Discursos João Paulo II 1991 - Vitória, 19 de Outubro de 1991

VIAGEM APOSTÓLICA AO BRASIL


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DO ENCONTRO COM


AS CRIANÇAS NA BAIXA DO BONFIM


Salvador, 20 de Outubro de 1991



Minhas queridas crianças,

1. Quantas vezes na minha vida li e ouvi as palavras de Nosso Senhor dizendo que “quem não se fizer parecido às crianças não entrará no Reino dos Céus” (Mt 18,3), e “quem colocar um obstáculo para uma criança cair, seria melhor ser jogado ao mar” (Mt 18,6). Quando, queriam afastar d’Ele as crianças, Ele reclamou: “Deixem vir a mim as criancinhas” (Mt 19,14).

Por isso, eu, que sou indigno discípulo de Jesus e faço as vezes d’Ele na Igreja, fiquei feliz quando soube que as crianças do Brasil queriam me encontrar. Eu disse: “Deixem que elas venham ao Papa!”.

Estou ainda mais feliz porque são vocês, crianças da Bahia, que hoje se encontram comigo em nome de todas as crianças do Brasil. Digo então a Vocês: “Crianças da Bahia, bom dia! Crianças do Brasil bom dia”!

2. Quero dizer-lhes, antes de tudo, que vocês são muitos importantes para o Papa. Importantes porque, aqui no Brasil vocês são muitas e formam grande parte da população. Vocês sabiam disto? Importantes porque são o futuro do Brasil, o futuro da Nação, importantes porque são também o futuro da Igreja. Vocês sabiam? Devem saber mais e mais!

O que é bonito em vocês, crianças, é que cada uma olha as outras crianças e dá as mãos, sem fazer diferença de cor, de condição social, de religião. Vocês dão as mãos umas às outras. Tomara que os grandes fizessem também como vocês e acabassem com toda discriminação. Só assim o mundo poderia encontrar a paz. Vocês querem a paz no mundo? Vocês querem um mundo em paz? Para serem realmente importantes, vocês precisam de uma família, de pais unidos, de um clima de amor e de paz. É preciso ajudar às crianças que nasceram e estão crescendo fora de uma verdadeira família. Mas é preciso também fazer alguma coisa para que todas as crianças vejam respeitado seu direito de terem pais unidos, irmãos que se amam, uma casa harmoniosa e feliz. Se vocês querem isso levantem a mão direita!

Para serem importantes, vocês precisam de escolas, onde todas, sem exceção, aprendam a ler e a escrever, a fazer as contas e tudo mais que é necessário para crescer na vida. Crianças que já vão à escola, vocês querem ser aplicadas e estudiosas para aprender muito? Vocês querem que as outras, que ainda não vão à escola, tenham boas escolas para estudar?

Para serem importantes, vocês precisam conhecer Jesus Cristo, precisam amá-l’O como seu maior amigo, rezar a Ele todos os dias sem falta. Se vocês querem isso, levantem agora a mão esquerda! Vocês precisam também aprender o Catecismo em casa, na escola e na Igreja, preparar-se para a Primeira Comunhão e para a Crisma.

Se vocês querem isso, levantem as duas mãos! Se ser criança é tão importante, então todas as crianças são importantes, todas as crianças são importantes, todas! Não pode nem deve haver crianças abandonadas. Nem crianças sem lar. Nem meninos e meninas de rua. Não pode nem deve haver crianças usadas pelos adultos para a imoralidade, para o tráfico de drogas, para as pequenas e grandes infrações, para a prática do vício. Não pode nem deve haver crianças amontoadas em centros de triagem e casas de correção, onde não conseguem receber uma verdadeira educação. Não pode nem deve haver, é o Papa quem pede e exige em nome de Deus e de seu Filho, que foi criança também Jesus, não pode nem deve haver crianças assassinadas, eliminadas sob pretexto de prevenção ao crime, marcadas para morrer! Vocês querem que todas as crianças sejam felizes? Querem uma cidade, um Estado, um País, sem crianças abandonadas e meninos e meninas de rua?

3. Falo agora aos adultos aqui presentes, na companhia de suas crianças, ou que ouvem minhas palavras, desta esplanada do Bonfim, para a Bahia e todo o Brasil. Creio que lhes falo em nome e por delegação dessas crianças.

Permitam-me, antes de tudo, manifestar à sociedade brasileira minha alegria e felicitações por dois eventos. Primeiro pela criação de um ministério da Criança. Faço votos que este órgão possa encontrar a criatividade e a agilidade necessárias, e os indispensáveis recursos, para levar remédio a todos os problemas que afligem a criança brasileira. Alegria e felicitações, em segundo lugar, pela promulgação, ainda recente, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Pude acompanhar, com interesse, sua elaboração. Alegro-me por saber que esse Estatuto está em vigor, aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional e, portanto, por um certo consenso de todo o povo brasileiro. Ele não é uma panacéia nem pretende resolver todos os problemas. Devemos, porém, ter confiança de que, malgrado suas inevitáveis limitações, ele poderá ser útil para uma política social adequada em favor da criança e do adolescente. Faço votos de que ele inspire, em todos os níveis da comunidade brasileira, iniciativas eficazes, visando solucionar os problemas.

No campo da Igreja, minha alegria é constatar o dinamismo, com que estão atuando em todo o País, em grande número de Dioceses, a Pastoral da Criança e a Pastoral do Menor. Por isso, as palavras, há pouco proferidas pela Irmã Maria do Rosário, do Secretariado da Pastoral do Menor, a quem muito agradeço, atestam este dinamismo a esta hora. Distintas nos seus objetivos imediatos e nos seus métodos, estão forçosamente interligadas no serviço que prestam. Com prazer assinalo a criação recente, primeiro em Brasília e agora em Salvador, do Movimento Pró-Vida ao qual desejo e para o qual peço a bênção divina, a fim de que ele seja um instrumento válido e eficaz para diminuir o flagelo do aborto, promover e defender a vida desde a concepção, no ventre materno, até seu fim natural, dar amparo às gestantes e às mães em dificuldade, permitir uma qualidade de vida melhor para as crianças que nascem.

4. Desejo agora convidar a todos, cada qual no próprio âmbito humano, religioso, profissional, ou político, a assegurar alguns fatores capazes de reverter a triste situação de milhões de crianças brasileiras marginalizadas.

Primeiro, a educação básica de boa qualidade, dirigida à criança desde o pré-escolar. A educação da mulher em áreas carentes para que possa cumprir com competência sua missão insubstituível na família e na comunidade.

Segundo, a paternidade e maternidade responsáveis, ideal fortemente pregado por meu Predecessor Paulo VI, exclui métodos anticoncepcionais artificiais que não respeitam a dignidade das pessoas e dos casais. Por isso, nas suas iniciativas em favor de um crescimento normal e equilibrado da população, os poderes públicos não têm o direito de promover o aborto, a esterilização em massa, a propaganda indiscriminada de meios artificiais para limitar filhos. O planejamento por métodos naturais, contribui para a educação e o crescimento dos casais, sobretudo nos ambientes mais carentes. A exigência da paternidade e maternidade responsáveis deve ter um amparo legal eficiente. O nascituro tem o direito não só a nascer, mas a nascer fruto do amor responsável e não de uma aventura, a encontrar carinho, dedicação e proteção num lar bem organizado.

5. Em nome de Cristo, nosso Mestre e Senhor, convoco a todos a trabalhar em favor da criança!

Desculpem-me crianças! Eu precisava dizer umas coisas aos adultos, mas agora volto a falar para vocês. Se não entenderam o que eu disse aos grandes, não faz mal. O importante é que eles entendam! A vocês, quero dizer uma coisa muito séria, muito séria mesmo: o Papa ama, de todo coração, as crianças do Brasil!

Para mostrar a vocês como o Papa tem amor às crianças do Brasil vou fazer uma confidência. Faz alguns meses recebi uma importância em dinheiro, em decorrência do premio Artífice da Paz, que me foi atribuído. Então, tomei a decisão de destinar integralmente esta quantia para a infância abandonada do Brasil, entregando-a ao vosso querido Arcebispo, Cardeal Lucas Moreira Neves. A forma de contribuir para as iniciativas em prol das crianças mais necessitadas. E faço isso de todo o coração, porque o Papa tem um grande amor pelas crianças.

Quero ver vocês crescerem felizes! A alegria de vocês, o entusiasmo com que cantam, gritam e rezam, é a maior riqueza e a grande esperança do Brasil. Deus abençoe a todos! Nossa Senhora os proteja!

Para vocês, meu grande, grande abraço e minha Bênção!

Viva as crianças da Bahia!

Viva as crianças do Brasil!

Viva as crianças do mundo inteiro!



VIAGEM APOSTÓLICA AO BRASIL


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS REPRESENTANTES DO MUNDO DA CULTURA


REUNIDOS NA CATEDRAL DE SALVADOR


DEDICADA A SÃO FRANCISCO XAVIER


Domingo, 20 de Outubro de 1991



Senhoras e senhores, irmãos e irmãs,

1. Nesta Sé da Bahia, um templo tão belo que me recorda a eloqüência do grande Padre Antônio Vieira - expoente da cultura do Brasil - e a admirável obra educadora dos jesuítas na época colonial, reveste-se de especial significação este encontro com os representantes do mundo da cultura, da ciência, da arte e da empresa. Sois “os construtores da sociedade”, como me agrada chamar-vos, porque em vossas mãos está o futuro verdadeiro do país, que é a construção deste povo como nação.

Agradeço as palavras cordiais do Professor José Carlos Almeida da Silva, Magnífico Reitor da Universidade Católica de Salvador que me saudou em vosso nome. Elas traduziram, de modo claro, as aspirações e necessidades dos homens de cultura do país. Com estima e afeto, agradeço também as saudações do querido Cardeal Lucas Moreira Neves, Dom Lucas.

Já estive nesta cidade em minha primeira visita ao Brasil. Voltei hoje e devo dizer-vos que se renovou a impressão tão grata e duradoura que ela me causou há onze anos. Sua localização maravilhosa, na margem oriental da Baía de Todos os Santos, bordejando depois o Atlântico, reflete algo da infinita beleza do Criador e nos convida a louvar sua imensa sabedoria e bondade.

As igrejas coloniais, as modernas construções, testemunhas de mais de quatro séculos da fé e do dinamismo empreendedor do povo baiano, fazem da cidade o encontro entre o melhor da tradição arquitetônica do barroco luso-brasileiro dos séculos dezessete e dezoito, com a presença viva e atuante de um só povo com muitas raças e culturas, determinado a construir solidário seu presente e seu futuro.

Uma indústria e atividade comercial intensa, revelam a vontade de desenvolvimento à qual se une a cultura acadêmica e científica que não se dissocia desta cultura popular viva e vibrante que tanto caracteriza a cidade.

Felicito com efusão a cidade de Salvador da Bahia, sua história de quase 450 anos desde a fundação pela visão geopolítica e inspirada do primeiro Governador Geral Tomé de Sousa, sua realidade presente, são um monumento expressivo da capacidade civilizadora do homem nas regiões tropicais.

2. Este contexto tão estimulante me dá o ensejo de recordar-vos, com minha presença e minha palavra, a grande responsabilidade que tendes na vossa missão humanizadora em relação a esta nação: a cultura e a evangelização.

A cultura, segundo a “Gaudium et Spes” é “um estilo comum de vida” que caracteriza um povo e compreende o conjunto dos valores que o animam e dos antivalores que o enfraquecem. É “tudo aquilo, através do qual, o homem apura e desenvolve suas inúmeras qualidades espirituais e corporais, procura submeter o mundo material ao seu domínio pelo conhecimento e o trabalho, torna mais humana a vida social, quer na família, quer na vida civil, e tudo pela via do progresso nos hábitos e instituições” (Gaudium et Spes GS 53).

Embora se fale sempre de um contexto social, não se pode esquecer que o homem como tal é o único sujeito e objeto da cultura. Ele é que se relaciona com o mundo, com os outros homens, com Deus, realizando assim todas as suas potencialidades. “O homem vive uma vida verdadeiramente humana, graças à cultura”. Na variedade e riqueza das suas manifestações é ela que torna o homem um ser diferente e superior ao mundo que o cerca. Por isso “o homem não pode estar fora da cultura” (Ioannis Pauli PP. II Allocutio Lutetiae Parisiorum ad eos qui conventui Consilii ab exsecutione internationalis organismi compendiariis litteris UNESCO nuncupati affuere, die 2 iun. 1980: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 (1980) 1636ss(.

O reconhecimento da sua condição de “ser diferente e superior” traz ao homem, ao mesmo tempo, uma dupla exigência antropológica e ética. O essencial da cultura se baseia neste fundamento, a saber, “na atitude com que um povo afirma ou nega sua vinculação religiosa com Deus”. Daí se segue que “a religião ou sua ausência sejam a inspiração dos demais setores da vida cultural, a família, a economia, a política, a arte e outras, na medida em que as abre para um significado último, transcendente, ou as encerra em seu próprio sentido imanente” (Ioannis Pauli PP. II Allocutio Iacopoli, ad homines cultura excultos, die 3 apr. 1987: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, X, 1 (1987) 998ss).

Uma visão determinista e estática poderia fazer crer que cada povo já tem definitiva sua cultura e nada poderia modificá-la. Entretanto, a liberdade de que o homem está dotado, leva-o a não conviver somente com a natureza ou a ela simplesmente se adaptar, mas a viver bem. A esta exigência fundamental de viver bem se acrescenta o conceito de bem-estar, a necessidade de uma qualidade de vida da qual não se pode dissociar uma exigência ética fundamental. O ato cultural se apresenta, portanto, como uma decisão em favor da vida, do progresso, e, deste modo, se prolonga, sempre renovado e dinâmico, pela história das diversas culturas. A memória histórica muito ajuda a este dinamismo. Daí decorre também a necessidade de cultivar permanentemente a cultura, de preservá-la das pressões que a enfraqueçam. Assim, a cultura de um povo sobrevive, na medida em que seus valores são robustecidos e afirmados.

3. A Igreja, em sua missão salvadora de anunciar a Boa Nova a todas as nações, se encarna nas culturas mas não se identifica com nenhuma delas, “assumindo tudo que há de bom no substrato humano e nas formas de viver de todos os povos” (Lumen Gentium LG 13 Lumen Gentium LG 2).

A Igreja se interessa pelas culturas dos diferentes povos e civilizações, por dois grandes motivos. Primeiro, porque a cultura deriva, de modo imediato, do caráter racional e social do homem. Por conseguinte, promover a pessoa humana, como deseja o Concílio, significa interessar-se por esta expressão privilegiada e necessária da pessoa que é a sua cultura. Segundo, porque o Evangelho deve ser anunciado no contexto cultural de todos os povos (cfr. Gaudium et Spes GS 58-59).

O Concílio, tendo em vista o vínculo entre a pessoa e sua expressão cultural, pede com insistência o acesso de todos à cultura, sem distinção de raça, sexo, religião, nação ou condição social, a fim de que todos possam atingir seu pleno desenvolvimento cultural, de acordo com suas capacidades e tradições.

4. Vede, pois, meus amigos, como são difíceis as tarefas, e sérias as responsabilidades que vos incumbem, em virtude deste título tão nobre de homens da cultura. Neste posto de observação privilegiado do panorama cultural brasileiro que é a Bahia, permiti-me recordar algumas destas tarefas e responsabilidades. Elas possuem especial realce e urgência ante o desafio de uma nova evangelização da América Latina, ao se completarem, no próximo ano, 500 anos do primeiro anúncio do Evangelho nestas terras. Com o lema “Nova Evangelização, promoção humana, cultura cristã”, ela será o tema da Quarta Assembléia Geral do Episcopado Latino-Americano a se reunir no próximo ano em Santo Domingo.

Primeiramente, que o Evangelho, a fé, a religião, no confronto com as culturas vivas que devem ser salvas por Cristo, tenha para elas um papel decisivo, impregnando-as com os valores cristãos. Elas, ou não os receberam profundamente, ou os foram ofuscando pela influência perniciosa do secularismo, do consumismo, do relativismo e de outros males de uma modernidade que prescinde da mensagem de Cristo ou da presença fecundante da Igreja. A evangelização das culturas deve ser feita sempre de forma explícita, nelas provocando uma adesão vital e comunitária, em necessária conexão com a promoção humana mas sem reducionismos ou ambigüidades.

Por outro lado, para que o Evangelho possa penetrar de modo eficaz e respeitoso nas culturas, deve ser por elas compreendido, deve falar sua linguagem, deve questioná-las e se deixar por elas questionar. Deve, pois, conhecer suas raízes, saber identificá-las, discernir os valores autênticos para assumi-los, na medida em que sejam compatíveis com a mensagem evangélica ou para purificar os valores falsos ou os antivalores. Esta é a inculturação do Evangelho, não uma adaptação mais ou menos oportuna aos valores da cultura ambiente, mas uma verdadeira encarnação nesta cultura para purificá-la e redimi-la.

A cultura viva do Brasil é verdadeiramente um paradigma no continente latino-americano em virtude de suas dimensões e de sua tipologia. Sua origem está no encontro da cultura européia, na sua versão portuguesa, com as culturas indígenas e africanas. Um caldeamento racial e cultural marcou profundamente e continuará marcando a maneira de ser e de se expressar do povo brasileiro. Contudo, não se pode desconhecer que ainda persistem alguns grupos indígenas com sua cultura original e que há outros cujo grau de integração continua limitado.

A partir dos séculos dezesseis e dezessete se lançaram as bases da cultura latino-americana, inclusive da brasileira, e de seu profundo substrato católico. A evangelização primeira do continente foi bastante profunda a ponto de permitir à fé católica se tornar constitutiva de seu ser e de sua identidade. Isso ainda permanece na religiosidade popular, tão marcada por um especial sentido da transcendência e, ao mesmo tempo, da proximidade de Deus e da intimidade com Ele. Uma sabedoria do povo que inspira o modo como as pessoas vivem, sua relação com a natureza e com o próximo, num sentido de festa, de solidariedade, de amizade, de parentesco e companheirismo, enfim de tudo que torna típica a cordialidade brasileira e faz a vida simples e alegre.

A cultura nascente do novo homem que surgia no Brasil e na América Latina da mestiçagem das raças ou que permanecia em alguns grupos indígenas ou africanos, começou a sofrer, a partir do século dezoito, a influência de um novo modelo de civilização. Forças antagônicas sociais e políticas, o impacto das ideologias dominantes do iluminismo, do liberalismo, do racionalismo e, mais recentemente, do marxismo e do secularismo, a busca de muitos de uma aparente segurança em alguns movimentos libertários ou conservadores, tudo isto produziu uma aceleração acentuada da história. Este fato está exigindo um enorme esforço de criatividade da parte dos povos latino-americanos que não quiserem ver suas culturas reduzidas a um segundo plano ou mesmo eliminadas (Cfr. CELAM, Evangelização da Cultura, Rio de Janeiro 1985, PP 75-78).

5. Sendo a cultura de um povo sua maior riqueza, não há missão tão importante como a que vos peço, de preservá-la em sua integridade, defendê-la das ameaças ou riscos de contaminação, de conservar seus valores evangélicos e cristãos. Neste momento, nesta Bahia que desde o início foi o local privilegiado onde se plasmou a cultura brasileira, permiti-me formular os votos mais ardentes de um renovado vigor desta cultura em suas manifestações mais autênticas. Que o “substrato católico” da maneira de ser do homem brasileiro não se perca mas adquira nova vitalidade. Que as qualidades humanas e cristãs do povo, os valores morais e espirituais que lhe dão uma feição tão singular não se frustrem nem se contaminem. Sobretudo que se conserve, como um verdadeiro dom de Deus, sua capacidade excepcional de integrar e de tornar solidários, sem qualquer tipo de discriminação, os diversos componentes étnicos de sua fisionomia humana em todo o Brasil.

Cabe-vos, homens e mulheres de cultura, como “construtores da sociedade”, ser a consciência viva da nação. Cabe-vos conduzi-la, sobretudo em seus segmentos mais favorecidos, a partilhar com maior generosidade os bens econômicos e as iniciativas de ordem social e política, feitas às vezes com não pequeno sacrifício para a população toda, visando o progresso do país, o bem comum de todos, em especial dos mais fracos e carentes.

Para a preservação e enriquecimento da cultura brasileira, muitos setores devem ser objeto da maior atenção.

Entre eles, em primeiro lugar, a família. Comprometidos na construção de uma civilização do amor, todos sabemos o papel da família que é o serviço do amor e da vida. Na minha Exortação Apostólica “Familiaris Consortio” deixei clara minha convicção de que a saúde e o bem-estar da sociedade passam necessariamente pela família.

Faço aqui um apelo a toda a sociedade brasileira, aos poderes públicos, aos legisladores, empresários, educadores, pastores e líderes religiosos, pais e mães de família, movimentos sociais e comunicadores, para que envidem todos os seus esforços a fim de que as famílias brasileiras possam encontrar condições melhores, no âmbito doméstico e no social, para bem cumprir sua missão. Este apelo torna-se urgente, porque é do meu conhecimento o drama de tantos lares desfeitos ou constituídos de modo instável, dos casais que somente se unem “por experiência”, totalmente despreparados e imaturos para uma opção de vida tão séria, das crianças que não conhecem seu pai ou sem ele vivem. Consolidar a união das famílias é indispensável para recuperar um dos pilares básicos da cultura brasileira.

Em segundo lugar, devo falar-vos da educação e de seus agentes. Uma cultura cresce e se aperfeiçoa na medida em que se abre para todos o acesso à educação integral. É ela condição indispensável para a promoção humana e a verdadeira libertação das pessoas e comunidades. Falando da educação, quero referir-me a todos os seus níveis, mas, em especial, sublinho os dois que ocupam os extremos da sua seriação. Inicialmente o setor da alfabetização e da escolaridade primária, tão vital num país das dimensões geográficas e populacionais do Brasil. O percentual de analfabetos, sobretudo na área rural, o drama da evasão escolar nos primeiros anos do ciclo primário, exigem um esforço, a qualquer custo, para serem enfrentados. Não pode este país abrir mão de sua maior riqueza, o fator humano, como elemento decisivo para o desenvolvimento. Por outro lado, o ingresso do Brasil, com competência e respeito da parte dos outros povos, no concerto das nações mais avançadas, exige a contribuição indispensável do seu nível de estudos superiores. O progresso verdadeiro de um país se mede pela possibilidade de acesso dos seus jovens nos estudos universitários, com sua dupla função de formar profissionais de nível superior e de realizar e promover a pesquisa pura e aplicada.

No Brasil, cujas Universidades, por motivos históricos de todos conhecidos, são relativamente jovens em relação às de outros países do continente, vejo com alegria e admiração o esforço realizado que recuperou uma defasagem de três séculos. Possui o Brasil hoje inclusive 16 Universidades Católicas, das quais 5 Pontifícias. Em íntima cooperação com as Universidades públicas, realizam elas um trabalho de extraordinário valor no campo da promoção da cultura nacional. Reconheço o esforço do Episcopado Brasileiro, com o apoio de sacerdotes, de religiosos e de religiosas, de professores e de estudantes, para promover uma pastoral universitária séria e um diálogo consistente entre a fé e a cultura.

A este propósito, cabe-me apresentar à Universidade Católica de Salvador, seus dirigentes, professores, funcionários e alunos, minhas efusivas congratulações por seus 30 anos de fundação e meus votos de grande progresso no futuro, no novo “campus” em construção na bela região de Pituaçú. Quero fazê-lo de modo mais expressivo, abençoando na conclusão deste encontro a pedra fundamental daquela eminente edificação. Recebo, aliás, de viva confiança, a informação de que para tal obra gigantesca e particularmente para a implantação do Instituto de Ciências Biomédicas está assegurado um válido apoio da Fundação Monte Pádua do Hospital São Rafael. Era meu vivo desejo exprimir com uma visita pessoal o meu apreço por esta casa de saúde, marco altamente significativo da presença imperial em Salvador. Impedido de fazer esta almejada visita pela estreiteza do tempo e por uma agenda já carregada, quero deixar expressos meus votos de ótimos resultados à atividade de São Rafael, sobretudo no atendimento aos doentes de baixa renda e, portanto, mais necessitados de assistência. Esta bênção é ainda mais para todos os que hoje e no futuro procurarem nesta casa de saúde, a saúde desejada.

Saúdo com muita alegria as outras Universidades e Escolas Superiores Católicas e, de modo especial, sua entidade representativa, a ABESC (Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas) cujo trabalho sei como tem sido profícuo nestes últimos anos. Minhas felicitações a todas as instituições públicas e privadas de ensino superior do Brasil, a todos os institutos de formação técnica, entre os quais destaco, neste seu primeiro cinquentenário, o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), benemérita contribuição da indústria brasileira para a capacitação profissional de tantos jovens. Quero, enfim, apresentar minha saudação amiga aos grupos, entidades e movimentos culturais aqui representados. Desejo a todos uma vitalidade cada vez maior e o reconhecimento por todas as instâncias responsáveis pela promoção da cultura neste país, de seus trabalhos e de seus méritos.

A hora que vivemos é crucial para o Brasil e para o mundo. Tem-se a impressão de que uma página decisiva da história, para toda a humanidade, está sendo virada neste final de milênio. Em especial no imenso Continente que celebra o Quinto Centenário de sua evangelização. Peço ao Senhor, e que todos peçam comigo, que nos inspire e proteja neste caminho que devemos percorrer. Tenho firme esperança em vós, homens e mulheres que fazeis da cultura vosso trabalho. Estou certo de que sabereis escrever uma nova página, bela e fecunda, nos anais da história tão rica da evangelização da cultura de vosso povo. E como penhor da graça e proteção divina para vosso ideal de serviço, dou-vos de coração minha bênção, e vos encomendo à proteção da Virgem Maria, a “Sede da Sabedoria”. Muito obrigado!



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PALAVRAS DO PAPA JOÃO PAULO II


DE INVOCAÇÃO PELA PAZ


NO FINAL DA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA


Salvador, 20 de Outubro de 1991



Ao terminar esta Celebração Eucarística que encerrou minha Visita Pastoral neste País, gostaria de convidar a todos vós, irmãos e irmãs do Brasil, para que continuem a rezar intensamente pela paz no mundo inteiro, implorando com as palavras da liturgia: “Senhor, dai-nos a paz! O Domine, dona nobis pacem”!

Meu pensamento dirige-se, sobretudo, aos países desta América Latina onde a paz está ameaçada por guerrilhas internas ou tensões externas.

E como poderemos também esquecer-nos, nas nossas orações, dos povos da Jugoslávia, enquanto sofrem grandes provações nas justas aspirações pela justiça e pela liberdade?

Hoje, porém, gostaria de convidá-los a rezar particularmente pela paz no Oriente Médio.

Foi anunciado para o próximo dia 30 de outubro, um significativo acontecimento, tão esperado por todos: Representantes de Países e povos se encontrarão em Madri para procurar, juntos e no diálogo, o caminho da justiça e da segurança pela paz no Oriente Médio.

Agradeçamos ao Senhor por ter inspirado e sustentado esta vontade de diálogo entre os que se empenharam intensamente na promoção da iniciativa e entre os que a ela aderiram.

Peçamos a fim de que o Doador de todo o bem ajude as partes interessadas a construir uma paz autêntica e duradoura. Para que se sensibilizem pelos direitos e pelas legítimas aspirações de todos - sobretudo dos mais fracos -, conscientes de que aquela região é particularmente querida a milhões de crentes, que lá encontram as raízes e os lugares sagrados do seu credo.

Confio este empenho de paz à oração da Igreja universal, e peço, com todos vós, a Maria Santíssima, para que interceda junto ao Seu Filho a fim de que, com constância e coragem, se prossiga por um caminho tão árduo que será longo e difícil.



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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NA CERIMÔNIA DE DESPEDIDA


NO AEROPORTO DE SALVADOR


Segunda-feira, 21 de Outubro de 1991



Excelentíssimo Senhor Ministro das Relações Exteriores
Excelentíssimos Senhores Membros
do Governo Federal, Estadual e Municipal
Queridos Amigos Brasileiros

1. Devo dizer que, infelizmente para mim, chegou a hora do adeus. Desejo porém, antes de iniciar minha viagem de retorno, agradecer a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, aqui representado pelo Seu Ministro das Relações Exteriores, ao qual estou agradecido pelas suas amáveis palavras, aos membros do Governo e às demais Autoridades e ao Episcopado do Brasil, a acolhida que me foi dispensada desde que iniciei minha visita apostólica em solo brasileiro.

Permitam-me colocar em primeiro lugar meus irmãos no Episcopado, assim como o fiz na minha chegada em Natal. É em suas mãos que fica entregue essa imensa população católica do Brasil. Agradeço pelo empenho e trabalho, feito em espírito de alegria e sacrifício, para que, em estreita colaboração com as Autoridades do País, se cumprisse plenamente o plano traçado para minha viagem. Agradeço aos Senhores dirigentes da Nação, pela manifestação de fraterna amizade com que souberam ressaltar vossa estima pelo Sucessor de Pedro. Devo dizer-vos que, ao longo destes dias, me foi dado comprovar o grau de vossa dedicação, aliada a uma eficiente organização, para que tudo saísse a contento.

Meu agradecimento enfim, a esse povo brasileiro tão cordial e hospitaleiro, cuja inesquecível acolhida nas várias capitais de Estado por onde passei, dificilmente se apagará da minha memória. A toda esta constelação de raças e de culturas, que fazem um só povo, irmanado por um único objetivo que é o de fazer do Brasil uma Nação grande e próspera, desejo dizer a alegria que me causou seu calor humano, seu entusiasmo, seu carinho pelo Papa. Ao despedir-me de todos que puderam acompanhar-me diretamente, ou pelo menos através da Rádio e da Televisão, asseguro que levo no coração o brilho de seus olhares, suas palavras, seus sorrisos, e, também suas súplicas. O Papa deseja voltar para Roma com essa recordação. Ela será luz para seus caminhos e estímulo para invocar a Deus Todo-Poderoso uma proteção especial para o Brasil, uma verdadeira paz e prosperidade, ajudando aos brasileiros a amar sua Pátria e a reconhecer, no Deus Único e Verdadeiro, a fonte da verdade e da felicidade.

2. Por feliz coincidência, amanhã recordarei mais um aniversário do início do meu Pontificado. Mais uma vez quero renovar o meu apelo, que sempre tenho feito a todos os homens de boa vontade: “Não tenhais medo de acolher a Cristo e de aceitar Seu poder”. Esta foi, em síntese, a mensagem que norteou meu pensamento nesses dias no Brasil.

Aquele que se definiu como “a luz do mundo” (Jn 8,12) quer ser o centro e a raiz da felicidade que deve brilhar em cada coração. Neste momento quero recordar que a autêntica felicidade só se consegue junto a Deus, que permanece à vossa espera para cumular-vos com todos os seus dons, especialmente na Eucaristia. Que a Santa Missa que celebrei em Natal, no encerramento do XII Congresso Eucarístico Nacional, constitua para todos uma perene lembrança que inspire vossa atitude como cristãos: viver com o olhar voltado para Cristo, nosso Redentor, n’Ele encontrando o exemplo e a coragem de amar aos irmãos, especialmente os mais pobres e necessitados.

Quando hoje, após 9 dias de peregrinação por terras brasileiras, chegou a hora da despedida, meu coração está cheio de gratidão, porque, ao acolherdes o Sucessor de São Pedro, quisestes acolher também a mensagem que Jesus Cristo, nosso Salvador veio trazer ao mundo.

Sim, queridos brasileiros! Minha palavra, minha presença, e minha oração, quiseram ser porta-voz do mesmo Cristo que veio ao mundo para “dar testemunho da verdade” (Jn 18,27). Procurei levar a todos os ensinamentos do Evangelho, pregando a doutrina cristã com todas as suas conseqüências, para a vida de cada um e de toda a sociedade. A fé verdadeira, a doutrina autêntica são, com efeito, condições indispensáveis e fundamentais para toda obra evangelizadora. Por isso, quis apresentar-vos a insubstituível garantia que só Cristo pode dar, e orientar-vos com uma doutrina segura que leva à autêntica liberdade dos filhos de Deus.

Nos meus diversos encontros com vários segmentos da sociedade, pude ver uma Igreja viva, na qual bispos e sacerdotes, religiosos e religiosas, catequistas e movimentos de apostolado e acima de tudo, fiéis das mais diferentes condições de vida, jovens e anciãos, se comprometem na missão evangelizadora com fé e dinamismo. A todos desejo dizer que não se entreguem ao desânimo quando vossos trabalhos vierem a exigir grandes sacrifícios, para que a luz do Evangelho chegue a todos que ainda não conhecem a Cristo. Lembrai-vos da promessa do Redentor: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20).

3. O Papa leva no fundo do coração o desejo sincero e a esperança viva, de que a Nação brasileira trilhe sempre pela senda da valorização da dignidade do homem, saiba acolher com generosidade o dom da vida, respeite e preserve a unidade da família, resguarde e defenda os direitos do homem no seu trabalho e no convívio social. Meu olhar se dirige a todos que sonham com uma vida melhor, nas cidades ou no campo, na fábrica ou no escritório, à beira-mar, ou neste imenso interior do Brasil. Por isso, elevo minhas preces a Deus Todo-Poderoso, para que ilumine os governantes a fim de que continuem se inspirando nos princípios evangélicos que fizeram do Brasil, um País inconfundível na sua fisionomia católica. Queira Deus que nesta “Terra da Santa Cruz” possa reinar a paz, inspirada pela justiça e pela solidariedade humana. Para isso vim ao Brasil, para isso tive a alegria de conviver convosco estes dias inesquecíveis.


Discursos João Paulo II 1991 - Vitória, 19 de Outubro de 1991