Discursos João Paulo II 1991 - Sábado, 12 de Outubro de 1991

VIAGEM APOSTÓLICA AO BRASIL


SAUDAÇÃO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS FIÉIS REUNIDOS NA PRAÇA DA CONCÓRDIA


Natal, 12 de Outubro de 1991



Meus queridos Irmãos Cardeais e Bispos brasileiros,
Meus queridos amigos brasileiros

Meu carinho e afeto por todos, acalentado desde quando em 1980 pisei pela primeira vez o chão desta terra da Santa Cruz, traz-me de volta - pelas mãos da Providência Divina - com a alegria de quem veio para cumprir uma promessa!

Todos se lembram de que, na ocasião da minha despedida em Manaus, na hora do adeus, eu retifiquei o discurso e disse: “Até breve!” e acrescentei, pensando bem: “Até logo, se Deus quiser”. Parece, que Deus sempre bondoso, na Sua Sabedoria infinita, quis ouvir as minhas preces. Louvado seja!

Venho como mensageiro de paz, portador da boa Nova, para comunicar a todos o amor e a esperança que anima a Igreja em relação ao Brasil e a toda América Latina.

Desde o primeiro momento, desejei fazer desta viagem uma peregrinação que começasse em Natal, onde devo encerrar o XII Congresso Eucarístico Nacional. O espírito que me animou a vir aqui, onze anos atrás, é o mesmo que agora me permite iniciar esta presença no solo brasileiro: “para chegar junto com o Brasil ao altar da Eucaristia” (Ioannis Pauli PP. II Nuntius radiotelevisificus ad Ecclesiam Populumque Brasiliae in pervigilio peregrinationis pastoralis, die 29 iun. 1980: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 (1980) 1932). Hoje, assim como naquela ocasião, quero renovar o pedido a todos para que se unam às minhas preces, pois o Sucessor de Pedro vem animado pelo único propósito de cumprir a santíssima e amabilíssima Vontade de Deus. É d’Ele que esperamos os frutos de uma abundante colheita.

Dou graças à Senhora Aparecida, por aqui chegar precisamente no dia da festa da Padroeira do Brasil. A Ela confio todas as esperanças de um futuro de paz e de justiça neste País-Continente. O amparo maternal da Virgem Santíssima “sem pecado concebida”, será penhor desses frutos que o Papa espera conseguir nesta Segunda Viagem que hoje começa.

Na esperança de poder cumprir estes propósitos, e reafirmando meu afeto por todos e cada um dos brasileiros, invoco sobre toda a Nação a plenitude das bênçãos divinas.



VIAGEM APOSTÓLICA AO BRASIL


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS BRASILEIROS


POR OCASIÃO DO ENCONTRO


NO «CENTRO DE CONVENÇÕES» DE NATAL


Domingo, 13 de Outubro de 1991



Amadíssimos Irmãos no Episcopado

1. Saúdo a todos, nesta grande sala do Centro de Convenções “Governador Lavoisier Maia”, que nos vê fraternalmente reunidos neste dia, querendo expressar o “afeto na caridade” que une o sucessor de Pedro com os Pastores da Igreja no Brasil: Desejo a todos, com palavras do Apóstolo São Paulo, “graça, misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor”(1Tm 1,2).

“Congregavit nos in unum Christi amor”.

Dou graças a Deus porque me concede a possibilidade de estar novamente convosco e de poder cumprimentar a todos fraternalmente como verdadeiros e autênticos mestres da fé, pontífices e Pastores (Cfr. Christus Dominus CD 2).

Dou graças também a Deus porque me concede compartilhar, nestes momentos de íntima comunhão, a solicitude pastoral com que cuidais do rebanho que vos foi confiado. Seria praticamente impossível nomear a todos os que formais hoje o corpo episcopal da Igreja no Brasil. No entanto, não poderia deixar de citar, no seu conjunto, os novos membros da recém empossada direção da Conferência Episcopal, representados aqui na pessoa de seu Presidente, o Arcebispo de Mariana, Dom Luciano Mendes de Almeida.

Este momento, que agora nos é concedido viver, tem para mim o sabor de um reencontro cordial. Tenho ainda bem presente a grata lembrança dos dias em que, por ocasião das últimas visitas ad limina, pude compartilhar com os Bispos do Brasil seus anseios pastorais, receber o conforto de sua sentida comunhão com o sucessor de Pedro, conhecer mais de perto a abnegada dedicação com que se entregam à sua missão, e estudar, juntamente com eles, alguns dos imensos desafios que a evangelização apresenta em vosso país.

Em todas estas ocasiões, pude constatar, mais uma vez, a árdua tarefa que vos cabe numa Nação que, à grandeza das suas dimensões territoriais e do coração de sua gente, alia os mais dolorosos contrastes, as mais prementes carências espirituais e materiais.

A própria realidade, as concretas circunstâncias humanas, religiosas e sociais, das comunidades que Deus confiou ao vosso pastoreio, constituem um vigoroso apelo para uma renovada evangelização, que faça irradiar, com a força transformadora do fermento (Cf. Mt Mt 13,33), a Boa Nova nos corações de todos e de cada um dos homens e mulheres desta terra, no seio das famílias, nas múltiplas manifestações da cultura e na justa ordenação da sociedade.

2. No mês de junho passado, Vossa Conferência Episcopal publicou o texto das “Diretrizes Gerais para a Ação Pastoral”, discutidas na última Assembléia Geral de Itaici. Agradou-me sumamente sua leitura, na qual se percebe o equilíbrio, o realismo e o senso de preocupação pastoral com que planejastes vossa ação para os próximos quatro anos. Neste texto, empregastes uma feliz expressão, de que já me fiz eco: desafios pastorais. Sei que não vos falta a fé nem a coragem para enfrentar os inúmeros desafios que se apresentam à vossa missão evangelizadora. Sei também que, ao considerardes a urgente tarefa que vos cabe, tendes plena consciência de que é na união com Cristo e na fidelidade ao Seu Evangelho, ao autêntico Magistério e à disciplina da Igreja, que encontrareis a força para superar tantas dificuldades e sacrifícios que, no mundo de hoje, o ministério episcopal comporta; o incentivo para dedicar-vos com maior entusiasmo ao rebanho que vos está confiado; e o segredo da eficácia do vosso generoso zelo apostólico.

É especialmente sobre esses motivos de conforto e de esperança que hoje queria deter-me, neste colóquio fraternal com os irmãos Bispos do Brasil.

3. Em primeiro lugar, cumpre-vos ter sempre presente, caríssimos irmãos, que a alma, a força e a vida da evangelização - desta evangelização renovada a que nos convida a proximidade do quinto centenário da proclamação da fé no continente americano - é a “Palavra da salvação” (Ac 13,26), isto é, a Verdade do Evangelho que é “força de Deus para a salvação de todo o que crê” (Rm 1,16).

Preocupa-vos, e com razão, o panorama da grave carência de doutrina, da ignorância religiosa, que deixa vosso bom povo - tão naturalmente inclinado para a transcendência e para os valores cristãos da piedade e da fraternidade - à mercê das influências dissolventes de um ambiente de deterioração moral - tanto social e pública, como privada - e o torna facilmente vulnerável à sedução das seitas e dos novos grupos religiosos. Sua expansão preocupante nestes últimos anos no Brasil, como em toda a América Latina, deveria ser objeto de uma séria tomada de posição de vossa parte. Bem sei que a promoção destas seitas e grupos conta com fortes recursos econômicos e que sua pregação alicia o povo com falsas miragens, ilude com simplificações distorcidas e semeia confusão, sobretudo entre os mais simples e carentes de instrução religiosa. É importante, pois, que vossa pastoral, com profundo sentido missionário, saiba ocupar os espaços onde elas atuam, despertando no povo a alegria e o santo orgulho de pertencer à única Igreja de Cristo que subsiste na nossa Santa Igreja Católica (Cf. Lumen Gentium LG 8).

Toda esta realidade deve continuar a incentivar-vos a um profundo exame de consciência - como sei que recentemente fizestes - e, em decorrência do mesmo, a assumir com novos rumos a grande responsabilidade que vos incumbe de serdes Mestres da fé.

4. Os Bispos do Brasil têm demonstrado, há muitos anos, uma particular sensibilidade por dar uma resposta cristã à premente fome de pão e de justiça do povo brasileiro. Deus vos abençoe e vos ajude a prosseguir - de acordo com o coração de Cristo - nessa nobre preocupação. Mas não vos esqueçais de que este propósito será autêntico na medida em que for profundamente evangélico, ou seja, na medida em que haurir sua seiva na doutrina social católica - que faz parte da mais vasta e rica doutrina moral da Igreja -, sem ceder à tentação deste tipo de teologia da libertação, que não se coaduna com o autêntico Magistério da Igreja (Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé, Libertatis Nuntius, Introd).

Sim, o Papa encoraja e abençoa vossa preocupação inspirada no “amor preferencial - nunca exclusivo nem excludente - e na solicitude para com os pobres e necessitados”, de que falava a Conferência de Puebla (Puebla, 386). Mas, ao recordar-vos vossa indeclinável responsabilidade, como Mestres da fé, quer incentivar-vos a assumir agora, com maior plenitude, vosso munus docendi e, especialmente, a urgente tarefa catequética que as circunstâncias de vosso país impõem.

5. Na minha última visita ao Brasil vivia-se a tensão entre os dois grandes blocos do oriente e do ocidente, com tantas ressonâncias em todo o mundo. Parecia então que o destino da organização econômico-social de qualquer país teria que optar entre o modelo capitalista e o do socialismo marxista. Naquela ocasião estava em preparação a Encíclica “Laborem Exercens” que tanta repercussão teve no Brasil. Nela, procurava a Igreja superar a visão parcial e relativa desta tensão mundial, chamando a atenção para o elemento decisivo que é a primazia da pessoa humana, em especial na sua vocação para o trabalho. Acenava-se mesmo para o que então se chamou, uma “nova civilização do trabalho”.

Passaram-se onze anos. O Papa volta ao Brasil em outros tempos. A tensão leste-oeste praticamente se esvaziou e muitos querem ver, neste acontecimento, uma vitória da opção capitalista-liberal, com a qual o mundo poderá entrar numa nova era de paz, de prosperidade econômica e desenvolvimento social. Não me cabe fazer prognósticos. Mas devo dizer-vos minha preocupação. Os últimos acontecimentos, de todos conhecidos, no Oriente médio, na península balcânica e em outros lugares estão nos mostrando, dolorosamente, quanto a paz está distante. Permanece, e parece mesmo que se acentua, o fosso entre os países mais desenvolvidos e os outros países, quer em via de desenvolvimento como o Brasil, quer em estágio ainda muito precário.

A lógica da dominação econômica, de imposição de modelos sem respeitar a legítima autodeterminação de cada povo e outros fatores criaram mecanismos perversos que estão impedindo o acesso de países como o Brasil, no nível das nações mais desenvolvidas. É verdade que esses países muito têm a fazer, em âmbito interno, para uma organização mais racional de sua economia, para a recuperação inadiável da moralidade administrativa, para a criação nos setores mais favorecidos e dinâmicos de uma maior sensibilidade social. Sobretudo, é fundamental o desenvolvimento quantitativo e qualitativo da educação, não só escolar mas inclusive do comportamento social e da mentalidade do povo. O subdesenvolvimento, todos sabemos, é antes de tudo um problema cultural no seu sentido mais amplo. Mas é preciso que se diga, com veemência, para que se ouça em todo o mundo, que a dívida externa de um país não poderá nunca ser paga à custa da fome e da miséria de seu povo!

Nestes últimos anos, dois importantes documentos enriqueceram a doutrina social da Igreja: as encíclicas “Sollicitudo Rei Socialis” e “Centesimus Annus”.

Nelas se repete, mais uma vez, que a Igreja não possui uma proposta concreta de organização social ou modelo econômico. Não é seu papel, nem é tarefa dos Bispos. Mas ela nunca poderá ficar calada, seja diante de quem for, quando estiver em jogo a vida, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, de todos os homens em todas as latitudes, de qualquer raça, condição social ou credo religioso! Cabe a ela, como Sacramento de Jesus Cristo, Redentor do Homem, lembrar sempre e a todos os princípios permanentes, os critérios de ação e as exigências morais que devem reger a vida social, política e econômica, em cada nação ou no contexto internacional. Dentro, porém, do contexto nacional, e em cada diocese, é da grande responsabilidade da Conferência episcopal e de cada Bispo, como Mestres da fé.

6. Nesta linha de responsabilidade como Mestres da fé, quero encorajar todos os vossos esforços para desenvolver uma pregação e uma catequese cada vez mais ampla e profunda sobre o panorama inteiro das verdades da fé e da moral católica. Basta pensar na urgente necessidade de expor com firmeza a doutrina sobre a unidade e santidade do matrimônio, sobre o sentido cristão da sexualidade e do amor humano, sobre o caráter intangível da vida humana desde o primeiro momento da sua concepção.

Lembro ainda a importância capital do ensinamento claro sobre a sacralidade do mistério eucarístico e do culto litúrgico - que nesse mistério tem o seu centro. Preocupa-me, neste sentido, as tentativas que se vêm observando no Brasil, em alguns grupos, de uma aculturação da liturgia da Santa Missa e dos Sacramentos, sem levar na devida consideração que esta deve ser sempre uma expressão inequívoca da integridade de nossa fé.

Outro aspecto importante é a santidade do sacerdócio e o valor do celibato, a necessidade vital da prática do Sacramento da Reconciliação em sua expressão normal que é a confissão auricular e secreta, tão fecunda para uma evangelização renovada.

Todos estes temas têm sido objeto de vossa atenção e, a seu tempo, sabereis colocá-los em lugar de destaque na pauta de vossas Assembléias Gerais, bem como das reuniões do Conselho Permanente e da Comissão Episcopal de Pastoral e de Doutrina da vossa Conferência.

Defendei, com confiança em Deus e humildade, a íntegra doutrina da fé, não descurando, ao mesmo tempo, o dever que vos recordava há onze anos atrás, de apontar, de modo sereno e firme os erros - bem como as ambigüidades e as releituras subjetivas da Sagrada Escritura -, propondo com precisão a verdade aos fiéis (Discurso aos Bispos em Fortaleza, 2, 10 de julho de 1980).

7. Referia-me, no começo deste encontro, às fontes de onde os Pastores hão de haurir a sua força - virtus Christi (2Co 12,9) - e encontrar o segredo da fecundidade da sua missão.

Além da fidelidade à Palavra, mencionava também - como expressão da união com Cristo - a vivência da comunhão.

A própria Igreja, Corpo de Cristo (1Co 12,27), como recordavam os Bispos latino-americanos em Puebla, é um mistério de comunhão, reflexo do mistério da comunhão trinitária, que é o manancial de onde promana toda a comunhão eclesial (Puebla 167 e 220).

Permiti-me lembrar-vos agora que, na vida e missão do Bispo, este mistério de comunhão se manifesta numa tríplice e inseparável dimensão.

- Em primeiro lugar, como diz São João, “nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1Jn 1,3). Daí decorre o dever primordial de procurar, com todas as forças, a santidade pessoal, ou seja, a íntima identificação com Jesus Cristo, “Bispo e Pastor das vossas almas” (1P 2,25). Sede modelos de oração e de adoração, de fé, de caridade, de humildade, de espírito de serviço, enfim, de todas as virtudes, de modo que, por vosso intermédio, a presença de Cristo se manifeste no seio das vossas comunidades eclesiais.

- Em segundo lugar, tende sempre presente que essa comunhão com o Pai em Cristo, no Espírito Santo, é inseparável da estreita união dos membros do Colégio episcopal, sucessor do único Colégio apostólico, com o Romano Pontífice que é, por instituição do próprio Cristo, “o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade e da comunhão” (Lumen Gentium LG 18).

Quero evocar agora, com alegria, o afeto com que os Bispos participantes do encontro que teve lugar em Roma em março deste ano, me expressaram - em nome de todo o Episcopado brasileiro - “o vivo desejo de comunhão com o Sucessor de Pedro”. Eu vos agradeço esta manifestação de fé e de adesão à Sé de Pedro e peço a Deus que a faça florescer mais e mais em realidades fecundas.

- Em terceiro lugar, é necessária uma sólida comunhão entre os Bispos que integram a Conferência Episcopal, organismo que tem na vivência da comunhão sua principal finalidade.

Se nos perguntássemos pelos princípios que devem animar esta comunhão, creio que encontraríamos uma resposta cabal naquela antiga e verdadeira fórmula, que permanece sempre válida: in necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas.

À luz desta verdade, é evidente que a unidade nas coisas necessárias é o pressuposto indispensável para que seja legítima a liberdade, e é também condição para que a união entre os membros da Conferência episcopal constitua expressão da caridade.

8. Tendo como base esta tríplice comunhão, todos os Bispos e cada um deles, serão também, “individualmente, o visível princípio e fundamento da unidade em suas Igrejas particulares, formadas à imagem da Igreja universal” (Lumen Gentium LG 23). É certamente grande a responsabilidade que cabe a cada Bispo na sua comunidade eclesial. Uma responsabilidade que não pode ficar diluída e da qual o Bispo não pode abdicar.

9. Saúdo para terminar, o Senhor Arcebispo de Natal, Dom Alaír Vilar Fernandes de Melo, e seu Auxiliar, Dom Antônio Soares Costa como também aos senhores Bispos do Brasil aqui presentes, ou que não puderam comparecer a este encontro. O Bispo de Roma, Pastor da Igreja universal, vos abençoa e invoca à Divina Providência abundantes graças celestiais, para uma renovada coragem no desempenho do ministério que vos foi confiado. Gostaria de abraçar-vos fraternalmente a todos, para animar-vos a pôr renovada energia na construção do Reino de Deus, a serviço do rebanho da Igreja particular que está entregue aos vossos cuidados.

Ao encerrar este encontro, dirijo o meu olhar e a minha confiança à Mãe comum, Nossa Senhora Aparecida. Em suas mãos, sob a sua proteção, desejo colocar agora vossas preocupações apostólicas, vossas alegrias e vossas dores, vossos trabalhos e vossa sacrificada dedicação. Nestas mãos maternas, coloco também as esperanças dos homens e das mulheres do Brasil, que tão entranhadamente estão no coração do Papa. Seja penhor desses desejos e dos dons do Céu, para todos, a minha e a vossa afetuosa Bênção Apostólica.



VIAGEM APOSTÓLICA AO BRASIL


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS SACERDOTES REUNIDOS NA CATEDRAL


DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO


Natal, 13 de Outubro de 1991



1. É para mim uma grande alegria poder reunir-me com os sacerdotes nesta Igreja Catedral!

Desejo, antes de mais nada, agradecer ao Padre Francisco de Assis Pereira, as amáveis palavras que acaba de me dirigir, como também a todos os sacerdotes presentes - juntamente com os quais venerei esta manhã o inefável mistério da Eucaristia - a bondade de terem vindo aqui, para participar deste encontro com o Sucessor de Pedro. Tenho presente, neste momento, a memória de tantos sacerdotes que, no trabalho escondido, na vida de fé e de oração e no zelo apostólico, souberam plantar e cultivar a vida da Igreja no Brasil. Entre tantos, recordo agora a figura do Padre João Maria Cavalcanti, morto no início deste século, vítima da caridade sacerdotal, modelo de Pároco e guia espiritual do povo, tão querido, lembrado e venerado nesta cidade de Natal onde viveu e trabalhou. Tenho presentes também os sacerdotes de todo o Brasil que aqui não puderam vir, mas me acompanham nesta hora. A todos, muito obrigado e que Deus vos abençoe!

Gostaria de dirigir-vos um convite como o de Cristo aos seus Apóstolos: “Vinde vós sozinhos, retiremo-nos a um lugar afastado para que descanseis um pouco” (Mc 6,31). Seria com certeza o melhor descanso para minha alma poder entreter-me pessoalmente com cada um de vós e conversar com calma, em confidência, longamente.

Infelizmente não pode ser assim. Mas eu vos asseguro que me sinto muito próximo de cada um de vós, especialmente nestes momentos de forte união espiritual. Conheço bem as dificuldades que encontrais em vossa tarefa pastoral, e conheço bem a alegre e sacrificada generosidade com que vos entregais ao vosso ministério.

2. O que hoje desejava dizer-vos pode resumir-se em poucas palavras tomadas de São Paulo: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”(Rm 13,14), e “tende em vós os mesmos sentimentos que teve Jesus Cristo” (Ph 2,5). Ou seja, procurai com todas as vossas forças identificar-vos com Cristo.

Na verdade, procurar a identificação com Cristo é um dever de todos os fiéis, pois nela consiste toda a vida cristã. Mas, no caso do sacerdote, esse dever adquire uma importância decisiva, por estar estreitamente vinculado à própria identidade sacerdotal.

3. Assumindo sua autêntica identidade, o sacerdote se tornará instrumento eficaz do único Mediador entre Deus e os homens, sendo ele próprio presença e transparência de Cristo.

Olhai à vossa volta! Não percebeis o imenso clamor de tantos homens e mulheres, de todas as condições, de todas as raças, de todas as idades que, hoje mais do que nunca, parecem dizer-nos, mesmo quando não formulam explicitamente esse desejo: queremos ver Jesus! (Jn 12,21) Queremos ver Jesus na pessoa e na vida dos seus sacerdotes!

Como é bem sabido, em alguns ambientes, no período pós-conciliar - por motivos que não é o caso detalhar agora, e devido, com frequência, a uma leitura errônea do Magistério do Concílio Vaticano II -, ficou obscurecida a consciência da verdadeira identidade sacerdotal, e originou-se a tendência a “laicizar” as funções sacerdotais, paralela à tendência a “clericalizar” a figura do leigo(Cfr. Ioannis Pauli PP. II Epistula universis presbyteris Feria V in cena Domini anno MCMXCI missa, 2, die 10 mar. 1991: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV, 1 (1991) 493 ss).

As manifestações dessa tendência são diversas, desde a intervenção do presbítero em atividades próprias da ação política, atividades que fazem parte da missão livre e responsável dos leigos, ou o pouco apreço por tarefas especificamente sacerdotais ou pelos sinais externos do sacerdócio, até a praxe de confiar a leigos encargos cujo exercício corresponde aos presbíteros ou funções que só se justificam em caso de verdadeira necessidade, com caráter de suplência.

Graças a Deus, as vacilações sobre a identidade do sacerdote, que tiveram dolorosas consequências na vida de não poucos padres e na promoção das vocações sacerdotais, já vão sendo, embora não totalmente, pouco a pouco superadas. As intervenções de muitos Padres Sinodais, durante a última Assembléia Ordinária do Sínodo dos Bispos, dão um auspicioso testemunho deste fato (Cfr. Ioannis Pauli PP. II Epistula universis presbyteris Feria V in cena Domini anno MCMXCI missa, 2, die 10 mar. 1991: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV, 1 (1991) 493 ss). .

Sem dúvida alguma, há no Povo de Deus uma consciência cada vez mais clara da absoluta necessidade do sacerdócio ministerial, com as características a que me venho referindo, em perfeita continuidade com o Evangelho, com a Tradição viva da Igreja e com os ensinamentos do Concílio Vaticano II.

Portanto, deveis assumir decididamente vossa identidade sacerdotal, em toda a sua plenitude. Dai ouvidos ao clamor dos vossos irmãos, que suplicam: queremos ver Jesus nos seus sacerdotes!

4. Queremos ver Jesus! Os homens têm necessidade de ver, em primeiro lugar, a santidade de Cristo refletida nos sacerdotes. O Brasil, o mundo inteiro, precisa de sacerdotes santos, fiéis a sua plena consagração a Deus, e totalmente entregues a sua missão peculiar. Sacerdotes cujo único objetivo seja cumprir a vontade do Pai e completar sua obra (Cfr. Jo Jn 4,34), dispostos a gastar sua vida, com uma caridade pastoral sem limites, na função de mediação que lhes é própria: levar os homens para Deus, e levar Deus aos homens. Sacerdotes que manifestem a imensa riqueza do amor de Deus, a única resposta às ânsias de infinito do coração humano, pela alegria com que lhe entregam o coração indiviso (Cfr. 1Cor 1Co 7,32-34). O celibato sacerdotal não é somente uma lei eclesiástica mas possui um significado profundo à luz da teologia do sacerdócio. A Igreja não reconhece como aceitáveis as tentativas e pressões para reintegrar no ministério sacerdotal os que o deixam pela vida no matrimônio. Não será este o caminho para contornar a grave carência de sacerdotes no Brasil. O celibato, meus caros padres, deve ser para cada um de vós a jubilosa afirmação de se sentir escolhido pela predileção d’Aquele que o chamou para uma entrega completa e sem reservas a Seu Amor.

Um “homem de Deus” transforma uma comunidade. Um sacerdote piedoso torna-se um promotor de vocações autênticas para a plena dedicação a Deus e aos irmãos. Um padre fiel aos seus compromissos é o melhor estímulo para a santidade e a estabilidade da família. Um sacerdote animado pela caridade do coração de Cristo é um foco vivo, que acende nas consciências o ardor pela justiça e colabora eficazmente, dentro de sua missão específica, para que muitos leigos assumam a responsabilidade pessoal de promover uma ordem social mais de acordo com o plano de Deus e a dignidade da pessoa humana.

5. Os homens de hoje, como os de todas as épocas, precisam ver Jesus na santidade do sacerdote, no testemunho sacerdotal de uma fé íntegra, de esperança alegre e de ilimitada caridade.

Sede homens de fé. Cristo quer continuar a dirigir aos homens a palavra da salvação, sobretudo pela boca dos seus sacerdotes. “Quem vos ouve, a mim ouve” (Lc 10,16), dizia Jesus. Por isso, é preciso que sejais homens de fé íntegra, de tal maneira que, ao ouvir-vos, todos possam reconhecer inequivocamente a Palavra de Deus. Só Cristo é a “luz dos homens” que “resplandece nas trevas” (Jn 1,4-5). Essa luz, manifestada ao mundo, Ele a depositou nas mãos da Igreja que, com a assistência do Espírito Santo, fielmente a conserva e a transmite.

Portanto, uma expressão clara desta vossa fé será a adesão sincera e confiante a toda doutrina do Magistério autêntico da Igreja, da qual se fará eco vossa pregação e catequese. Que vossa catequese seja em seu conteúdo fiel à doutrina e compreensível ao povo. E vossa pregação seja sempre o anúncio do mistério de Cristo Ressuscitado, não se revestindo daquele falso profetismo que, não raro, a reduz a uma mera mensagem politizada.

Lembrai-vos de que nossa fé, como diz São Paulo, não se baseia na “sabedoria dos homens” nem se confunde com a “sabedoria deste mundo” (1Co 2,5-6). Por isso, nenhuma ideologia poderá oferecer um postulado que seja premissa à qual se deva subordinar a doutrina da fé. Pelo contrário, é a fé que julga, com a “sabedoria de Deus” (Ibid. 2, 7), as conclusões válidas das ciências humanas que, se forem autênticas, jamais poderão estar em contradição com a Verdade da fé.

Para alimento da fé é muito importante vossa formação permanente. Não vos deixeis dominar por um ativismo pastoral, que, embora bem intencionado, pode levar-vos ao esvaziamento interior prejudicando vosso ministério. Reservai sabiamente alguma hora do dia ou dia na semana para uma oração pessoal mais tranqüila, para a leitura de bons livros de teologia ou espiritualidade, além, é claro, do razoável e indispensável descanso.

6. Sede também homens de esperança. Nós sabemos que, no exercício do ministério, somos “cooperadores de Deus”, e nossa esperança se apoia na certeza de que é Ele, o próprio Deus, quem “dá o crescimento” (Ibid. 3, 9 e 7).

O Sacerdote, para exercer com fruto seu ministério, tem necessidade de permanecer unido à videira de onde brota a vida (Cfr. Jo Jn 15,5). Tem necessidade vital de se unir a Cristo mediante uma intensa vida eucarística, de se renovar interiormente, numa contínua conversão, pela frequente recepção pessoal do Sacramento da Reconciliação, de se entregar, mesmo que sejam múltiplas as suas atividades, ao silêncio da adoração, da meditação, da oração.

7. Sede ainda os homens da caridade. Animados pelo amor ilimitado do Bom Pastor, dai a vida pelas vossas ovelhas (Cfr. ibid. 10, 11), fazendo de vossa existência uma completa e autêntica diakonia, à imitação do Filho do Homem, que “não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28).

Um sacerdote que possui os sentimentos de Cristo gasta a vida servindo a todos os homens e tratando de corresponder a suas aspirações mais profundas, sem medir sacrifícios pessoais. É um coração aberto e compreensivo, que acolhe a todos com a caridade de Cristo, sem nenhuma discriminação.

Não permitais, por isso, que preconceitos ideológicos ou qualquer espécie de classismo leve a excluir alguém de vosso trato afetuoso e do vosso zelo pastoral.

Sem dúvida alguma, um sacerdote que procura ser outro Cristo experimenta a mesma compaixão de Jesus pelas multidões esfomeadas (Cfr. Mt Mt 15,32), e por todos os que jazem abatidos e fatigados como ovelhas sem pastor (Cfr. ibid.9, 36). Em consequência, dedica um amor de preferência - embora não exclusivo - aos mais pobres, a todos os que sofrem como vítimas da injustiça e das violações dos direitos intangíveis da pessoa humana. Sem se desviar do que caracteriza a sua missão sagrada, como formador das consciências, e evitando a tentação de se tornar um líder terreno, político ou social, deve pois promover incansavelmente o bem da justiça e os direitos dos mais desamparados (Reconciliatio et Paenitentia RP 18).

Não vos esqueçais, porém, de que a missão primordial da Igreja, mais do que a libertação puramente social ou econômica, é a libertação da miséria moral do pecado, que rompe a relação filial do homem com Deus e constitui a sua maior desgraça.

8. Queria ainda lembrar-vos, queridos irmãos e irmãs, que a caridade vos deve levar a ser testemunhas daquela “fraternidade sacramental” que liga cada padre “no vínculo da comunhão com os Bispos e com os demais irmãos no sacerdócio” (Presbyterorum Ordinis PO 8 et 14).

Cooperadores da Ordem episcopal, vossa vocação vos pede, como diz Santo Inácio de Antioquia, “estar em tanta harmonia com o vosso Bispo, como as cordas na cítara” (Santo Inácio de Antioquia, Ad Ephesios). Segui, com confiança e obediência, suas diretrizes e orientações, sendo para eles apoio e conforto.

Esta recomendação tem um sentido muito especial para vós, sacerdotes religiosos que hoje desempenhais um papel tão importante e indispensável em quase todas as dioceses do Brasil. É claro que vosso trabalho pastoral não pode deixar de se inspirar nos carismas próprios dos institutos a que pertenceis. Entretanto deve ele estar em tudo subordinado à orientação e direção do Bispo com quem trabalhais. Não cabe aos Superiores Religiosos, mas única e exclusivamente ao Bispo, o governo pastoral dos fiéis de cada Igreja local, em todas as suas dimensões e níveis.

Queridos irmãos e irmãs, queridos sacerdotes! É muito importante a união fraterna entre vós. Sacerdotes diocesanos e religiosos devem se ajudar mutuamente na atividade pastoral e no apoio humano e material. Que nenhum irmão sacerdote sinta o sofrimento da solidão e da incompreensão! A Igreja vos reconhece, inclusive, o direito a terdes vossas próprias associações a nível diocesano, ou, se preciso, a nível interdiocesano. Muitas já existem no Brasil, na forma das tradicionais irmandades, confrarias ou movimentos sacerdotais. Devem ser elas “estímulo à santidade no exercício do ministério... e à união dos clérigos entre si e com o Bispo” (Codex Iuris Canonici CIC 278). Não teriam, porém, sentido se fossem concebidas ou viessem a se tornar, na prática, uma espécie de sindicato de padres ou um grupo corporativo, com posturas reivindicatórias ou mesmo antagônicas em relação à autoridade de vossos Bispos.

A união fraterna dos presbíteros só pode se inspirar na mesma caridade de Cristo e no desejo de melhor servir a sua Igreja.

9. Caros irmãos e irmãs, devo terminar. Quero concluir estas palavras dirigindo-me a Nossa Senhora, Mãe dos sacerdotes, Mãe de nossa esperança. Que Ela acompanhe com seu amor misericordioso cada um de vossos passos, torne, cada dia mais santa, mais alegre e mais eficaz vossa missão de servidores de Deus e dos homens, no espírito de fé, de esperança e de amor.

E agora devemos concluir esta celebração da palavra com uma Bênção Apostólica para todos o presentes, todos o sacerdotes do Brasil.




Discursos João Paulo II 1991 - Sábado, 12 de Outubro de 1991