensam, que não basta lamentar o processo de deteriorização sofrido pela família com todas as consequências negativas desse fenômeno. É preciso muito mais: é preciso convencer-nos de que, como proclama a Gaudium et Spes (n.44), o bem-estar da sociedade deriva e depende da saúde da família: é preciso, ainda mais, pôr em ação todas as iniciativas necessárias, para de novo fazer da família, o elemento essencial e imprescindível daquela que é a célula básica de uma sociedade harmoniosa e equilibrada.

Essa convicção e essa ação se revestem de suma importância, desde o ponto de vista pastoral. Em toda a parte, mas especialmente onde a Igreja experimenta graves carências e limitações, quanto aos meios e recursos necessários à sua missão evangelizadora, ela tem o dever de conclamar as famílias, enquanto “ Igrejas domésticas ”, a retomar e levar adiante a sua função específica na evangelização. Tem também correlativamente, o dever de formar e educar a família para que, malgrado as agressões que sofre e os obstáculos que enfrenta, esteja em condições de ser Igreja e edificar a Igreja.

Em cada Diocese - vasta ou pequena; rica ou pobre; dotada de clero ou não - o Bispo estará agindo com sabedoria pastoral, estará fazendo um “ investimento ” altamente compensador, estará construindo, a médio prazo, sua Igreja particular, na medida em que der o máximo apoio a uma Pastoral familiar efetiva.

Esta Pastoral vai desde a educação dos adolescentes e jovens para o amor e sua preparação para o casamento, até ao apoio espiritual e moral dos casais e, inclusive, à atenção dos casos difíceis (como descritos na Familiaris Consortio) e aos casais e famílias em grave crise. Não tenho necessidade de sublinhar - já o disse em muitas outras ocasiões - quanto podem ser úteis à pastoral familiar os Movimentos familiares bem orientados e fiéis ao seu carisma.

Sirvam estas últimas considerações de apreço e estímulo aos Pastores que se preocupam com a Pastoral Familiar, dão-lhe um lugar relevante no conjunto da Pastoral diocesana e apoiam os leigos que a promovem e nela se empenham. Sirvam também de fraterno incitamento para aqueles que sentem a necessidade de dar-lhe ainda maior apoio.

Exorto-vos, portanto, caríssimos Irmãos no Episcopado, e, por meio de vós, exorto a todos os Bispos do Brasil a proclamar incessantemente, com vigor e clareza, o “ evangelho da família ”. Evangelho exigente e até severo em muitas de suas páginas, especialmente nas que se referem à unidade e indissolubilidade, à fidelidade e à perenidade do vínculo matrimonial, aos deveres mútuos dos cônjuges - em particular ao que se refere ao respeito à Moral conjugal, contida de forma abrangente na Encíclica Humanae Vitae - e aos que regem as relações entre pais e filhos. Mas é sobretudo um evangelho de fé, de amor recíproco, de humildade e amoroso serviço, abnegado de uns para com os outros - um evangelho de esperança e de fidelidade.

Ao término dessas reflexões, sinto o impulso de dar a essa família brasileira da qual estivemos falando ao longo deste discurso, um rosto concreto. Penso portanto nas vossas famílias, Senhores Bispos da Regional Leste-2 da CNBB, nas famílias em que fostes educados e que têm alguns dos seus membros mais queridos na eternidade, bem como em tantas pessoas que vos são ligadas pelos laços de sangue. Penso nas famílias que compõem as vossas respectivas Dioceses e que são permanentemente - mesmo neste instante, embora à distância - objeto do vosso zelo e da vossa solicitude pastoral. Penso em todas as famílias do Brasil, a maioria delas sob o peso da várias tribulações com relação à educação dos filhos, à moradia, à sustentação, etc... Penso com particular estima e gratidão nas que estão vivendo os primeiros anos de casamento. Penso, enfim, com emoção nos casais idosos, que já criaram suas famílias e que agora recolhem os frutos generosos de paz e harmonia familiar, por terem sabido manter-se fiéis aos compromissos assumidos diante do Altar de Deus, uma vez para sempre. Para todas estas famílias, como para vós, seus Pastores, e vossos colaboradores, invoco uma Bênção copiosa e fecunda de Deus Nosso Senhor.




Discursos João Paulo II 1990