Discursos João Paulo II 1995






                                                                   Fevreiro de 1995

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO REGIONAL SUL II DO BRASIL


EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


Sexta-feira, 17 de Fevereiro de 1995



Irmãos Bispos

“...Dobro os joelhos diante do Pai... para que Cristo habite, pela fé, nos vossos corações”(Ep 3,14-17).

1. Ao darmos início a esta série de visitas "ad Limina" dos Bispos do Brasil, é esta a minha prece pela Igreja na vossa grande e amada Nação: para que a fé dos Bispos da Igreja se renove e fortaleça, a fim de que todos os fiéis possam ser ajudados a viver a própria vocação cristã com integridade e coragem! Esta manhã, dou-vos as boas-vindas, componentes do primeiro grupo dos Bispos do Regional Sul II. Saúdo-vos com caloroso afeto fraterno no Senhor, e agradeço as palavras fraternais do Senhor Arcebispo de Curitiba, D. Pedro Antônio Marchetti Fedalto, que levam, como sempre, expressões de conforto e de paz.

Durante o ano, encontrar-me-ei com os demais grupos de Bispos que compõem os diversos Regionais da CNBB. Estes encontros têm um profundo significado para todos nós. São expressão da estrutura colegial da comunhão hierárquica da Igreja. Nestas ocasiões, sentimos profundamente a solidariedade espiritual daqueles que têm “um único Senhor, uma única fé, um único Batismo” e são “solícitos em conservar a unidade de espírito mediante o vínculo da paz”().

Enquanto nos nossos colóquios particulares falamos sobre a situação de cada uma das vossas dioceses individualmente, estes encontros coletivos oferecem-me a oportunidade para compartilhar convosco e com os vossos irmãos Bispos do Brasil algumas reflexões, acerca de certos aspectos mais gerais do vosso ministério e da vida da Igreja no vosso País.

2. Graças sejam dadas ao Senhor pelos sinais de dedicação das vossas Igrejas ao serviço da evangelização, pelas numerosas iniciativas de catequese, que permanece sempre o principal caminho da evangelização, voltadas especialmente para as crianças, e os adolescentes, mas oferecendo aos adultos motivações sólidas à sua fé no contexto das condições sociais que imperam em vossas dioceses.

Neste sentido, o ano de 1994 adquiriu um denso significado eclesiológico porque se constituiu no Ano da Família. Vem-Me ainda à memória esta mobilização mundial que suscitou, com o auxílio da Providência divina, uma nova conscientização em cada núcleo familiar, da sua missão civil e eclesial em fomentar o respeito do ser humano enquanto tal; e não podia ser de outra forma, quando se releva, em todo o seu significado, que “o Cristianismo é a religião da encarnação, é o anúncio gozoso de um Deus que vem ao encontro do homem” (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVII/1 [1994] 231). Desta forma, a Igreja quis dar, durante todo o ano passado, um testemunho especial, recordando que à família estão vinculados os valores fundamentais do ser humano e os mais sagrados direitos e deveres do cristão. Por isso, não posso deixar de render aqui um preito de homenagem aos inumeráveis casais e às famílias brasileiras, que vivendo com alegria sua fidelidade à fé cristã, continuam empenhando-se por incutir na cultura do vosso País os grandes valores da cordialidade, da amizade, da laboriosidade e da solidariedade sobre uma sólida base cristã.

Muitas vezes, pensando em vós, enquanto desempenhais vosso múnus pastoral, vieram-Me à consideração vossas preocupações, que também são minhas, a respeito de certas situações que vos afligem. Detive-me com freqüência em alguns problemas da sociedade brasileira, pois sei que fica ainda muito a ser feito nesta vossa realidade social tão diversificada. Considerava, por exemplo, os meninos da rua, a difusão das drogas, o banditismo, a violência e as chacinas urbanas; e, no diretamente respeitante à família, a multiplicação dos divórcios, das separações, das situações irregulares, o uso de anticoncepcionais, a proliferação da esterilidade voluntária e do aborto, a delinqüência juvenil e os extermínios de menores infratores e tantos outros que não é necessário mencionar.

Ao evocar assim esses problemas, é natural que brote também essa pergunta: Qual seria a raiz e a causa de todos esses males? Se fôssemos procurar a fundo, encontraríamos esta resposta: as doenças da sociedade são um reflexo das doenças familiares. Sendo a família a célula básica e vital da sociedade, quando a família adoece toda a sociedade também adoece. Porque, os cidadãos que assimilam as virtudes e os vícios numa família, são cidadãos que se santificam ou se corrompem numa família: “Tal qual é a família, tal é a nação, porque tal qual é o cidadão que constrói a sociedade” (Homilia em Nowy Targ, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, II [1979] 1490).

Desejaria lembrar-vos algo que levo muito dentro do coração: nunca, por mais que nos esforcemos, teríamos feito demais para revitalizar a família e para resgatar os seus genuínos e mais primordiais valores; nunca o nosso trabalho missionário deverá acender-se com as mais ardentes labaredas, como quando nos empenhemos a fundo em realizar aquele lema cunhado na Exortação apostólica “Familiaris Consortio”: “Família, torna-te aquilo que és!” (Familiaris Consortio FC 17).

3. O futuro da Igreja no Brasil passa, portanto, através da família. Nela temos de ver o centro de convergência da pastoral da Igreja. Não foi sem uma luz especial do Espírito Santo, que a Conferência de Santo Domingo veio a dizer: “E necessário fazer da Pastoral Familiar uma prioridade básica, sentida, real e atuante” (Familiaris Consortio FC 64).

Faz anos recordava aos Bispos do Brasil essa prioridade e centralidade da Pastoral Familiar, com umas palavras que hoje têm uma maior atualidade e uma mais pungente necessidade de se pôr em prática: “Em cada Diocese – vasta ou pequena, rica ou pobre, dotada ou não de clero – o Bispo estará agindo com sabedoria pastoral, estará fazendo "investimento" altamente compensador, estará construindo, a médio prazo, a sua Igreja particular, à medida que der o máximo apoio a uma Pastoral Familiar efetiva” (Diretrizes aos Bispos do Brasil, n. 5). A Pastoral Familiar – a nível paroquial, diocesano e nacional – deve considerar-se, não apenas uma opção entre outras, mas uma premente necessidade que virá a ser como foco irradiador dos valores cristãos da nova evangelização, no próprio âmago da sociedade onde a família está radicada; é ela que dará estabilidade ao longo do tempo do esforço evangelizador.

Haverá então de se convir de que as linhas mais urgentes dessa Pastoral, enunciadas no Documento de Santo Domingo, deveriam basear-se sobre: o esforço na “formação dos futuros esposos”; em incentivar a tarefa de “capacitar agentes de pastoral”; fomentar a mentalidade pró-vida; oferecer os meios para que se possa viver de maneira cristã a paternidade responsável, e facilitar sempre “a transmissão clara da doutrina da Igreja sobre a natalidade”(cf. n. 226 e 222); “buscar, seguindo o exemplo do Bom Pastor, caminhos e formas para conquistar uma Pastoral orientada a casais em situação irregular”; e, especialmente, envidar esforços para que a família termine sendo realmente uma verdadeira “Igreja Doméstica”, “santuário onde se edifica a santidade e a partir de onde a Igreja e o mundo podem ser santificados” (cf. Familiaris Consortio FC 42).

Dentre estes aspectos, desejo convidar-vos inicialmente a encarar com coragem os desafios que apresenta uma opinião pública mal orientada que, por um lado, repete monotonamente, diria com pouco originalidade, as teses pseudocientíficas do neomaltusianismo, alertando para as conseqüências catastróficas de uma iminente “explosão demográfica”, e, por outro, simplificam as soluções com uma cultura da morte que se opõe à civilização da vida. A Igreja sempre defendeu o respeito pela vida e a dignidade da pessoa humana. Continuai, pois, defendendo os estados mais vulneráveis da vida humana: a vida do concebido e ainda não nascido e a dos doentes terminais. A eutanásia legalizada aprofunda e agrava o desprezo pela vida, iniciado com as leis que permitem o aborto. Quando se consente em suprimir o nascituro, não desejado, pode-se acabar consentindo em eliminar o doente terminal, o idoso, e até o delinqüente juvenil que ameaça a tranqüilidade urbana.

O fenômeno dos chamados “meninos da rua” e do seu injustificável extermínio é como um apêndice terminal de um outro mais profundo que atinge a estrutura sócio-econômica e educacional do vosso país e, mais ainda, aos próprios valores humanos para uma vida digna e uma educação básica e indispensável para as crianças e adolescentes. Conheço os vossos esforços para superar essa triste situação – sei do estimulante empenho pastoral de algumas Dioceses por acolher tantas crianças abandonadas –, e desejo renovar minhas palavras de incentivo a todas as iniciativas que confirmem a tradição humanitária e cristã do povo brasileiro.

4. É claro, porém, que vossa solicitude irá reconduzir-se ao foco principal dos males que atinge a sociedade, e que não poderia deixar de enfocá-lo aqui: a unidade e a indissolubilidade do matrimônio e o papel da mulher na sociedade e na Igreja.

Como vos falei em Campo Grande, é doloroso observar no vosso amado país “a extrema fragilidade de muitos casamentos com a triste seqüela de inúmeras separações, de que são sempre vítimas inocentes os filhos” (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV/2 [1991] 909). O matrimônio é indissolúvel por lei natural e não somente por exigência evangélica. Foi assim “desde o princípio”(cf. Mt Mt 19,3). No desígnio primordial da criação do homem como tal já aparece gravada no seu coração a unidade e a indissolubilidade matrimonial: “Os dois serão uma só carne”(Gn 2,24).

A defesa da indissolubilidade não é apenas um objetivo cristão, mas, especialmente, uma reivindicação humana: a apologia de um valor radicalmente humano defendido por inúmeros pensadores, antropólogos e juristas não cristãos. As propriedades essenciais do matrimônio – nascedouro da família –, a unidade e a indissolubilidade, não podem mudar ao sabor das modas e dos gostos, “pertencem ao patrimônio mais originário e sagrado da humanidade” (Apelo de João Paulo II, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVII/1 [1994] 954)e têm que ser por vós defendidas como se defende o que há de mais substancial nas vossas raízes culturais.

Deveis, especialmente, preservar os nubentes dessa avalanche hedonista que coloca o prazer acima do amor e o sentimento superficial acima dessa entrega mútua que constitui o cerne do verdadeiro amor, e orientar os jovens esposos para que compreendam que o matrimônio os une na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, no entusiasmo e na apatia, até que a morte os separe. Haveis de procurar, enfim, formá-los para o amor; um amor profundo e eterno: porque “só se ama verdadeiramente e até o fundo, quando se ama para sempre”(Meditação de João Paulo II, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVII/2 [1994] 33).

“O Amor quer ser definitivo: não pode ser "até nova ordem"”(Catecismo da Igreja Católica CEC 1646).

5. Por outro lado, paira na atmosfera cultural de alguns segmentos sociais, uma espécie de amarga reivindicação feminista, advogando à mulher trabalhos e funções que em muitos casos não se adequam à sua mais peculiar estrutura psicológica, nem aos desígnios de Deus.

Estamos absolutamente convencidos da igualdade radical entre o homem e a mulher que possuem a mesma dignidade pessoal de filhos de Deus, como também o estamos de que a mulher deve contribuir – como o homem – ao bem da cidadania, de acordo com a sua natureza, e aptidões físicas, intelectuais e morais. “Não falta quem censura a Igreja por insistir muito sobre a missão familiar da mulher, e por transcurar o problema da sua presença ativa nos vários setores da vida social. Na realidade não é assim. A Igreja está bem consciente de quanto a sociedade tem necessidade do gênio feminino em todas as expressões da convivência civil e insiste para que seja superada toda a forma de discriminação da mulher no âmbito do trabalho, da cultura e da política, ainda que no respeito do caráter próprio da feminilidade: um indevido nivelamento dos papéis, com efeito, além de empobrecer a vida social, acabaria por expropriar a própria mulher daquilo que lhe pertence de modo prevalecente ou exclusivo”(Angelus, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVII/2 [1994] 133).

As específicas qualidades da mulher desempenham, sem dúvida, um papel importante no mundo da empresa, da ciência, do ensino, da sociologia, da política, da economia e da técnica. Mais ainda, a vida profissional recebe da postura feminina um elevado coeficiente de humanismo, de suavidade e de compreensão. Mas existem tarefas em que a mulher é insubstituível. E a mulher deve potenciar precisamente aquilo que nela reveste de algo característico, peculiar, enfim, indispensável como a maternidade. A maternidade é a vocação da mulher de palpitante atualidade. É preciso empenhar-se para que a dignidade desta vocação não seja deslocada da cultura brasileira. “Fixar-nos no papel primordial da mulher como esposa e mãe, é situá-lo no coração da família; uma função insubstituível que deve ser apreciada e reconhecida como tal, e que está unida à especificidade mesma do ser mulher (cf. Mulieris Dignitatem MD 18). Ser esposa e mãe são duas realidades complementares, nesta original comunhão de vida e de amor que é o matrimônio, fundamento da família”(Discurso de João Paulo II aos participantes da XI Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para a Família, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVII/1 [1994] 795). A dedicação da mãe ao seu lar e aos seus filhos é a função mais excelsa que ela possa exercer. Quando a mãe falha, falha o lar, falha a família, falha a pátria; a própria Igreja falha!

6. A Igreja recebe de milhões de “Igrejas Domésticas” um enxerto de vida e de vibração espiritual; ela mesma faz da Eucaristia uma manifestação do amor, unindo-se a Cristo no “cálice da nova e eterna aliança”. Fazendo referência ao paralelo entre o matrimônio e a união de Cristo com a Igreja(cf. Ef Ep 5,23 ss.), diria que o Redentor se entrega à realização dessa união irrevocável com amor generoso e sacrificado; e a Igreja corresponde com a entrega total de todo o seu ser, de toda a sua existência. A grandeza desse amor não é inacessível nem impossível de ser plasmado na vida matrimonial. Na Eucaristia Cristo comunica aos esposos toda a força do seu amor sacrificado. Só o egoísmo torna ideal inacessível essa grande beleza do amor conjugal em Cristo.

7. Prezados Irmãos Bispos, durante a última Ceia, Jesus convidou os discípulos a serem seus amigos (cf. Jo Jn 15,13-14), dizendo-lhes que já não eram servos e selando com a Eucaristia esta intimidade. O Senhor continua a chamar-vos, Sucessores dos Apóstolos, a ter intimidade com Ele, a fim de vos confirmar na sua verdade, de modo a serdes capazes, por vossa vez, de proclamar o seu poder vigoroso e libertador ao Povo de Deus confiado ao vosso cuidado pastoral. Confio a Maria, Mãe da Igreja, as dificuldades e as alegrias do vosso ministério, assim como as necessidades e as esperanças da Igreja no Brasil. O Papa deseja assegurar-vos estar sempre perto de vós com Suas preces, animando-vos a perseverar em todas as iniciativas que levareis a cabo em prol da dignidade da pessoa humana e da família. A cada um de vós e a todos os sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos das vossas dioceses, concedo de coração a minha Bênção Apostólica.



                                                                      Março de 1995

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA PENITENCIARIA APOSTÓLICA


E AOS PADRES PENITENCIEIROS


DAS BASÍLICAS PATRIARCAIS


Sábado, 18 de Março de 1995



Resulta sempre caro ao meu coração o encontro com os fiéis de qualquer condição social e canônica, nesta preciosa e no entanto familiar sede do Vaticano, ao lado do "troféu" do Pescador da Galiléia, aqui onde hoje ele é glorificado mas um dia sofreu o martírio, unido, também na sua forma, ao sacrifício salvífico do Redentor. A paternidade universal de Pedro e dos seus sucessores, com efeito, está por excelência arraigada na cruz e, em virtude da cruz, é fecunda de vida eterna.

Mas esta minha alegria tem uma intensidade particular, quando os filhos que vêm videre Petrum são os sacerdotes e os candidatos ao sacerdócio: eles com efeito, pela missão de que são ou serão em breve investidos, participam dos anseios, das alegrias, das tristezas e da solicitude da Igreja Mãe, que, aplicando a eficácia redentora da cruz, opera nos fiéis, ou melhor, em todo o gênero humano, o dom divino da conversão e da santidade. Por isso, dou graças ao Senhor pelo encontro hodierno convosco, componentes da Penitenciaria Apostólica, penitencieiros das basílicas patriarcais de Roma, e queridos jovens, neo-sacerdotes ou alunos prestes a receber a Ordenação sagrada, que freqüentastes frutuosamente junto da mesma Penitenciaria o habitual curso de estudo sobre o foro interno.

Desejo aproveitar esta oportunidade para continuar uma meditação, já apresentada claramente nas análogas alocuções dos anos passados, desenvolvendo em ulteriores aspectos o inexaurível tema do sacramento da Reconciliação.

O sacerdote, como ministro do sacramento da Penitência, deve modelar-se, nesta tarefa sublime e vital, em Jesus, mestre da verdade, médico das almas, delicado amigo, que não tanto censura, quanto corrige e encoraja, juiz justíssimo e nobilíssimo, que penetra no vivo da consciência e conserva-lhe o segredo. Assim como Jesus, o sacerdote confessor deve poder concluir o seu colóquio com o penitente, com um fundado desejo que evoque a misericórdia infinita do Senhor: "Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais" (Jn 8,11).

Precisamente em vista desta emenda estável do penitente, o confessor, por um lado, deve oferecer-lhe motivos de confiança razoável e sobrenatural, que tornem apta a sua alma a receber de modo frutuoso a absolvição e garantam a continuação dos bons propósitos numa vida serenamente cristã; por outro lado, deve dar-lhe uma adequada satisfação, ou penitência, que em primeiro lugar repare, na medida do possível à limitação humana, a ofensa causada pela pecado à majestade de Deus, Criador, Senhor e Legislador; portanto, como medicina espiritual, fortaleça, juntamente com a mencionada confiança, os bons propósitos de virtude e, antes, faça exercitar as virtudes, cooperando com a graça santificante, restituída ou aumentada no sacramento da Penitência, que oferece também válida defesa contra as tentações mais duras.

No que concerne a infundir a confiança no penitente em relação ao seu futuro, tenha-se em consideração que no processo da justificação, exposto pelo Concílio de Trento com clareza admirável, devem concorrer tanto o temor como a esperança: "... Peccatores se esse intelligentes, a divinae iustitiae timore, quo utiliter concutiuntur, ad considerandam Dei misericordiam se convertendo, in spe eriguntur, fidentes, Deum sibi propter Christum propitius fore" (Conc. Tridentino, Sess. VI, cap. 6 Denzinger-Schönmetzer, 1526).

Por excesso de confiança, se assim se pode dizer, há quem não consiga emenda positiva e estável, embora se confesse com verdade e exatidão, porque o orgulho não superado leva-o a confiar demasiadamente em si mesmo ou, bem pior, a confiar em si mesmo antes que na graça de Deus. Fenômeno inverso, mas igualmente grave, é o de quem dá certamente o devido espaço à graça de Deus, mas presume superficialmente obtê-la sem a correspondência nem a colaboração que Deus requer da parte do homem.

Ao contrário, por falta de confiança, há até quem não se aproxima do sacramento da Penitência ou, ao aproximar-se, não se põe nas disposições necessárias, a fim de que o rito possa ser concluído de modo eficaz com a absolvição, porque, ciente do seu passado acerca da própria debilidade, considera-se certo de quedas futuras e, identificando erroneamente o juízo intelectual, digamos mesmo a previsão de outras quedas, com a vontade de cair e com o atual defeito de sincero propósito de não cair, desanima e assim declara ao confessor que não está devidamente disposto. Seria deveras triste se nesse erro, índice também de pouco conhecimento da alma humana, caísse até mesmo algum confessor.

A estas disposições extremas o confessor deve opor antídoto apropriado: àqueles que presumem, inculque a humildade, que é verdade, segundo a advertência da palavra divina "aquele que julga estar em pé, tome cuidado para não cair" (1Co 10,12) e "continuem trabalhando, com temor e tremor, para a salvação de vocês" (Ph 2,12). Àqueles que são paralisados por aquela desconfiança, que não é devido temor salutar, mas um medo desolador, explique que a consciência da própria enfermidade não quer dizer indolência à mesma, mas antes pode e deve ser impelida a reagir, porque também esta é palavra de Deus: "Para você basta a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder" (2Co 12,9). Quanto a isto, não será fora de propósito recordar que a fé ensina a possibilidade de evitar o pecado, com a ajuda da graça (cf. Concílio de Trento, Sessão VI, can. 18 Denzinger-Schönmetzer, 1568).

Quanto à penitência salutar a ser estabelecida, critério necessário é o de uma medida eqüitativa e, sobretudo, de uma sábia oposição aos pecados perdoados, e, portanto, de correspondência às específicas necessidades do penitente.

Escutemos também aqui o apelo da Sagrada Escritura: "Não fique muito seguro do perdão, a ponto de amontoar pecados" (Si 5,5), e, no que se refere à própria estrutura do sacramento, do qual a penitência é parte integrante, ouçamos o Concílio Tridentino: "Si quis negaverit, ad integram et perfectam peccatorum remissionem requiri tres actus in paenitente quasi materiam sacramenti paenitentiae, videlicet contritionem, confessionem et satisfactionem, quae tres paenitentiae partes dicuntur; aut dixerit duas tantum esse paenitentiae partes, terrores scilicet incussos conscientiae agnito peccato, et fidem conceptam ex Evangelio vel absolutionem, qua credit quis sibi per Christum remissa peccata: anathema sit" (Denzinger-Schönmetzer, 1704).

Tendo como apoio estes ensinamentos e considerando, por um lado a economia da graça, que acompanha, sustenta e eleva o agir do homem, e por outro as leis da psicologia humana, resulta evidente que a satisfação sacramental deve ser antes de tudo oração: com efeito, ela louva a Deus e detesta o pecado como ofensa a Ele infligida, confessa a malícia e a debilidade do pecador, pede com humildade e confiança a ajuda, na consciência da incapacidade do homem a qualquer gesto salutar se a isto não o dispõe a ajuda sobrenatural do Senhor (Concílio de Trento, Sessão VI, can. 1 Denzinger-Schönmetzer, 1551) que precisamente com a oração se implora; mas se ela é implorada, quer dizer que se tem a esperança teológica de a obter, e com isto quase experimenta-se a bondade de Deus e educa-se para o colóquio com Ele. O confessor cuidará de ajudar o penitente a compreender tudo isto, quando este possui modestos recursos espirituais. E portanto evidente que, ao lado de uma pro-porção em certo sentido quantitativa entre o pecado cometido e a satisfação a cumprir, é preciso ter presente o grau de piedade, a cultura espiritual, a própria capacidade de compreensão e de atenção e, eventualmente, a tendência ao escrúpulo do penitente. Portanto, enquanto é preciso aproveitar a penitência sacramental para estimular os penitentes à oração, dever-se-á ater ordinariamente também ao princípio de que é melhor uma penitência módica, mas cumprida com fervor, do que uma penitência enorme, mas não cumprida, ou cumprida com espírito aborrecido.

Quando a Penitência deve consistir não só em orações, mas também em obras, devem ser escolhidas aquelas em virtude das quais o penitente se exercite com sucesso na virtude e, em ordem a esta adquira, ao lado do hábito sobrenatural, infundido com a graça, também uma propensão conatural e, desse modo, ele seja facilitado no fazer o bem e no fugir do mal. Quanto a isto, deve-se ordinariamente aplicar um certo "contrapasso", como uma medicina dos opostos, o que é tanto necessário, ou pelo menos útil, quanto mais o pecado foi lesivo de bens fundamentais: por exemplo, ao crime do aborto, hoje tragicamente tão difundido, poderia ser resposta penitencial apropriada o empenho na defesa da vida e em ajudá-la, segundo todas as formas que a caridade sabe descobrir em relação às necessidades tanto dos indivíduos como da sociedade; resposta idônea em relação aos pecados contra a justiça, que hoje envenenam tanto o relacionamento entre as pessoas e poluem a sociedade, poderia ser, pressuposta a necessária restituição do que foi roubado, a liberalidade da caridade de modo que supere a medida do dano infligido ao próximo, a exemplo de Zaqueu, que disse a Jesus: "A metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais" (Lc 19,8); e não será difícil, quando se é julgado pelos critérios da fé, encontrar respostas análogas para os outros pecados.

A este ponto, será útil uma reflexão sobre eventuais penitências que sejam fisicamente aflitivas. Ficando estabelecido que a Penitência também corporal é necessária em termos gerais, antes santa, recordo que no Catecismo da Igreja Católica este tipo de penitência, em relação ao sacramento da Reconciliação, está sintetizado no termo "jejum" (cf. CIC, n° 1434). Na verdade, salvo casos de doença ou debilidade, uma razoável limitação do alimento é normalmente possível, e tanto mais louvável, quando o correspondente daquilo que se subtrai à própria satisfação é distribuído em caridade; mas, da parte do confessor, é necessária toda a cautela antes de estabelecer ou mesmo simplesmente permitir práticas penitenciais tormentosas. Neste campo oferece a ocasião de generosa Penitência o trabalho, especialmente o material, dotado como é também de uma virtude educadora do corpo, ou que o próprio trabalho deva ser realizado por dever profissional, ou que se assuma livremente: com efeito, o Criador prescreveu para o primeiro homem, e para todos os homens, o trabalho como Penitência: "Você comerá seu pão com o suor do seu rosto" (Gn 3,19); o trabalho, de fato, não é condenação em si e por si — antes a natureza humana exige-o como necessário meio de desenvolvimento e de elevação — mas, tornado pesado por causa do pecado, é elevado ao valor de expiação naquele que o cumpre sobrenaturalmente.

Estes pensamentos, que imediatamente vos dirijo, a vós que participais na audiência, mas que pro-ponho a todos os sacerdotes do mundo, enquanto na Igreja já teve início a reflexão sobre os temas do Ano Santo, enunciados na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, querem ressaltar meios e finalidades, empenhos e esperanças, perenes na Igreja, mas particularmente significativos para o próximo Jubileu.

Juntos oremos agora a Jesus, Sacerdote Eterno, a fim de que nos conceda lucidez de juízo e caridade pastoral, para uma dedicação cada vez mais generosa no serviço penitenciai, em benefício de todos os ir mãos. Desta implorada graça seja penhor para todos vós a Bênção Apostólica, que de todo o coração vos concedo.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL SUL I


EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


Terça-feira, 21 de Março de 1995



Caros Irmãos no Episcopado

1. Como Pastores das Dioceses do Regional Sul 1 do Estado de São Paulo, a vossa visita ad Limina Apostolorum traz–vos de novo, pelo caminho de Pedro e de Paulo, para beberdes das fontes vivas da vossa missão, em comunhão com o Bispo de Roma.

Saúdo o Senhor Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, e os senhores Arcebipos e Bispos aqui presentes. Estou feliz por vos dar as boas-vindas, com aquele affectus collegialis do qual uma das manifestações concretas é o presente encontro. Agradeço as amáveis palavras que me foram dirigidas pelo Senhor Arcebispo de São Paulo, e compreendo as preocupações que exprimiu e os problemas que expôs. São elementos importantes, pois traduzem as dificuldades quotidianas da missão eclesial, e também a esperança que vos anima, a vós e aos vossos colaboradores.

Conservo as vossas interrogações, embora não possa responder hoje a todos os pontos; esforçar-me-ei por voltar a eles durante os meus sucessivos encontros com os vossos Coirmãos do Brasil.

2. Provindes de uma das regiões mais ricas do Brasil, com uma economia pujante que tem sido às vezes considerada – especialmente na Capital do Estado – como a “locomotiva do país”. Do espírito empreendedor paulista emergiram o dinamismo do progresso, o valor do trabalho e o despertar de uma cultura de vasto alcance científico e artístico, com repercussões inclusive no conjunto do Continente latino-americano.

A Igreja, que lançou raízes profundas na vida da Nação, desde o seu descobrimento, sempre teve uma atuação de primeiro plano na organização da sua vida social e cultural. O “Pátio do Colégio”, no centro da Cidade de São Paulo, ainda hoje é um dos testemunhos históricos desta influência benéfica, não só devida à Companhia de Jesus, mas que resulta também de beneméritas instituições franciscanas, beneditinas e outras, que contribuíram para criar uma mentalidade e um ideal de brasilidade, visando sempre o bem comum da Nação no seu conjunto.

Um dos aspectos que caracterizam a Igreja em vosso País é, sem dúvida, a sua grande sensibilidade social, fruto da consciência de que a fé proclamada deve repercutir necessariamente no comportamento concreto dos cristãos, contribuindo eficazmente, a partir dos valores evangélicos, para a construção de uma sociedade mais justa. Esta é uma marca que honra vossas Igrejas particulares, mas que, ao mesmo tempo, constitui para vós, para vossos sacerdotes e fiéis leigos, uma grave responsabilidade e um grande desafio. De muitas partes da terra, com efeito, há quem olhe para vós com grande espírito de solidariedade, que se traduz em apoio espiritual e material. E há também aqueles nos quais o vosso exemplo pode despertar uma consciência mais clara do compromisso evangélico com que a Igreja deve voltar-se para os mais pobres e abandonados, os sofredores, os relegados a uma condição de vida que, por vezes, é infra-humana.

Ela o faz, não movida por aspirações de poder social ou político, ou inspirada por enganadoras ideologias alheias ao patrimônio cristão, mas por fidelidade ao seu Fundador, por ver em todos os homens sem exceção, mas especialmente nos mais pequenos e desvalidos, aqueles que são amados por Cristo, por Ele resgatados e redimidos, filhos no Filho, chamados a serem herdeiros do Reino eterno do Pai. Que vosso comportamento neste campo tão importante da evangelização, pautando-se pela fidelidade a Cristo, possa tornar-se “modelo para todos os fiéis” (cf. 1Th 1,7).

3. Como Pastores, sois chamados a preservar e a incrementar a vida cristã de nossas Igrejas. De minha parte, julgo importante recordar-vos, mais uma vez, a natureza e os limites da presença da Igreja nos problemas concretos de ordem sócio-econômica que interpelam a vossa consciência cristã. É um dever que decorre do ministério que me foi confiado, meu dever de preservar a pureza da fé em toda a Igreja e de confirmar os irmãos nesta mesma fé (cf. Lc Lc 22,32). Sois, comigo, guardas da sua integridade, mestres na sua transmissão e instrumentos de Deus na aplicação concreta da sua verdade e das suas exigências na vida da Igreja.

Em primeiro lugar, ocorre observar que a missão da Igreja é antes de tudo de ordem religiosa. Certamente, “desta mesma missão religiosa deriva um encargo, uma luz e uma energia que podem servir para o estabelecimento e consolidação da comunidade humana segundo a lei divina... e pode ela própria, e até deve, suscitar obras destinadas ao serviço de todos, sobretudo dos pobres”(Gaudium et Spes GS 42). O seu campo de ação privilegiado, porém, consistirá sempre no anúncio a todos os homens de Jesus Cristo – o mesmo ontem, hoje e sempre (He 13,8) –, o Senhor de todo o universo e o único Nome “dado aos homens pelo qual devemos ser salvos” (Ac 4,12) (cf. Lumen Gentium LG 1). Desta verdade, decorre a “salus animarum” como o fim essencial da Igreja e sua lei suprema. Daí a distinção tão clara e tão luminosa que o Concílio faz entre a Cidade terrestre que é a sociedade civil, e a Igreja que “recebe a missão de anunciar e instaurar o Reino de Cristo e de Deus em todos os povos e constitui o germe e o princípio deste mesmo Reino na terra”(Lumen Gentium LG 5 cf. Sollicitudo Rei Socialis SRS 41). Por isso é que “a Igreja, na sua leitura dos problemas sociais, se coloca num eixo que transcende os limites da história humana em sua pura dimensão temporal. Ela jamais confunde o Reino de Deus com a construção da Cidade dos homens. Nem absorve esta Cidade, como pretenderiam os esquemas de diversas formas de cristandade política, nem por ela se deixa absorver, na linha de outras sistematizações que pretendem reduzir a ação evangélica ao comprometimento sócio-político”(Discurso aos Bispos da Região Leste 1, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIII/1 [1990] 749; cf. Discurso, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV/2 [1991] 826 ss.).

Em várias outras ocasiões, caríssimos irmãos, tenho encarecido muito este ponto. Posso lembrar-vos minha alocução aos Bispos do CELAM, quando lhes recordei o documento de Puebla que mostra as conseqüências do uso de uma visão ideológica que pretendesse iluminar a ação da Igreja, e que acabaria levando a “uma total politização da existência cristã, à dissolução da linguagem da fé na das ciências sociais e ao esvaziamento da dimensão transcendental da salvação cristã”(n. 545).

Por conseguinte, os ministros sagrados, bem como os religiosos e religiosas consagrados, devem evitar cuidadosamente qualquer envolvimento pessoal no campo da política ou do poder temporal, como ainda recentemente recordava o “Diretório para o Ministério e a Vida dos Presbíteros”: “O sacerdote, servidor da Igreja que em virtude da sua universalidade e catolicidade não pode ligar-se a nenhuma contingência histórica, estará acima de qualquer facção política. Ele não pode tomar parte ativa em partidos políticos ou na condução de associações sindicais”, e isso para poder “permanecer o homem de todos num plano de fraternidade espiritual” (n. 33). É a experiência que confirma a veracidade desta afirmação: “A redução da sua missão a tarefas temporais, puramente sociais ou políticas ou de qualquer modo alheias à sua identidade, não é uma conquista, mas uma perda gravíssima para a fecundidade evangélica da Igreja inteira” (n. 33). Tal é, igualmente, o ensinamento do Concílio Vaticano II, que recordava ser através dos cristãos leigos que a realidade temporal é imbuída “do espírito de Cristo e atinge o seu fim na justiça, caridade e paz. No desempenho deste dever... compete aos leigos a principal responsabilidade” (Lumen Gentium LG 36). Fortalecei sempre mais, com o vosso ministério e o dos vossos sacerdotes, a formação cristã do vosso laicato, para que, esclarecido pelo Evangelho, possa sanar “as instituições e condições do mundo, caso incitarem ao pecado” (Lumen Gentium LG 36).

4. A solidariedade social e o respeito do bem comum, por um lado, a vida, a liberdade e a dignidade da pessoa humana, por outro, são, sem sombra de dúvida, os critérios primordiais que devem ser objeto do ensinamento da vossa pastoral social. Desejo, por isso mesmo, chamar vossa atenção para alguns aspectos da realidade social do Brasil que, nestes últimos meses, destacam-se como objeto de preocupação por parte da Igreja.

O primeiro destes aspectos firma-se na convicção de que o serviço ao bem comum, no pleno respeito da dignidade de cada ser humano, constitui o fundamento de todo ordenamento social, quer na formulação das leis, quer na condução dos projetos e ações que visam o desenvolvimento sócio-econômico e regulamentam as relações sociais entre grupos e indivíduos.

Nesse campo, é salutar a coragem de levar à plena luz da opinião pública aquelas ações desonestas que lesam o interesse comum; “os princípios da ética profissional, da honestidade, da veracidade, da lisura e da moral cristã – dizia ao laicato em Campo Grande – imperem em todos os âmbitos do trabalho humano, quer na esfera pública, quer na esfera privada (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV/2 [1991] 911)”. Deve ficar arraigado na consciência das pessoas o princípio fundamental da vida em sociedade que é a convergência necessária dos interesses e direitos do indivíduo e dos grupos, na busca da promoção primordial do bem comum de todos. Essa harmonia dos interesses e tensões é que produz a paz social, a qual somente se desenvolve onde existe nas pessoas e nos grupos o culto da verdade, a promoção da justiça, o senso de solidariedade e um clima de autêntica liberdade, como o mostrou meu predecessor João XXIII na sua Encíclica de permanente atualidade, Pacem in Terris.

Por outro lado, o desenvolvimento da doutrina social da Igreja confirmou sempre mais a intuição fundamental da Declaração Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II. Com efeito, a Igreja sente-se especialmente ligada à liberdade do homem e à sua existência na sociedade.

Não preciso dizer-vos, caros irmãos no episcopado, como faz-se urgente despertar a consciência cristã de cada cidadão com uma solidariedade ativa animando-o a colaborar, com os meios ao próprio alcance, para defender o seu irmão contra todo abuso atentador à dignidade humana.

A Igreja, ao evangelizar, chama e convoca todos os homens. O cristão é uma pessoa chamada por Deus a uma vida de comunhão com Ele no amor. O homem todo, com a profundidade e a variedade de aspectos da sua existência, está chamado em Cristo a essa comunhão com Deus-Pai e com todos os homens, à que dá vida o Espírito Santo.

O trabalho humano faz parte desse chamamento do homem à comunhão com Deus, e com todos os irmãos; no trabalho, o homem adquire um dos principais títulos de dignidade, na vocação da pessoa à comunhão. Daí que a Igreja defenderá e promoverá sempre a dignidade do trabalho humano, de modo particular empenhando-se tenazmente contra todas as formas de alienação, que degradam o ser humano, transformando-o em simples mão-de-obra ou em mercadoria.

Deveis pedir a Deus a sabedoria para agirdes com prudência e a fortaleza necessária para denunciar as injustiças perpetradas contra o indivíduo, sobretudo contra o mais débil e desprotegido da sociedade. A marginalização social retratada nos grupos de mendigos, nos menores abandonados que perambulam pelas ruas das grandes cidades; o drama dos “bóias-frias” submetidos a um clima inumano de trabalho no campo; os nômades em busca de terra para trabalhar, para não falar de outras situações igualmente graves, tais como o anonimato desumanizante, o clima de insegurança reinante nas cidades, o tráfico de drogas causador de inúmeras vítimas e fonte perene de desagregação das famílias, a prostituição – até mesmo de menores, inclusive nos garimpos –, é um cenário preocupante que exige um esforço conjunto de todos os segmentos da sociedade, e aos quais a Igreja não pode deixar de dedicar parte importante da sua ação pastoral.

Recentemente, foi com satisfação que pude conhecer as metas do governo recentemente empossado, e que estabelecem como prioritária a justiça social no Brasil, com a intenção de enfrentar corajosamente as desigualdades marcantes entre as regiões e os grupos sociais. Neste sentido, “o gênero humano não só pode e deve aumentar cada vez mais o seu domínio sobre as coisas criadas, mas também lhe compete estabelecer uma ordem política, social e econômica, que o sirva cada vez melhor e ajude indivíduos e grupos a afirmarem e desenvolverem a própria dignidade” (Gaudium et Spes GS 9). Esta convicção levou o Concílio Vaticano II, a esclarecer que o fim principal do desenvolvimento econômico “não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro e o poderio, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa”(Gaudium et Spes GS 64).

Diante do quadro da situação social brasileira, estas declarações conciliares estão a exigir de vós, como Pastores de um imenso rebanho, um processo permanente de educação da sociedade, que a leve a confiar mais do que em ações puramente técnicas, na busca do caminho que reconduza as pessoas do estado de desordem moral em que se encontram. Sobretudo deveis intensificar em vossas Igrejas, nas Escolas Católicas e nos vossos meios de comunicação social, um correto ensinamento da doutrina social da Igreja. Convém promover novas iniciativas pastorais para a educação dos leigos, especialmente os “agentes da pastoral”, de maneira que descubram sempre mais na Doutrina Social aqueles critérios evangélicos capazes de orientar a presença cristã na vida familiar e social; a eles, por sinal, cabe-lhes a legítima autonomia nos assuntos temporais, como ressaltou o Concílio Vaticano II (cf. Lumen Gentium LG 36 Gaudium et Spes GS 43) separando clara e serenamente a pastoral social da militância política e partidária. Tampouco deve-se descuidar a necessidade de oferecer aos futuros sacerdotes – como também na formação permanente do clero – uma adequada instrução neste sentido, através do estudo dos principais documentos da Igreja sobre a dignidade do homem e a visão cristã da sociedade.

O respeito pelo homem atinge uma infinidade de campos: defendendo a vida já concebida; iluminando o caminho para um justo sistema previdenciário; reconhecendo os recíprocos direitos e deveres tanto dos assalariados como dos empresários, sabendo aplicá-los de modo concreto. Sei que isto já vem sendo feito em algumas das vossas dioceses, e faço votos de que uma nova consciência cristã desta situação, com o tempo, produza frutos de paz e de liberdade para todos.

Não vos esqueçais, porém, que “ninguém lança vinho novo em odres velhos” (Mc 2,22), ou seja, a riqueza da graça divina não pode atuar em corações endurecidos por uma conduta moral avessa aos ensinamentos de Cristo. Faz falta a conversão dos corações e das mentes, sem a qual não poderá existir a verdadeira justiça e a paz social.

5. Gostaria, enfim, de chamar a vossa atenção para outros dois aspectos particulares da problemática social do Brasil. Refiro-me aos problemas da habitação e da terra.

A casa é uma condição essencial para a normalidade da vida familiar e para a eficácia maior dos processos de educação da criança e do jovem, bem como para a preservação da saúde das pessoas. Parece ilusório ou mesmo irracional querer investir na educação das crianças através da construção de Escolas ou da formação de professores ou na melhoria das condições de saúde do povo através dos Hospitais ou Postos de saúde, se não existir, concomitantemente, uma política habitacional inteligente e corajosa. É verdade que a condição jurídica da propriedade das casas deve ser cuidadosamente estudada de modo a se evitar a especulação imobiliária. Mas é fundamental que se entenda que a aplicação de maciços recursos públicos na construção de conjuntos habitacionais decentes, com infra-estrutura, saneamento e um serviço de transporte de massa rápido e barato, não deve fundamentar-se simplesmente em um cálculo de retorno financeiro, mas como um investimento social de grande alcance.

A palavra sábia e equilibrada da Igreja e, em alguns casos, também a sua ação concreta, poderá significar uma ajuda inestimável aos responsáveis pela política social do país para se encontrar os caminhos mais adequados para a solução do sério déficit habitacional que aflige o país.
Também o problema da terra vem se constituindo uma preocupação permanente do Episcopado brasileiro nas últimas décadas. O princípio da destinação universal dos bens, de modo especial da terra, é fundamental na doutrina social da Igreja, com raízes na Sagrada Escritura, na literatura patrística e no ensinamento tomista, proposta com clareza nos grandes documentos do magistério social, desde a Rerum Novarum de Leão XIII até minha última Encíclica Social Centesimus Annus.Este princípio é fundamental para iluminar a visão cristã do problema da terra.

Não se pode tratar com superficialidade o tema da ocupação da terra e da sua propriedade. Não basta dar terra a quem quer trabalhar. O importante é garantir o acesso à terra a quem quer e tem efetivamente condições de fazê-la produzir, quando ela está ociosa e improdutiva (cf. Homilia, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIV/2 [1991] 844; Encíclica Mater et Magistra MM 134-136). Ocorre, para tal fim, a colaboração esclarecida e permanente com o poder público a quem cabe a condução do processo para a implementação de uma nova política fundiária que melhore a distribuição de terras e crie condições efetivas de um trabalho produtivo e compensador para o produtor rural e o homem do campo. Por outro lado, é necessário recordar a doutrina tradicional de que a posse da terra “é ilegítima quando não é valorizada ou quando serve para impedir o trabalho dos outros, visando somente obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes de sua repressão, da exploração ilícita, da especulação e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho” (Centesimus Annus CA 43). Mas recordo, igualmente, as palavras do meu predecessor Leão XIII quando ensina que “nem a justiça, nem o bem comum consentem danificar alguém ou invadir a sua propriedade sob nenhum pretexto”(Rerum Novarum, 30). A Igreja não pode estimular, inspirar ou apoiar as iniciativas ou movimentos de ocupação de terras, quer por invasões pelo uso da força, quer pela penetração sorrateira das propriedades agrícolas.

6. Como conclusão deste encontro, queria oferecer-vos o meu apoio fraterno na vossa tarefa pastoral. Conheço as suas dificuldades, e acabo de evocar algumas delas, que são muito importantes. Mas sei também que, nas vossas dioceses, os operários do Evangelho trabalham com entusiasmo e generosidade; eles sabem que “a esperança não engana” (Rm 5,5). Aos sacerdotes, aos diáconos, aos religiosos e às religiosas, aos leigos encarregados de missões pastorais específicas, e a todos os fiéis das vossas dioceses, levai a saudação cordial do Sucessor de Pedro e manifestai-lhes o meu encorajamento para as suas tarefas e o seu testemunho. Que tenham confiança no Espírito do Senhor, Espírito de amor e de verdade! Ao caminharem com Cristo, possam dizer como os discípulos de Emaús: “Não é verdade que nós sentíamos abrasar-se-nos o coração...?” (Lc 24,32).

Recomendo-vos à intercessão da Mãe do Senhor e dos Santos das vossas dioceses, e invoco sobre todos vós a Bênção de Deus.

                                                                      Abril de 1995


Discursos João Paulo II 1995