AUDIÊNCIAS 1997

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 19 de Março de 1997

São José ajude a «dar uma alma ao mundo do trabalho»



Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. A solenidade hodierna convida-nos a contemplar a particular experiência de fé de São José, ao lado de Maria e de Jesus.

A Igreja propõe José à veneração dos fiéis como o crente plenamente disponível à vontade divina, como o homem capaz de um amor casto e sublime para com a sua esposa, Maria, e como o educador pronto a servir no menino Jesus o misterioso projecto de Deus.

A tradição, em particular, viu nele o trabalhador. «Não é Ele o filho do carpinteiro? » (Mt 13,55), exclamam os habitantes de Nazaré diante dos prodígios operados por Jesus. Para eles, ele é sobretudo o carpinteiro da localidade, aquele que no trabalho se exprime a si mesmo, realizando-se diante de Deus no serviço aos irmãos. Também a comunidade cristã tem considerado exemplar a vicissitude de São José para todos aqueles que estão empenhados no vasto e complexo mundo do trabalho. Precisamente por isto a Igreja quis confiar à sua protecção celeste os trabalhadores, proclamando-o padroeiro deles.

2. A Igreja dirige-se ao mundo do trabalho contemplando a oficina de Nazaré, santificada pela presença de Jesus e de José. Ela quer promover a dignidade do homem perante os interrogativos e os problemas, os temores e as esperanças conexos com a actividade de trabalho, dimensão fundamental do existir humano. Ela sabe que sua tarefa é «fazer com que sejam sempre tidos presentes a dignidade e os direitos dos homens do trabalho, estigmatizar as situações em que são violados e contribuir para orientar as aludidas mutações, para que se torne realidade um progresso autêntico do homem e da sociedade» (Laborem exercens LE 1).

Perante as insídias presentes em certas manifestações da cultura e da economia do nosso tempo, a Igreja não cessa de anunciar a grandeza do homem, imagem de Deus, e o seu primado na

criação. Realiza essa missão principalmente através da doutrina social que, «por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização»; é de facto doutrina que «anuncia Deus e o mistério de salvação (em Cristo) a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz se ocupa dos direitos humanos» (Centesimus annus, CA 54).

A Igreja recorda a quantos tentam afirmar o predomínio da técnica, reduzindo o homem a «mercadoria» ou instrumento de produção, que «o sujeito próprio do trabalho permanece o homem», pois no plano divino «o trabalho é “para o homem”, e não o homem “para o trabalho”» (Laborem exercens LE 5-6).

Pelo mesmo motivo, ela contrasta além disso as pretensões do capitalismo, proclamando «o princípio da prioridade do trabalho em relação ao capital», pois a actividade humana é «sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o capital, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento, ou causa instrumental» do processo de produção (Ibid., 12).

3. Estes princípios, enquanto reafirmam a condenação para qualquer forma de alienação na actividade humana, resultam particularmente actuais diante do grave problema do desemprego, que hoje investe milhões de pessoas. Eles revelam no direito ao trabalho a moderna garantia da dignidade do homem que, sem um trabalho digno, é privado das condições suficientes para o desenvolvimento adequado da sua dimensão pessoal e social. O desemprego, com efeito, cria em quem dele é vítima uma grave situação de marginalização e um penoso estado de humilhação.

O direito ao trabalho deve, portanto, conjugar-se com o direito à liberdade de escolha da própria actividade. Estas prerrogativas, contudo, não devem ser entendidas em sentido individualista, mas em referência à vocação ao serviço e à colaboração com os outros. A liberdade não se exerce moralmente sem considerar a relação e a reciprocidade com outras liberdades. Estas devem ser entendidas não tanto como limite, mas como condições do desenvolvimento da liberdade individual, e como exercício do dever de contribuir para o crescimento de toda a sociedade.

Por conseguinte, o trabalho é um direito, antes de tudo porque é um dever, que nasce das relações sociais do homem. Ele exprime a vocação do homem ao serviço e à solidariedade.

4. A figura de São José evoca a urgente necessidade de dar uma alma ao mundo do trabalho. A sua vida, marcada pela escuta de Deus e pela familiaridade com Cristo, apresenta-se como síntese harmoniosa de fé e de vida, de auto-realização pessoal e de amor pelos irmãos, de empenho quotidiano e de confiança no futuro.

O seu testemunho recorda a quantos trabalham que, só acolhendo a primazia de Deus e a luz que provém da cruz e da ressurreição de Cristo, eles poderão realizar as condições de um trabalho digno do homem e encontrar na fadiga quotidiana «um vislumbre da vida nova, do novo bem, um como que anúncio dos “céus novos e da nova terra”, os quais são participados pelo homem e pelo mundo, precisamente mediante o que há de penoso no trabalho» (Ibid., 27).

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs de língua portuguesa!

Saúdo cordialmente os visitantes e peregrinos, provenientes sobretudo de Portugal: que a vinda a Roma vos fortaleça na fé e avive no vosso ânimo a coragem para testemunhar a grandeza do amor de Jesus Cristo, vencedor do mal, pelo Seu sofrimento, e ressuscitado para ser a nossa esperança e a nossa paz.

A todos desejo uma feliz e santa Páscoa!

De todo o coração saúdo os peregrinos de expressão francesa, sobretudo um grupo de sacerdotes da região de Montreal, com o Cardeal Jean-Claude Turcotte, seu Arcebispo. Saúdo de igual modo os dirigentes da associação francesa para o décimo quinto centenário, o grupo de Sainte-Marie de Neuilly e todos os jovens aqui presentes, aos quais desejo que entrem bem na Grande Semana que nos conduzirá até à Páscoa.

A cada um de vós, meus caros amigos, dou do íntimo do coração a minha Bênção Apostólica.

Quero saudar os visitantes de língua inglesa, especialmente os grupos de peregrinos da Coreia, das Filipinas, do Canadá e dos Estados Unidos. Agradeço ao «Catholic Central Concert Choir», do Canadá, o seu louvor a Deus através do cântico. Sobre todos vós invoco, do íntimo do coração, a alegria e a paz de Jesus Cristo, nosso Salvador.

Saúdo com afecto os peregrinos de língua espanhola. Em particular a Associação «Mensajeros de la Paz», aos quais exorto vivamente a continuar a sua meritória obra de prover do tão necessário ambiente familiar as crianças, jovens e idosos que dele carecem; saúdo também o Coral «Verge del Lliri» e os diversos grupos de colégios provenientes da Espanha. A todas as pessoas e grupos vindos da Espanha e da América Latina, concedo de coração a Bênção Apostólica. Muito obrigado!

Dirijo cordiais boas-vindas a todos os peregrinos de língua italiana, em particular à delegação nacional do «Facho Beneditino» da paz. Faço votos por que esta iniciativa, animada pelo mote «Pro Europa Una», na recordação de São Bento, Padroeiro da Europa, contribua para formar no nosso continente uma consciência atenta à solidariedade e à cultura da paz.

Saúdo o grupo de Oficiais, Suboficiais e Alunos do Centro Militar Veterinário de Grosseto, agradecendo-lhes a visita.

Saúdo, por fim os Jovens, os Doentes e os jovens Casais.

Caríssimos, a liturgia hodierna apresenta- nos em São José o homem sempre disponível a cumprir a vontade de Deus.

Exorto-vos a imitá-lo, caros jovens, para que possais corresponder generosamente aos desejos do Senhor e preparar- vos, com seriedade e confiança, para servir a vida com alegria.

São José vos ajude, queridos doentes, a acolher no sofrimento a ocasião para cooperardes no amor de Deus que conduz o homem à salvação.

E para vós, prezados jovens esposos, formulo os votos de um amor casto e fecundo, que se nutre da escuta de Deus e da oração.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 26 de Março de 1997

Uma peregrinação a Jerusalém com a mente e o coração



1. «Vexilla Regis prodeunt / fulget Crucis mysterium... ».

Estamos na Semana Santa, dias em que veneramos o mistério da Cruz. A Igreja proclama com imensa comoção o antigo hino litúrgico, transmitido de geração em geração, e repetido nos séculos pelos fiéis.

A «Semana Santa», centro do Ano Litúrgico, faz-nos reviver os acontecimentos fundamentais da Redenção, ligados à morte e ressurreição de Jesus. São dias comoventes e tocantes, repletos de uma especial atmosfera que investe todos os cristãos. Dias de silêncio interior, de oração intensa e de profunda meditação sobre os eventos extraordinários que mudaram a história da humanidade e dão valor autêntico à nossa existência.

Hoje, na vigília do Tríduo Sagrado, desejo dirigir-me juntamente convosco em peregrinação, com a mente e o coração, a Jerusalém. A própria liturgia dos próximos dias guiar-nos-á, introduzir- nos-á no Cenáculo, levar-nos-á ao Calvário e por fim diante do Sepulcro novo escavado na rocha.

2. Na Quinta-Feira Santa encontraremos pão e vinho no Cenáculo de Jerusalém. Este dia leva-nos de novo à instituição da Eucaristia, dom supremo do amor de Deus no Seu projecto de redenção. O apóstolo Paulo, ao escrever aos Coríntios nos anos 53-56, confirmava os primeiros cristãos na verdade do «mistério eucarístico», comunicando-lhes quanto ele próprio aprendera: «O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em Minha memória”. Do mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice e disse: “Este cálice é a Nova Aliança no Meu sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em Minha memória”» (1Co 11,23-26).

Estas palavras manifestam com clareza a intenção de Cristo: sob as espécies do pão e do vinho Ele torna-Se presente com o Seu corpo «entregue» e com o Seu sangue «derramado» como sacrifício da Nova Aliança. Ao mesmo tempo, constitui os Apóstolos e os seus sucessores ministros deste Sacramento, entregue à Sua Igreja como prova suprema do Seu amor.

Eis o conteúdo essencial da Quinta- Feira Santa. O Filho de Deus nos conceda viver este dia segundo as palavras da bonita oração bizantina: «Ó Filho de Deus, fazei-me hoje partícipe da Vossa Ceia mística: não desvendarei o Mistério aos Vossos inimigos, nem Vos darei o beijo de Judas, mas como o bom ladrão confessar-Vos-ei: recordai de mim, ó Senhor, quando estiverdes no Vosso Reino! » (Liturgia de São Basílio, da Quinta- Feira Santa, Comunhão).

3. Na Sexta-Feira Santa contemplaremos a Cruz no Calvário: «Ecce lignum Crucis...», «Eis o madeiro da Cruz, no qual foi suspenso Cristo, Salvador do mundo». Reviveremos os «mistérios dolorosos » da paixão e morte de Jesus. Diante do Crucificado recebem relevância dramática as palavras por Ele pronunciadas durante a Última Ceia: «Este é o Meu sangue, sangue da aliança, que é derramado por muitos, em remissão dos pecados» (cf. Mc Mc 14,24 Mt 26,28 Lc 22,20). Jesus quis oferecer a Sua vida em sacrifício pela remissão dos pecados da humanidade, escolhendo para isto a morte mais cruel e humilhante, a crucifixão. Assim como diante da Eucaristia, de igual modo diante da paixão e morte de Jesus na Cruz o mistério faz-se insondável para a razão humana. A subida ao Calvário foi um sofrimento indescritível, que resultou no terrível suplício da crucifixão. Que mistério! Deus, que Se faz homem, sofre para salvar o homem, assumindo sobre Si toda a tragédia da humanidade.

A Sexta-Feira Santa faz-nos pensar na contínua sucessão de provas na história, entre as quais não podemos esquecer as tragédias dos nossos dias. Como não recordar, a respeito disso, as vicissitudes dramáticas que ainda hoje enchem de sangue algumas nações do mundo? A paixão do Senhor continua no sofrimento dos homens. Continua, de modo particular, no martírio de sacerdotes, religiosas, religiosos e leigos empenhados, em primeira linha, no anúncio do Evangelho. Precisamente anteontem celebrámos a «jornada de oração e de jejum pelos missionários mártires»: a Comunidade cristã é convidada a meditar sobre esses testemunhos heróicos e a recordar na oração estes irmãos e irmãs que, com a vida, pagaram o preço da sua fidelidade a Cristo.

O cristão deve aprender a levar a sua cruz com humildade, confiança e abandono à vontade de Deus, encontrando apoio e conforto, no meio das tribulações da vida, na Cruz de Cristo. Que o Pai nos conceda, em cada momento difícil, poder orar: «Adoramus Te Christe, et benedicimus tibi...», «Adoramo-Vos, ó Cristo, e Vos bendizemos, porque com a Vossa santa Cruz redimistes o mundo».

4. E depois da expectativa do Sábado Santo, experimentaremos a alegria da Santa Páscoa. O Tríduo Sagrado conclui- se no radioso «mistério glorioso» da ressurreição de Cristo. Ele predissera: «No terceiro dia ressuscitarei». É a vitória definitiva da vida sobre a morte.

A mais solene e maior das celebrações cristãs, a Vigília pascal, acontecerá de noite. Uma noite de espera... rica de luz: a noite do fogo benzido, a noite da água baptismal, a noite do Baptismo, da Crisma e da Eucaristia. Noite de Páscoa, de passagem: a passagem de Cristo da morte à vida; a nossa passagem da escravidão à liberdade dos filhos de Deus. O Espírito Santo nos conceda a exultação das discípulas do Senhor, que — como é evidenciado pela liturgia bizantina — disseram aos Apóstolos: «A morte foi derrotada; Cristo Deus ressuscitou, transmitindo ao mundo a Sua grande misericórdia!» (Liturgia bizantina, Tropário do Sábado Santo, tom IV).

Acompanhe-nos neste itinerário espiritual a Virgem Santíssima, Ela que acompanhou Jesus na Sua paixão e esteve presente aos pés da Cruz na Sua morte. Introduza-nos Maria no mistério pascal, para que com Ela possamos experimentar a alegria e a paz da Páscoa.



                                                                            Abril de 1997

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 2 de Abril de 1997

Junto da Cruz, Maria é partícipe no drama da Redenção

Caríssimos Irmãos e Irmãs:


1. Regina caeli laetare, alleluia!

Assim canta a Igreja neste tempo de Páscoa, convidando os fiéis a unirem-se ao júbilo espiritual de Maria, Mãe do Ressuscitado. A alegria da Virgem pela ressurreição de Cristo é ainda maior se se considera a sua íntima participação na vida inteira de Jesus.

Maria, aceitando com plena disponibilidade a palavra do anjo Gabriel, que lhe anunciava que se tornaria a Mãe do Messias, iniciava a sua participação no drama da redenção. O seu envolvimento no sacrifício do Filho, revelado por Simeão durante a apresentação no Templo, continua não só no episódio da perda e do reencontro de Jesus aos doze anos, mas também durante toda a Sua vida pública.

Todavia, a associação da Virgem à missão de Cristo atinge o ápice em Jerusalém, no momento da paixão e morte do Redentor. Como atesta o quarto Evangelho, Ela naqueles dias encontra-se na Cidade Santa, provavelmente para a celebração da Páscoa hebraica.

2. O Concílio põe em relevo a dimensão profunda da presença da Virgem no Calvário, recordando que Ela «manteve fielmente a união com seu Filho até à cruz» (Lumen gentium LG 58), e faz presente que essa união «na obra da salvação se manifesta desde a conceição virginal de Cristo até à Sua morte» (ibid., 57).

Com o olhar iluminado pelo fulgor da ressurreição, detenhamo-nos a considerar a adesão da Mãe à paixão redentora do Filho, que se realiza na participação no Seu sofrimento. Voltemos de novo, mas já na perspectiva da ressurreição, aos pés da cruz, onde a Mãe «padeceu acerbamente com o seu Filho único e se associou com coração de mãe ao Seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima que d’Ela nascera» (ibid., 58).

Com estas palavras o Concílio recorda- nos a «compaixão de Maria», em cujo coração se repercute tudo aquilo que Jesus sofre na alma e no corpo, sublinhando a sua vontade de participar no sacrifício redentor e de unir o próprio sofrimento materno à oferenda sacerdotal do Filho.

No texto conciliar é posto, além disso, em evidência que o consentimento por Ela dado à imolação de Jesus não constitui uma aceitação passiva, mas um autêntico acto de amor, com o qual Ela oferece seu Filho como «vítima» de expiação pelos pecados da humanidade inteira.

A Lumen gentium põe, por fim, a Virgem em relação a Cristo, protagonista do evento redentor, especificando que ao associar-se «ao Seu sacrifício», Ela permanece subordinada ao seu divino Filho.

3. No quarto Evangelho, São João refere que «junto da cruz de Jesus estavam Sua mãe, a irmã de Sua mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria de Magdala » (19, 25). Com o verbo «estar», que literalmente significa «estar em pé», «estar erecta», o Evangelista pretende talvez apresentar a dignidade e a fortaleza manifestadas no sofrimento por Maria e pelas outras mulheres.

Em particular, o «estar em pé» da Virgem junto da cruz recorda a sua firmeza inquebrantável e a coragem extraordinária ao enfrentar os sofrimentos. No drama do Calvário, Maria é sustentada pela fé, que se revigorou no decurso dos eventos da sua existência e, sobretudo, durante a vida pública de Jesus. O Concílio recorda que «assim avançou a Virgem pelo caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à cruz» (Lumen gentium LG 58).

Aos insolentes insultos dirigidos ao Messias crucificado, Ela, compartilhando as Suas íntimas disposições, opõe a indulgência e o perdão, associando-se à súplica ao Pai: «Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Partícipe no sentimento de abandono à vontade do Pai, expresso pelas últimas palavras de Jesus na cruz: «Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito» (ibid., 23, 46), Ela oferece desse modo, como observa o Concílio, um consentimento de amor «à imolação da vítima que d’Ela nascera» (Lumen gentium LG 58).

4. Neste supremo «sim» de Maria resplandece a esperança confiante no misterioso futuro, iniciado com a morte do Filho crucificado. As expressões com que Jesus, no caminho rumo a Jerusalém, ensinava aos discípulos «que o Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas, e ser morto, e ressuscitar depois de três dias» (Mc 8,31), ressoam-lhe no coração na hora dramática do Calvário, suscitando a expectativa e o desejo da ressurreição.

A esperança de Maria aos pés da cruz encerra uma luz mais forte do que a obscuridade que reina em muitos corações: diante do Sacrifício redentor, nasce em Maria a esperança da Igreja e da humanidade.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 9 de Abril de 1997

Maria, singular cooperadora da Redenção



Queridos Irmãos e Irmãs

1. «No decurso dos séculos a Igreja reflectiu sobre a cooperação de Maria na obra da salvação, aprofundando a análise da sua associação ao sacrifício redentor de Cristo. Já Santo Agostinho atribui à Virgem a qualificação de «cooperadora » da Redenção (cf. De Sancta Virginitate, 6; PL 40, 399), título que põe em relevo a acção conjunta e subordinada de Maria a Cristo Redentor.

Neste sentido se desenvolveu a reflexão, sobretudo a partir do século XV. Temeu- se que se quisesse pôr Maria no mesmo plano de Cristo. Na realidade, o ensinamento da Igreja sublinha com clareza a diferença entre a Mãe e o Filho na obra da salvação, ilustrando a subordinação da Virgem, enquanto cooperadora, ao único Redentor.

De resto, o apóstolo Paulo, quando afirma: «Somos cooperadores de Deus» (1Co 3,9), sustenta a efectiva possibilidade para o homem de cooperar com Deus. A colaboração dos crentes que, obviamente, exclui qualquer igualdade com Ele, exprime-se no anúncio do Evangelho e no contributo pessoal ao seu arraigamento no coração dos seres humanos.

2. Aplicado a Maria, o termo «cooperadora » assume, porém, um significado específico. A colaboração dos cristãos na salvação actua-se depois do evento do Calvário, cujos frutos eles se empenham em difundir mediante a oração e o sacrifício. O concurso de Maria, ao contrário, actuou-se durante o evento mesmo e a título de mãe; estende-se, portanto, à totalidade da obra salvífica de Cristo. Somente Ele esteve associada deste modo à oferta redentora, que mereceu a salvação de todos os homens. Em união com Cristo e submetida a Ele, colaborou para obter a graça da salvação à humanidade inteira.

O particular papel de cooperadora, desempenhado pela Virgem, tem como fundamento a sua maternidade divina. Dando à luz Aquele que estava destinado a realizar a redenção do homem, nutrindo- O, apresentando-O no templo, sofrendo com Ele que morria na Cruz, «cooperou de modo singular na obra do Salvador» (LG 61). Embora a chamada de Deus a colaborar na obra da salvação se refira a cada ser humano, a participação da Mãe do Salvador na Redenção da humanidade representa um facto único e irrepetível.

Não obstante a singularidade dessa condição, também Maria é destinatária da salvação. É a primeira remida e resgatada por Cristo, «da maneira mais sublime» na sua imaculada conceição (cf. Bula «Ineffabilis Deus», em Pio IX, Acta I, 605) e colmada pela graça do Espírito Santo.

3. Esta afirmação conduz-nos agora a perguntar-nos: qual é o significado desta singular cooperação de Maria no plano da salvação? Ele deve ser procurado numa particular intenção de Deus em relação à Mãe do Redentor, a qual em duas ocasiões solenes, isto é, em Caná e junto da Cruz, é chamada por Jesus com o título de «Mulher» (cf. Jo Jn 2,4 Jn 19,26). Maria, enquanto mulher, é associada à obra salvífica. Tendo criado o homem «varão e mulher» (cf. Gn Gn 1,27), o Senhor quer, também na Redenção, pôr ao lado do Novo Adão a Nova Eva. O casal dos progenitores empreendera a via do pecado; um novo casal, o Filho de Deus com a colaboração da Mãe, haveria de restabelecer o género humano na sua dignidade originária.

Maria, Nova Eva, torna-se assim ícone perfeito da Igreja. Ela, no desígnio divino, representa aos pés da Cruz a humanidade remida que, necessitada de salvação, se torna capaz de oferecer um contributo ao desenvolvimento da obra salvífica.

4. O Concílio tem bem presente esta doutrina e fá-la própria, ressaltando o contributo da Virgem Santíssima não só no nascimento do Redentor, mas também na vida do seu Corpo místico, ao longo dos séculos e até ao «escaton»: na Igreja Maria «cooperou» (cf. LG LG 53) e «coopera» (cf. LG LG 63) na obra da salvação. Ao ilustrar o mistério da Anunciação, o Concílio declara que a Virgem de Nazaré «abraçou de todo o coração o desígnio salvífico de Deus, se consagrou totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho, subordinada a Ele e juntamente com Ele, servindo pela graça de Deus omnipotente o mistério da Redenção» (LG 56).

O Vaticano II, além disso, apresenta Maria não só como a «mãe do Redentor », mas como «companheira generosa deveras excepcional», que coopera «de modo singular, com a sua obediência, fé, esperança e ardente caridade, na obra do Salvador». Recorda, além disso, que o fruto sublime desta cooperação é a maternidade universal: «É por esta razão nossa mãe na ordem da graça» (LG 61).

À Virgem Santa podemos, então, dirigir- nos com confiança, implorando-lhe o auxílio, na consciência do papel singular a Ela confiado por Deus, o papel de cooperadora da Redenção, por Ela exercido durante toda a vida e, de modo particular, aos pés da Cruz.



Saudações

Queridos Irmãos e Irmãs Amados peregrinos de língua portuguesa aqui presentes,

uma saudação afectuosa para todos vós, especialmente para o grupo de visitantes do Brasil e para as alunas do Colégio de Nossa Senhora do Alto, em Faro: desejo às vossas almas e às vossas comunidades a plenitude da alegria pascal, que o nosso Salvador — Jesus Cristo — nos trouxe ao regressar, vitorioso, de entre os mortos. Nada e ninguém nos pode separar de Cristo. Amai-O mais do que a vida; amai-O até à morte, certos de que a Vida venceu a morte. A minha Bênção vos acompanhe!

Saúdo cordialmente todos os peregrinos croatas, em particular vós, viúvas, que a recente e triste guerra na Croácia e na Bósnia-Herzegovina atingiu tão asperamente.

Com o auxílio de Deus, no próximo sábado irei em Visita pastoral a Sarajevo.Trata-se de uma das etapas da minha peregrinação pelas Igrejas locais, no contexto da preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000 (cf. Tertio millennio adveniente TMA 24). Como Sucessor de Pedro, vou confirmar na fé os nossos irmãos e irmãs dessa cidade que se tornou, num certo sentido, um triste símbolo das tragédias que atingiram a Europa no século XX. Esta Viagem apostólica torna-se também uma peregrinação de paz, em que se dá testemunho da solidariedade da Igreja para com os homens e os povos que sofrem.

Ao recomendar-me às vossas orações e àquela de toda a Igreja, concedo-vos de coração a Bênção apostólica.

Queridos peregrinos da Finlândia

Com a Páscoa, celebrámos a renovação do homem mediante a Ressurreição de Cristo. A vossa visita constitua um renovamento útil para o vosso caminho rumo à unidade.

Gostaria de dar as boas-vindas aos fiéis provenientes da Bélgica e dos Países Baixos, de maneira particular aos peregrinos da paróquia de São Barnabé em Haastrecht, vindos a Roma por ocasião do aniversário do Santuário «Maria ter Weghe» (Sancta Maria Viatrix).

Maria, Mãe do Senhor ressuscitado e Mãe da Igreja, seja a vossa guia nesta vida, acompanhando continuamente o vosso caminho de fé e caridade.

Encorajo-vos a perseverar na oração, para o bem da Igreja e do mundo. De coração vos concedo a Bênção apostólica. Louvado seja Jesus Cristo!

Agora, o meu pensamento dirige-se aos jovens, aos enfermos e aos jovens casais.Na catequese de hoje meditámos sobre a singular cooperação de Maria Santíssima na obra da Redenção.

Prezados jovens, dedicai as vossas vigorosas energias ao serviço do Evangelho: a vossa vida seja um «sim» a Deus e ao seu desígnio de amor; vós, estimados enfermos, cooperai no plano divino da salvação com a oferta quotidiana do vosso sofrimento; e vós, queridos jovens casais, sabei transmitir a força da Redenção na vossa vida conjugal e na missão de pais.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 16 de Abril de 1997

Em Sarajevo, cidade dos cemitérios,

a esperança é perdão e reconciliação



Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Sanctus Deus, Sanctus fortis, Sanctus immortalis — miserere nobis.

«Santo Deus, Santo forte, Santo imortal, tende piedade de nós!
Da peste, da fome e da guerra, libertai- nos, ó Senhor.
Da morte improvisa, libertai-nos, ó Senhor.
Como pecadores suplicamo-Vos, escutai- nos, ó Senhor.
Jesus, perdoai-nos.
Jesus, escutai-nos.
Jesus, tende piedade de nós.
Mãe, impetra. Mãe, implora. Mãe intercede por nós.
Todos vós, Santos e Santas de Deus, intercedei por nós!».

Estas invocações, queridas ao povo cristão, acompanharam-me durante a viagem a Sarajevo, a permanência nessa cidade e o encontro com a comunidade cristã que lá vive. Mencionou-se várias vezes a palavra «Cidade-símbolo». Com efeito, Sarajevo é símbolo das crises europeias. Ali teve início a primeira guerra mundial, em 1914 e, quase no termo do século, Sarajevo tornou-se de novo o emblema da dramática e absurda guerra que dividiu entre si os eslavos meridionais, as Nações da ex-Jugoslávia, causando ingentes vítimas humanas. Por isso, Sarajevo tornou-se a cidade dos cemitérios. Ao lado do estádio, onde pude presidir à celebração eucarística no domingo, 13 de Abril, são bem visíveis cemitérios com os túmulos ainda novos, das vítimas do recente conflito. Como esquecer que, nos anos passados, quase todos os dias nos eram mostradas imagens dolorosas de mães ou de filhos ajoelhados junto dos túmulos dos seus maridos, pais ou noivos Eis por que motivo em Sarajevo eu quis repetir com vigor aquilo que Paulo VI dissera muitas vezes, e eu mesmo repeti na Mensagem ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas: «Nunca mais a guerra! Nunca mais a guerra!» (Insegnamenti XVI/1, 1993, 564).

«Da peste, da fome e da guerra, libertai- nos, ó Senhor».

2. A intenção de visitar Sarajevo nasceu- me no coração há alguns anos, enquanto desencadeavam as operações bélicas naquela região. Eu desejava muito ir àquela cidade e prodigalizava-me de todas as formas para o poder fazer. Mas dado que, infelizmente, todos os esforços se demonstraram vãos, convoquei várias vezes em Roma, em Castel Gandolfo e em Assis, encontros de oração e de impetração, invocando a paz para aquelas martirizadas terras. Eu queria que essas ardentes orações demonstrassem aos nossos irmãos da Bósnia-Herzegovina cristãos ou muçulmanos, croatas ou sérvios — que não estavam sozinhos: nós estávamos com eles e estaríamos com eles até quando retornasse a paz na sua pátria. Os habitantes de Sarajevo recordaram-se de tudo isto e repetiram-mo várias vezes, durante a minha visita. Sabiam que a Igreja, não só na Europa mas no mundo inteiro, estava com eles; sabiam que não estavam abandonados. E isto constituiu-lhes sem dúvida uma significativa ajuda moral.

A perseverante solidariedade da Igreja demonstrou-se também pela elevação do Arcebispo de Sarajevo, o venerado Irmão Vinko Puljic, à dignidade cardinalícia, no Consistório de 1994.

Durante a visita, pude reiterar esta comunhão eclesial, encontrando-me também com outros Bispos da Bósnia- Herzegovina: D. Franjo Komarica, Bispo de Banja Luka, e D. Ratko Peric, Bispo de Mostar-Duvno.

Durante a guerra não cessaram as peregrinações de fiéis aos Santuários marianos da Bósnia-Herzegovina, bem como de muitas outras partes do mundo e, de maneira especial, a Loreto, para pedir à Mãe das Nações e Rainha da paz que intercedesse a fim de fazer retornar a paz a essa martirizada Região.

«Mãe, impetra. Mãe, implora. Mãe intercede por nós. Todos os Santos e Santas de Deus, intercedei por nós!».

3. E é precisamente sob o sinal desta incessante imploração de paz que se realizou toda a visita pastoral a Sarajevo, desde a tarde de sábado, 12 de Abril, até à tarde de domingo, dia 13. Cada etapa do programa quis salientar uma única e principal mensagem: a esperança. Desde a chegada ao aeroporto até ao encontro na Catedral com os Bispos, o clero e os religiosos, e até ao ápice da visita, que foi a Santa Missa celebrada com Cardeais, Bispos e Sacerdotes da Bósnia-Herzegovina, de outros Estados que surgiram da ex-Jugoslávia e de muitos Países da Europa e do mundo, desejei levar palavras de esperança aos habitantes da cidade e de todo o País. Depois da dolorosa experiência da guerra, que gerou injustiças e deixou um rasto de vinganças e ódio, a esperança adquire a dimensão concreta do perdão e da reconciliação. Exortei ao perdão e à reconciliação todas as comunidades étnicas e religiosas da Bósnia-Herzegovina, profundamente assinaladas pelo sofrimento, e rezei para que saibam dizer uns aos outros: «Perdoemos e peçamos perdão!». A vereda da reconciliação e do diálogo é a única que conduz a uma paz duradoura.

No encontro com o clero, não pude deixar de mencionar os particulares méritos da Ordem franciscana na evangelização desse País, especialmente sob o domínio dos otomanos e, ao mesmo tempo, detive-me a exortar todo o clero diocesano e religioso a uma colaboração solidária sob a guia dos próprios Bispos. Nas homilias e nos discursos, aprouveme agradecer àqueles que de várias formas sustentaram e continuam a sustentar as martirizadas populações da Bósnia- Herzegovina. Nem deixei de fazer apelo às instâncias políticas, económicas e militares da Europa, para que não se esqueçam das urgentes necessidades desse País, tão provado pela guerra.

Durante a Santa Missa no estádio de Sarajevo, a liturgia da Palavra do terceiro Domingo de Páscoa apresentou-nos Cristo, Advogado de todos nós junto de Deus. Sarajevo, Cristo é de maneira deveras especial o teu Advogado! É o vosso Advogado, todas as nações que outrora constituíeis a Federação jugoslava. É o teu Advogado, querido Continente europeu: é o vosso Advogado, povos da terra! A paz, que brota da reconciliação e do perdão, é solicitude essencial de cada crente. Este espírito de unidade, perdão e reconciliação à luz da fé revestiu de peculiar eloquência os encontros que pude ter com os representantes da Igreja ortodoxa e das Comunidades muçulmana e judaica. Às suas Organizações humanitárias — a Cáritas da Conferência Episcopal, a Merhamet muçulmana, a Dobrotvor servo-croata e a Benevolencjia judaica — particularmente beneméritas pela assistência às vítimas da guerra, eu quis conferir o Prémio internacional da Paz «João XXIII».

4. Enfim, desejo agradecer às Autoridades da Bósnia-Herzegovina o convite que me foi dirigido a visitar Sarajevo e quanto realizaram durante a minha visita. A seguir a um tratado de paz, a Bósnia- Herzegovina depende da autoridade de um particular triunvirato: governam três Presidentes, um dos quais é representante da Comunidade muçulmana, outro dos sérvios ortodoxos, enquanto que o terceiro representa a Comunidade católica, constituída especialmente por croatas. Foi-me concedido encontrar esse triunvirato e debater com cada um dos Presidentes sobre as questões de maior relevo para o País no momento actual. A todos exprimo os meus gratos sentimentos através do Presidente do triunvirato, Sua Ex.cia o Senhor Izetbegovic. Será nossa preocupação levar a cabo quanto durante os colóquios se desejou em relação à Sé Apostólica, para continuar a servir o bem desse povo tão duramente provado.

«Jesus, perdoai-nos. Jesus, escutai-nos.
Jesus, tende piedade de nós!
Mãe, impetra. Mãe, implora.
Mãe intercede por nós!
Todos vós, Santos e Santas de Deus, intercedei por nós!».

Com estas Súplicas concluo a minha reflexão, implorando a Deus mais uma vez: «Da peste, da fome e da guerra, libertai- nos, ó Senhor!».

Dêmos graças pela paz finalmente alcançada e peçamos que ela seja duradoura. Rezemos para que nunca mais se venha a ceder à perigosa tentação de resolver as importantes questões entre os homens e entre as nações através de um confronto armado. Oxalá isto só se verifique mediante a via do diálogo e do acordo.




AUDIÊNCIAS 1997