Discursos João Paulo II 1992 - Quarta-feira, 10 de Junho de 1992

A privilegiar alguém, seriam aqueles que sofrem, as famílias com problemas e ainda quantos nem uma família têm: o Papa não esquecerá facilmente o sofrimento de tantos angolanos! Para todos eles vai, nesta hora da partida, um pensamento solidário e uma bênção particular.

3. Levo comigo grandes recordações. Elas hão-de alimentar a minha oração e manterão viva, para além das distâncias, a amizade consolidada nestes dias passados com o povo angolano. Pude constatar, com alegria, a esperança e decisão que vos animam na construção de um País reconciliado e fraterno. O povo angolano está determinado a tomar em suas mãos o próprio destino.

Nas diversas celebrações e encontros, pude apresentar a Deus a homenagem de adoração deste povo crente. Pedi a Cristo, “Príncipe da Paz”, que, após tantos anos de provações, derramasse sobre todo o povo angolano os melhores dons de prosperidade familiar e social. Momento alto da minha estadia entre vós, foi a Eucaristia de Encerramento do Jubileu do quinto centenário da evangelização de Angola. Ao longo de cinco séculos, o Evangelho lançou raízes no meio de vós, e hoje a Igreja apresenta-se como árvore frondosa, rica de frutos e capaz de desempenhar a missão que Jesus Cristo lhe confiou em benefício desta Nação.

Amados Irmãos católicos de Angola, vós sois uma Igreja jovem e vigorosa. Que as vossas comunidades cristãs se consolidem e olhem para o futuro, sob a guia dos vossos pastores e o exemplo de glorioso testemunho cristão, que já honra aqui a história da transmissão da fé. Amai a vossa Pátria, que precisa do contributo de todos os cidadãos para cumprir o seu destino nacional e colaborar eficazmente no futuro da África e do mundo.

4. Um outro motivo de relevo particular, foi a abertura dos trabalhos da Segunda Reunião Preparatória em vista da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a África. Com ela, quisemos dar início à nova etapa do caminho sinodal: o lançamento do Instrumentum laboris, que orientará a preparação próxima desse grande e esperançoso evento eclesial.

Imploro a benevolente protecção de Nossa Senhora para todos os filhos e filhas da África. Imploro sobre todos a Bênção de Deus. Que ela lhes permita superar com sabedoria as provações por que passa o Continente, e receber o apoio solidário por parte das Nações mais favorecidas, que, no entanto, devem respeitar a própria iniciativa, a independência e a identidade de cada Nação! Deus conceda à África poder conservar intacta a sua admirável vitalidade, as suas valiosas tradições e a riqueza espiritual das suas gentes.

5. Amado Povo de Angola, tens diante de ti tarefas imensas. Não te detenhas nem desistas no caminho que conduz a uma reconciliação verdadeiramente fraterna e à unidade. Praza a Deus que o amor e a harmonia residam sempre nos vossos corações, nos vossos lares, nas vossas praças e instituições. Assim podereis vencer os obstáculos da pobreza e prosseguir com o desenvolvimento necessário do país, que possa assegurar um futuro melhor, não só para vós mas ainda para as futuras gerações.

O Senhor derrame as suas bênçãos sobre vós!

Deus abençoe o presente e o futuro desta querida Nação!

Até sempre, Angola! Fica com Deus.





AUDIÊNCIA DO PAPA JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DE EX-ALUNOS


DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


Segunda-feira, 22 de Junho de 1992



Senhor Arcebispo Dom Eurico Dias Nogueira,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Agradeço muito as amáveis palavras de apresentação do grupo de juristas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que este ano resolveu reunir-se na Cidade Eterna, com o propósito de manter inalterados aqueles laços de amizade que tiveram origem nos bancos académicos.

Fico feliz porque quisestes congregar-vos em Roma, para manifestar a vossa estima pelo Sucessor de Pedro. E sou-vos grato, ainda mais, porque deste modo singelo quereis exprimir os sentimentos cristãos de fraternidade e de benquerença, vividos com renovada pontualidade, para que o espírito de solidariedade cristã esteja sempre na origem do mútuo intercâmbio de conhecimentos e de iniciativas para o qual a Providência divina vos encaminha. A presença dos Senhores Embaixadores acreditados em Roma junto da Santa Sé, do Quirinal e das Nações Unidas, e de ilustres personalidades do mundo da política, da magistratura e da ciência, revela os frutos que, no decurso do tempo, a vossa benemérita Universidade soube produzir.

Faço votos por que prossigais, com sentido de responsabilidade e de dedicado zelo pelo bem comum, na missão de ilustrar aos vossos contemporâneos a cultura e a ciência que Deus Nosso Senhor depositou nas vossas mãos.

De todo o coração, dou-vos a minha Bênção Apostólica e peço ao Senhor que vos guarde ao longo do caminho, com a grandeza da Sua justiça, a doçura da Sua misericórdia e a força do Seu amor.



                                                         Novembro de 1992

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DE PORTUGAL DA PROVÍNCIA


ECLESIÁSTICA DE BRAGA POR OCASIÃO


DA VISITA«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Sexta-feira, 20 de Novembro de 1992



Caríssimos Irmãos no Episcopado,

1. Bem-vindos à Sé de Pedro, por ocasião da vossa visita quinqueal “ad Limina”. No início deste nosso encontro, permiti-me recordar o mistério da reconciliação universal no Verbo Encarnado, celebrado na Solenidade de Cristo-Rei, que tem lugar nestes dias: “Ao estabelecer a paz pelo Sangue derramado por Cristo na Cruz, Deus quis também, por Ele, reconciliar consigo todas as coisas que há na Terra e nos Céus” (Col 2,20). Para actuar este desígnio divino, fomos chamados e ungidos como seus arautos e mediadores a favor da humanidade de hoje.

Depois de me ter encontrado com cada um de vós nos dias passados, sinto-me feliz por poder agora saudar-vos a todos conjuntamente, e dou graças ao Senhor por esta ulterior ocasião que tenho de entrar em contacto, através das vossas pessoas, com as várias dioceses da Província eclesiástica de Braga, algumas das quais tive já a alegria de visitar. Para todas elas, vai a minha saudação afectuosa e sincera. Dirijo-a em particular aos sacerdotes, aos religiosos e às religiosas, ao laicado cristão, às famílias, aos jovens e aos doentes.

Pude conhecer as esperanças, inquietações e desafios que marcam a hora actual das vossas comunidades cristãs, pelos relatórios enviados e pelos colóquios pessoais que tivemos. A isso mesmo acabou de aludir o Arcebispo de Braga, na delicada saudação que, em nome de todos, me dirigiu. Obrigado, Senhor Dom Eurico, pelos sentimentos de devotamento e solidariedade, testemunhados à pessoa e ao ministério do Papa! Da minha parte, cordialmente vos abraço a todos, aproveitando este momento para vos agradecer, em nome da Igreja, o trabalho que realizais com tanto zelo, e para vos exortar no sentido de uma maior confiança e solidariedade entre as várias componentes da Igreja em Portugal.

2. Esta, obedecendo à opção que o Espírito Santo lhe inspirou para o final do segundo milénio, revela um forte e generoso empenhamento na evangelização e renovação da fé das comunidades cristãs – em particular das paróquias, elemento fundamental na trama das dioceses. Com a graça de Deus, elas vão-se consolidando como sujeito de uma catequese permanente e integral, de uma celebração litúrgica viva e participada, de um serviço de caridade efectivo e solidário com os mais necessitados.

Este amadurecimento cristão das comunidades tem frutificado numa maior disponibilidade apostólica por parte dos fiéis leigos. Com efeito, vencida a tendência para a subjectivação da fé, muitos deles parecem hoje dispostos a dar o melhor de si para tornar possível um tempo de encontro, diálogo e colaboração no discernimento evangélico dos problemas e respectiva solução. São disso exemplo o Sínodo ainda em curso na diocese de Aveiro, a Semana Social 1991 e os Congressos diocesanos e Nacional sobre os fiéis leigos.

Fostes aí testemunhas das maravilhas que o Espírito continua hoje a realizar no vosso meio, predispondo e comprometendo os crentes para a missão universal. De facto, pudestes recolher dos lábios de muitos deles, a generosa oferta pessoal: “Eis-me aqui, enviai-me!”(Cf. Is Is 6,8). O Papa congratula-se vivamente convosco, pelo maior sentido de pertença à Igreja e pela crescente consciência missionária e profética, de que estão a dar provas os cristãos portugueses, com o consequente desejo e abertura à formação cristã e fortalecimento da sua vida espiritual.

3. Jesus Cristo conta convosco e com os vossos sacerdotes, para iluminar os leigos cristãos e confirmá-los como Seus apóstolos fortes e decididos a proclamar o Evangelho em toda a sua integridade, nas mais diversas circunstâncias. Por isso não vos canseis de os acolher e amparar, ajudando-os fraternalmente a conhecer e a servir o Senhor, presente na comunidade eclesial.

Podereis assim superar aquele sentimento de inquietude que ainda se verifica no âmbito das relações entre o clero e os leigos cristãos. Estes lamentam a falta de direcção e ajuda, queixam-se por vezes do desinteresse, quando não da obstrução, por parte dos sacerdotes, no que se refere ao seu crescimento humano e cristão. Por seu lado, os sacerdotes invocam mil dificuldades e limitações no atendimento dos fiéis, não sendo a mais pequena o peso dos anos e a sobrecarga pastoral que os impede de acorrer condignamente a tudo e a todos.

4. Amados Irmãos, a nova evangelização aguarda os seus profetas e apóstolos. A pastoral das vocações começa a dar os seus frutos, com um maior florescimento vocacional e um tímido aumento das ordenações sacerdotais. Mas salta à vista a desproporção entre o número de sacerdotes disponíveis e as reais necessidades pastorais do Povo de Deus. Por isso, sem a formação permanente dos sacerdotes de hoje, a reevangelização não poderá ser levada avante. Está aqui um nó crucial do crescimento da Igreja.

Encorajo-vos a dar plena actuação às indicações da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores Dabo Vobis, sempre confiados na promessa divina que vos “assegura pastores segundo o seu coração” (Pastores Dabo Vobis PDV 82), entre os de ontem, de hoje, de amanhã – os sacerdotes de sempre. Todos eles são chamados a “consciencializarem-se da singular urgência da sua formação na hora presente: a nova evangelização tem necessidade de evangelizadores novos, e estes são os presbíteros que se esforçam por viver o seu sacerdócio como caminho específico para a santidade” (Pastores Dabo Vobis PDV 82).

Assim, vencida qualquer tentação que ainda pudesse existir de predomínio ou de poder sobre os fiéis e superados os preconceitos ou ressentimentos do passado, os presbíteros empenhem-se generosamente na edificação do Corpo de Cristo, valorizando a pluralidade dos ministérios e a providencial riqueza dos carismas, que o Espírito Santo não cessa de fazer florescer na comunidade. Lembrem-se de que foram colocados à frente do Povo de Deus, quais administradores fiéis e prudentes, para, no tempo devido, lhe dar a sua ração de trigo (Cf. Lc Lc 12,42). Uma leitura crente dos caminhos da divina Providência assegurar-lhes-á que este é o tempo devido e propício, para o qual eles foram preparados e enviados.

5. Por isso, reproduzindo em si mesmos a figura do Bom Pastor – que neles foi impressa pela Ordenação sacerdotal – os pastores saiam a conhecer as suas ovelhas para que elas também os possam reconhecer e ouvir (Cf. Jo Jn 10,14-16): desenvolvam maior contacto com os fiéis, “compartilhando as suas alegrias e expectativas, as tristezas e as angústias, sobretudo dos pobres e daqueles que sofrem”(Cf. Gaudium et spes GS 1), conquistando a sua confiança e amizade.

Prioritária nesta atenção e proximidade do pastor, deverá ser cada vez mais a família. Infelizmente continuam a multiplicar-se os sinais do seu declínio, tanto na sua unidade e perseverança, como na generosidade em transmitir a vida, e na salvaguarda e educação da mesma. Sei quanto vos tendes empenhado neste campo, mas, face à atitude de recusa, desconfiança ou mera suspeita que continua a predominar no confronto do plano divino para a família anunciado pela Igreja, é justo interrogarmo-nos se as paróquias estão a dar a resposta correcta e ade quada às reais carências e dramas dos esposos, dos pais e dos filhos.

Devemos-lhes a nossa porta aberta e o nosso coração solidário: empreguemos “todas as forças para que a pastoral da família se afirme e desenvolva, dedicando-nos a um sector verdadeiramente prioritário, com a certeza de que a evangelização no futuro, depende em grande parte da Igreja doméstica” (Familiaris Consortio FC 65). Por isso, o sacerdote visite as famílias e compartilhe as suas dores e alegrias; incremente na paróquia a constituição de grupos de espiritualidade familiar e de entreajuda conjugal; a comunidade paroquial apareça como uma família de famílias, onde lhes seja dedicado o melhor dos seus recursos.

6. Sem esta solidariedade concreta, sem uma atenção perseverante às necessidades espirituais e materiais dos irmãos até as fazer suas, e mover a comunidade no sentido da solução das mesmas, não há verdadeira fé em Cristo (Cf. Iac 2, 14-17), nem ali se cumpriu ainda plenamente a dimensão sócio-caritativa da Igreja que a define como bom Samaritano debruçado sobre a humanidade.

Esta revela-se hoje mais sensível àquele serviço da caridade, qual estrada primeira para descobrirem o amor infinito de Deus Pai. Por isso, os crentes procurem seriamente dar testemunho do amor que, pelo Espírito Santo, foi derramado nos seus corações (Cf. Rm Rm 5,5). Não podendo mencionar todas as realizações eclesiais sob este perfil da caridade, queria pelo menos referir aqui o contributo dos Institutos Religiosos masculinos e femininos, cujos carismas fundacionais, na sua maioria, representam concretas respostas aos pedidos de auxílio da humanidade de então; hoje a sua acção conjunta e fecunda consegue dar vida a realizações ma ravilhosas e decisivas no campo educativo, assistencial e de apostolado.

7. A presença e a acção apostólica de tantos Religiosos e Religiosas que actuam nas vossas dioceses é uma grande riqueza que deve ser mais eficazmente reconhecida e valorizada, nas tarefas específicas que brotam dos seus próprios carismas. Também este representa um Ponto crucial na concretização do projecto comum da reevangelização de Portugal, não apenas no sentido de a Igreja poder contar com numerosos e qualificados evangelizadores, mas sobretudo porque os homens e mulheres de hoje mostram-se absolutamente carecidos de tais testemunhos vivos, irradiando os valores de santidade, de oração e contemplação, de serviço generoso e total que a consagração religiosa exprime.

A próxima Assembleia Sinodal, como foi anunciado, ser-lhes-á dedicada. Faço votos por que o caminho feito em conjunto na preparação e vivência do Sínodo para os Religiosos vos permita uma crescente coordenação entre os Institutos de Vida Consagrada e a Hierarquia, tendo em vista uma presença mais orgânica e visível dos Religiosos e das Religiosas na vida da comunidade eclesial de que representam a índole profética.

8. Venerados Irmãos no Episcopado, construí a unidade na verdade e na caridade, entre os leigos e os sacerdotes, entre as diversas componentes da paróquia e os seus pastores, entre os pastores e os religiosos, e ainda entre as próprias dioceses, segundo a recomendação conciliar: “os bispos, em universal comunhão de caridade, prestem de boa vontade ajuda fraterna às outras Igrejas, em especial às mais vizinhas e necessitadas” (Lumen gentium LG 23).

Exorto-vos a prosseguir por essa estrada da aproximação e solidariedade eclesial, sempre no pleno respeito da autonomia de cada Ordinário local e da necessidade de encarnação da Igreja em cada sensibilidade e cultura: é que a evangelização da vossa sociedade nacional não será possível sem vencer o grande desnível que continua a verificar-se entre as dioceses portuguesas.

Estou certo de que, evitando as insídias de um certo tipo de mal entendida autonomia, que poderia, diante da prova dos factos, manifestar-se inútil ou ineficaz, conseguireis encontrar a forma de lhes dar mais atenção – eventualmente tomando por Irmãs gémeas as dioceses portuguesas que se apresentem mais desprovidas de meios e com menor capacidade para afirmar a sua presença no tecido social da região; isto naturalmente sem vos esquecerdes dos horizontes cada vez mais vastos da missão “ad gentes”, que já caracterizam a alma e a cultura cristã portuguesa e de que a Igreja inteira vos está imensamente grata.

9. Caríssimos irmãos, fomos chamados e ungidos pelo Espírito Santo para sermos hoje os arautos e mediadores da reconciliação da humanidade em Jesus Cristo Rei! Em conjunto convosco, quis estreitar ao coração e encorajar os actuais agentes desse desígnio salvífico, a quem foi concedido testemunhar no dia-a-dia o amor de Deus à procura do homem.

O Senhor chama-vos a um trabalho cada vez mais intenso e corajoso! Com Maria Santíssima, prossegui confiantes na vossa missão. Não posso concluir este encontro sem vos confiar a Ela, neste ano jubilar das suas Aparições em Fátima: deponho os vossos projectos e as vossas canseiras, aos seus pés vitoriosos sobre a serpente maligna. Que Nossa Senhora vos proteja, bem como às vossas dioceses, sustente todo o vosso esforço e torne frutuoso o vosso ministério apostólico!

Acompanhe-vos também a minha Bênção, que vos concedo de bom grado, tornando-a extensiva com vivo afecto, a cada uma das Comunidades diocesanas.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA


EPISCOPAL DE PORTUGAL,


PROVÍNCIAS ECLESIÁSTICAS DE LISBOA E ÉVORA,


EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


Sexta-feira, 27 de Novembro de 1992



Senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa,
Senhor Arcebispo de Évora,
Venerados Bispos das duas Províncias Eclesiásticas,

1. Há um ano e meio, tive a felicidade de poder voltar à vossa Pátria, para dali “convocar todo o Povo de Deus à evangelização do mundo” (Discurso de boas-vindas em Lisboa, 3, 10 de Maio de 1991). Valendo-me da Visita “ad Limina” do primeiro grupo da vossa Conferência Episcopal, pude congratular-me com a Igreja em Portugal, pelos frutos que já vai recolhendo de um decénio consagrado especialmente à causa da reevangelização, sendo de destacar o anseio de maior unidade fraterna e partilha solidária que o Espírito do Senhor está a suscitar no seio das vossas dioceses. Estou certo de que passam por aí os caminhos do Advento de Jesus Cristo, o Redentor do homem, dos quais fomos constituídos arautos e sentinelas. Irmãos caríssimos, é para mim motivo de grande alegria acolher-vos hoje, no termo dos colóquios que tive com cada um de vós. Saúdo-vos a todos com fraterna cordialidade e dou graças ao Senhor pela grande comunhão que vos liga, vós e as vossas Igrejas locais, ao Sucessor de Pedro.

Estou grato ao Senhor Cardeal Dom António Ribeiro, pela saudação de homenagem que me dirigiu em nome de todos: nas suas palavras, senti vibrar as preocupações e as esperanças, que cada um de vós traz no seu coração de Pastor, chamado a anunciar e promover as transcendentes realidades da vida nova em Cristo, no mundo de hoje, que delas se mostra particularmente carecido.

2. À primeira vista, o corpo social da vossa Nação vai-se robustecendo e parece no bom caminho: a maioria da gente conhece um melhor nível económico de vida, com maior acesso aos bens da civilização, graças ao significativo esforço de progresso e modernização em acto. Reina um clima social de liberdade e paz, começando a ser de diálogo e participação, favorecido pela tolerância e pelo respeito recíproco entre os cidadãos. A Igreja é amada pelos fiéis e estimada por quem se considera ser estranho a ela, havendo um bom relacionamento entre autoridades civis e eclesiásticas, com apoios mútuos em vista do bem comum, mas independência e liberdade nas respectivas áreas de actuação específica.

Todavia, ao lado destes sinais de vigor, emergem sintomas de crise e desorientação, nomeadamente: uma progressiva degradação do sentido moral e dos costumes, com o frequente recurso a separações conjugais, ao divórcio; a diminuição brusca da natalidade para níveis preocupantes, com o consequente envelhecimento da população e a ruptura entre as gerações; um laicismo, concebido como agnosticismo em matéria de valores, condicionando uma população de cultura cristã nos seus legítimos e reconhecidos direitos de opção e expressão; a difusão de doenças que encontram terreno fértil em estilos de vida que negam a verdade da pessoa, como a prostituição e o amor livre; e que dizer da insensibilidade generalizada à impunidade legal do aborto e à desenfreada carnificina de inocentes por ele causada, que mina a capacidade de acolher e proteger a vida em todas as suas fases?!

3. A Igreja foi colocada por Deus sobre o velador da História como Luz dos povos, a fim de alumiar a todos quantos estão na casa do tempo (cf. Mt Mt 5,14-16). Justamente por isso, vós, amados Irmãos, tendes procurado, com paciência e perseverança, iluminar a estrada do homem e da sociedade portuguesa, mediante o anúncio do plano divino revelado em Jesus Cristo para a salvação do mundo, que diz respeito a todos os aspectos da vida humana – inclusive à vertente da sua organização e convivência social e política.

Neste âmbito, a Doutrina Social da Igreja não esconde a sua simpatia pelo sistema democrático, mas defende que “uma autêntica democracia só é possível num Estado de direito e sobre a base de uma recta concepção da pessoa humana” (Centesimus annus CA 46). Ora, “um Estado de direito” inclui, antes de mais, o reconhecimento e o respeito dos direitos humanos, sendo o primeiro deles, o direito à vida, “do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe, depois de ser gerado”(Ibid, 47). “Trata-se de direitos naturais, universais e invioláveis: ninguém, nem o indivíduo, nem o grupo, nem a autoridade, nem o Estado, pode modificar e muito menos eliminar esses direitos que emanam do próprio Deus”(Christifideles laici CL 38). Por isso, a Igreja lembra que a democracia exige o respeito desses direitos, mas o seu respeito representa ao mesmo tempo os limites da democracia.

4. Esta, portanto, não significa que tudo se possa votar, que o sistema jurídico dependa apenas da vontade da maioria e que não se possa pretender a verdade na política. Pelo contrário, há que rejeitar firmemente a tese, segundo a qual o relativismo e o agnosticismo seriam a melhor base filosófica para uma democracia, já que esta, para funcionar, exigiria dos cidadãos admitirem que são incapazes de compreender a verdade e que todos os seus conhecimentos são relativos, vãos ou ditados por interesses e acordos ocasionais. Semelhante democracia correria o perigo de descambar na pior tirania: a liberdade, elemento fundamental de uma democracia, “só é plenamente valorizada pela aceitação da verdade”(Centesimus annus CA 46).

Isto mesmo concluía, há quase um ano, o Sínodo dos Bispos para a Europa, ao procurar identificar os caminhos da nova evangelização de um continente a braços com diversos impulsos irracionalistas e um novo paganismo: “decisiva (é) a questão da relação entre liberdade e verdade, com demasiada frequência concebida em termos antitéticos pela moderna cultura europeia, quando realmente liberdade e verdade estão de tal modo ordenadas reciprocamente que uma não pode ser alcançada sem a outra. Igualmente essencial é o superamento de outra alternativa, de resto ligada à precedente: a alternativa entre liberdade e justiça, liberdade e solidariedade, liberdade e comunhão recíproca. A pessoa humana, com efeito, cuja dignidade mais alta é constituída pela liberdade, não se realiza no fechar-se em si mesma, mas no dom de si”(Coetus Episcopalis Synodi Episc. pro Europa, Declaratio, 4), porque a origem e sentido de toda a realidade é Deus, Amor Trinitário, que se doa a nós na cruz e ressurreição de Cristo.

5. Amados Irmãos no episcopado, sem nostalgia do passado nem vontade de conquista, mas com a motivada certeza de que Jesus Cristo é o único Redentor do homem – no Qual já muitas gerações dos nossos antepassados encontraram plena saciedade para as suas aspirações mais profundas de liberdade, verdade e comunhão –, parece possível e necessário provocar um confronto leal e cordial com a actual sociedade e cultura portuguesa, de modo que ela “seja posta em condições de decidir novamente do seu futuro no encontro com a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo”(Ibid. 2).

Entre essas condições, surge em primeiro lugar a necessidade de ela se ver confrontada com o apelo à conversão de vida: a pessoa – e com ela, a sociedade e a cultura – encontrará a vida e a liberdade na abertura à transcendência. À pergunta “que havemos de fazer, irmãos?”, a resposta da Igreja terá de ser: “Convertei-vos...!”(cf. At Ac 2,37-38). Isto significa que a nova evangelização deverá conter uma finalidade claramente penitencial: levar o homem ao conhecimento de si e à reordenação interior, ao desapego do mal e ao restabelecimento da amizade com Deus.

Condição necessária para a pessoa entrar no santuário da própria consciência é libertar-se, pelo menos temporariamente, do ritmo apressado e do ruído ensurdecedor da vida moderna. Condicionada, talvez, a semelhante rodopio nas horas de trabalho, a pessoa poderá rebelar-se-lhe refugiando-se em algum oásis de silêncio, nos seus tempos livres: o fim-de-trabalho, o fim-de-semana, as férias... Reencontrará desse modo a dimensão interior da existência, aquele olhar humilde e sincero dentro de si, que descobre com admiração reconhecida “o dom de Deus”(Jn 4,10).

Para este olhar, venerados Irmãos, urge chamar e educar os homens, ajudando-os, nos seus momentos livres, a parar, a conviver e a extasiar-se no seu Criador e nas Suas obras. As vossas dioceses, através das suas instituições, obras e iniciativas criadas para acolher este peregrino da paz, saibam presenteá-lo com um silêncio pleno de Deus, o repouso à medida do seu coração inquieto(cf. Santo Agostinho, Confissões, I, 1). Lembro apenas algumas prioridades: criar o próprio espaço e tempo de oração pessoal e familiar; respeitar o Domingo, recuperando o seu originário significado religioso de “Dia do Senhor” pela participação na Eucaristia, e a sua relevância social de dia do descanso e do encontro pessoal pela presença à mesa e diálogo da vida dos seus, e ainda pelo serviço de comunhão e solidariedade com os doentes e atribulados; por último, retemperar-se humana e espiritualmente durante alguns dias de reflexão e formação, de interioridade e orientação de vida.

6. Como se disse, no objectivo da nova evangelização entra a transformação da cultura do homem de hoje; exorto-vos, pois, a lançar mão dos meios e iniciativas necessários para vos inserirdes e marcardes presença nos vários ambientes onde aquela especialmente se decide. A limitação de tempo obriga-me a ser breve e incompleto, mas eu sei que posso contar com a vossa já longa, persistente e cuidada atenção a tais realidades.

A primeira delas é o vasto campo dos meios de comunicação social. Podendo-se considerar hoje a principal fonte de informação, de orientamento e de inspiração, a nível do comportamento individual, familiar e social, a Igreja “considera seu dever pregar a mensagem da salvação, servindo-se dos meios de comunicação social... pelo que lhe compete o direito nativo de usar e possuir toda a espécie destes meios, enquanto são necessários ou úteis à educação cristã e a toda a sua obra de salvação das almas (Inter mirifica IM 3). Sem esquecer a meritória obra evangelizadora da imprensa católica, com a sua importante rede de periódicos sobretudo regionais, e da rádio emissora católica, não posso hoje deixar de me alegrar convosco, pelo facto de em breve se tornar realidade o acesso da Igreja ao uso digno, desimpedido e bem necessário de um canal televisivo, graças à mediação de um punhado de leigos cristãos e de instituições católicas com a Rádio Renascença à cabeça, todos altamente merecedores do nosso apreço e bênção.

Uma segunda realidade decisiva para intervir na cultura portuguesa, em ordem à sua recristianização, é o mundo da Escola, desde a primária até à Universidade. Compartilho a vossa apreensão ao ver as dificuldades que aí se vos deparam, tanto para manter de pé uma Escola alternativa de inspiração cristã, como para motivar os alunos da Escola pública à opção positiva pela disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica, aí facultada com o estatuto de inscrição livre e sem qualquer consequência no currículo escolar. Sem negar a importância e necessidade de meios financeiros e estruturas materiais, faz-nos bem recordar como a Igreja sempre soube, mesmo na pobreza dos instrumentos, abrir-se à riqueza da graça, conseguindo encontrar deste modo os apóstolos das grandes causas. Presentes estes, até a multiplicação daqueles parece possível.

7. Senhor Cardeal, venerados Bispos.
Se o Pastor da parábola está preocupado por ter perdido um por cento do seu rebanho (cf. Lc Lc 15,4), certamente não podemos permanecer em paz, ao ver o extravio doloroso e mortal de tantos irmãos, e a vida deles cada vez menos rica de sentido. A vós cabe a tarefa de conduzir este povo de Deus à plenitude da resposta fiel ao desígnio divino. Acompanha-vos, neste árduo mas exaltante caminho, a Virgem Senhora de Fátima, celeste Pastora que guia com carinho maternal os povos para a liberdade, os quais n’Ela encontram o ícone mais perfeito da libertação(cf. Saudação durante a Vigília Mariana no Santuário de Fátima 12 de Maio de 1991, n. 4). À sua vigilante e materna protecção, confio os vossos planos apostólicos e as necessidades materiais e espirituais das dioceses de que sois Pastores.

Não deixeis que as dificuldades, surpresas e até contradições do ministério que vos foi confiado esmoreçam o vosso entusiasmo, antes, ide repetindo como São Paulo: “sei em Quem pus a minha confiança”(2Tm 1,12). Sede apóstolos do optimismo e da esperança, infundindo confiança nos mais directos colaboradores que compartilham as vossas ânsias e alegrias pastorais. A cada um de vós, bem como aos sacerdotes, aos consagrados, a todos os fiéis das vossas Comunidades e ao povo português inteiro, concedo com afecto a minha Bênção.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO SENHOR ALFREDO GONÇALVES TEIXEIRA


NOVO EMBAIXADOR DE CABO VERDE


JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO


DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


Sábado, 28 de Novembro de 1992



Senhor Embaixador,

E para mim motivo de particular satisfação receber as Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República de Cabo Verde junto da Santa Sé. Ao dar-lhe, pois, as minhas cordiais boas–vindas a este Acto de apresentação, começo por agradecer a nobre expressão dos sentimentos que o animam, desejando assegurar, desde já, a minha estima, no desempenho da elevada missão que o seu Governo lhe confiou, assim como reiterar, perante Vossa Excelência, o profundo afecto que sinto por todos os amados filhos do seu País.

O meu pensamento dirige-se, em primeiro lugar, para Sua Excelência o Senhor Presidente António Mascarenhas Monteiro: ficar-lhe-ia grato, Senhor Embaixador, se lhe exprimisse o meu reconhecimento pela deferente saudação, da qual Vossa Excelência se fez intérprete. Formulo os melhores votos para a sua pessoa, bem como para todos os que colaboram com ele no serviço da Nação.

Durante a minha Visita Pastoral, em Janeiro de 1990, cujo eco – referia amavelmente o Senhor Embaixador – se estendeu e perdura vivo mesmo nas aldeias mais distantes, pude apreciar os genuínos valores que adornam o povo cabo-verdiano, que na sua maioria se professa filho da Igreja Católica: o seu espírito acolhedor, generoso e solidário, a sua firmeza e capacidade de resistência perante a adversidade, as suas acendradas raízes cristãs, a sua filial dedicação ao Sucessor de Pedro. Mas, ao mesmo tempo, pude verificar os graves problemas que puseram e ainda põem à prova a têmpera daquela gente, dificultando a realização das suas legítimas aspirações: o bem-estar por todos compartilhado no aconchego familiar da sua terra amada.

Ao seu país, não faltam certamente recursos nem energia moral para uma participação comum de todos os cidadãos na edificação de um futuro sereno, como, aliás, os tempos sucessivos vieram demonstrar, no processo lá verificado de transição para a democracia pluralista, e que segui com particular interesse. Vossa Excelência recordou justamente a maturidade cívica de que deu provas o povo com as suas autoridades, ao conduzirem com êxito um tão amplo esforço de renovação política num clima de estabilidade social e no respeito das regras democráticas. Na actual fase histórica de afirmação dos valores democráticos em África, Cabo Verde foi um dos primeiros países a cumprir a passagem para uma efectiva democracia pluripartidária, e, pelo modo pacífico como o fez, constituiu um grande e importante exemplo para os outros países africanos.

Estes nobres objectivos prepararam – estou certo – o terreno para o verdadeiro crescimento e desenvolvimento da Nação, no qual o seu Governo se mostra empenhado. Na prossecução de um futuro mais próspero e feliz para o seu povo, que passa por uma harmoniosa conjugação de esforços de todos os concidadãos, Vossa Excelência e o Governo podem contar com o encorajamento e o apoio da Igreja, em especial da Santa Sé, assim como – espero vivamente – com a simpatia e a ajuda da comunidade internacional.

Aprecio a referência que o Senhor Embaixador fez ao papel desempenhado pela Igreja na sua pátria, promovendo o bem-estar do seu povo, e zelando pelo respeito da “identidade mais profunda da alma cabo-verdiana”: com efeito, ela participou com lealdade no processo de construção da nação, empenhando-se num diálogo respeitoso acerca de importantes questões que atingiam a vida nacional, e ocupando-se directamente de sectores críticos do progresso social, tais como a educação e a assistência sanitária. Pode, por isso, medir o quanto a Igreja Católica tem a peito a estabilidade e o desenvolvimento integral da sociedade de Cabo Verde: ela tem sublinhado, a este propósito, a importância de uma política que promova a vida, a unidade e a estabilidade da família, e que possibilite à juventude uma escola onde ela seja formada tanto para as responsabilidades que a aguardam como para os valores que a dignificam, nomeadamente os princípios éticos e a dimensão religiosa.

Como disse, à minha chegada à cidade da Praia: a Igreja “não sendo "estrangeira" em parte nenhuma, preconiza, onde se encontra implantada, o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens... Para tanto não reclama privilégios; pede simplesmente que se respeite o espaço de liberdade que lhe cabe e que é direito inalienável daqueles a quem ela procura beneficiar” (Discurso de boas-vindas em Praia, Cabo Verde, 6, 25 de Janeiro de 1990). Na verdade, como Vossa Excelência bem sabe, a obra maior e mais delicada a construir é o próprio homem. A este empreendimento, a Igreja deseja oferecer, hoje como no passado, o contributo estimulante que lhe vem da Revelação acerca da dignidade humana e do verdadeiro sentido da vida e da história.

Senhor Embaixador,

No momento em que inicia as suas novas responsabilidades, no âmbito da comunidade diplomática acreditada junto da Santa Sé, auguro a Vossa Excelência os melhores êxitos na sua nobre missão, assegurando-lhe a disponibilidade dos vários departamentos da Cúria Romana, para o assistir no cumprimento dos seus deveres. Invoco de todo o coração sobre Vossa Excelência e sua ilustre família, sobre o Senhor Presidente da República, o Governo e todo o querido povo de Cabo Verde, viva ele na sua pátria ou disperso pelo mundo inteiro, as abundantes bênçãos de Deus Todo-Poderoso.







Discursos João Paulo II 1992 - Quarta-feira, 10 de Junho de 1992