Discursos João Paulo II 1995 - Terça-feira, 11 de Julho de 1995

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA DOS BISPOS DO BRASIL


DOS REGIONAIS NORDESTE 1 E 4


EM VISITA « AD LIMINA APOSTOLORUM »


Terça-feira, 5 de Setembro de 1995



Prezados Irmãos no Episcopado,

1. Aguardei com viva esperança este encontro convosco, Bispos dos Regionais Nordeste 1 e 4, por ocasião da vossa visita ad Limina, e vos saúdo com palavras de São Paulo: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós”! (2Co 13,13) Ao vos dar as boas-vindas, incluo o clero, os religiosos, as religiosas e os fiéis leigos das Províncias Eclesiásticas de Fortaleza e de Teresina. Agradeço de coração as delicadas palavras do Senhor Cardeal Arcebispo D. Aloísio Lorscheider que, em vossa representação, traçou com competência o quadro sereno e cheio de esperanças da vida das vossas Dioceses.

O nosso encontro manifesta a profunda comunhão espiritual e visível que existe entre as vossas Igrejas particulares e a Igreja universal, uma comunhão que deriva do fato de termos sido “enxertados” em Cristo (cf. Rm Rm 11,17 ss.). Nós devemos dirigir-nos constantemente para Aquele que é o Supremo Pastor (cf. 1P 5,4), a fim de tomarmos conhecimento da “insondável riqueza”(Ep 3,8), com que Ele nos investiu para a edificação da Esposa Imaculada (cf. Ap Ap 19,7). É a ela que Ele se une mediante uma aliança inquebrantável, e é dela que Ele cuida e nutre (cf. Ef Ep 5,29) (cf. Constituição dogmática Lumen Gentium LG 6). A nossa segurança e esperança reside n’Ele e no poder salvífico do seu Evangelho (cf. Rm Rm 1,16).

Ao dardes prosseguimento às visitas ad Limina dos vossos irmãos do Episcopado brasileiro, a vossa presença aqui traz ao vivo a lembrança não só da vastidão das vossas Dioceses, mas também os inúmeros desafios para o anúncio do Evangelho, que foram ressaltados pelas “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil”, na reunião deste ano da vossa Conferência Episcopal. Precisamente, nos encontros anteriores com os representantes das Províncias Eclesiásticas do Paraná e de São Paulo, tive a oportunidade de refletir acerca de alguns aspectos do seu cuidado pastoral pela Igreja, e encorajei-os a serem sentinelas vigilantes da verdade, pastores que proclamam a verdade de Cristo e da Igreja, promotores da renovação espiritual que se faz sentir necessária em todos os âmbitos das vossas Igrejas particulares (cf. Visita ad Limina dos Bispos do Brasil, Regional-Sul 2, 17 de fevereiro de 1995 e Visita ad Limina dos Bispos do Brasil, Regional-Sul 1, 21 de março de 1995) . Hoje, o nosso pensamento dirige-se para alguns dos outros aspectos do vosso ministério.

2. “Que todos sejam um... como Nós somos um”(Jn 17,21-22).

Com estas palavras do Apóstolo e Evangelista S. João, desejo reunir-me convosco com o fim principal de encorajar a fé dos nossos irmãos das Comunidades Diocesanas, de que sois pastores, para que se tornem sempre mais realidade aquelas solenes palavras “que todos sejam um, assim como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti, para que também eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu Me enviaste”(Jn 17,21). .

Em diversas ocasiões a Providência permitiu-me insistir naquela conclusão básica do Concílio Vaticano II, segundo a qual é “decisão da Igreja assumir a tarefa ecumênica em prol da unidade dos cristãos e de a propor convicta e vigorosamente”(cf. Decreto sobre o ecumenismo Unitatis Redintegratio UR 1), Tem sido, por sinal, marco indelével do meu Pontificado que, como recordarão, quis deixar patente na minha última viagem ao Brasil (cf. Encontro Ecumênico em Florianópolis, 18 de outubro de 1991).

Já tive ocasião de comentar, mesmo recentemente, que “não se trata de modificar o depósito da fé, de mudar o significado dos dogmas, de banir deles palavras essenciais, de adaptar a verdade aos gostos de uma época, de eliminar certos artigos do Credo com o falso pretexto de que hoje já não se compreendem. A unidade querida por Deus só se pode realizar na adesão comum ao conteúdo integral da fé revelada” (Carta encíclica Ut unum sint UUS 18). Falando aos representantes do mundo da cultura em Salvador na Bahia, eu lembrava que “a inculturação do Evangelho não é uma adaptação mais ou menos oportuna aos valores da cultura ambiente, mas uma verdadeira encarnação nesta cultura para purificá-la e redimi-la”(Discurso aos Representantes do Mundo da Cultura em Salvador, Bahia, 20 de outubro de 1991).

O mesmo vale no campo ecumênico. Com efeito, no campo da inculturação como do ecumenismo, nota-se uma certa facilidade com que a busca do entendimento, do acolhimento ou da simpatia com outros grupos ou confissões religiosas tem levado a sérias mutilações na expressão clara do mistério da fé católica, na oração litúrgica, ou a concessões indevidas quanto às exigências objetivas da moral católica. Ecumenismo não é irenismo (cf. Unitatis Redintegratio UR 4,11). Não se trata de buscar a unidade a qualquer preço. O diálogo ecumênico deve ser alimentado pela oração – definida pelo Concílio Vaticano II –, como a alma de todo movimento ecumênico. Este diálogo, que somente tem sentido se for uma busca sincera da verdade, poderá nos pedir que deixemos de lado elementos secundários que poderiam constituir um obstáculo de ordem psicológica para nossos irmãos de distintas denominações religiosas. Mas nunca será verdadeiro, autêntico, se implicar na mais mínima mutilação duma verdade da fé, no abandono da legítima expressão da piedade tradicional do povo cristão ou no enfraquecimento das exigências de séculos da disciplina eclesiástica ou das veneráveis tradições litúrgicas do Oriente, da Igreja Romana e outras Igrejas do Ocidente. De resto, “hoje sabemos que a unidade pode ser realizada pelo amor de Deus, somente se as Igrejas o quiserem juntas, no pleno respeito das várias tradições e da necessária autonomia”(Carta Apostólica Orientalem lumen, 20).

Em contrapartida, para um exercício fecundo de um autêntico ecumenismo, faz-se necessária uma adequada formação ecumênica e estruturas pastorais – como as comissões ecumênicas – que colaborem para a promoção da plena unidade. O “Diretório para a aplicação dos princípios e das normas sobre o ecumenismo”, publicado em 1993, dá indicações precisas aplicáveis às distintas situações.

3. Na área latino-americana esta necessidade do diálogo ecumênico tem-se tornado urgente, ao deparar-nos com o grave problema das seitas que se expandem, como uma mancha de óleo, ameaçando fazer ruir a estrutura de fé de tantas nações.

Como é lógico, não me refiro neste momento àquelas outras Igrejas e Comunidades cristãs detentoras de uma base objetiva, mesmo que imperfeita, de comunhão com a Igreja Católica; estas, como declarou o Concílio Vaticano II, possuem “elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica”(Constituição dogmática Lumen Gentium LG 8). Mais ainda: precisamente porque “a "fraternidade universal" dos cristãos tornou-se uma firme convicção ecumênica” (Ut unum sint UUS 42), devemos viver, estimular e confirmar nossa fé em busca da unidade de todos os cristãos.

Certamente a expansão das seitas “constitui uma ameaça para a Igreja Católica e para todas as Comunidades eclesiais com quem ela mantém diálogo”(Redemptoris Missio RMi 50).

Com toda razão o Episcopado latino-americano, reunido em Santo Domingo, apresentou em cores vivas o desafio pastoral que hoje são as seitas em toda a América Latina. O Documento Final descreveu com clareza e precisão estas seitas e movimentos, mostrou suas características e modos de atuar, deixou claro os interesses políticos e econômicos envolvidos na sua expansão em todo o Continente e apontou os desafios pastorais e os caminhos possíveis para a vossa atuação neste campo (cf. Conclusões da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, nn. 139-152).

Não é agora minha intenção repetir o que todos conheceis tão bem. É notória a intenção, por vezes virulenta, destas seitas de minar as bases da fé do povo, de modo especial no que diz respeito ao culto do Mistério Eucarístico e da Santíssima Virgem, à estrutura hierárquica da Igreja e ao primado de Pedro, que perdura no pastoreio universal do Bispo de Roma, e às expressões da piedade popular. Está claro, também, que o êxito de seu trabalho pode ser explicado pela carência de conhecimentos religiosos do povo, devida, em boa parte, à perda da vivência religiosa que cultivava nas pequenas cidades do interior, mas que enfraqueceu quando migrou para a periferia das grandes cidades, num processo quase sempre doloroso de desenraizamento cultural.

4. Não se trata de uma atitude pessimista face à situação reinante: a Igreja Católica, a Esposa Imaculada de Cristo, leva em si a garantia da perenidade que o próprio Senhor lhe assegurou (cf. Mt Mt 28,19); porém, mesmo sabendo possuir, por vontade expressa de Deus, a “plenitude dos meios de salvação”, ou seja, “todos os instrumentos da graça, os seus membros não vivem com todo aquele fervor (Unitatis Redintegratio UR 3-4). que seria conveniente”. Estou certo de que esta afirmação conciliar não lhes soará como um simples eufemismo à hora de se encararem com a realidade quotidiana do vosso povo, tão afeto para a transcendência e para os valores cristãos da piedade e da fraternidade. Mais que pela fria estatística levada pelo movimento pendular de um vai-e-vem de dados, muitas vezes contraditórios entre si, sobre o número dos fiéis praticantes, deveríamos apropriar-nos daquela questão feita na Relação Final do Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985: “A difusão das seitas não nos interroga se tem sido manifestado suficientemente o senso do sagrado?”(Sínodo Extraordinário dos Bispos, 1985, Relatório Final II, A. 1).

Preocupa-vos, e não sem razão, o panorama de carência doutrinária e de ignorância religiosa que deixa o vosso povo à mercê das influências perniciosas de um ambiente onde reina o permissivismo moral, que o torna extremamente vulnerável à sedução das seitas e dos novos grupos religiosos, especialmente quando estes adotam normas exigentes de marcada rigidez disciplinar. O mesmo clima de relativismo moral, que com extrema facilidade é divulgado através dos meios de comunicação social, põe “o homem contemporâneo sob a ameaça de um eclipse da consciência” de graves proporções (Angelus Domini, 14 de março de 1982), haja visto o clima rarefeito que o divórcio, as uniões ilícitas e outras deformações, acarretam na vida familiar (cf. Gaudium et Spes GS 17). Por isso, volto a insistir que “urge recuperar e repropor o verdadeiro rosto da fé cristã, que não é simplesmente um conjunto de proposições a serem acolhidas e ratificadas com a mente. Trata-se, antes, de um conhecimento existencial de Cristo, uma memória viva dos seus mandamentos, uma verdade a ser vivida” (Veritatis Splendor VS 88). Nesta tarefa, vos cabe um empenho insubstituível: a grande responsabilidade que vos incumbe de serdes “Mestres na fé”. O ensinamento e a mesma divulgação do Catecismo da Igreja Católica, mais não pretende senão conservar cuidadosamente a unidade da fé e a fidelidade à doutrina católica.

5. Porém, algumas camadas sociais são mais vulneráveis. Por um lado, existe a tendência a fazer crer em soluções fáceis aos problemas existenciais, bastando um pensamento positivo para apaziguar os conflitos gerados pela dor e pela morte, esquecendo-se que o sofrimento humano não pode ser separado do pecado original, nem do “pano de fundo pecaminoso das ações pessoais e dos processos sociais na história do homem”(Salvifici Doloris, 15). Por outro, há os que esperam uma resposta imediata e simples às suas necessidades inclusive materiais. A busca da saúde a qualquer preço, sem uma garantia de validade dos métodos, é um incentivo à adesão a algumas denominações pseudo-religiosas.

Preocupa, neste sentido, o fácil aliciamento de novos adeptos, que mesmo submetidos à pressão psicológica de sustentar sua seita com obrigações financeiras que vão além das próprias possibilidades, aceitam-nas passivamente com a condição de conseguir um alívio para os seus males, recebendo promessas tão descabidas quanto temerárias, de cura, ou mesmo de salvação, contrárias aos planos de Deus. As seitas causam sérios prejuízos religiosos aos seus seguidores.

Não se trata somente de abandonar as suas crenças. Passado o entusiasmo das curas fictícias, verifica-se que nem sempre retornam à fé e abraçam o indiferentismo. Mais ainda, o indiferentismo religioso gera a incoerência nos princípios, a ponto de fazer acreditar, falsamente, que é possível manter o nexo íntimo e vivo com a Igreja, com o seu mistério, a sua vida e missão, conservando intacta a própria fé – nela incluída a piedade litúrgica e sacramental, o dogma e a moral cristã – e frequentar outros cultos e denominações religiosas. Deste modo, pretende-se receber os sacramentos mesmo participando e até contribuindo financeiramente à sustentação de “igrejas”, cultos ou instituições filantrópicas, que pregam, por exemplo, a reencarnação.

Mas donde provém, em última análise, esta cisão interior do homem? Dito de outro modo, o que falta na evangelização para assegurar a fidelidade do Povo de Deus, a caminho da Pátria definitiva?

6. Estou certo que concordareis comigo quanto à existência de algumas lacunas no processo evangelizador das vossas Igrejas, de resto enfatizadas este ano em Itaici pelo Episcopado brasileiro com a chancela de urgência, ao propor dar nova vida às diversas formas de celebração litúrgica e de comunicação da Palavra, incentivando a conservação da qualidade pastoral das celebrações dos sacramentos (cf. Diretrizes gerais, n. 257).

É precisamente na esteira destas linhas de ação que convém remarcar, por um lado, a perda da visibilidade de vossas comunidades e agentes; por outro, a existência de falhas no relacionamento humano e no acolhimento das pessoas; enfim, como não acentuar uma certa timidez e inércia no processo de evangelização do povo?

Em que poderia consistir a falta de visibilidade de vossas comunidades e ministros?

Todos sabemos que vivemos hoje num mundo onde é tão importante a comunicação pela imagem. Os sinais externos da vida cristã, sobretudo os mais tradicionais, possuem, hoje como ontem, um grande apelo para o vosso povo, gente simples cuja base cultural foi tão profundamente marcada pela fé católica nestes quatro séculos de evangelização do Brasil.

Numa das minhas Viagens Pastorais à vossa terra – dentre as quais não posso deixar de recordar o amado povo piauiense e cearense – lembro ainda que quis agradecer ao Todo-Poderoso ter enraizado tão profundamente no coração do Povo de Deus deste País, a cruz, a Eucaristia e a “Aparecida” (cf. Abertura do X Congresso Eucarístico Nacional, Fortaleza, 9 de julho de 1980).

Compreende-se então como o brasileiro gosta dos sinais exteriores da fé! Ele quer ver as Igrejas com as suas características religiosas, com as expressões autênticas da arte sacra que despertam a piedade e levam à oração, ao recolhimento e à contemplação do mistério de Deus. Ele quer ouvir com alegria bater os sinos de vossas Igrejas convocando-o para as celebrações litúrgicas ou convidando-o para as orações do dia ou da tarde em louvor da Virgem Maria! Um sino que toca - e tantos o emudeceram! – leva a muitos ouvidos um sinal de vitalidade eclesial. Ele quer sentir nas músicas de vossas Igrejas o apelo ao louvor de Deus, à ação de graças, à prece humilde e confiante e se sente desconfortável quando esses cantos em sua letra envolvem uma mensagem política ou puramente terrena, e em sua expressão musical não apresentam a característica de música religiosa, mas são marcadamente profanos no ritmo, na linha melódica e nos instrumentos musicais de acompanhamento. Vosso povo se sente feliz com a beleza e a dignidade do culto litúrgico, sem pompa e ostentação, mas digno, piedoso, que esteja realmente unido à ação litúrgica, em sintonia com quanto definiu o Concílio Vaticano II: “quer como expressão delicada de oração, quer como fator de comunhão, quer como elemento de maior solenidade nas funções sagradas”(Sacrosanctum Concilium SC 112).

Procurai dar um clima de piedade e dignidade às celebrações litúrgicas, sabendo fazê-las alegres nos momentos devidos e sempre espiritualmente confortadoras. O ministério da Palavra, que está intimamente ligado à Liturgia Eucarística (cf. Sacrosanctum Concilium SC 56), contenha sempre, do início ao fim, uma mensagem espiritual. É certo que há tanta gente que não possui o suficiente para acalmar a própria fome, mas, ordinariamente, o povo tem mais fome de Deus que do pão material, pois entende que “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”(Mt 4,4). Ver a Igreja como Igreja, e não simples promotora da reforma social. Este é um dever que promana da Fé e não prévia exigência para uma posterior pregação do Evangelho. Assim, e não distintamente, pode-se entender aquelas palavras do Concílio Vaticano II: “É tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual”(Dei Verbum DV 21).

Vosso povo, caríssimos irmãos no episcopado, quer ver os padres como verdadeiros Ministros de Deus, inclusive na sua veste e no seu modo externo de proceder. Ele quer ver o homem de Deus nos ministros de sua Igreja, uma presença que lhes inspire amor, respeito, confiança. O povo tem direito e isso pode exigi-lo de seus pastores. O que os homens querem, o que esperam é que o sacerdote com o seu testemunho de vida e com sua palavra, lhes fale de Deus. O caráter conferido pelo sacramento da Ordem, permite que o sacerdote atue “em nome de Cristo cabeça” (Presbyterorum Ordinis PO 2), participando da autoridade com que Cristo governa a sua Igreja; por outro lado, o ministro sagrado é chamado a exercer o “poder da Ordem para oferecer o Sacrifício, perdoar os pecados e exercer publicamente o ofício sacerdotal (Presbyterorum Ordinis PO 3) em nome de Cristo a favor dos homens”. Por isso, convém que ambas as notas do sacerdócio ministerial conservem sempre seu justo apreço, tendo em vista que “numa sociedade secularizada e de tendência materialista... sente-se particularmente a necessidade de que o presbítero – homem de Deus dispensador dos Seus mistérios – seja reconhecível pela comunidade, também pelo hábito que traz, como sinal inequívoco da sua dedicação e da sua identidade de detentor de um ministério público”(Diretório para o Ministério e a vida dos Presbíteros, n. 66).

7. Cabe agora considerar um outro aspecto, de não menor importância. Trata-se do relacionamento das pessoas e do modo de acolhimento no seio de vossas comunidades. A Igreja é a casa do Pai. O vínculo maior de união dos membros da Igreja é o amor, o amor de Deus que se desdobra no amor ao próximo. Foi precisamente este amor fraterno que deu uma enorme capacidade evangelizadora às comunidades primitivas da Igreja através de seu testemunho de vida em comum.

O que vale para todos os povos, tem uma importância fundamental para vosso povo. Ele é antes de tudo cordial. Ele, na sua carência afetiva, necessita sentir-se querido e acolhido. O povo é muito sensível ao ambiente em que se encontra. Ele espera ver alegria, simplicidade e calor humano. O ser católico, por maior razão, diante do surgimento das seitas, requer uma atitude de caridade: “caridade para com o interlocutor, humildade para com a verdade que se descobre e que poderia exigir revisão de afirmações e de atitudes”(Ut unum sint UUS 36). Não se trata de recorrer a ataques pessoais, ou assumir posições contrárias ao espírito do Evangelho. Poderia servir de experiência o que foi proposto como lema pastoral numa das vossas Dioceses: “Acolher para evangelizar”.

Importa dar atenção pessoal a quem procura a Igreja, manter-se disponíveis, como sinal de consideração, escuta e abrigo a necessitados de amparo espiritual. Sem dúvida, vosso trabalho evangelizador teria um grande crescimento, se em vossas comunidades fosse incentivado aquilo que oportunamente definis como “ministério da acolhida” das pessoas, facilitando o atendimento, e exigindo dos padres e de seus colaboradores uma atitude serena e cordial.

8. Finalmente, onde encontraríamos a falta de ardor e de iniciativa no anúncio evangélico?

A evangelização a que a Igreja está sendo chamada neste final de milênio deve ser, como tantas vezes tenho repetido, nova em seu ardor, seus métodos e sua expressão. Este ardor, como falei em Santo Domingo, “supõe uma fé sólida, uma intensa caridade pastoral e uma fidelidade robusta que, sob a ação do Espírito, gerem uma mística, um entusiasmo incontido no trabalho de anunciar o Evangelho. Na expressão do Novo Testamento, é a "parresia" que inflama o coração do apóstolo”(Abertura da IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, 12 de outubro de 1992).

Chama a atenção o proselitismo a qualquer custo, o entusiasmo dos agentes das seitas e de alguns movimentos pseudo-espirituais. Não estaria havendo uma certa acomodação deixando de ir em busca das ovelhas que estão afastadas? Ao contrário da parábola evangélica, não é uma e outra que está tresmalhada, mas é uma parte do rebanho.

Por isso, quis salientar no 25º aniversário do Decreto Conciliar “Ad Gentes”, que o “anúncio tem a prioridade permanente na missão... Na realidade complexa da missão, o primeiro anúncio tem um papel central e insubstituível, porque introduz "no mistério do amor de Deus, que, em Cristo, nos chama a uma estreita relação pessoal com Ele" e predispõe a vida para a conversão” (Redemptoris Missio RMi 44). Precisamente porque “o amor de Cristo nos constrange” (2Co 5,14) a “missão é um problema de fé, é a medida exata da nossa fé em Cristo e no Seu amor por nós” (Redemptoris Missio RMi 11).

Isso mostra, caríssimos irmãos, que não basta chamar, convocar e esperar que as pessoas venham. Como diz outro lema da ação pastoral de uma das vossas Dioceses, deveis ser “uma Igreja que vai ao encontro do Povo”! Deveis ser uma Igreja que procure as pessoas, que as convide não somente no chamado geral dos meios de comunicação, mas no convite pessoal, de casa em casa, de rua em rua, num trabalho permanente, respeitoso mas presente em todos os lugares e ambientes.

Para isso é importante contar com a generosidade dos fiéis leigos. Refiro-me, de modo especial, àqueles que procuram viver de modo mais intenso a sua consagração batismal quer pessoalmente, quer nas tradicionais associações religiosas ou nos novos movimentos leigos que, sob a ação do Espírito Santo, vão surgindo na Igreja. Contai, respeitai o seu caminho espiritual mas não deixeis de convocá-los para o trabalho evangelizador.

9. A vossa tarefa é um desafio missionário: preparar a Igreja do terceiro milênio, retomando a iniciativa da nova evangelização mediante esforços redobrados. À luz do mandamento do amor, venerados irmãos no episcopado, sede apóstolos intrépidos da verdade e construtores de uma comunidade fraterna, permanecendo na escuta d’Aquele que vos consagrou (cf. Is Is 61,1), a fim de testemunhardes com misericórdia a benevolência divina para convosco.

O Espírito do Redentor, que vos guiou até agora, não vos deixará sozinhos perante estes desafios. A vossa visita ad Limina felizmente salienta a vossa união com o Bispo de Roma e a vossa pertença ao Colégio Episcopal: oxalá isto vos sirva de apoio!

Queria pedir-vos que transmitísseis os meus encorajamentos afetuosos a todos os servidores do Evangelho das vossas Dioceses: aos sacerdotes, aos religiosos e às religiosas, aos leigos que assumem responsabilidades e desempenham muitas tarefas em benefício da Comunidade, assim como a todos os fiéis.

Confio à Virgem Mãe, Nossa Senhora Aparecida, os projetos, as esperanças e as dificuldades da hora atual da Nação. Nesta perspectiva, invoco a Bênção do Senhor sobre vós, sobre os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e os leigos desta Terra da Santa Cruz que me é muito querida.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA DOS BISPOS DO BRASIL


REGIONAL NORDESTE III EM VISITA


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Sexta-feira, 29 de Setembro de 1995



Prezados Irmãos Bispos

1. É com imensa alegria que vos dou as boas-vindas, Bispos provenientes das Províncias Eclesiásticas da Bahia e de Aracajú: “Graça e paz vos sejam dadas da parte d’Aquele que é, que era e que há de vir” (Ap 1,4). A vossa presença testemunha a comunhão na graça que vos une, na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, ao Bispo de Roma, centro visível da unidade em todos os tempos. Ao realizardes a vossa peregrinação aos túmulos dos Apóstolos, renovais a vossa convicção de que a realidade histórica concreta, que é a Igreja, tem a sua origem nos Doze e no nosso Senhor Jesus Cristo, que estabeleceu este Corpo vivo como sacramento da salvação (cf. Lumen Gentium LG 1), que Ele mesmo nos obteve mediante a Sua morte e ressurreição. Agradeço as palavras do Senhor Bispo D. Paulo Lopes de Faria, elas representam o espírito que acompanha vossos irmãos no episcopado, e refletem a sintonia que norteia a vossa comum missão de Pastores das Igrejas particulares que representais.

2. Esta certeza acerca da Igreja como sinal efetivo da salvação é a fonte dos vossos incansáveis esforços para transmitir o Evangelho a todos os que foram confiados ao vosso cuidado pastoral. Ela é a base do dever urgente, de todos os Pastores da Igreja, de inspirarem e orientarem a plantatio Ecclesiae e o ulterior desenvolvimento da Esposa de Cristo em todos os lugares e em todas as culturas.

No limiar do terceiro milênio, a missão apostólica que vos foi confiada encontra-se diante dos formidáveis desafios da Nova Evangelização, em que a cultura reveste uma importância primordial. Precisamente na linha destas considerações, ao participar das comemorações do V Centenário da Evangelização da América Latina, fiz questão de dar particular ênfase à “cultura cristã”, onde o Evangelho de Cristo levado aos homens atingisse cada qual na sua cultura, na esperança de que, por sua vez, a fé dos cristãos fecundasse as culturas emergentes. A América Latina representa quase a metade dos católicos do mundo. O sucesso da Nova Evangelização dependerá de como a Igreja, e particularmente vós, que levais sobre os ombros a pesada carga de iluminar os caminhos do rebanho que vos foi confiado, sabereis manter esse diálogo entre a cultura e a fé.

Para confirmar vossos esforços e infundir-vos coragem diante de vossos deveres, como já o fiz por ocasião das visitas “ad limina” de vossos coirmãos de outros Regionais, permito-me sugerir algumas reflexões sobre temas que muitos de vós compartilhastes comigo e que estão entre os objetivos prioritários do vosso ministério episcopal. E, particularmente convosco, do Regional Nordeste III, desejo hoje entreter-me sobre o estado da renovação litúrgica no vosso imenso país e a tarefa de chegar a uma Liturgia romana corretamente inculturada no povo brasileiro.

3. A promoção da vida litúrgica, no contexto acima acenado, apresenta mais de um desafio. Tenho conhecimento que, nesse setor da vossa responsabilidade, muito foi feito e por isso é necessário dar graças a Deus. A mesa da Palavra de Deus foi abundantemente aberta a todos com traduções adaptadas ao uso litúrgico, e a recente publicação do Missal e da Liturgia das Horas na língua do Brasil oferecem agora à oração da Igreja no Brasil pontos de referências definitivos.

Esta oração, que funda suas raízes no tesouro da tradição da Igreja e tende a santificar o dia e as obras, deve acompanhar a missão de sacerdotes, diáconos, religiosos e religiosas, e estar sempre mais aberta também aos leigos. A missão da Igreja e a sua atividade apostólica exigem de fato estar unidas à oração incessante, segundo o convite e o exemplo de Cristo, para elevar a Deus o mundo que evangelizamos (cf. Mt Mt 26,41 Mc 6,46).

Neste sentido, uma palavra faz-se necessária, por ocasião da recente publicação, em vosso País, da edição definitiva da Liturgia das Horas, agora completada. Muitos dos vossos Relatórios Quinquenais indicavam a necessidade de se ajudar os presbíteros a redescobrirem a importância do Breviário para a vida espiritual e ministério. É, pois, chegado o momento de empreender todos os esforços possíveis para corresponder a esta exigência, ajudando os vossos sacerdotes a viverem com renovado ardor e entusiasmo, e em espírito de amoroso obséquio ao Senhor, aquela “ação” litúrgica que, como Sacerdotes, são chamados a oferecer em nome e com toda a Igreja. O dever da recitação integral e cotidiana do Ofício Divino (Codex Iuris Canonici CIC 276 § 2 e 3)deve ser percebido não como fria e mecânica norma, mas como uma imperiosa necessidade do próprio ser sacerdotal, feito “intérprete e veículo da voz universal que canta a glória de Deus e pede a salvação do homem”(Audiência Geral de 2 de junho de 1993, 5; Congregação para o Clero, Diretório para o Ministério e a Vida dos Presbíteros, n. 50). A sua celebração seja diligentemente preparada, instruindo-se os seminaristas acerca da história e do significado do Breviário; e aos jovens sacerdotes proporcione-se um adequado acompanhamento, no quadro da formação permanente, também quanto a este sacrossanto dever (Diretório para o Ministério e a Vida dos Presbíteros, n. 82).

4. As ações litúrgicas enquanto “celebrações da Igreja, que é "sacramento da unidade"”(Sacrosanctum Concilium SC 26) devem ser disciplinadas unicamente pela autoridade competente e, uma vez que isso foi determinado, exigem da parte de todos grande e respeitosa fidelidade aos ritos e aos textos autênticos (cf. Sacrosanctum Concilium SC 22).

Visto que a Liturgia, como a experiência pós-conciliar nos ensinou, tem um grande valor pastoral, em vários livros litúrgicos foi previsto, com indicações precisas nos Praenotanda, uma margem de adaptações à assembléia e às pessoas, e uma possibilidade de abertura ao gênio e à cultura dos diversos povos. Para vós é chegado o momento de avaliar quanto foi feito até agora nesse campo e a oportunidade de estudar em que formas e em que modo responder ao prescrito por aquelas normas. Toda esta obra deve obter nos ritos aquela nobre simplicidade que ponha em equilíbrio a possibilidade de sinais facilmente compreensíveis, sem que isso degenere no empobrecimento dos mesmos sinais, tornando-os, ao contrário, mais expressivos das realidades sagradas a que devem servir, e contribuindo, no seu contexto, para a dignidade e a beleza da celebração.

Cabe a cada Bispo, como regulador, promotor e guarda de toda a vida litúrgica na comunidade eclesial que lhe foi confiada, fazer frutificar a graça de Deus (cf. Decreto Christus Dominus CD 15), e por isso é dever de cada um de vós vigiar a fim de que se observem com cuidado e diligência as normas e diretivas que dizem respeito às celebrações, sejam essas comuns a todo o território da Conferência Episcopal ou particulares à uma Diocese. Uma errada aplicação do valor da criatividade e da espontaneidade nas celebrações, mesmo se típica de tantas manifestações da vida do vosso povo, não deve levar a alterar nem os ritos, nem os textos, nem sobretudo o sentido do mistério que se celebra na Liturgia. A recente Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos “Varietates Legitimae” vos oferece tudo quanto é necessário para poder estruturar, dirigir, examinar e corrigir a revisão dos vossos livros litúrgicos e poder assim apresentá-los à definitiva aprovação.

5. Não me é desconhecido, todavia, que a vossa ação de pastoral litúrgica a serviço da nova evangelização deve tomar em consideração as exigências de uma sociedade, como a vossa, que é multicultural. Graças à presença de vários grupos culturais se opera um enriquecimento para a catolicidade da Igreja. Mas o cuidado espiritual para os católicos que são, como tive ocasião de dizer: “Uma mescla racial e cultural” que “marcou profundamente e continuará a marcar o modo de ser e de exprimir-se do povo brasileiro”(Aos representantes do mundo da cultura, Salvador, Bahia, 20 de Outubro de 1991, 4), exige particular solicitude pastoral. Muitos vivem nas áreas urbanas, um ao lado do outro, transformando a sua cultura; para outros, o grau de integração continua a ser limitado, outros enfim continuam a manter a sua cultura original. Este articulado fenômeno implica uma particularmente sensível e partícipe resposta pastoral, confiada à vossa discrição e à vossa prudência apostólica.

Por diversas ocasiões pude testemunhar este amálgama de raças que convive harmoniosamente em cada Estado da Federação. Esta pacífica convivência deve ser incentivada, evitando-se tudo aquilo que pode contrapor as raças e culturas, em atitudes estéreis de antagonismo ou de conflitos. A índole do vosso povo, e, mais especialmente, a fé legada pelos primeiros missionários que foram ao Brasil, consolidou a convicção de que se criou as bases de um recíproco entendimento, que deve continuar servindo de exemplo para muitas nações afora. “Rezo – como já vos disse – para que a um mundo freqüentemente dominado pelas contendas entre povos e raças, o Brasil possa dar... uma lição essencial, a da verdadeira integração” (Homilia durante a Missa para as Famílias, Rio de Janeiro, 1 de Julho de 1980, 2).

Como compreenderão, o respeito pelas diversas culturas e a correspondente inculturação evangélica aborda questões que merecem um destaque a parte. Não é possível, contudo, descurar aqui a consideração da cultura afro-brasileira no quadro mais amplo da evangelização “ad gentes”, e que hoje é bem presente na reflexão teológica e pastoral de vossas Igrejas particulares em terras do Brasil. Trata-se da delicada questão da aculturação, de modo especial dos ritos litúrgicos, ao vocabulário, às expressões musicais e corporais típicas da cultura afro-brasileira. Sobre este tema tão complexo gostaria de tecer algumas considerações.

Primeiramente, convém perguntar-se acerca da conveniência de dar ao culto litúrgico uma feição afro-brasileira, como tenho constatado em algumas circunstâncias, onde o elemento negro é bastante acentuado. Todos sabemos que a interação dos costumes e tradições dos brancos, com a maneira de ser dos escravos negros vindos da África, trouxe ao vocabulário, à sintaxe e à prosódia da língua portuguesa falada no Brasil uma feição própria. A presença de elementos negros na arte sacra barroca do período colonial, que deixou tão belos monumentos da arquitetura e escultura religiosa, na música sacra e profana e nos festejos da religiosidade popular, marcou de modo inconfundível as expressões culturais mais autênticas desta sociedade multirracial que é o Brasil. Nesta mesma história já se mostram presentes formas válidas de inculturação, que, sem trair a verdade da fé e da revelação cristãs, souberam incorporar a estes legítimos valores e expressões da cultura popular que, dessa forma, eram evangelizados.

Salta, porém, à vista de que se estaria distanciando da finalidade específica da evangelização, acentuar um destes elementos formadores da cultura brasileira, isolá-lo deste processo interativo tão enriquecedor, de modo quase a se tornar necessária a criação de uma nova liturgia própria para as pessoas de raça negra. Mais ainda, quando se pretende dar a um tal rito litúrgico uma apresentação externa e uma estruturação – tanto nas vestes, como na linguagem, no canto, nas cerimônias e objetos litúrgicos – que acabam por assumir elementos provindos dos assim chamados cultos afro-brasileiros, sem a rigorosa aplicação de um discernimento sério e profundo acerca da sua compatibilidade com a Verdade revelada por Jesus Cristo. Assim, por exemplo, é preciso manter uma adequada e prudente vigilância em certos ritos que inspiram a aproximação do augusto Mistério Trinitário ao panteão dos espíritos e divindades dos cultos africanos, chegando-se mesmo, em certos casos, a modificar as fórmulas sacramentais em sua referência trinitária; mais ainda, deve-se assinalar, corrigindo oportunamente, a introdução no rito sacramental católico – a Santa Missa, mas também em outros sacramentos – de ritos, cantos e objetos pertencentes explicitamente ao universo dos cultos afro-brasileiros. Faz-se necessária e urgente uma corajosa vigilância dos Bispos, para a solerte e imediata correção de tais excessos, sempre que eles se manifestem.

A Igreja Católica tributa um sincero respeito em relação aos cultos afro-brasileiros, mas considera nocivo o relativismo concreto de uma prática entre ambos ou de uma mistura entre eles, como se tivessem o mesmo valor, pondo em perigo a identidade da fé cristã católica. Ela sente-se no dever de afirmar que o sincretismo é danoso ali onde a verdade do rito cristão e a expressão da fé podem facilmente ser comprometidas aos olhos do fiéis, em detrimento de uma autêntica evangelização.

A vós Bispos, em diálogo constante e confiante com a Sé Apostólica, foi entregue a responsabilidade de saber escolher os tempos e os modos de promover a inculturação da fé, através das celebrações litúrgicas que a exprimem e sustentam, conscientes que os tempos e os modos requerem uma reflexão paciente e rigorosa, baseada sobre uma autêntica teologia destinada a uma renovação espiritual, que se inspire em princípios católicos sobre a inculturação.

Não podemos, porém, falar da renovação espiritual das vossas Dioceses, sem examinarmos com atenção também o estado da fé e da participação na Eucaristia, demonstrado pelos vossos fiéis; a Eucaristia é a fonte, o centro e o ápice da vida da Igreja (cf. Lumen Gentium LG 11, Catecismo da Igreja Católica, nn. 1324-1327). O “dom sincero” de Si mesmo, feito por Jesus e oferecido na Cruz, é tornado presente e aplicado na Eucaristia, e os presbíteros “unem as preces dos fiéis ao sacrifício da Cabeça e, no sacrifício da Missa, representam e aplicam o único sacrifício do Novo Testamento”(Lumen Gentium LG 28). Portanto, administrar este grande mistério é um dos maiores privilégios e responsabilidades do vosso múnus episcopal. Infelizmente, às vezes pode acontecer que a Liturgia seja alterada, de maneira séria, por omissões ou acréscimos ilícitos aos textos aprovados. Nestas circunstâncias, “compete aos Bispos extirpar estes abusos, pois a regulamentação da Liturgia depende do Bispo, dentro dos limites traçados pelo direito” (Carta Apostólica Vigesimus quintus annus, 13). A relação verdadeira entre as celebrações do Mistério Pascal e uma determinada cultura se concretiza no momento em que ela permite ao Evangelho penetrar na própria vida da cultura, “superando os elementos culturais incompatíveis com a fé e com a vida cristã e elevando os valores ao mistério da salvação que provém de Cristo”(Pastores dabo vobis PDV 55).

A tarefa de adaptação e de inculturação é importante para o futuro do renovamento da vida litúrgica. A Constituição litúrgica anunciou o princípio (cf. Sacrosanctum Concilium SC 37-40) e deu as primeiras indicações de procedimento. A Instrução sobre a “Liturgia Romana e a inculturação” aprofundou o tema, precisou os procedimentos que devem ser seguidos por parte das Conferências Episcopais, à luz do Direito Canônico e da experiência do primeiro quarto de século depois da reforma litúrgica (cf. Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, Varietates legitimae, nn. 62 e 65-68).

6. Continuando o esforço necessário para enraizar a liturgia romana nas várias culturas, os bispos, assistidos por pessoas competentes e fiéis às orientações do Magistério que dizem respeito à disciplina da Igreja universal, devem cuidar em conservar sempre o “verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia, no respeito à unidade substancial do Rito romano, expressa nos livros litúrgicos” (Carta Apostólica Vigesimus quintus annus, 16).

Seja-me permitido propor-vos alguns elementos de reflexão antes de tudo acerca do “verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia”, e depois acerca do sentido da frase: “no respeito à unidade substancial do Rito romano”, expressa nos livros litúrgicos (Sacrosanctum Concilium ).

Com referência ao “espírito da Liturgia” (Sacrosanctum Concilium SC 37) não podemos duvidar que o Concílio Vaticano II entendia referir-se a uma realidade sempre presente na Igreja, mesmo se nem sempre vivida com igual acentuação. Uma coisa são as acentuações vitais que ao interno de um mesmo “espírito” a Igreja Ocidental e a Igreja Oriental, nas várias épocas culturais, sublinharam e favoreceram no Povo de Deus, e outra é o “espírito da Liturgia” no seu núcleo fundante e original. Este “espírito” não deriva das formas exteriores, que, na maior parte, são provenientes das culturas nas quais o Cristianismo se difundia, mas é subjacente a elas como aquilo que lhes confere o ser, como instrumento e manifestação exterior de convergência da ação de Cristo e de sua Igreja a nível de graça invisível.

É preciso recordar, além disso, que os Padres Conciliares, quando se referiam ao “verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia”, tinham presente quanto a Constituição sobre a Sagrada Liturgia enuncia no seu proêmio (Sacrosanctum Concilium SC 1-4) e na primeira parte do primeiro capítulo (Sacrosanctum Concilium SC 5-13).

Se a Reforma litúrgica criou as condições e os meios para fomentar no povo de Deus o restabelecimento de um mais profundo sentido da “Igreja em oração” e da “oração da Igreja”, muito ainda resta por fazer para alcançar aquele objetivo, que sensibilize todos os fiéis de qualquer cultura. Muitos, talvez, se lançaram com ardor no novo, esquecendo-se do antigo. Outros permaneceram ligados às formas exteriores colocando em dúvida a necessidade de renovação, que era bem mais evidente e não podia se confundir com as desvios reprovados não somente pela autoridade competente, mas também pela maioria dos fiéis.

Se a Liturgia não levasse os fiéis a manifestarem com a vida o mistério salvífico de Cristo, Deus e Homem, e a genuína natureza da verdadeira Igreja, onde aquilo que é “humano se ordene ao divino e a ele se subordine, o visível ao invisível, a ação à contemplação e o presente à cidade futura que buscamos”(Sacrosanctum Concilium SC 2), não se poderia falar de atuação do “verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia”.

Devemos firmemente compreender que se é nossa importante tarefa investigar as formas em que é possível e obrigatório inculturar a liturgia, mais importante ainda e igualmente obrigatório é que a obra redentora de Cristo que está presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas, seja percebida, atuada e vivida em cada povo e língua, para a glória de Deus e a santificação dos homens (cf. Sacrosanctum Concilium SC 7).

É vosso dever guiar o povo que vos foi confiado que, como todos os povos do Continente Latino-Americano, tem necessidade de sinais expressivos de canto, de sentimento e devoção externa, para conjugar o verdadeiro espírito litúrgico com a sua verdadeira religiosidade, com a sua alma mais profunda. Não se devem opor as duas realidades, mas convém assumi-las e fazer que se realizem uma a serviço da outra.

7. O Concílio Vaticano II, usando a expressão “servata substantiali unitate Ritus romani”(Sacrosanctum Concilium SC 38) , queria sublinhar que a inculturação, que está em causa, reentra, quanto à parte normativa, naquilo que se refere só ao Rito romano, e que dele deveria continuar a fazer parte cada nova forma adaptada e inculturada segundo o direito e com a aprovação da Sé Apostólica. Em conformidade com o Concílio, na Carta Apostólica “Vicesimus Quintus Annus” (n. 16) retomei aquele texto agregando a referência aos livros litúrgicos. Em seguida, a Instrução sobre “A Liturgia romana e a inculturação” retomou o tema e oportunamente indicou como a atenção à substancial unidade do Rito romano entra, com pleno direito, entre os “Principia generalia” que devem guiar cada investigação e cada ação de inculturar o Rito romano, junto com a finalidade mesma da inculturação e da relação com a autoridade competente (cf. Instrução Varietates legitiamae, nn. 34-36 e 70).

Como no âmbito de uma Igreja local, além das diferenças existentes no povo de Deus, entre membros da Hierarquia e leigos, entre grupos e culturas, é sempre a Liturgia que deve manifestar e unir uma Igreja local (cf. Sacrosanctum Concilium SC 41), assim, e com maior razão, as Igrejas nascidas da transmissão apostólica da tradição romana, não obstante a variedade de línguas e de culturas, é na Liturgia que devem sentir-se e encontrar-se unidas. A necessidade e a exigência de unidade, que é uma das notas da Igreja, deve continuar a ser ainda mais presente hoje, no âmbito do Rito romano, para sustentar a interna vida da Igreja e sua relação com o mundo a evangelizar.

Na obra da inculturação de certas formas consideradas necessárias e úteis, não se trata de inspirar-se em formas que já existiram ou existentes em outros Ritos, que a Igreja toda respeita e venera, como parte do próprio patrimônio. É na experiência religiosa e como parte da cultura de um povo que devem ser buscadas as formas expressivas a harmonizar com o Rito romano e no âmbito do seu gênio peculiar. O resultado desta fusão deveria ser não uma simples e externa justaposição de elementos, mas uma síntese nova, sempre reconhecível como parte do Rito que foi levado com a evangelização.

O Rito romano depois da reforma desejada pelo Concílio, tem nas suas expressões litúrgicas uma vitalidade capaz de levar em consideração a sensibilidade e a expressividade das várias culturas, mesmo aquelas mais distantes da área em que originariamente nasceu e se desenvolveu. Se não se pode aceitar tudo de cada cultura é porque nas expressões culturais se associa, freqüentemente, uma forma de sincretismo incompatível com a mensagem cristã e com o verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia. Isto quer dizer que, respeitada a finalidade e a estrutura interna de cada celebração litúrgica, útil para canalizar as formas e as expressões no âmbito dos divinos mistérios, deve-se descartar ou não assumir aquelas formas e aqueles modos rituais que não correspondam à natureza do mistério que se celebra, mormente quando relacionados à Encarnação, Paixão e Morte de Jesus Cristo, para não citar outros Mistérios da Redenção. Se de um lado não seria respeitoso para uma determinada cultura manter nos ritos litúrgicos expressões que sejam abertamente contrastantes com as tradições culturais dos fiéis, poderia igualmente acontecer não ser respeitoso para a substancial unidade do Rito romano imprimir na sua inculturação uma dinâmica diversa capaz, inclusive, de ferir a sensibilidade religiosa do povo cristão.

Os votos que vos faço, Bispos do Brasil, é que encontreis em vossos fiéis a colaboração construtiva para serdes sustentados no cumprimento da responsabilidade que vos foi confiada.

Abrir gradativamente as portas a uma inculturação do Rito romano no Brasil é servir à plenitude, à vitalidade, à comunitariedade da participação dos fiéis às celebrações litúrgicas (cf. Sacrosanctum Concilium SC 23) de maneira que sempre mais sejam edificados como templo santo do Senhor, morada do Espírito Santo até a maturidade em Cristo. A Sé Apostólica cônscia de dever assistir-vos e confirmar-vos na vossa ação pastoral está disposta a colaborar com espírito confiante, partilhando convosco a responsabilidade.

8. Prezados Irmãos no Episcopado, estamos, aos poucos, chegando ao fim do Segundo Milênio da Era Cristã. O clima de preparativos para o grande Jubileu da Encarnação redentora de nosso Senhor faz-se sempre mais intenso. Neste sentido, conta acima de tudo, nos diversificados momentos da vida pastoral, fortificar e suscitar um novo ardor de santidade (cf. Redemptoris Missio RMi 90) nos sacerdotes, nos religiosos, nas religiosas e nos leigos. Como Pastores segundo o coração de Deus (cf. Jer Jr 3,15), conduzi os fiéis católicos até as fontes da vida: “E a vida eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo (Jn 17,3), a Quem enviaste”.

Ao invocar a intercessão de Nossa Senhora da Conceição Aparecida para que guie e ilumine, com a sua proteção materna, todas as pessoas que estão sob o vosso cuidado pastoral, vos concedo do íntimo do coração a minha Bênção Apostólica.



                                                               Outubro de 1995


Discursos João Paulo II 1995 - Terça-feira, 11 de Julho de 1995