Discursos João Paulo II 1993






                                                                        Janeiro de 1993

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UMA DELEGAÇÃO PORTUGUESA


DA INSTITUIÇÃO SOBERANA


E MILITAR ORDEM DE MALTA


Segunda-feira, 18 de Janeiro de 1993



Senhor Embaixador de Portugal,
Senhor Vice–Presidente do Conselho da Ordem de Malta,
Irmãos e Irmãs!

Sinto-me feliz por ter a oportunidade de vos dirigir uma breve mas cordial saudação, na vossa qualidade de Dirigentes, Membros ou Amigos portugueses dessa ilustre e benemérita Instituição cristã: a Soberana e Militar Ordem de Malta. Sei que ela acompanhou Portugal desde os seus alvores, procurando levar a cabo, nas sucessivas e diversificadas fases da sua História, aquela “ batalha da caridade ” a favor dos oprimidos, dos pobres e dos doentes, que a caracterizou desde as suas origens.

O livro Os Portugueses e a Ordem de Malta, agora dado à luz, pretende ser um testemunho desse caminho feito em comum. Viestes a Roma para mo oferecerdes, num preito de filial homenagem. De coração agradeço tão delicada atenção, bem como tudo quanto de bem realizais a favor dos “ nossos senhores – os pobres ”, como justamente os tratais, porque neles a fé vos faz ver e servir a Jesus Cristo nosso Senhor. Dentre tais iniciativas benfazejas, apraz-me aqui assinalar o serviço de acolhimento e ajuda, prestado aos peregrinos do Santuário de Nossa Senhora de Fátima, retomando de algum modo a primitiva tradição dos cavaleiros jerosolimitanos que, nos Lugares Santos, quiseram e souberam assumir a pesada tarefa de assistir e defender os piedosos viandantes, nomeadamente os mais pobres e os enfermos no corpo ou no espírito.

Valendo-me da poderosa intercessão da Virgem Maria “ Consoladora dos aflitos ”, invoco a abundância dos dons e graças celestes sobre todos vós e as vossas famílias, sobre a inteira Associação Portuguesa da Ordem de Malta, com um pensamento particular nos pobres, doentes e peregrinos que servis, a todos envolvendo numa propiciadora Bênção Apostólica, que de bom grado vos concedo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.


Fevereiro de 1993

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AO SENHOR ANTÓNIO AUGUSTO DE MEDEIROS PATRÍCIO

NOVO EMBAIXADOR DE PORTUGAL JUNTO DA SANTA SÉ


POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO


DAS CARTAS CREDENCIAIS


Sábado, 20 de Fevereiro de 1993



Senhor Embaixador,

Com grande satisfação e estima, dou-lhe as boas-vindas a este Acto de apresentação das Cartas, que o acreditam como novo Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário de Portugal junto da Santa Sé. Vossa Excelência vem ocupar um lugar na sucessão de Representantes do seu País, que, ao longo dos séculos, desempenharam a missão de manter e estreitar as relações entre a Sé Apostólica e a Nação Portuguesa, sempre tão próxima da solicitude e afecto do Sucessor de Pedro – sentimentos estes, alias, fiel e generosamente retribuídos, como pude experimentar pessoalmente.

A nobre expressão dos sentimentos que o animam, neste dia certamente muito significativo, mereceu toda a minha atenção e dela lhe estou imensamente grato, permitindo-me assinalar, antes de mais nada, a deferente saudação que me transmitiu da parte de Sua Excelência o Presidente da República, Doutor Mario Soares: confio-lhe o encargo de exprimir a minha sentida gratidão ao Senhor Presidente, acompanhada dos meus melhores votos pela sua pessoa e distinta missão, pelo bem-estar e crescentes prosperidades de todos os portugueses.

Excelência, nas suas palavras, pude constatar que assume as novas responsabilidades diplomáticas, com uma clara consciência da especial natureza da actividade da Santa Sé no âmbito da comunidade internacional. De facto, sendo “ a Igreja, em Cristo, como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ” (Lumen Gentium LG 1), o seu recurso à diplomacia inscreve-se na necessidade premente, a nível internacional, de afirmação e revigoramento da unidade da família humana e da comum responsabilidade de todos pelo nosso destino.

Por isso, “ a Igreja recomenda a todos os seus filhos, e também a todos os homens, que superem com este espírito de família, próprio dos filhos de Deus, todos os conflitos entre nações e raças ” (Gaudium et spes GS 42). E é com grande consolação e esperança que esta Sede Apostólica vê difundir e consolidar-se uma consciência mais profunda da unidade da família humana inteira e da radical interdependência de todos os povos. Com efeito aquela consciência esta a alimentar de modo gradual a convicção de que só a verdadeira solidariedade, compreendida como uma categoria moral que determina as relações humanas, pode salvaguardar de maneira eficaz a dignidade e os direitos das pessoas e, por conseguinte, edificar a paz no interior das sociedades e entre as nações.

Com apreço, vi a alusão feita aos esforços da Santa Sé na defesa da dignidade humana, na promoção da justiça social e na instauração de uma paz duradoura entre os povos. São ideais que também Portugal tem servido dignamente e pelos quais continuara certamente a bater-se, sendo de mencionar aqui, como exemplo, o seu peculiar contributo para a consecução do Acordo de Paz para Angola, o qual - de coração o auguro, e por isso instantemente rezo – permanece válida plataforma de entendimento e uma motivadora meta de referência nesta hora desatinada de um absurdo regresso à linguagem das armas.

Noutra latitude, desenrola-se a lamentável contenda entre Portugal e a Indonésia, com um infindável número de vítimas entre o querido povo timorense, que pude estreitar ao coração aquando da minha Visita Pastoral a Dili. Quando finalmente parecem existir indicadores de uma possibilidade de diálogo directo, o Papa faz ardentes votos por que todos os interventores se disponibilizem e empenhem na sua concretização, com o firme desejo de enfrentar os problemas presentes com ânimo sereno e positivo, com vontade de encontrar soluções pelo caminho do diálogo, da solidariedade, e do perdão. Renovo aqui o apelo, lançado, naquele memorável dia 12 de Outubro de 1989 a quantos têm responsabilidade pela vida em Timor Leste, por que “ actuem com sabedoria e boa vontade em favor de todos, ao procurarem uma solução justa e pacífica das presentes dificuldades, a fim de se chegar a um rápido melhoramento das condições de vida, que permitirão (aos timorenses) viver em harmonia social, segundo as próprias tradições e necessidades, em serena e frutuosa produtividade ” (Homilia, 4 - Dili, 12 de Outubro de 1989).

Senhor Embaixador, a Igreja, pela sua parte, tem procurado renovar-se, tendo em vista um fiel desempenho da sua missão nos tempos que passam, para tal haurindo vigor na visão mesma daquilo que é chamada a ser pelo seu divino Fundador e Senhor. O quanto as nações e os seus dirigentes aguardam e olham com simpatia para este testemunho de fidelidade e serviço eclesial ficou patente no acolhimento reservado ao recente Catecismo da Igreja Católica. Nele, entre outras verdades, poderão as Nações encontrar os alicerces profundamente morais e religiosos sobre os quais devem ser edificadas, se querem ser bem sucedidas na renovação da sua visão e capacidade de decisão e respeito do bem comum e da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa e dos povos.

Sensibilizou-me, no seu discurso, a reiterada expressão da vontade política e cultural que anima a Nação Lusitana: ser membro solidário e de pleno direito na nova Europa, mas “ sem se distanciar - segundo as palavras de Vossa Excelência – dos valores centenários do Cristianismo, base moral da nossa civilização e cada vez mais condição sine qua non para o progresso da humanidade e convivência dos povos ”. Queiram os portugueses, sob o patrocínio da Virgem Santa Maria, sua Senhora e Padroeira, continuar a edificar o futuro dos seus filhos sobre os alicerces de sempre – uma fé viva em Jesus Cristo, uma heróica defesa da vida humana em todas as suas fases, e uma fraterna entreajuda e convivência com todos os homens! Possa Portugal contribuir decididamente para revigorar a alma cristã da Europa!

Na verdade, a comunidade política e a Igreja – embora independentes uma da outra, e autónomas nos seus respectivos campos de actividade – são compostas das mesmas pessoas e servem a mesma realidade social. São, por isso, chamadas a uma estreita cooperação e solidariedade, a fim de se eliminarem as rivalidades e as suspeitas infundadas. A Igreja esta convencida de que, numa sociedade verdadeiramente pluralista e democrática, não devem existir conflitos entre a profissão livre e pública da fé religiosa e as obrigações que incumbem a todos os cidadãos de promover o bem comum. Também esta convicção guia a actividade diplomática da Santa Sé no âmbito da comunidade internacional.

Excelência, tendo passado em resenha algumas das solicitações que, nesta hora, interpelam mais directamente Portugal e estão a peito do seu Governo, exprimo profunda esperança de que países como o seu procurem em conjunto novos modos criativos, capazes de cercear pela raiz possíveis ou reais situações de conflito, promovendo a via do dialogo e negociação como o único meio civilizado para resolver contendas, no respeito da justiça e da solidariedade entre as Nações e as suas gentes. Concretamente a Nação Portuguesa, sobre a base das suas tradições e experiência, muito poderia fazer pela incentivação do diálogo entre a Europa e o Norte de África, especialmente os países da área do Magreb, no sentido de se conseguir multiplicar nesse âmbito a compreensão e a colaboração mútua.

Posso assegurar-lhe, Senhor Embaixador, que, segundo os seus próprios desejos, há-de encontrar sempre aqui, junto dos departamentos da Santa Sé, a escuta e o apoio, que possam ser úteis à sua missão e esforços de paz e fraternidade, no concerto dos povos. Juntos desejamos que as nossas relações diplomáticas contribuam para manter e aplicar aí, de modo concreto, os princípios fundamentais de civilização e de humanidade, dos quais a Igreja católica, por sua parte, se esforça por ser a guardia atenta.

Por fim, resta-me exprimir-lhe os meus ardentes votos pelo bom êxito da sua missão como Representante diplomático de Portugal. Imploro a assistência do Alto sobre Vossa Excelência para que seja feliz nesta excepcional forma de serviço ao seu povo, enquanto de bom grado concedo à sua pessoa e distinta família, e à dilecta Nação Portuguesa uma propiciadora Bênção Apostólica.









                                                                         Março de 1993



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL


DE MOÇAMBIQUE EM VISITA


« AD LIMINA APOSTOLORUM »


Sexta-feira, 12 de Março de 1993



Senhor Cardeal,
Venerados Irmãos no Episcopado,

1. Nos dias passados em Roma, rezastes sobre o túmulo dos Príncipes dos Apóstolos, podendo deste modo testemunhar a unidade de fé e amor que liga cada uma das vossas dioceses à Igreja Universal, presidida na caridade pelo Sucessor de Pedro, a Quem viestes visitar (cf. Gal Ga 1,18), aproveitando para Lhe expor – directamente e na pessoa dos seus colaboradores nos vários Dicastérios da Cúria Romana – os problemas e as expectativas das vossas Igrejas locais. Devo confessar vos que, a partir das relações escritas e dos colóquios pessoais, pude de certo modo voltar ao seio das vossas comunidades e reviver com alegria e saudade aquele abraço que o bom Deus nos concedeu trocar, em Setembro de 1988, na Visita Pastoral ao vosso País, cumprida sob o lema “ Construamos a paz na justiça e no amor ”. Guardei com solicitude esse anseio de paz e fraternidade que o povo moçambicano então me confiou.

Nesta nova fase da história do vosso povo, feliz pela paz que sorri mas temeroso pelas feridas sociais que ainda sangram, desejei ardentemente esta Visita ad Limina, como uma significativa ocasião para convosco elevar ao Céu uma jubilosa acção de graças e compartilhar fraternalmente a esperança e a coragem que nos vêm da certeza de o Senhor estar connosco. Com estes sentimentos na alma, vos acolho e saúdo a todos, e na vossa pessoa saúdo os sacerdotes, os missionários, as religiosas, os catequistas e animadores das comunidades cristãs, os fiéis todos das vossas dioceses e o inteiro povo moçambicano. Agradeço a Dom Paulo Mandlate, Bispo de Tete e Presidente da Conferência Episcopal, as suas palavras de saudação, que espelham as aspirações, os sofrimentos e os projectos do Povo de Deus em Moçambique.

Quero de modo especial saudar os bispos das novas dioceses de Chimoio e de Nacala, Dom Francisco Silota e Dom Germano Grachane respectivamente, desejando-vos um fecundo ministério pastoral ao serviço do rebanho a vós confiado. A criação destas novas dioceses, para além de vir responder às exigências de reestruturação das circunscrições eclesiásticas, é também sinal daquele crescimento e maturação da Igreja local, que é uma consoladora realidade na vossa Nação.

2. A Igreja em Moçambique aparece-nos hoje justamente empenhada na sua consolidação. Assim escrevíeis recentemente às vossas comunidades cristãs: “ Neste momento, a consolidação da Igreja Local surge como uma tarefa necessária e inadiável para todos e cada um dos seus filhos ”(Carta Pastoral Consolidar as Igrejas Locais, conclusão).. Quinze anos atrás, obedecendo ao Espírito Consolador e atentos aos sinais dos tempos, vós optáveis pela “ construção duma Igreja de base, de comunhão e família, uma Igreja de ministérios ”(Ibidem, 11), mediante a livre criação de pequenas comunidades cristãs, que, pela graça do Senhor, se multiplicaram no seio das paróquias e das missões, “ para favorecer a iniciativa e responsabilidade de todo o Povo de Deus na consolidação da Igreja local ”(Ibidem, 12).

Agradecemos ao Pai celeste e “ Deus de toda a consolação ” (1Co 1,3), o heroísmo admirável que suscitou no coração dos crentes, assim organizados em comunidades, com menção particular para os seus catequistas e animadores locais, que souberam preservar a fé e alimentar a esperança cristã das populações que lhes foram confiadas.

3. Sem abandonar aquela primeira opção, que continuará sem dúvida a revelar-se necessária para se chegar a uma verdadeira personalização da fé e a uma válida e profunda inculturação moçambicana do Evangelho, eis-vos debruçados agora sobre “ uma meta central e qualificativa da actividade missionária ” (1Co 1,3): a consolidação da Igreja local, que passa certamente pela valorização das forças locais, com a assunção por parte delas de responsabilidades cada vez maiores na orientação e na actividade pastoral, a nível diocesano e nacional.

Mas, nesta fase de crescimento e maturação, serve de preciosa ajuda a presença e acção de tantos missionários vindos de fora, que entre vós tornam visível a vocação missionária da Igreja e cuja acção é precisamente dirigida à implantação e consolidação da Igreja local. É necessário, pois, que as forças locais e as adoptivas, unam os esforços e trabalhem em conjunto, para tornar sempre mais sólidas as estruturas eclesiais já existentes e para levar o primeiro anúncio do Evangelho àqueles que ainda não conhecem Jesus Cristo.

Nesta linha de pensamento, exorto-vos à entreajuda, para que cada diocese se veja dotada de um verdadeiro e próprio presbitério diocesano, válido e necessário ponto de referência tanto para os sacerdotes e diáconos incardinados como para aqueles que, de fora, vieram juntar-se-lhes. Como escrevi na Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis , “ o relacionamento com o Bispo no único presbitério, a partilha da sua solicitude eclesial, a dedicação ao cuidado evangélico do Povo de Deus, nas concretas condições históricas e ambientais da Igreja particular, são elementos de que não se pode prescindir ao delinear o perfil próprio do sacerdote e da sua vida espiritual ”(n. 31).

Portanto cada sacerdote, sempre fiel ao seu carisma vocacional, procure pautar o seu ministério por um profundo sentido de Igreja e pelo testemunho de uma estreita colaboração e adesão ao plano pastoral, cuja direcção compete ao Ordinário da diocese e, a nível nacional, à Conferência Episcopal.

Caros Irmãos no episcopado! Acompanhai os vossos sacerdotes “ com peculiar solicitude ”, procurando ouvi-los como vossos colaboradores e conselheiros mais directos na reunificação e pastoreio do rebanho do Senhor. Dentro das limitações extremas, em que vivem as vossas dioceses, não os deixeis sem “ os meios e as instituições de que careçam para fomentar a vida espiritual e intelectual ” e sem prover “ à sua honesta sustentação e assistência social ”(cf. CIC, cân. 384), a fim de que a preocupação destas coisas não acabe por os desviar da “ sua entrega assídua à oração e ao serviço da palavra ”(cf. At Ac 6,2-4).

4. Pude constatar pela leitura das vossas relações que a Igreja em Moçambique, de um modo geral, atravessa um momento feliz quanto ao número de candidatos ao sacerdócio e à vida consagrada nos Institutos religiosos masculinos e femininos. A esta reconfortante e promissora realidade vocacional deve corresponder um renovado empenho no discernimento dos chamados e na sua adequada formação espiritual e eclesial.

A promoção do clero local, dentro de uma visão ampla e generosa dos variados carismas e ministérios, vai ainda por muitos anos constituir prioridade nas vossas preocupações de Pastores. Conheço a solicitude com que seguis os vossos Seminários, para os quais, neste momento, dirijo o meu pensamento afectuoso e pleno de esperança. Levai uma saudação particular do Papa para todos os seminaristas moçambicanos, nomeadamente aqueles que já se encontram nos vossos Seminários Maiores, para onde justamente se voltam os olhos suplicantes das comunidades cristãs sem pastor. Procurai, amados Irmãos, que os superiores dos Seminários possam consagrar-se a tempo inteiro à nobre mas exigente tarefa de preparar sacerdotes segundo o Coração de Deus(cf. Pastores Dabo Vobis PDV 82): presbíteros configurados a Cristo Cabeça e Pastor da Igreja e animados por uma grande caridade pastoral, verdadeiros “ homens de Deus ”, humanamente maduros, conscientes do chamamento ao celibato pelo Reino de Deus, e com uma sólida formação intelectual e teológica para anunciar frutuosamente o Evangelho da salvação.

Para os religiosos e religiosas em geral, vai a minha e vossa gratidão e estima, porque, durante estes anos de verdadeira emergência nacional, tiveram de acorrer a tudo e a todos, numa atitude de filial abandono à Providência divina. Esperamos em Deus que a normalização da vida em Moçambique permita a cada consagrado, na fidelidade ao carisma que lhe vem do Fundador, empenhar-se frutuosamente nas actividades a que a sua Família Religiosa se sente particularmente chamada, dentro do campo imenso do serviço do Evangelho e da actuação multiforme das obras de misericórdia.

Um fruto palpável da vitalidade eclesial da vossa Igreja local, são as congregações diocesanas. A vida religiosa é, em toda a parte, um dom de Deus à Sua Igreja e, como tal, terá de ser acolhida, respeitada e amada. No desempenho da missão que vos compete de discernir os caminhos do Espírito, procurai auxiliar cada uma das chamadas a identificar e dar pleno cumprimento aos desígnios de Deus a seu respeito.

5. Congratulo–me convosco pelo modo admirável como soubestes preservar, guiar e visitar, muitas vezes com risco da própria vida, o vosso rebanho. Agora que a paz começa a permitir uma lenta normalização da vida, maiores possibilidades e novos desafios reclamarão a presença e a missão evangelizadora da Igreja em Moçambique (cf. Redemptoris missio RMi 37) nomeadamente contribuir para a reconciliação de todo um povo à procura da sua alma nacional; apoiar o regresso dos refugiados e deslocados; amparar a juventude, presa fácil do imediato, porque desprovida de valores e modelos perenes; criar comunidades fraternas e dinâmicas nos centros urbanos, geradores de anonimato humano e apatia cristã; irradiar a Boa Nova para grupos humanos e áreas de Moçambique, onde ainda faltam comunidades capazes de garantir um sinal claro da presença cristã...

Deus estará ao vosso lado, amados Irmãos, nessa tarefa infindável de cuidar – de pessoa e através dos sacerdotes, Irmãos, Religiosas e demais cooperadores empenhados na pastoral – com solicitude dessas multidões imensas, carecidas de tudo, mas particularmente necessitadas de reencontrar a esperança e a razão de ser da sua vida, que só Jesus Cristo lhes poderá dar.

6. Nestes anos difíceis, os fiéis leigos moçambicanos foram postos à prova na sua fidelidade ao Evangelho, e Deus considerou-os dignos de Si, ao chamá-los aos milhares para líderes apostólicos das Suas comunidades de base, tendo eles demonstrado grande consciência da sua pertença a Cristo e da sua missão na Igreja.

Mas é preciso olhar para o futuro. E este vai requerer que os leigos se robusteçam como testemunhas de Jesus Cristo na sociedade, até “ chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação ”(Evangelii nuntiandi EN 19). Com a vossa Carta Pastoral Momento Novo, quisestes oferecer oportunas directrizes aos católicos e aos homens de boa vontade para essa fermentação evangélica da cultura e vida moçambicana.

Fazendo eco às vossas exortações, queria convidar sobretudo os fiéis leigos a tomarem consciência e assumirem corajosamente o seu papel na vida social e política do País, segundo os princípios e critérios propostos pela doutrina social da Igreja. No meio de uma cultura de violência e morte, os leigos resplandeçam como testemunhas convictas do Eterno Vivente, Jesus Cristo Senhor, empenhadas no respeito e defesa da vida e dignidade humana. Saibam denunciar a ganância, a corrupção e os interesses de grupo, e aceitem participar e partilhar os cargos públicos com verdadeiro espírito de serviço e sentido de responsabilidade pelo bem comum.

A democracia moçambicana, baseada na dignidade e igualdade fundamental das pessoas e grupos, no respeito dos seus direitos e deveres, poderá assim encontrar os mestres e profissionais idóneos que, privilegiando a arte do diálogo e a prática da justiça social, consigam pôr cobro a tantos anos de rivalidades, exacerbadas até ao sangue e à morte, e possibilitem o desenvolvimento integral e geral do País.

7. Esta presença sócio-política de leigos preparados e formados à medida do Evangelho encontrará a sua escola necessária e o seu banco de prova na família.Esta encontra-se visivelmente em crise, não só por causa da degeneração derivada da guerra e ainda pela crescente invasão de contravalores, que estão a cavar um abismo entre pais e filhos no seio de tantos lares, mas também por causa da educação amoral, a que foram submetidos muitos dos que estão agora em idade de formar um lar.

Nos vossos relatórios, venerados Irmãos, pude medir com quanta atenção vos debruçais sobre este sector, procurando multiplicar os esforços a fim de reconstruir o sentido da família e educar todos para a defesa da sua união, fecundidade e estabilidade. Continuai a acompanhar com particular solicitude os jovens moçambicanos. Esta é a sua hora, para a qual a Nação não pôde ou não soube prepará-los. Agora terão de crescer depressa, porque Moçambique não pode ficar adiado. Eles foram obrigados a fazer a guerra; hoje os jovens moçambicanos voluntariamente vão fazer a paz. Comecem pela sua família: procurem e amem os pais, se é que ainda os podem encontrar. Aprendam deles aquela sabedoria africana de sempre, entranhadamente respeitadora de Deus e da vida humana, desde a sua geração até ao ocaso natural. Aprendam a respeitar como Deus manda o seu corpo e as tendências e capacidades de amar uma outra pessoa com igual dignidade e vocação divina, a fim de juntos chamarem à vida o futuro de Moçambique. Possa este ser gerado dentro da estabilidade de um lar, abençoado pelo matrimónio uno e indissolúvel!
Senhor Cardeal!

Venerados Arcebispos e Bispos de Moçambique!

8. Agora que a paz foi assinada, depois de uma longa escrita com o sangue e o sofrimento de um povo exausto, com a oração dos crentes e laboriosos consensos de boas vontades, amparai esta frágil primavera. Ela desabrochou da fé num Deus e Pai comum, e só poderá frutificar e consolidar-se mediante o perdão generoso e a confiança mútua entre os Seus filhos moçambicanos, que tiveram a coragem de se reconhecerem irmãos. A hora que passa é de consolidação da paz, empenhando todos a que honrem seriamente os compromissos assinados.

Quero neste momento encorajar todas as partes em causa a prosseguirem, com o apoio das Instâncias Internacionais, o caminho da actuação dos Acordos assinados. Ocorre fazê-lo, e sem demora: os pobres não podem esperar. A paz continua ameaçada... Não sejam defraudadas as esperanças de todo um povo, mergulhado em miséria e sofrimento mortal!

A Igreja em Moçambique não pode nem vai abandonar os seus concidadãos nesta nova fase da edificação da paz. Como disse à Nação na minha Viagem Apostólica, “ a presença e a actividade da Igreja numa determinada sociedade nunca são uma cooperação ou assistência vindas "de fora"(Discurso de chegada, n. 7) ”. Ela, de facto, não é estranha ao País. Pagou um pesado tributo, vendo cair mortos tantos dos seus filhos, para permanecer ao lado do povo martirizado; ela foi a primeira instituição a “ propor caminhos de reconciliação e de diálogo para se chegar a uma paz autêntica ”, e neles “ profeticamente se empenhou ”(cf. Discurso às Delegações que assinaram o Acordo de Paz, 5 de outubro de 1992), como o povo moçambicano amplamente lho reconhece. Não se tratou de pessoas individuais, mas foi a Igreja inteira e solidária que sofreu, rezou e trabalhou para a paz. Não pede qualquer recompensa ou privilégio, pede um espaço real e concreto que, por direito natural e histórico, lhe compete na vida da Nação, como consciência moral e fermento de reconciliação do povo moçambicano.

Com redobrada confiança, deposito este “ momento novo ” dos vossos destinos nacionais aos pés da Virgem Maria, Rainha da Paz e Mãe comum de todos os moçambicanos. Como penhor da assistência divina e dos dons do Espírito Santo, vos concedo de todo o coração a Bênção Apostólica, que peço transmitais aos sacerdotes, aos missionários, às religiosas e demais fiéis, bem como a todo o querido povo moçambicano.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA PENITENCIARIA APOSTÓLICA


E AOS PADRES PENITENCIEIROS


DAS BASÍLICAS ROMANAS


Sábado, 27 de Março de 1993



Senhor Cardeal
Reverendíssimos Irmãos Bispos
Caros Prelados e Oficiais da Penitenciaria Apostólica

Causa-me muita satisfação a vossa presença nesta casa que é e deveis considerar paterna, senhor cardeal penitencieiro-mor, prelados e oficiais da penitenciaria, padres penitencieiros ordinários e extraordinários das basílicas patriarcais da Urbe, e vós, caros alunos, ordenados recentemente ou que em breve recebereis a Ordenação.

A satisfação deriva quer da vossa afetuosa união com o Sucessor de Pedro que, aqui e agora, torna-se quase palpável, quer da vossa especial condição de penitencieiros, que dedicais o vosso empenho ministerial de modo privilegiado ao sacramento da Penitência, ou então de sacerdotes no início dos seus cuidados pastorais, ou ainda de candidatos ao sacerdócio, os quais, antes de assumir o particular ofício que a Providência, mediante a voz dos Superiores hierárquicos, vos atribuirá na Igreja, com a freqüência ao curso sobre o foro interno realizado pela Penitenciaria Apostólica, entendestes aprofundar a vossa preparação, em ordem ao serviço das almas na remissão dos pecados. À satisfação está unida a gratidão ao Senhor, porque Ele, no vosso empenho e na vossa diligência, torna evidente que continua a suscitar para o seu Povo ministros de perdão e de reconciliação.

O Ordo Paenitentiae hoje em vigor assim ex-prime, na fórmula da absolvição, as grandes realidades em que se atua o retorno do homem pecador a Deus e se restabelece a sua ordem interior: "Deus Pai de misericórdia... te conceda, mediante o ministério da Igreja, o perdão e a paz". Pois bem, o sacramento da Penitência — ministério da Igreja — produz o perdão de Deus, enquanto atua por virtude divina, quaisquer que sejam o mérito ou o demérito pessoal e as qualidades humanas do ministro: quanto a isto, assim ensina (para todos os sacramentos, não só para o da Penitência) o Catecismo da Igreja Católica: "Os sacramentos conferem a graça que significam. São eficazes, porque neles age Cristo mesmo: é Ele que batiza, é Ele que atua nos seus sacramentos, para comunicar a graça que o sacramento significa. O Pai atende sempre a oração da Igreja do seu Filho" (n° 1127); "E este o significado da afirmação da Igreja: os sacramentos agem ex opere operato" (n° 1128).

Sem dúvida, a paz anunciada pela fórmula sacramental, paz sobrenatural e que, portanto, exsuperat omnem sensum (Ph 4,7), deriva também ela na alma ex opere operato; mas, nos limites em que isto é possível, tendo em vista a sua transcendência sobrenatural, a percepção gratificante desta paz por parte do sujeito do sacramento depende também, em grande medida, da santidade pessoal do sacerdote, ministro do sacramento da Penitência, da sua sabedoria cultivada no estudo, da sua sensibilidade psicológica, da sua humanidade acolhedora: ele, com efeito, encoraja a perseverar na graça restituída, e alimenta a confiança na possibilidade de salvação, estimula a humilde gratidão para com o Senhor, e ajuda (salvo casos patológicos ou nos limites da normalidade) a reconstruir o equilíbrio da consciência e a salubridade do juízo.

Nas minhas precedentes alocuções a este auditório, fixei a atenção prevalecentemente em aspectos dogmáticos, morais e canônicos do sacramento da Penitência: elas foram recolhidas em volume e acompanhadas de um comentário sintético, sob os cuidados da Penitenciaria Apostólica; conforta-me saber que tiveram ampla difusão, e espero que ajudem à almejada retomada do uso freqüente do sacramento da Penitência. Considerando agora em concreto a administração do sacramento do perdão, gostaria de me deter nos mencionados aspectos de santidade, sensibilidade psicológica e humanidade acolhedora do ministro.

O confessor deve empenhar-se ao máximo, a fim de que, ao lado do efeito essencial, que o opus operatum sempre produz, supostas as condições de validade, se produzam também em favor do penitente, no mistério da Comunhão dos Santos, os frutos da sua santidade pessoal: por virtude de intercessão junto do Senhor, por força arrebatadora de exemplo, pela oferta que o sacerdote santo faz das suas expiações em proveito do penitente. Trata-se de coisas bem evidentes. Mas desejo insistir, a fim de que a caridade faça com que o vosso ministério nunca seja nudum ministerium penitencial, mas um dom paterno e fraterno, acompanhado da vossa oração e do vosso sacrifício pelas almas, que o Senhor põe no vosso caminho: "Por vocês... pois vou completando em minha carne o que falta nas tribulações de Cristo, a favor do seu corpo, que é a Igreja" (Col 1,24). Deste modo, o exercício do ministério é santo e é instrumento de santificação para o próprio ministro.

Ao sacerdote confessor incumbe o dever grave de possuir doutrina moral e canônica adequada, pelo menos, aos communiter contingentia, a saber, ao comportamento humano no ordinário dos casos, tendo em conta particularmente as condições gerais do ethos socialmente dominante. Digo pelo menos, mas acrescento imediatamente que essa preparação doutrinal deve sempre aumentar e consolidar-se, com base nos grandes princípios dogmáticos e morais, os quais consentem resolver catolicamente, também as situações problemáticas que se apresentam às consciências, na incessante evolução cultural, técnica e econômica, e assim por diante, da história humana. Também aqui, o Catecismo da Igreja Católica é paradigmático: ele propõe de maneira autorizada o juízo moral a formular sobre realidades da vida humana que se apresentam efetivamente ou se tornaram estatisticamente difundidas em tempos recentes; foi dito a este propósito que o Catecismo consideraria novos preceitos ou novos pecados, enquanto ele não faz senão aplicar as modalidades do agir humano, agora tornadas comuns, a idêntica lei divina, natural ou revelada. Empenho particularmente importante e delicado, no qual aplicar a necessária solidez da doutrina é para o confessor facilitar ao penitente a acusação dos pecados, moderando com a exigência duma integridade moral, irrenunciável para os pecados mortais, quanto à espécie, às circunstâncias determinantes para a espécie mesma, e ao número, de não tornar a confissão odiosa ou penosa, especialmente àqueles cuja religiosidade é fraca ou cujo processo de conversão é incipiente. A propósito disso, jamais se recomendará suficientemente a delicadeza acerca das matérias objeto do sexto preceito do Decálogo.


Discursos João Paulo II 1993