Discursos João Paulo II 1995 - Terça-feira, 21 de Março de 1995

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO BRASIL DO REGIONAL LESTE 1


POR OCASIÃO DA VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


Sábado, 1º de Abril de 1995



Queridos Irmãos no Episcopado

1. Dou-vos as boas-vindas com imensa alegria, membros do Regional Leste 1, que compreende as Províncias eclesiásticas do Rio de Janeiro e de Niterói. Uma das principais finalidades das visitas qüinqüenais a esta Sé Apostólica é venerar os túmulos dos Príncipes dos Apóstolos, Pedro e Paulo. Neste sentido, a visita “ad Limina” é uma peregrinação espiritual às origens da Igreja no tempo, quando o seu divino Fundador confiou as riquezas da sua graça aos Apóstolos, para “apascentar o Povo de Deus e aumentá-lo sempre mais” (Lumen Gentium LG 18). A vossa presença não é simplesmente o cumprimento de uma obrigação administrativa ou jurídica do vosso múnus, mas uma manifestação de genuína fraternidade e amizade no amor de Cristo, o Príncipe dos Pastores (cf. 1P 5,4), que continua a enviar os seus vigários e embaixadores “para que, com o poder que lhes entregara, fizessem de todos os povos discípulos Seus, os santificassem e governassem” (Lumen Gentium LG 19).

Agradeço as amáveis palavras que, em nome de todos vós, me dirigiu o Senhor Cardeal D. Eugênio de Araújo Sales, e retribuo-as assegurando-vos o meu apreço e o meu reconhecimento pelo trabalho pastoral nas circunscrições eclesiásticas, que vos foram confiadas para serdes nelas “princípio e fundamento visível da unidade”(Lumen Gentium LG 23).

Saúdo cada uma das Igrejas que presidis na caridade e no serviço. Convosco agradeço a Deus a fé e a vida cristã dedicada dos vossos sacerdotes, religiosos e leigos, pela união de todos os fiéis em redor dos seus Pastores e com o Sucessor de Pedro, centro e fundamento visível da unidade indefectível da Igreja.

2. Este encontro reveste-se de uma particular importância por estarmos no limiar do ano Dois Mil, Ano Jubilar, para o qual vos exortei, a vós e às comunidades eclesiais que vos estão confiadas, a abrir o coração às sugestões do Espírito, na certeza de que este não deixará de mover os ânimos para se disporem a celebrar com renovada fé e generosa participação este grande evento (cf. Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, TMA 59).

É de suma importância deixar-nos iluminar por Aquele que é a “luz dos homens” (Jn 1,4), para preparar os caminhos da nova evangelização através de um intenso programa missionário, pois se a salvação é destinada a todos (cf. Redemptoris Missio RMi 10), há de ser posta concretamente à disposição de todos, atingindo as pessoas e as estruturas do nosso tempo, uma vez que, “evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade” (Evangelii Nuntiandi EN 14).

3. Aproxima-se o V centenário do Descobrimento e contemporaneamente da Evangelização do Brasil, que comemoraremos no ano Dois Mil. Certamente duas datas altamente significativas para a memória histórica e religiosa do vosso país.

Resulta clara a vocação cristã e eucarística da vossa Pátria desde o berço, no início do século XVI, quando os seus descobridores, de joelhos durante a Primeira Missa celebrada em terra firme, agradeceram a Deus aquela dádiva inusitada que do oceano emergiu e cuja grandiosidade e riqueza jamais poderiam calcular, acompanhados dos olhos atônitos dos silvícolas, dentro de um cenário ímpar de uma luxuriante natureza.

A Cruz da redenção abençoou o Brasil desde o início – chamado que fora “Terra de Santa Cruz” – e quando à noite ergueram eles os olhos aos céus, puderam divisar em meio à harmoniosa vastidão de astros luminosos, o mesmo sinal salvador. Na verdade, o Brasil, já ao nascer, possuía a vocação cristã desenhada pelo Criador na constelação do Cruzeiro do Sul.

4. A primeira evangelização foi, sem dúvida, uma experiência nova e um grande desafio. A celebração do Quinto Centenário, que já se aproxima, constitui para vós e para vossas Igrejas ocasião privilegiada de recuperar a história do vosso passado, como força propulsora na construção do vosso futuro.

Certamente não faltaram nela, como bem o sabeis, as sombras: opções e atitudes que, mesmo levando-se em conta as distintas concepções filosóficas e culturais daquela época, permanecem deploráveis. Isto, porém, não deve induzir a menosprezar os extraordinários resultados obtidos pelo generoso esforço de tantos pioneiros, que com enormes sacrifícios, contribuíram na difusão da semente evangélica no país. Verdade seja dita, no entanto, que se os evangelizadores plantaram a semente, foi Deus quem a fez crescer (cf. 1Co 3,6). Não se poderá fazer uma história da evangelização sem ter presente a força transformadora da Palavra anunciada, que, para além dos limites e as fragilidades humanas, cumpre uma obra que outra não é senão a realização do próprio desígnio salvífico de Deus.

A Igreja olha para este passado com a serenidade do dever cumprido, mesmo diante das dificuldades que, no contexto social e histórico, tal evangelização teve de enfrentar.

Perante as populações indígenas, a voz da Igreja não deixou de se elevar, serena e firme, pela boca do meu Predecessor Paulo III, condenando veementemente as tentativas de escravizá-las (cf. Bula Sublimis Deus 1537). Na praxe e na disciplina eclesiásticas, não obstante o obstáculo do ambiente cultural, o índio foi reconhecido em sua dignidade de ser humano e nos direitos que daí decorrem. É significativa a experiência de fé realizada pelo aldeamento das Missões, ao reconhecer e assumir todos os aspectos mais positivos da cultura indígena, promovendo as suas habilidades, artes e ofícios; conduzindo pedagogicamente o índio ao conhecimento da Verdade revelada e defendendo-o contra aqueles que desejavam explorá-lo. Não podemos deixar de admirar hoje a intuição pastoral dos primeiros missionários que acolhiam com simpatia o que de mais nobre encontraram naquele universo cultural, como o caráter sacro da criação, o respeito pela mãe-natureza e a integração com esta, o espírito comunitário de solidariedade entre as gerações, o equilíbrio entre trabalho e lazer, a lealdade e o amor à liberdade, iluminando-os com o explícito ensinamento evangélico e integrando-os, sublimados, no patrimônio cristão, estes anunciadores do Evangelho alcançaram uma síntese das mais vivas e originais, promovendo uma autêntica inculturação da fé.

Exemplo luminoso dessa obra é, sem dúvida, o Beato José de Anchieta, em sua multíplice atividade de artista, missionário, educador e plasmador da fé em vossas terras.

5. Com relação à escravidão africana, já tive oportunidade de implorar o perdão do Céu pelo vergonhoso tráfico de escravos, do qual participaram também não poucos cristãos, e que, do continente africano, alimentou a mão-de-obra nas novas terras descobertas (cf. Visita à Casa dos Escravos, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XV/1 [1992] 390). Para aqueles tristes tempos não foram suficientes as severas disposições proibitivas dadas pelos meus veneráveis Predecessores Pio II em 1462, e Urbano VIII em 1693, nem as invectivas de Bento XIV (cf. Bulla Immensa Pastorum, 1740) , o qual chegou a lançar a excomunhão aos que detivessem, vendessem, maltratassem escravos ou reduzissem africanos à escravidão.

Não obstante a sociedade e a cultura da época, também aqui a Igreja não deixou de defender os escravos diante da injusta situação a que se encontravam submetidos, como atestam, por exemplo, as Constituições da Bahia, de 1707, primeira normativa canônica elaborada em terras brasileiras, e que procuraram atenuar quanto possível as conseqüências perversas daquela escravidão (cc. 303 e 304). Nisso, vossa Igreja seguia o exemplo do Apóstolo das Gentes, quando intercedia junto ao discípulo Filemon em favor do escravo Onésimo, por ele batizado (cf. Fm Phm 8,21).

A história da primeira evangelização seria incompleta e gravemente injusta se não reconhecesse, ao lado das sombras provenientes da fragilidade humana, os méritos de quantos plantaram a Cruz em vosso País e, com ela, as sementes do Evangelho.

Não podemos deixar de admirar, hoje, a ação dos primeiros Bispos. Constituídos embora em número insuficiente durante os três primeiros séculos e devendo enfrentar tantas situações adversas, eles foram os arautos da evangelização e os protagonistas de um respeitável acervo de sabedoria cristã e de solicitude pastoral.

Não seria exagero conferir também aos sacerdotes diocesanos, verdadeiros missionários, párocos nas mais remotas regiões, onde careciam até do indispensável para uma digna manutenção, o título de heróis anônimos porque, através de um trabalho humilde, corajoso e pertinaz, mantiveram a fé, combateram abusos, abrandaram costumes, sustentaram as famílias e o respeito às instituições.
Impressiona a todos esta unidade de língua e de cultura em um país de dimensões continentais onde a Igreja semeou cidades, escolas e hospitais e, através de sua pregação e de sua catequese, congregou os grupos familiares e os vários segmentos sociais como instrumento único e eficaz da promoção de uma consciência nacional e da formação da unidade política do vosso povo.

Impressiona a todos também, a forma pela qual a mensagem evangélica se irradiou por todos os rincões brasileiros, quando se sabe que a Igreja, por razões alheias à sua vontade, se encontrou em grande parte limitada em sua liberdade de ação e mesmo assim, com a fragilidade de suas estruturas e com o reduzido número de seus sacerdotes, soube imprimir nesta Nação emergente os sinais pelos quais se distinguem os discípulos de Cristo, trazendo-lhes o dom inestimável da fé e incutindo-lhes o amor e o respeito ao seu semelhante.

Não foi menos relevante o papel desempenhado pelos fiéis leigos. A chama da fé, acesa no início pelos seus missionários, perdurou e propagou-se de engenho a engenho, de povoado a povoado, através do culto doméstico, reunindo em comunidade as pessoas, livres e escravos, para louvar o Criador. Na verdade a família, dentro de uma singela e aparente fragilidade teve o mérito de completar, em termos de evangelização, o trabalho dos operários da primeira hora. Em tal contexto, duas foram as protagonistas desta evangelização original: a mãe de família, guardiã e comunicadora de uma fé simples e confiante, nomeadamente da devoção à Virgem Maria, e a Mãe Preta, a qual no silêncio da sua dor, deu o testemunho mais vivo e convincente da sua fé, por sua bondade no serviço aos outros, por sua fortaleza de ânimo em tantas e tão grandes provações.

6. Cinco séculos estão quase a cumprir desde a primeira evangelização. Hoje se pode afirmar que a alma do vosso povo está indelevelmente marcada pela fé cristã. O Brasil mergulha suas raízes mais profundas na fonte perene do Evangelho, as quais não pode perder sem comprometer o seu patrimônio cultural e até mesmo a própria identidade.

Pelos frutos colhidos em tantos setores da vida eclesial e civil, pode-se deduzir que foi realizada “una válida, fecunda e admirável obra evangelizadora” (IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Discurso de abertura, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XV/2 [1992] 316). Disso eu próprio posso dar testemunho, recordando-me das minhas duas Viagens Apostólicas pelo território brasileiro em 1980 e 1991.

Cinco séculos de descobrimento e de evangelização! É como se nos encontrássemos de novo no início da trajetória histórica do vosso País, que hoje se apresenta como uma potência emergente no concerto das nações, com uma excepcional capacidade de superar os seus próprios desafios – tão grandes como ele próprio – que devem ser corretamente interpretados como momentos de um processo de crescimento, em vista de uma maturidade constitucional dinâmica e da conquista de uma maior participação e integração sócio-econômica.

Urge manter o entusiasmo dos primeiros missionários. Urge impregnar a atual sociedade e suas estruturas daqueles valores que não se enraizaram suficientemente na primeira evangelização. Refiro-me, entre outros, aos grandes valores do devotamento à causa pública, da auto-estima e confiança em suas potencialidades, de um sadio patriotismo e da solidariedade entre os concidadãos para construir juntos os destinos da Nação.

Hoje, uma proposta para a nova evangelização, “nova em seu ardor, em seus métodos e em sua expressão” (cf. Discurso aos Bispos do CELAM, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, VI/1 [1983] 690 ss.), está consubstanciada para as vossas Igrejas no Documento de Santo Domingo e em tantos outros documentos do Magistério pontifício e episcopal, nos quais se podem encontrar as grandes vertentes que nortearão as atividades apostólicas da Igreja no Brasil e no Continente, em preparação ao Ano 2000 da Graça do Senhor.

Destarte, não seria expressão da renovada animação da vida religiosa no vosso país, aquelas formas de “missões populares” do passado que, como é do meu conhecimento, renascem em algumas dioceses brasileiras? A entronização da Cruz de Santo Domingo em tantos lares, para despertar nos católicos o espírito e a responsabilidade missionária, não seria sinal da presença consoladora do Espírito Santo no coração dos fiéis?

Os caminhos da nova evangelização, antes mesmo da reorganização das atividades e estruturas pastorais, exigem como passo primordial a consciência de que o afastamento de Deus e da doutrina revelada requer um compromisso decidido de conversão interior. A verdadeira evangelização há de ouvir o apelo do Senhor: “Fazei penitência, porque está próximo o reino dos céus” (Mt 4,17). Trata-se de colocar os fiéis perante as suas precisas responsabilidades no âmbito familiar, profissional e social; é necessária uma nova transformação para que Cristo viva em cada brasileiro, para que a sua imagem se reflita sem distorções na conduta pessoal e social.

Cristo, Redentor do homem, quer reinar no coração e nas obras dos cristãos. A nova evangelização só terá sentido se for capaz de transmitir na vida de cada pessoa ou instituição o Evangelho de Cristo, sem interpretações errôneas ou leituras redutivas. Por um lado, aquele que é chamado a “ensinar Cristo” (Ph 3,8) deve, antes de mais nada, procurar “esse lucro sobreeminente que é o conhecimento de Jesus Cristo”; por outro, “faz-se sentir a necessidade de conhecer sempre melhor a fé” (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 428-429). O mandato imperativo de Cristo “Ide, pois, ensinai todas as gentes... ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei” (Mt 28,19), é dirigido a todos os homens ou mulheres sem distinção de raça, cultura e condição de vida: ricos ou pobres, anciãos ou crianças.

7. Também hoje, como outrora, cabe aos Bispos, com o seu presbitério, ser os arautos e protagonistas desta evangelização transformadora. Como o Bom Pastor, devem recordar o que já dizia S. Paulo: “Em todas as coisas nos mostramos como ministros de Deus”(2Co 6,4). À diferença da primeira, a Nova Evangelização depara com situações humanas e sociais em rápida movimentação. Pensemos, por exemplo, na urbanização e no maciço crescimento das cidades, especialmente onde é mais forte a pressão demográfica, como é o caso dos grandes centros urbanos do Brasil. Hoje, assim como nos tempos do Apóstolo das Gentes (cf. At Ac 17,22-31), existem modernos areópagos, um dos quais queria salientar especialmente por exigir uma atenção redobrada, quando se trata da formação evangélica dos indivíduos, das famílias e do inteiro âmbito social: os meios de comunicação.

Estou a par de algumas iniciativas em vosso País, em âmbito diocesano e nacional, destinadas a dirigir uma atenção especial ao uso apropriado destes meios, porque através deles, a mensagem do Evangelho pode ser transmitida a todas as pessoas, “mas com a capacidade de penetrar na consciência de cada um, como se ele fosse único com tudo o que tem de mais pessoal e individual, conseguindo uma adesão e um compromisso absolutos” (Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi EN 45).

Como já observei na Encíclica “Redemptoris Missio”, “os meios de comunicação social alcançaram tamanha importância que são para muitos o principal instrumento de informação e formação, de guia e inspiração dos comportamentos individuais, familiares e sociais” (Redemptoris Missio RMi 37). É necessário que os agentes pastorais aprendam a conhecer e a usar os meios de comunicação social de modo que o cristianismo, em seus valores e na sua mensagem, além de ser posto em relevo durante os horários destinados aos temas religiosos, seja também motivo inspirador nas emissões dedicadas à informação, aos temas científicos, à arte e à sadia diversão. Os responsáveis pelos meios de comunicação devem prestar atenção para evitar qualquer forma de manipulação da verdade e dos valores éticos; demasiados interesses pessoais ou formas discutíveis de expressão cultural ou artística podem modificar a escala de valores e ferir os sentimentos mais íntimos da pessoa. Os cidadãos têm, pelo contrário, o direito de ser respeitados nas próprias convicções morais e religiosas, como, aliás, a Sé Apostólica tem constantemente relembrado (cf. Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Instrução pastoral Aetatis novae, 22-II-1992) .

Os horizontes da evangelização, porém, se estendem a todos os âmbitos da vida, até atingir o núcleo social mais comprometedor do indivíduo enquanto tal. Refiro-me ao trabalho comum de todos os dias. Deus Nosso Senhor chama todos os homens e mulheres deste mundo a santificar a sua ocupação diária, tornando-a oferta agradável ao Criador. Nela ressoa o apelo divino a ser santos em todas as ações, porque está escrito: “Sereis santos, porque Eu sou santo” (1P 1,16). Tal apelo é dirigido a todos aqueles que labutam nas estruturas temporais, para que, no próprio meio onde trabalham, vivendo como filhos de Deus, ajudem também o seu próximo a descobrir a grandeza desta vocação.

Os leigos, em virtude da própria vocação, podem e devem contribuir para “tornar sãs as instituições e as condições de vida no mundo, quando estas tendem a levar ao pecado, para que todas se conformem com as regras de justiça e favoreçam a prática da virtude (Constituição dogmática Lumen Gentium LG 36). O Evangelho deve ser proclamado com a força da palavra, com o poder da fé sincera, mas também, e sobretudo, com a credibilidade que nasce de fortes exemplos de vida, especialmente no seio do lar. Como não me referir aqui à família cristã “evangelizadora e missionária” (Catecismo da Igreja Católica CEC 2205)?

8. Este ano, por outro lado, a Igreja no Brasil está promovendo o V Congresso Missionário Latino-Americano, destinado a fortalecer o empenho missionário das comunidades cristãs.
A aspiração acalentada pelos organismos missionários de uma Igreja unida na vivência da mesma fé e enriquecida por múltiplas expressões culturais e religiosas, deverá ter sempre, como ponto de partida, “a certeza de que em Cristo há uma riqueza insondável (cf. Ef Ep 3,8) , que não esgota nenhuma cultura de qualquer época, e à qual nós homens sempre poderemos recorrer para enriquecer-nos. Essa riqueza é, antes de tudo, o próprio Cristo, sua pessoa, porque Ele mesmo é a nossa salvação”(Discurso de abertura da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XV/2 [1992] 318) .

9. Ao finalizar, permiti-me recordar-vos duas grandes colunas sobre as quais deve erguer-se o edifício da nova evangelização. São duas as forças sem as quais nada de sólido e duradouro se pode construir: a primeira é a comunhão de mente e de coração entre os membros do vosso numeroso Episcopado.

Sei que no passado enfrentastes momentos difíceis. Não se pode negar o fascínio exercido por certas ideologias que conquistaram até pessoas bem intencionadas e de boa fé. Houve inseguranças; houve perplexidades. Terá havido até mesmo condescendências, a título de não se sacrificar a comunhão eclesial. Passaram-se os anos e as ideologias revelaram a sua verdadeira face. Destas vicissitudes resta-vos agora o tesouro da experiência que há de inspirar o vosso futuro.

A comunhão episcopal recebe, por outro lado, a verdadeira força de coesão quando possui como ponto referencial o Magistério da Igreja. É também uma das razões que vos traz de tão longe à cidade de Roma. Abeberar-se nas águas que dessedentaram vinte séculos de evangelização, conferindo-lhes a chancela da autenticidade através do “confirma os teus irmãos”(cf. Lc Lc 22,32). Fortalecei no vosso Clero a obediência filial ao Sucessor de Pedro. Para tanto, permanecei vós próprios em comunhão afetiva e efetiva com a Cabeça do Colégio episcopal de que sois membros.

10. Caros Irmãos no Episcopado, tenho certeza de que está sendo feliz e proveitosa a vossa estada na Cidade Eterna. Roma está sempre de braços abertos para acolher os Sucessores dos Apóstolos que para aqui se dirigem com o fim de “videre Petrum”(Ga 1,18), chamados por esta tão veneranda e oportuna instituição da Visita “ad Limina”.

Desejo encorajar-vos a prosseguir com fidelidade e dedicação nos numerosos compromissos que vos aguardam em vossas dioceses. Levai aos sacerdotes, aos religiosos e às religiosas, vossos colaboradores, e a toda a comunidade das vossas dioceses, a expressão da minha estima e do meu encorajamento.

Aproximando-se a grande celebração do Mistério pascal, peço à Virgem Maria, Estrela da Primeira e da Nova Evangelização, cultuada pelo povo brasileiro com o belo título de Nossa Senhora Aparecida, para que acompanhe, com a sua intercessão, o desenvolvimento da comunhão missionária na Igreja, a fim de que se torne mais visível, mediante ela, o rosto de Cristo ressuscitado.

De minha parte, juntamente com as orações que sempre dirijo a Deus por todos os meus queridos irmãos no Episcopado, concedo-vos de coração a Bênção Apostólica, a qual faço de bom grado extensiva aos colaboradores e a todos os vossos diocesanos.
Maio 1995


MENSAGEM DO SANTO PADRE JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DO 50º ANIVERSÁRIO DO FIM NA EUROPA


DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL


1. Há cinquenta anos, no dia 8 de Maio de 1945, chegava ao seu termo, no solo europeu, a segunda guerra mundial. O fim daquele terrível flagelo, ao mesmo tempo que reavivava nos corações a expectativa do regresso dos prisioneiros, dos deportados e dos refugiados, suscitava o desejo de construir uma Europa melhor. O Continente podia começar novamente a esperar num futuro de paz e democracia.


À distância de meio século, os indivíduos, as famílias, os povos conservam ainda a recordação daqueles seis anos terríveis: tempos de medo, violência, extrema penúria, morte; experiências dramáticas de dolorosas separações, vividas na privação de toda a segurança e liberdade; traumas indeléveis devidos a extermínios sem fim.

Com o passar do tempo, compreende-se melhor o sentido

2. Não foi fácil, então, compreender plenamente as múltiplas e trágicas dimensões do conflito. Mas, com o passar dos anos, foi crescendo a consciência da incidência que aquele acontecimento teve sobre o século XX e sobre o futuro do mundo. A segunda guerra mundial não foi apenas um facto histórico de primeiro plano; mas marcou uma viragem na humanidade contemporânea. Com o transcorrer do tempo, as recordações não devem esmorecer; devem antes fazer-se severa advertência para a nossa e as futuras gerações.

O significado que aquela guerra teve para a Europa e para o mundo, foi possível compreendê-lo nestes cinco decénios, graças à aquisição de novos dados que consentiram melhor conhecimento dos sofrimentos causados por ela. A trágica experiência, realizada entre 1939 e 1945, representa hoje um ponto de referência necessário para quem quer reflectir sobre o presente e sobre o futuro da humanidade.

Em 1989, por ocasião do quinquagésimo aniversário do início da guerra, eu escrevia: «Cinquenta anos depois, temos o dever de nos recordar, diante de Deus, daqueles factos dramáticos, para honrar os mortos e chorar todos aqueles que este propagar-se de crueldade feriu no coração e no corpo, perdoando completamente as ofensas»(1).

É preciso manter viva a memória daquilo que aconteceu: é nosso preciso dever. Há seis anos, em coincidência com o aniversário agora recordado, no Leste Europeu estavam-se delineando inéditos cenários sociais e políticos com a rápida queda dos regimes comunistas. Era uma reviravolta social profunda que permitia eliminar algumas trágicas consequências da segunda guerra mundial, cujo fim, para muitas nações europeias, de facto, não tinha significado o princípio do pleno gozo da paz e da democracia, como teria sido lógico esperar naquele 9 de Maio de 1945. Com efeito, alguns povos perderam o poder de disporem de si próprios e foram fechados nos confins sufocantes de um império, enquanto se procurava destruir, para além das tradições religiosas, a sua memória histórica e a raiz secular da sua cultura. Isto mesmo o quis sublinhar na Carta encíclica Centesimus annus(2). Para esses povos, em certo sentido, a segunda guerra mundial só teve fim em 1989.

Uma guerra de incríveis proporções destruidoras

3. As consequências da segunda guerra mundial para a vida das nações e dos continentes foram imensas. Os cemitérios militares guardam em comum a memória de cristãos e crentes de outras religiões, militares e civis da Europa e de outras regiões do mundo. De facto, também soldados não europeus vieram combater sobre o solo do velho continente: muitos tombaram no campo de batalha; para outros, o dia 8 de Maio marcou o fim de um tremendo pesadelo.

Foram dezenas de milhões os homens e mulheres mortos; incalculáveis os feridos e os dispersos. Massas enormes de famílias viram-se obrigadas a abandonar terras a que estavam ligadas por raízes seculares; ambientes humanos e monumentos carregados de história foram devastados, cidades e países arrasados e reduzidos a ruínas. Nunca as populações civis, particularmente mulheres e crianças, tinham pago num conflito um preço tão elevado de mortos.

A mobilização do ódio

4. Ainda mais grave foi o alastrar-se da «cultura da guerra» com o seu nefasto cortejo de morte, ódio e violência. «A segunda guerra mundial - escrevia eu ao episcopado polaco - tornou todos conscientes da dimensão, até então desconhecida, a que podem chegar o desprezo do homem e a violação dos seus direitos. Esta guerra fez uma mobilização inaudita do ódio, que espezinhou o homem e tudo aquilo que é humano, em nome de uma ideologia imperialista»(3).

Nunca se insistirá bastante sobre o modo como a segunda guerra mundial dolorosamente transformou a vida de tantos homens e de tantos povos. Chegou-se a construir campos de extermínio infernais, onde, em condições dramáticas, encontraram a morte milhões de hebreus e centenas de milhares de ciganos e outros seres humanos, culpados apenas de pertencerem a povos diversos.

Auschwitz: monumento às consequências do totalitarismo

5. Auschwitz, a par de muitos outros campos de extermínio, permanece o símbolo dramaticamente eloquente das consequências do totalitarismo. A peregrinação àqueles lugares, com a memória e com o coração, neste quinquagésimo aniversário, é obrigatória. «Ajoelho-me - disse em 1979 durante a Santa Missa celebrada em Brzezinka, pouco distante de Auschwitz - sobre este Gólgota do mundo contemporâneo»(4). Como então, renovo em espírito a minha peregrinação àqueles campos de extermínio. Paro, antes de mais, «diante da lápide com a inscrição em língua hebraica», para recordar o povo «cujos filhos e filhas estavam destinados ao extermínio total» e para reiterar que «não é lícito a ninguém passar adiante com indiferença»(5). Como então, detenho-me diante da lápide em língua russa, depois das mudanças verificadas na ex-União Soviética, e recordo «a parte tida por este país na última terrível guerra, a favor da liberdade dos povos»(6). Paro depois diante da lápide em língua polaca e penso ao sacrifício de grande parte da nação, que marca «uma dolorosa conta com a consciência da humanidade». Como disse em 1979, repito-o também hoje: «Escolhi três lápides. Seria preciso determo-nos em cada uma das existentes»(7). Sim, neste quinquagésimo aniversário do fim da segunda guerra mundial, sinto a necessidade íntima de parar junto de todas as lápides, mesmo daquelas que recordam o sacrifício de vítimas menos conhecidas ou até esquecidas.

6. Desta meditação, brotam interrogações que a humanidade não pode deixar de se colocar. Porque é que se chegou a tal grau de aniquilação do homem e dos povos? Porque motivo, acabada a guerra, não se tiraram de tão amarga lição as devidas consequências para o conjunto do Continente Europeu?

O mundo, e de modo particular a Europa, encaminharam-se para aquela imensa catástrofe, porque tinham perdido a energia moral necessária para se contrapor a quanto os impelia para a voragem da guerra. Na verdade, o totalitarismo destrói as liberdades fundamentais do homem e pisa os seus direitos. Manipulando a opinião pública com o incessante martelar da propaganda, induz facilmente a ceder ao apelo da violência e das armas, e acaba por destruir o sentido de responsabilidade do ser humano.

Então, infelizmente, não se deu conta de que, quando se chega a espezinhar a liberdade, põem-se as premissas para uma perigosa irrupção da violência e do ódio, prenúncios da «cultura da guerra». Foi precisamente o que aconteceu: os chefes não tiveram dificuldade em levar as massas à opção fatal, por meio da afirmação do mito do homem superior, a aplicação de políticas racistas ou anti-semitas, o desprezo da vida de quantos eram inúteis por doença ou marginalização, a perseguição religiosa ou a discriminação política, o sufocamento progressivo de toda a liberdade através do controle policiesco e o condicionamento psicológico derivado do uso unilateral dos meios de comunicação. Era precisamente a tais maquinações que se referia o Papa Pio XI, de veneranda memória, quando, na Carta encíclica Mit brennender Sorge, de 14 de Março de 1937, falava de «tétricos desígnios» que apareciam no horizonte(8).

Sobre a violência, não se edifica uma sociedade humana

7. A segunda guerra mundial foi o fruto directo deste processo degenerador: mas, nos decénios sucessivos, foram tiradas as devidas consequências? Infelizmente, o fim da guerra não levou ao desaparecimento das políticas e das ideologias que a tinham gerado ou favorecido. Sob outra roupagem, continuaram os regimes totalitários; antes alargaram-se, sobretudo no Leste Europeu. Depois daquele 8 de Maio, no solo do Continente e noutras partes, permaneceram abertos não poucos campos de concentração, enquanto tantas pessoas continuaram a ser encarceradas no desprezo total dos mais elementares direitos humanos. Não se compreendeu que não se edifica uma sociedade digna da pessoa sobre a sua destruição, repressão e discriminação. Esta lição da segunda guerra mundial não foi ainda aprendida plenamente e por todo lado. E todavia ela permanece e deve permanecer como admoestação para o próximo milénio.

Em particular, nos anos anteriores à segunda guerra mundial, o culto da nação, levado até se tornar quase uma nova idolatria, provocou naqueles seis anos terríveis uma imensa catástrofe. Pio XI, já em Dezembro de 1930, acautelava: «Será mais difícil, para não dizer impossível, que dure a paz entre os povos e entre os Estados, se em vez do verdadeiro e genuíno amor da pátria reinar e enfurecer um nacionalismo egoísta e brutal, o que equivale a dizer ódio e inveja em lugar do mútuo desejo de bem, desconfiança e suspeita em lugar de confiança fraterna, concorrência e luta em lugar de cooperação concorde, ambição de hegemonia, de predomínio em lugar do respeito e da tutela de todos os direitos, inclusive aqueles dos débeis e dos pequenos»(9).

Não foi por acaso que alguns iluminados estadistas da Europa Ocidental, partindo da meditação sobre os desastres causados pelo segundo conflito mundial, quiseram criar um vínculo comunitário entre os seus países. Aquele pacto desenvolveu-se nos decénios sucessivos, concretizando a vontade das nações, que nele entraram a fazer parte, de não mais estarem sozinhas face ao próprio destino. Eles tinham compreendido que, para além do bem dos vários povos, existe um bem comum da humanidade, violentamente espezinhado pela guerra. Tal reflexão sobre a dramática experiência induziu-os a pensar que os interesses de uma nação não podiam ser convenientemente procurados senão no contexto da interdependência solidária com os outros povos.

A Igreja escuta o grito das vítimas

8. Múltiplas são as vozes que se levantam no quinquagésimo aniversário do fim da segunda guerra mundial, procurando superar as divisões entre vencedores e vencidos. São comemorados o sacrifício e a coragem de milhões de homens e mulheres. Por sua vez, a Igreja coloca-se sobretudo à escuta do grito de todas as vítimas. É um grito que ajuda a compreender melhor o escândalo daquele conflito que durou seis anos. É um grito que convida a reflectir sobre o que tal conflito comportou para a humanidade inteira. É um grito que constitui uma denúncia das ideologias que levaram à monstruosa catástrofe. Diante de cada guerra, todos somos chamados a meditar sobre as nossas responsabilidades, pedindo perdão e perdoando. Fica-se amargamente impressionado, como cristãos, ao considerar que «as monstruosidades daquela guerra manifestaram-se num continente que se orgulhava de um particular florescimento de cultura e de civilização; no Continente que permaneceu mais tempo no âmbito do Evangelho e da Igreja»(10). Por isso os cristãos da Europa devem pedir perdão, mesmo reconhecendo que foram diversas as responsabilidades na construção da máquina bélica.

A guerra é incapaz de construir a justiça

9. As divisões causadas pela segunda guerra mundial lembram-nos o facto de que a força ao serviço da «ambição de poder» é um instrumento inadequado para construir a verdadeira justiça. Pelo contrário, dá início a um nefasto processo de consequências imprevisíveis para homens, mulheres, povos que correm o risco de perder toda a dignidade juntamente com os seus bens e a própria vida. Ressoa intensamente ainda a admoestação que o Papa Pio XII, de veneranda memória, elevou no mês de Agosto de 1939, exactamente na vigília daquele trágico conflito, numa tentativa extrema de esconjurar o recurso às armas: «O perigo está iminente, mas ainda há tempo. Nada se perde com a paz. Tudo se pode perder com a guerra. Os homens voltem a compreender-se. Retomem as negociações»(11). Nisso seguia Pio XI as pegadas do Papa Bento XV que, depois de ter provado todas as vias para esconjurar o primeiro conflito mundial, não hesitava em tachá-lo com o apelativo de «inútil massacre»(12). Eu próprio me situei na mesma linha, quando, a 20 de Janeiro de 1991, face à guerra do Golfo, afirmei: «A trágica realidade destes dias torna ainda mais evidente que, com as armas, não se resolvem os problemas, mas são criadas novas e maiores tensões entre os povos»(13). Esta é uma constatação que o passar dos anos tem enriquecido sempre com novas confirmações, embora nalgumas regiões da Europa e noutras partes do mundo continuem a acender-se dolorosos focos de guerras. O Papa João XXIII, na Carta encíclica Pacem in terris, colocava entre os sinais dos tempos a difusão da persuasão de que «com negociações, e não com as armas, devem ser dirimidas as eventuais controvérsias entre os povos»(14). Não obstante os insucessos humanos, não faltam acontecimentos, mesmo recentes, capazes de demonstrar que a negociação honesta, paciente e respeitadora dos direitos e aspirações das partes em causa pode abrir o caminho para uma resolução pacífica das situações mais complexas. Neste espírito, exprimo o meu profundo reconhecimento e apoio a todos os actuais construtores de paz.

Faço-o impelido, de modo particular, pela lembrança indelével das explosões atómicas, que atingiram primeiro Hiroxima e depois Nagasaki, no mês de Agosto de 1945. Elas testemunham de modo impressionante o horror e o sofrimento gerados pela guerra: o balanço definitivo daquela tragédia - como assinalei no decurso da minha visita a Hiroxima - não foi ainda inteiramente traçado nem foi ainda calculado todo o custo humano pago, sobretudo considerando aquilo que a guerra nuclear provocou e poderá ainda provocar nas nossas ideias, nos nossos comportamentos e na nossa civilização. «Recordar o passado é comprometer-se pelo futuro. Recordar Hiroxima é abominar a guerra nuclear. Recordar Hiroxima é assumir um compromisso pela paz. Recordar tudo aquilo que sofreram os habitantes desta cidade, é renovar a nossa confiança no homem, na sua capacidade de fazer o que é bem, na sua liberdade de escolher o que é justo, na sua vontade decidida a transformar uma situação trágica num novo começo»(15).

À distância de cinquenta anos, aquele trágico conflito, que terminaria, alguns meses depois também no Pacífico com os factos dramáticos de Hiroxima e Nagasaki e a subsequente rendição do Japão, manifesta-se cada vez mais claramente como «um suicídio da humanidade»(16). De facto, bem vistas as coisas, ele é uma derrota tanto para os vencidos como para os vencedores.

A máquina propagandística

10. Uma nova reflexão se impõe: durante a segunda guerra mundial, para além das armas convencionais, químicas, biológicas e nucleares, recorreu-se amplamente a outro mortífero instrumento bélico: a propaganda. Antes de atingir o adversário com os meios de destruição física, procurou-se aniquilá-lo moralmente com o descrédito, as acusações falsas, a orientação da opinião pública para a intolerância mais irracional, através de toda a forma de doutrinação, especialmente junto dos jovens. Com efeito, é típico de qualquer regime totalitário forjar uma colossal máquina propagandística para justificar os próprios erros e incitar à intolerância ideológica e à violência racista contra aqueles que não merecem - dizem - ser considerados parte integrante da comunidade. Como tudo isto está longe da autêntica cultura da paz! Esta pressupõe o reconhecimento do laço intrínseco que existe entre a verdade e a caridade. A cultura da paz constrói-se, recusando logo ao nascer toda a forma de racismo e intolerância, não cedendo de forma alguma à propaganda racial, controlando as ambições económicas e políticas, rejeitando decididamente a violência e qualquer tipo de exploração.

Os perversos mecanismos propagandísticos não se limitam a falsificar os dados da realidade, mas corrompem também a informação sobre as responsabilidades, tornando muito difícil o juízo moral e político. A guerra dá origem a uma propaganda que não deixa espaço ao pluralismo das interpretações, à análise crítica das causas, à investigação das verdadeiras responsabilidades. É o que se conclui do exame dos dados disponíveis acerca do período 1939-1945, como também da documentação relativa às outras guerras rebentadas nos anos sucessivos: em cada sociedade, a guerra impõe um uso totalitário dos meios de informação e de propaganda, que não educa ao respeito do outro e ao diálogo, mas antes incita à suspeita e à retaliação.

A guerra não desapareceu

11. Com o ano de 1945, as guerras, infelizmente, não acabaram. Violência, terrorismo e ataques armados continuaram a funestar estes últimos decénios.

Assistiu-se à chamada «guerra fria», que viu contraporem-se ameaçadoramente dois blocos em equilíbrio entre eles graças a uma constante corrida aos armamentos. E mesmo quando definhou esta contraposição bipolar, não acabaram os recontros bélicos.

Demasiados conflitos estão ainda hoje acesos em diferentes partes do mundo. A opinião pública, impressionada pelas horrendas imagens que entram cada dia nas casas através da televisão, reage emotivamente, mas bem depressa acaba por habituar-se e quase aceitar a fatalidade dos acontecimentos. Para além de injusto, isto é sobremaneira perigoso. Não se deve esquecer aquilo que sucedeu no passado e tudo quanto ainda hoje acontece. São dramas que tocam inumeráveis vítimas inocentes, cujos gritos de terror e sofrimento chamam em causa as consciências de todos os honestos: não se pode nem se deve ceder à lógica das armas!

A Santa Sé, inclusive através da assinatura dos principais Tratados e Convenções Internacionais, quis lembrar - e continua incansavelmente a fazê-lo - à Comunidade das Nações a urgência de reforçar as normas relativas à não-proliferação das armas nucleares e à eliminação das armas químicas e biológicas, e bem assim de todas as armas particularmente traumatizantes e com efeitos indiscriminados. Da mesma forma, a Santa Sé convidou recentemente a opinião pública a tomar consciência mais viva do persistente fenómeno do comércio das armas, fenómeno grave sobre o qual é necessária e urgente uma séria reflexão ética(17). Convém ainda recordar que não é apenas a militarização dos Estados, mas também o fácil acesso às armas por parte dos privados, favorecendo o aumento da delinquência organizada e do terrorismo, que constitui uma imprevisível e contínua ameaça à paz.

Uma escola para todos os crentes

12. Nunca mais a guerra! Sim à paz! Eram estes os sentimentos unanimemente expressos a seguir àquele histórico dia 8 de Maio de 1945. Os seis anos terríveis do conflito foram para todos uma ocasião de amadurecimento na escola da dor: também os cristãos tiveram ocasião de se aproximar entre si e de se interrogar sobre as responsabilidades das suas divisões. Além disso, descobriram a solidariedade de um destino que os irmana entre si e com todos os homens, de qualquer nação que sejam. Desse modo, o facto que marcou o máximo de laceração e divisão entre os povos e as pessoas, revelou-se para os cristãos uma ocasião providencial para tomarem consciência de uma comunhão profunda no sofrimento e no testemunho. Sob a cruz de Cristo, membros de todas as Igrejas e Comunidades cristãs souberam resistir até ao sacrifício supremo. Muitos deles desafiaram exemplarmente com as armas pacíficas do testemunho doloroso e do amor, os algozes e os opressores. Juntamente com outros, crentes e não crentes, homens e mulheres de diversa raça, religião e nação, lançaram bem alto, acima da maré crescente de violência, uma mensagem de fraternidade e perdão.

Neste aniversário, como não lembrar estes cristãos que, dando testemunho contra o mal, rezaram pelos opressores e se debruçaram a curar as chagas de todos? Compartilhando a paixão, eles tiveram ocasião de se reconhecerem irmãos e irmãs, experimentando toda a incoerência das suas divisões. O sofrimento partilhado levou-os a sentir mais forte o peso das divisões ainda existentes entre os seguidores de Cristo e das consequências negativas que daí derivam para a construção da identidade espiritual, cultural e política do Continente Europeu. A sua experiência é para nós uma admoestação: é preciso prosseguir por esta linha, rezando e trabalhando com intensa confiança e generosidade, na perspectiva do Grande Jubileu do ano 2000, já próximo. Para esta meta nos encaminhamos com uma peregrinação de penitência e reconciliação(18), na esperança de se poder finalmente realizar a plena comunhão entre todos os crentes em Cristo, com seguro proveito para a causa da paz.

13. A onda de dor, que se estendeu sobre a terra com a guerra, impeliu os crentes de todas as religiões a colocarem os seus recursos espirituais ao serviço da paz. Toda a religião, mesmo com percursos históricos diversos, viveu esta singular experiência nestes cinco decénios. O mundo é testemunha de que, após a espaventosa tragédia da guerra, nasceu algo de novo nas consciências dos crentes das várias Confissões religiosas: estes sentem-se mais responsáveis pela paz entre os homens e começaram a colaborar entre si. A «Jornada mundial de oração pela paz» em Assis, a 27 de Outubro de 1986, consagrou publicamente esta atitude amadurecida no sofrimento. Assis revelou «o laço intrínseco que existe entre uma atitude autenticamente religiosa e o grande bem da paz»(19). Nas sucessivas «Jornadas de oração pela paz nos Balcãs» - em Assis a 9-10 de Janeiro de 1993, e na Basílica de S. Pedro a 23 de Janeiro de 1994 - foi assinalado especialmente o contributo específico pedido aos crentes para a promoção da paz, através das armas da oração e da penitência.

O mundo, que se encaminha para o fim do segundo Milénio, espera dos crentes uma acção mais incisiva a favor da paz. Aos representantes das Igrejas cristãs e das grandes religiões, reunidos em Varsóvia, no ano 1989, no quinquagésimo aniversário do início do conflito, eu dizia: «Do coração das nossas diversas tradições religiosas brota o testemunho da participação compassiva nos sofrimentos do homem, do respeito pela sacralidade da vida. É esta uma grande energia espiritual, que nos torna mais confiantes quanto ao futuro da humanidade»(20). As tristes vicissitudes do segundo conflito mundial, vistas à distância de cinquenta anos, tornam-nos mais conscientes da exigência de libertar, com renovada força e empenho, estas energias espirituais.

A propósito disto, é obrigatório recordar que precisamente da terrível experiência da guerra nasceu a Organização das Nações Unidas, considerada pelo Papa João XXIII, de veneranda memória, um dos sinais dos nossos tempos pela sua «vontade de manter e consolidar a paz entre os povos»(21). Do cruel desprezo pela dignidade e pelos direitos das pessoas nasceu, além disso, a Declaração universal dos direitos do homem. O quinquagésimo aniversário das Nações Unidas, que se celebra este ano, deverá ser ocasião para reforçar o empenho da comunidade internacional ao serviço da paz. Com este objectivo, será preciso assegurar à Organização das Nações Unidas os instrumentos de que tem necessidade para continuar eficazmente a sua missão.

Há ainda quem prepare a guerra

14. Desenrolam-se nestes dias celebrações e manifestações em muitas partes da Europa, nas quais tomam parte Autoridades civis e Responsáveis das várias Comunidades e Países. Associando-me à comemoração de tantas vítimas da guerra, quereria convidar todos os homens de boa vontade a reflectir seriamente sobre a necessária coerência que deve haver entre a comemoração do terrível conflito mundial e as orientações da política nacional e internacional. De modo particular, será necessário dispor de eficazes instrumentos de controle do mercado internacional das armas e ao mesmo tempo prever estruturas adequadas de intervenção em caso de crise, para induzir as partes interessadas a preferirem a negociação ao recontro violento. Porventura não é verdade que, enquanto celebramos a reconquista da paz, há ainda, infelizmente, quem prepare a guerra, tanto por meio da promoção de uma cultura de ódio como através da distribuição de sofisticadas armas bélicas? Porventura não é verdade que, na Europa, permanecem abertos dolorosos conflitos que há anos aguardam pacíficas soluções? Este 8 de Maio de 1995, infelizmente, não é um dia de paz para algumas regiões da Europa! Penso particularmente às martirizadas terras dos Balcãs e do Cáucaso, onde ainda troam as armas e continua a ser derramado mais sangue humano.

Quando passavam vinte anos do fim da segunda guerra mundial, em 1965, Paulo VI, falando à ONU, perguntava-se: «Chegará algum dia o mundo a mudar a mentalidade individualista e belicosa que até agora teceu grande parte da sua história?»(22). É uma pergunta que espera ainda resposta. Que a recordação da segunda guerra mundial reavive em todos o propósito de agir - cada um segundo as próprias possibilidades - ao serviço de uma decidida política de paz na Europa e no mundo inteiro.

Um significado especial para os jovens

15. O meu pensamento dirige-se agora aos jovens que não experimentaram pessoalmente os horrores daquela guerra. Eis o que queria dizer-lhes: queridos jovens, tenho grande confiança na vossa capacidade de ser autênticos intérpretes do Evangelho. Senti-vos pessoalmente empenhados ao serviço da vida e da paz. As vítimas, os soldados e os mártires do segundo conflito mundial eram em grande parte jovens como vós. Por isso peço-vos, jovens do ano 2000, que vigieis atentamente contra o ressurgimento da cultura do ódio e da morte. Rejeitai as ideologias rudes e violentas; rejeitai toda a forma de nacionalismo exasperado e de intolerância; por estes caminhos é que insensivelmente se introduz a tentação da violência e da guerra.

A vós está confiada a missão de abrir novos caminhos de fraternidade entre os povos, para construir uma única família humana, aprofundando «a lei da reciprocidade no dar e no receber, no dom de si e no acolhimento do outro»(23). Exige-o a lei moral escrita pelo Criador no íntimo de cada pessoa, lei por Ele confirmada na Revelação do Antigo Testamento e finalmente levada à perfeição por Jesus no Evangelho: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18 Mc 12,31); «Assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros» (Jn 13,34). Só é possível realizar a civilização do amor e da verdade, se a disponibilidade ao acolhimento do outro se alargar às relações entre os povos, entre as nações e as culturas. Na consciência de todos, ressoe este convite: Ama os outros povos como o teu!

O caminho do futuro da humanidade passa pela unidade; e a unidade autêntica - este é o anúncio evangélico - passa por Jesus Cristo, nossa reconciliação e nossa paz (cf. Ef Ep 2,14-18).

A necessidade de um coração novo

16. «Recorda-te de toda essa travessia de quarenta anos que o Senhor, teu Deus, te fez sofrer no deserto, a fim de te experimentar pela adversidade e conhecer profundamente o teu coração e verificar se permanecerias fiel, ou não, às suas leis. Sim, ele fez-te sofrer e passar fome; depois alimentou-te com esse maná que não conhecias e que os teus pais também não conheceram, para te ensinar que o homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor» (Dt 8,2-3).

Não entramos ainda na «terra prometida» da paz. A recordação do doloroso caminho da guerra e daqueloutro não fácil do segundo pós-guerra, no-lo traz à memória constantemente. Este caminho, nos tempos escuros da guerra, nos momentos difíceis do pós-guerra, nos nossos dias incertos e problemáticos, muitas vezes revelou que, no coração dos homens, inclusive no dos crentes, é forte a tentação do ódio, do desprezo do outro, da prevaricação. Neste mesmo caminho, porém, não faltou a ajuda do Senhor, que fez germinar sentimentos de amor, de compreensão e de paz, juntamente com o desejo sincero de reconciliação e de unidade. Como crentes, estamos conscientes de que o homem vive daquilo que sai da boca do Senhor. Sabemos ainda que a paz se radica nos corações de quantos se abrem a Deus. Lembrar-se da segunda guerra mundial e do caminho percorrido nos decénios sucessivos não pode deixar de evocar nos cristãos a exigência de um coração novo, capaz de respeitar o homem e de promover a autêntica dignidade.

Esta é a base da verdadeira esperança para a paz do mundo: «A luz do alto - profetizou Zacarias - [que nos visita] a fim de iluminar aqueles que se encontram nas trevas e na sombra da morte, e guiar os nossos passos no caminho da paz» (Lc 1,78-79). Neste tempo pascal, que celebra a vitória de Cristo sobre o pecado, elemento desagregador e provocador de lutos e desequilíbrios, volta aos nossos lábios a invocação com que se encerra a Encíclica Pacem in terris do meu venerando Predecessor João XXIII: «Ilumine [o Senhor] com a sua luz a mente dos responsáveis dos povos, para que, junto com o bem-estar dos próprios concidadãos, lhes garantam o belíssimo dom da paz. Inflame Cristo a vontade de todos os seres humanos para abaterem barreiras que dividem, para corroborarem os vínculos da caridade mútua, para compreenderem os outros, para perdoarem aos que lhes tiverem feito injúrias. Sob a inspiração da sua graça, tornem-se todos os povos irmãos e floresça neles e reine para sempre essa tão suspirada paz»(24).

Maria, Medianeira da graça, sempre solícita e carinhosa com todos os seus filhos, obtenha para a humanidade inteira o precioso dom da concórdia e da paz.

Vaticano, 8 de Maio do ano 1995.

(1) Mensagem no 50º aniversário do início da segunda guerra mundial (27 de Agosto de 1989), 2: AAS 82 (1990), 51.

(2) Cfr n. 18: AAS 83 (1991), 815.

(3) Carta aos Bispos da Polónia no 50º aniversário do início da segunda guerra mundial (26 de Agosto de 1989), 3: AAS 82 (1990), 46.

(4) Homilia no campo de concentração de Brzezinka (7 de Junho de 1979), 2: Insegnamenti II (1979), 1484.

(5) Ibid., 2.

(6) Ibid., 2.

(7) Ibid., 2.


Discursos João Paulo II 1995 - Terça-feira, 21 de Março de 1995