AUDIÊNCIAS 1997

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 22 de Outubro de 1997


Natureza do culto mariano




Queridos Irmãos e Irmãs,

1. O Concílio Vaticano II afirma que o culto da Bem-aventurada Virgem, «tal como sempre existiu na Igreja, embora inteiramente singular, difere essencialmente do culto de adoração, que se presta por igual ao Verbo encarnado, ao Pai e ao Espírito Santo, e favorece-o poderosamente » (LG 66).

Com estas palavras, a Constituição Lumen gentium reafirma as características do culto mariano. A veneração dos fiéis para com Maria, embora superior ao culto dirigido aos outros Santos, é entretanto inferior ao culto de adoração reservado a Deus, do qual difere essencialmente. Com o termo «adoração» é indicada a forma de culto que o homem presta a Deus, reconhecendo-O Criador e Senhor do universo. Iluminado pela revelação divina, o cristão adora o Pai «em espírito e verdade» (Jn 4,23). Com o Pai, adora Cristo, Verbo encarnado, exclamando com o apóstolo Tomé: «Meu Senhor e meu Deus!» (Jn 20,28). No mesmo acto de adoração inclui, por fim, o Espírito Santo, que «com o Pai e o Filho é adorado e glorificado» (DS 150), como recorda o Símbolo Niceno-Constantinopolitano.

Os fiéis, quando invocam Maria como «Mãe de Deus» e contemplam nela a mais alta dignidade conferida a uma criatura, não lhe atribuem, porém, um culto igual ao das Pessoas divinas. Há uma distância infinita entre o culto mariano e o que é dirigido à Trindade e ao Verbo encarnado.

Daí resulta que a mesma linguagem com a qual a comunidade cristã se dirige à Virgem, embora por vezes evocando os termos do culto a Deus, assume significado e valor inteiramente diversos. Assim, o amor que os crentes nutrem por Maria difere daquele que se deve a Deus: enquanto o Senhor deve ser amado sobre todas as coisas com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente (cf. Mt Mt 22,37), o sentimento que une os cristãos à Virgem repropõe no plano espiritual o afecto dos filhos para com a mãe.

2. Entre o culto mariano e o prestado a Deus há, porém, uma continuidade: com efeito, a honra devida a Maria está ordenada e conduz à adoração da Santíssima Trindade.

O Concílio recorda que a veneração dos cristãos à Virgem, «favorece poderosamente » o culto prestado ao Verbo encarnado, ao Pai e ao Espírito Santo. Acrescenta depois, em perspectiva cristológica, que «as várias formas de piedade para com a Mãe de Deus, aprovadas pela Igreja, dentro dos limites de sã e recta doutrina, segundo os diversos tempos e lugares e de acordo com a índole e o modo de ser dos fiéis, têm a virtude de fazer com que, honrando a mãe, melhor se conheça, ame e glorifique o Filho, por quem tudo existe (cf. Cl CL 1,15-16) e no qual “aprouve a Deus que residisse toda a plenitude” (CL 1,19), e também melhor se cumpram os seus mandamentos» (LG 66).

Desde os primórdios da Igreja o culto mariano é destinado a promover a adesão fiel a Cristo. Venerar a Mãe de Deus significa afirmar a divindade de Cristo. Com efeito, os Padres do Concílio de Éfeso, ao proclamarem Maria Theotokos, «Mãe de Deus», quiseram confirmar a fé em Cristo, verdadeiro Deus.

A mesma conclusão do relato do primeiro milagre de Jesus, obtido em Caná por intercessão de Maria, evidencia como a sua acção tem por fim a glorificação do Filho. De facto, o Evangelista diz: «Foi este o primeiro milagre de Jesus. Realizou-o em Caná da Galileia. Manifestou a Sua glória e os Seus discípulos acreditaram n’Ele» (Jn 2,11).

3. O culto mariano favorece além disso, em quem o pratica segundo o espírito da Igreja, a adoração do Pai e do Espírito Santo. Com efeito, ao reconhecer o valor da maternidade de Maria, os crentes descobrem nela uma manifestação especial da ternura de Deus Pai.

O mistério da Virgem Mãe põe em evidência a acção do Espírito Santo, que operou no seu seio a concepção do Filho e continuamente guiou a sua vida.

Os títulos de Consoladora, Advogada, Auxiliadora, atribuídos a Maria pela piedade do povo cristão, não ofuscam, mas exaltam a acção do Espírito Consolador e dispõem os crentes a beneficiar dos seus dons.

4. O Concílio recorda, por fim, que o culto mariano é «inteiramente singular» e sublinha a sua diferença a respeito da adoração de Deus e da veneração dos Santos.

Ele possui uma peculiaridade irrepetível porque se refere a uma pessoa singular, devido à sua perfeição pessoal e à sua missão.

Inteiramente excepcionais, com efeito, são os dons conferidos a Maria pelo amor divino, como a santidade imaculada, a maternidade divina, a associação à obra redentora e sobretudo ao sacrifício da Cruz.

O culto mariano exprime o louvor e o reconhecimento da Igreja por esses dons extraordinários. A Ela, que se tornou Mãe da Igreja e Mãe da humanidade, recorre o povo cristão, animado de confidência filial, para solicitar a sua intercessão materna e obter os bens necessários à vida terrena, em vista da bem-aventurança eterna.

Saudações

Amados peregrinos vindos do Brasil e demais países de língua portuguesa, saúdo- vos a todos, feliz e agradecido pela vossa visita que coincide com o dia aniversário do início do meu ministério petrino na Cátedra de Roma.

Que as vossas mãos em prece continuem a sustentar as minhas, à semelhança dos companheiros de Moisés que, só desse modo, pôde manter levantadas as suas mãos até à vitória de Deus! A minha bênção desça sobre vós e vossas famílias!

Acolho com prazer as pessoas de língua francesa presentes esta manhã. Na feliz lembrança da proclamação de Santa Teresa do Menino Jesus como Doutora da Igreja no domingo passado, desejo- lhes que progridam na vida espiritual, inspirando-se na mensagem desta grande Santa da França.

Cordiais boas-vindas aos peregrinos da Morávia.

Caríssimos, no domingo passado proclamei Santa Teresa do Menino Jesus Doutora da Igreja. A sua vida é um modelo do amor a Deus, expresso especialmente na oração contemplativa e no esforçar- se pela difusão do Evangelho no mundo inteiro. Pela sua intercessão o Senhor vos abençoe! Louvado seja Jesus Cristo!

Com afecto saúdo os peregrinos eslovacos de Bratislava e Prievidza, de Kamenec pod Vtáènikom e dos arredores de Luèenec, de Lopej, Dolná Lehota e de Bystrá.

Caros Irmãos e Irmãs, estou contente por terdes vindo em peregrinação a Roma. Agradeço-vos esta profissão da vossa fé. Que a fé, recebida no sacramento do Baptismo se irradie durante toda a vossa vida e vos torne semelhantes ao Senhor Jesus.

A fim de que esta peregrinação sirva para o fortalecimento da vossa fé, concedo-vos a minha Bênção Apostólica. Louvado seja Jesus Cristo!

Saúdo cordialmente os fiéis da Diocese de Hvar, juntamente com o seu Bispo, D. Slobodan Tambuk, vindos por ocasião do 850° aniversário da Diocese. Saúdo também os fiéis da cidade de Osijek, guiados pelo seu Bispo de Dakovo e Srijem, D. Marin Srakiae, assim como os outros peregrinos croatas. Bem-vindos!

Caríssimos, abri o vosso coração a Jesus Cristo a fim de que, com Ele, possais enfrentar a reconstrução da vossa Pátria, depois da dura prova do passado conflito. Realize-se à medida do homem, de maneira que todos estejam prontos a cruzar com disposição o limiar do Terceiro Milénio cristão.

Sobre todos vós aqui presentes e sobre as vossas dioceses invoco a Bênção de Deus.

Louvados sejam Jesus e Maria!

Saúdo com afecto os peregrinos de língua italiana, em particular os Irmãos no episcopado e no sacerdócio que participam na Assembleia Internacional da União Apostólica do Clero. De coração abençoo-os e também o serviço que prestam na Igreja.

Dirijo depois uma cordial saudação aos participantes na Mesa Redonda sobre a «Conversão das armas em instrumentos de paz», promovida pela Comissão da União de Católicos para uma Civilização do Amor, com a adesão do Pontifício Conselho «Cor Unum». Encorajo todos a prosseguirem no esforço, a fim de que os recursos gastos para as armas sejam destinados a projectos de autêntico desenvolvimento.

Por fim, o meu pensamento dirige-se, como de costume, aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais. Domingo passado, como sabeis, proclamei Doutora da Igreja Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face. A vós, caros jovens, proponho-a como autêntica mestra de fé e de vida evangélica; a vós, queridos doentes, como modelo de sofrimento cristão; e a vós, prezados jovens esposos, como exemplo de amor vivido na existência quotidiana.

A todos a minha Bênção.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 29 de Outubro de 1997

Devoção mariana e culto das imagens


Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. Depois de ter justificado doutrinalmente o culto da Bem-aventurada Virgem, o Concílio Vaticano II exorta todos os fiéis a tornarem-se os seus promotores: «Muito de caso pensado ensina o sagrado Concílio esta doutrina católica, e ao mesmo tempo recomenda a todos os filhos da Igreja que fomentem generosamente o culto da Santíssima Virgem, sobretudo o culto litúrgico, que tenham em grande estima as práticas e exercícios de piedade para com Ela, aprovado no decorrer dos séculos pelo magistério» (LG 67).

Com esta última afirmação os Padres conciliares, sem chegar a determinações particulares, queriam reafirmar a validade de algumas orações como o Rosário e o Angelus, caras à tradição do povo cristão e frequentemente encorajadas pelos Sumos Pontífices, como meios eficazes para alimentar a vida de fé e a devoção à Virgem.

2. O texto conciliar prossegue pedindo aos crentes que «mantenham



                                                                          Novembro de 1997

JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 5 de Novembro de 1997

A oração a Maria




Queridos Irmãos e Irmãs

1. No decorrer dos séculos o culto mariano conheceu um desenvolvimento ininterrupto. Ele viu florescer, ao lado das tradicionais festas litúrgicas dedicadas à Mãe do Senhor, inúmeras expressões de piedade, frequentemente aprovadas e encorajadas pelo Magistério da Igreja.

Muitas devoções e preces marianas constituem um prolongamento da própria liturgia e, às vezes, contribuíram para enriquecer a estrutura, como no caso do Ofício em honra da Bem-aventurada Virgem e de outras pias composições que começaram a fazer parte do Breviário.

A primeira invocação mariana conhecida remonta ao século III e inicia com as palavras: «Sob a tua protecção (Sub tuum praesidium) procuramos refúgio, Santa Mãe de Deus...». Contudo, desde o século XIV, a «Ave-Maria» é a oração à Virgem mais comum entre os cristãos.

Ao retomar as primeiras palavras dirigidas pelo Anjo a Maria, introduz os fiéis na contemplação do mistério da Encarnação. A palavra latina «Ave» traduz o vocábulo grego «xaire»: constitui um convite à alegria e poderia ser traduzido com o «Alegra-te». O hino oriental «Akathistos» reafirma com insistência este «alegra-te». Na Ave-Maria a Virgem é chamada «cheia de graça» e assim reconhecida na perfeição e na beleza da sua alma.

A expressão «o Senhor é convosco» revela a especial relação pessoal entre Deus e Maria, que se situa no grande desígnio da aliança de Deus com a humanidade inteira. Depois, a locução «Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus » afirma a actuação do desígnio divino no corpo virginal da Filha de Sião.

Ao invocarem «Santa Maria, Mãe de Deus», os cristãos pedem Àquela que por privilégio singular é a imaculada Mãe do Senhor: «Rogai por nós pecadores » e confiam-se a Ela no momento presente e na suprema hora da morte.

2. Também a tradicional oração do «Angelus» convida a meditar o mistério da Encarnação, exortando o cristão a tomar Maria como ponto de referência nos diversos momentos da própria jornada, para a imitar na sua disponibilidade a realizar o plano divino da salvação. Esta oração faz-nos como que reviver o grande evento da história da humanidade, a Encarnação, à qual cada «Ave-Maria » faz referência. Aqui estão o valor e o fascínio do «Angelus», tantas vezes expresso não só por teólogos e pastores, mas também por poetas e pintores.

Na devoção mariana o Rosário assumiu um lugar de relevo que, através da repetição das «Ave-Marias», leva a contemplar os mistérios da fé. Também esta oração simples, alimentando o amor do povo cristão para com a Mãe de Deus, orienta de maneira mais clara a prece mariana para a sua finalidade: a glorificação de Cristo.

O Papa Paulo VI, bem como os seus Predecessores, especialmente Leão XIII, Pio XII e João XXIII, teve em grande consideração a prática do Rosário e desejou a sua difusão nas famílias. Além disso, na Exortação Apostólica Marialis cultus, ilustrou-lhe a doutrina, recordando que se trata de «oração evangélica, centrada no mistério da Encarnação redentora», e reafirmando a sua «orientação profundamente cristológica» (n. 46).

A piedade popular acrescenta ao Rosário com frequência as ladainhas, entre as quais as mais conhecidas são habituais no Santuário de Loreto e, por isso, chamam-se «lauretanas».

Com invocações muito simples, elas ajudam a concentrar-se na pessoa de Maria, para colher a riqueza espiritual derramada n’Ela pelo amor do Pai.

3. Como demonstram a liturgia e a piedade cristãs, a Igreja sempre teve em grande estima o culto para com Maria, considerando-o indissoluvelmente ligado à fé em Cristo. Com efeito, ele encontra o seu fundamento no desígnio do Pai, na vontade do Salvador e na acção inspiradora do Paráclito.

Tendo recebido de Cristo a salvação e a graça, a Virgem é chamada a desempenhar um papel relevante na redenção da humanidade. Com a devoção mariana os cristãos reconhecem o valor da presença de Maria no caminho rumo à salvação, recorrendo a Ela para obter todo o género de graças. Eles sabem sobretudo que podem contar com a sua intercessão materna, para receber do Senhor quanto é necessário ao desenvolvimento da vida divina e à obtenção da salvação eterna.

Como atestam os numerosos títulos atribuídos à Virgem e as peregrinações ininterruptas aos santuários marianos, a confiança dos fiéis na Mãe de Jesus impele- os a invocá-la nas necessidades quotidianas.

Eles estão certos de que o seu coração materno não pode permanecer insensível às misérias materiais e espirituais dos seus filhos.

Deste modo a devoção à Mãe de Deus, estimulando à confiança e à espontaneidade, contribui para aplacar o clima da vida espiritual e faz com que os fiéis progridam na via exigente das bem-aventuranças.

4. Queremos, por fim, recordar que a devoção a Maria, dando relevo à dimensão humana da Encarnação, faz descobrir melhor o rosto de um Deus que compartilha as alegrias e os sofrimentos da humanidade, o «Deus connosco», que Ela concebeu como homem no seu seio puríssimo, gerado, assistido e seguido com amor inefável desde os dias de Nazaré e de Belém até àqueles da Cruz e da Ressurreição.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, o mês de Novembro lembra-nos o destino eterno que nos espera, e lembra- o de várias formas, sendo uma delas a recordação saudosa dos nossos queridos defuntos. Deixam-nos um dia com o pedido, tácito ou explícito, da nossa ajuda espiritual na sua travessia para o Além; sabeis que as nossas mãos em oração chegam até ao Céu, e assim podemos acompanhá-los até lá, consolidando neles e em nós mesmos as amarras que nos ligam à eternidade.

Com este apelo que se faz súplica pelos vossos familiares falecidos, de coração vos dou a minha Bênção Apostólica.

Que a vossa viagem de estudos, prezados professores da Finlândia, vos ajude na tarefa de educadores. Continuai o vosso trabalho para o bem comum, com a humildade indicada por Cristo. Deus vos abençoe, a vós e ao vosso país.

Dirijo-me ao grupo de peregrinos provenientes da Lituânia.

Caríssimos, saúdo-vos desejando uma boa permanência em Roma, para descobrir as riquezas tanto espirituais como materiais desta ilustre cidade. Esta peregrinação fortaleça a vossa fé e conduza a um autêntico amor do próximo, fundado sobre os sentimentos do respeito recíproco e da justiça. Deus abençoe todos vós e a vossa Pátria. Louvado seja Jesus Cristo!

Com particular afecto dirijo-me aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais. A Igreja convida-nos nestes dias a orar pelos nossos entes queridos, que já deixaram este mundo. A recordação deles leva-nos a meditar sobre o mistério da morte e da vida eterna.

Caros jovens, o pensamento da morte não seja para vós motivo de tristeza, mas estimule-vos antes a apreciar e valorizar plenamente a vossa juventude, orientando sempre o vosso espírito para os valores que não perecem. Para vós, queridos doentes, a esperança da ressurreição e a promessa da imortalidade futura sejam apoio no sofrimento e convido a sentir-vos unidos, de modo especial, no mistério da morte e ressurreição do Senhor. Prezados jovens esposos, a perspectiva eterna da vida vos estimule constantemente a projectar a vossa família, deixando-vos guiar por Cristo e pelo seu Evangelho.

A todos concedo uma especial Bênção.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 12 de Novembro de 1997

A Mãe da unidade e da esperança

Caríssimos Irmãos e Irmãs:


No início da Audiência geral, João Paulo II dirigiu aos fiéis presentes na Sala Paulo VI as seguintes palavras:

Devido à indisponibilidade da minha voz, deixo a leitura da catequese aos meus colaboradores.

1. Depois de ter ilustrado as relações entre Maria e a Igreja, o Concílio Vaticano II alegra-se em constatar que a Virgem é honrada também pelos cristãos que não pertencem à comunidade católica. «Muito alegra e consola este Sagrado Concílio saber que não falta, mesmo entre os irmãos separados, quem preste a honra devida à Mãe do Senhor e Salvador...» (LG 69 cf. Redemptoris Mater RMA 29-34). Justamente podemos dizer que a maternidade universal de Maria, mesmo que faça aparecer ainda mais dolorosas as divisões entre os cristãos, constitui um grande sinal de esperança para o caminho ecuménico.

Muitas Comunidades protestantes, por causa de uma particular concepção da graça e da eclesiologia, opuseram-se à doutrina e ao culto mariano, considerando a cooperação de Maria na obra da salvação prejudicial à única mediação de Cristo. Nesta perspectiva, o culto da Mãe faria concorrência, por assim dizer, à honra devida ao Filho.

2. Todavia, em tempos recentes, o aprofundamento do pensamento dos primeiros reformadores pôs em relevo posições mais abertas em relação à doutrina católica. Os escritos de Lutero manifestam, por exemplo, amor e veneração a Maria, exaltada como modelo de todas as virtudes: ele defende a excelsa santidade da Mãe de Deus e, às vezes, afirma o privilégio da Imaculada Conceição, compartilhando com outros Reformadores a fé na Virgindade perpétua de Maria.

O estudo do pensamento de Lutero e de Calvino, e também a análise de alguns textos de cristãos evangélicos, contribuíram para suscitar uma renovada atenção de alguns protestantes e anglicanos a diversos temas da doutrina mariológica. Alguns chegaram mesmo a posições muito próximas às dos católicos, no que se refere aos pontos fundamentais da doutrina sobre Maria, como por exemplo a maternidade divina, a virgindade, a santidade e a maternidade espiritual.

A preocupação de ressaltar o valor da presença da mulher na Igreja favorece o esforço por reconhecer o papel de Maria na história da salvação.

Todos estes dados constituem outros tantos motivos de esperança para o caminho ecuménico. O profundo desejo dos católicos seria de poder compartilhar, com todos os seus irmãos em Cristo, a alegria que deriva da presença de Maria na vida, segundo o Espírito.

3. O Concílio recorda, entre os irmãos que «prestam a honra devida à Mãe do Senhor e Salvador», especialmente os Orientais, «que acorrem com fervor e devoção para venerar a Mãe de Deus sempre Virgem» (LG 69).

Como resulta das numerosas manifestações de culto, a veneração por Maria representa um significativo elemento de comunhão entre católicos e ortodoxos.

Contudo, restam algumas divergências acerca dos dogmas da Imaculada Conceição e da Assunção, ainda que inicialmente essas verdades tenham sido ilustradas por alguns teólogos orientais — basta pensar em grandes escritores como Gregório Palamas ( †1359), Nicolau Cabasilas († depois de 1396), Jorge Scholarios († depois de 1472).

Todavia essas divergências, talvez mais de formulação que de conteúdo, não devem fazer esquecer a comum fé na maternidade divina de Maria, na sua Virgindade perene, na sua perfeita santidade, na sua intercessão materna junto do Filho. Como recordou o Concílio Vaticano II, o «ardente fervor» e a «alma devota» irmanam ortodoxos e católicos no culto à Mãe de Deus.

4. No final da Lumen gentium, o Concílio convida a confiar a unidade dos cristãos a Maria: «Todos os fiéis dirijam súplicas insistentes à Mãe de Deus e Mãe dos homens para que Ela, que assistiu com suas orações aos alvores da Igreja, também agora, exaltada no céu acima de todos os Anjos e Bem-aventurados, interceda junto de Seu Filho, na comunhão de todos os Santos» (Ibid.).

Assim como na comunidade primordial a presença de Maria promovia a unanimidade dos corações, que a oração consolidava e tornava visível (cf. Act Ac 1,14), assim também a mais intensa comunhão com Aquela a quem Agostinho chama «mãe da unidade» (Sermo 192, 2; PL 38, 1013), poderá impelir os cristãos a gozarem o dom tão almejado da unidade ecuménica.

À Virgem Santa dirigem-se as nossas incessantes orações para que, assim como no início sustentou o caminho da comunidade cristã unida na oração e no anúncio do Evangelho, assim hoje com a sua intercessão obtenha a reconciliação e a plena comunhão entre os crentes em Cristo.

Mãe dos homens, Maria conhece bem as necessidades e as aspirações da humanidade. O Concílio pede-Lhe de modo particular que interceda a fim de que «as famílias dos povos, quer se honrem do nome de cristão, quer desconheçam ainda o Salvador, se reúnam em paz e concórdia no único Povo de Deus, para glória da Santíssima e indivisa Trindade» (LG 69).

A paz, a concórdia e a unidade, objecto da esperança da Igreja e da humanidade, ainda parecem distantes. Contudo, constituem uma dádiva do Espírito a ser pedida incessantemente, pondo-se na escola de Maria e confiando na sua intercessão.

5. Com esse pedido os cristãos compartilham a expectativa d’Aquela que, repleta das virtudes da esperança, sustém a Igreja em caminho rumo ao porvir de Deus.

Tendo alcançado pessoalmente a bem-aventurança por ter «acreditado que teriam cumprimento as coisas que foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1,45), a Virgem acompanha os fiéis — e a Igreja inteira — a fim de que, entre as alegrias e as tribulações da vida presente, sejam no mundo os verdadeiros profetas da esperança que não desilude.



Saudação

Saúdo os ouvintes de língua portuguesa, especialmente os peregrinos brasileiros aqui presentes, e convido a todos invocarem, pela intercessão de Nossa Senhora, as luzes do Divino Espírito Santo, para que ilumine os participantes da próxima grande Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos para a América. Que Deus vos abençoe!



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 19 de Novembro de 1997

O Grande Jubileu: tema do novo ciclo de catequeses

Queridos irmãos e irmãs,


1. O Ano 2000 já está próximo. Por isso, considero oportuno orientar as catequeses da quarta-feira sobre temas que nos ajudem mais directamente a compreender o sentido do Jubileu, para o viver em profundidade.

Com a Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, exortei todos os membros da Igreja «a abrirem o coração às sugestões do Espírito», para se disporem «a celebrar com renovada fé e generosa participação o grande evento jubilar» (n. 59). A exortação torna-se mais premente na medida em que a histórica data se aproxima. Com efeito, o evento torna-se como que uma linha de divisão entre os dois milénios transcorridos e a nova fase que se abre para o futuro da Igreja e da humanidade.

Devemos preparar-nos para ela à luz da fé. Para os crentes, com efeito, a passagem do segundo para o terceiro milénio não é simplesmente uma etapa no irreprimível fluxo do tempo, mas uma ocasião significativa para tomar maior consciência do desígnio divino que se manifesta na história da humanidade.

2. O novo ciclo de catequeses quer servir precisamente para isto. Desde há muito tempo estamos a realizar um programa sistemático de reflexões sobre o Credo. O nosso último tema foi o de Maria no mistério de Cristo e da Igreja. Antes tínhamos reflectido sobre a Revelação, a Trindade, Cristo e a sua obra salvífica, o Espírito Santo e a Igreja.

Aqui, a profissão de fé convidar-nos-ia a considerar a ressurreição da carne e a vida eterna, que dizem respeito ao futuro do homem e da história. Mas precisamente esta temática escatológica encontra- se de forma natural com aquela proposta pela Tertio millennio adveniente, que delineia um caminho de preparação para o Jubileu em chave trinitária, prevendo no ano em curso uma atenção especial a Jesus Cristo, para depois passar ao ano do Espírito Santo e em seguida ao do Pai.

À luz da Trindade adquirem sentido também «as realidades últimas», e é possível captar de modo mais profundo o itinerário do homem e da história rumo à meta definitiva: o retorno do mundo a Deus Pai, para o Qual conduz Cristo, Filho de Deus e Senhor da história, mediante o dom vivificante do Espírito Santo.

3. Este amplo horizonte da história em movimento sugere alguns interrogativos de base: o que é o tempo? Qual é a sua origem? Qual é a sua meta?

De facto, ao contemplar o nascimento de Cristo, a atenção volta-se para os dois mil anos de história que nos separam deste evento. Mas o olhar corre também para os milénios que o precederam, e remonta-se de modo espontâneo até às origens do homem e do mundo. A ciência contemporânea está empenhada em formular hipóteses sobre os inícios e o desenvolvimento do universo. Entretanto, quanto pode ser captado com os instrumentos e os critérios científicos não é tudo, e tanto a fé como a razão remetem, para além dos dados verificáveis e mensuráveis, à perspectiva do mistério. É a perspectiva indicada pela primeira afirmação da Bíblia: «No princípio, Deus criou os céus e a terra» (Gn 1,1).

Tudo foi criado por Deus. Portanto, antes da criação não existia nada, excepto Deus. Trata-se de um Deus transcendente que criou tudo com a própria omnipotência, e sem ser obrigado a isto por nenhuma necessidade, com um acto absolutamente livre e gratuito, sugerido somente pelo amor. É o Deus Trindade, que Se revelará como Pai, Filho e Espírito Santo.

4. Ao criar o universo, Deus criou o tempo. N’Ele tem origem o início do tempo, assim como todo o seu sucessivo desenvolvimento. A Bíblia ressalta que os seres vivos, em todos os instantes, dependem da acção divina: «Se escondeis o Vosso rosto, perturbam-se; se lhes tirais o seu alento, perecem e voltam ao pó donde saíram. Se lhes enviais o Vosso espírito, voltam à vida e renovais a face da terra» (Ps 104,29-30).

O tempo é, pois, dom de Deus. Continuamente criado por Deus, está nas Suas mãos. Ele guia-lhe o desenvolvimento segundo os Seus desígnios. Cada dia é para nós um dom do amor divino. Sob este ponto de vista, acolhamos também o marco do Grande Jubileu como um dom de amor.

5. Deus é Senhor do tempo não só como Criador do mundo, mas também como Autor da nova criação em Cristo. Ele interveio para restabelecer a condição humana, profundamente ferida pelo pecado. Preparou durante longo tempo o Seu povo para o esplendor da nova criação, de modo especial através da palavra dos profetas: «Com efeito, vou criar novos céus e nova terra; as coisas de outrora não serão lembradas, nem tornarão a vir ao coração. Alegrai-vos, pois, e regozijai-vos para sempre com aquilo que estou para criar: eis que farei de Jerusalém um júbilo e do seu povo uma alegria» (Is 65,17-18).

A promessa foi cumprida há dois mil anos, com o nascimento de Cristo. Nesta luz, o evento jubilar constitui um convite a celebrar a era cristã como um período de renovação da humanidade e do universo. Apesar das dificuldades e dos sofrimentos, os dois mil anos transcorridos foram um período de graça.

Também os anos que hão-de vir permanecem nas mãos de Deus. O futuro do homem é antes de tudo o futuro de Deus, no sentido de que só Ele o conhece, o prepara e o realiza. Ele certamente pede e solicita a cooperação humana, mas não cessa, por isso, de ser o transcendente realizador da história.

Com esta certeza preparamo-nos para o Jubileu. Só Deus conhece o futuro. Nós, porém, sabemos que em todo o caso será um futuro de graça, será o cumprimento de um desígnio divino de amor por toda a humanidade e por cada um de nós. Por este motivo, ao olharmos para o futuro, estamos repletos de confiança e não nos deixamos tomar pelo medo. O caminho rumo ao Jubileu é uma grande via de esperança.



JOÃO PAULO II


AUDIÊNCIA


Quarta-feira 26 de Novembro de 1997

No princípio já existia o Verbo




Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. A celebração do Jubileu faz-nos contemplar Jesus Cristo, como ponto de chegada do tempo que O precede e ponto de partida daquele que O sucede. Com efeito, Ele inaugurou uma história nova não só para quantos crêem n’Ele, mas para a inteira comunidade humana, porque a salvação por Ele actuada é oferecida a cada homem. Em toda a história já se difundem misteriosamente os frutos da Sua obra salvífica. Com Cristo, a eternidade fez o seu ingresso no tempo!

«No princípio já existia o Verbo» (Jn 1,1). Com estas palavras João começa o seu Evangelho, fazendo-nos remontar além do início do nosso tempo, até à eternidade divina. Ao contrário de Mateus e de Lucas, que se detêm sobretudo nas circunstâncias do nascimento humano do Filho de Deus, João fixa o olhar no mistério da Sua preexistência divina.

Nesta frase, «no princípio» significa o início absoluto, início sem começo, precisamente a eternidade. A expressão faz eco daquela presente na narração da criação: «No princípio, Deus criou o céu e a terra» (Gn 1,1). Mas na criação tratava- se do início do tempo, e aqui, onde se fala do Verbo, trata-se da eternidade.

Entre os dois princípios, a distância é infinita. É a distância entre o tempo e a eternidade, entre as criaturas e Deus.

2. Possuindo, como Verbo, uma existência eterna, Cristo tem uma origem que remonta muito além do Seu nascimento no tempo.

Esta afirmação de João baseia-se numa palavra específica de Jesus mesmo. Aos judeus que Lhe censuram a pretensão de ter visto Abraão, embora ainda não tivesse cinquenta anos, Jesus responde: «Em verdade, em verdade, vos digo: antes de Abraão existir, Eu Sou» (Jn 8,58). A afirmação sublinha o contraste entre o tornar-se de Abraão e o ser de Jesus. O verbo «genésthai», usado no texto grego com referência a Abraão, significa de facto «tornar-se» ou «vir à existência»: é o verbo adequado para designar o modo de existir próprio das criaturas. Ao contrário, só Jesus pode dizer: «Eu Sou», indicando com esta expressão a plenitude do ser, que permanece acima de cada tornar-se. Assim, exprime a consciência de possuir um ser pessoal eterno.

3. Aplicando a Si a expressão «Eu Sou», Jesus faz Seu o nome de Deus, revelado a Moisés no Êxodo. Depois de lhe dar a missão de libertar o Seu povo da escravidão no Egipto, Javé, o Senhor, assegura-lhe assistência e proximidade e, quase como penhor da Sua fidelidade, revela-lhe o mistério do Seu nome: «Eu sou Aquele que sou» (Ex 3,14). Moisés poderá então dizer aos Israelitas: «Eu sou envia-me a vós» (Ibid.). Este nome exprime a presença salvífica de Deus a favor do Seu povo, mas também o Seu mistério inacessível.

Jesus faz Seu este nome divino. No Evangelho de João, esta expressão aparece várias vezes nos Seus lábios (cf. 8, 24.28.58; 13, 19). Com esta, Jesus demonstra de maneira eficaz que a eternidade, na Sua pessoa, não só precede o tempo, mas entra no tempo.

Embora compartilhe a condição humana, Jesus tem consciência do Seu ser eterno que confere um valor superior a toda a Sua actividade. Ele mesmo ressaltou este valor eterno: «O céu e a terra passarão, mas as Minhas palavras não passarão» (Mc 13,31 par. ). As Suas palavras, como também as Suas acções, têm um valor único e definitivo, e continuarão a interpelar a humanidade até ao fim dos tempos.

4. A obra de Jesus comporta dois aspectos intimamente unidos: é uma acção salvífica, que liberta a humanidade do poder do mal, e é uma nova criação, que propicia aos homens a participação da vida divina.

A libertação do mal fora prefigurada na Antiga Aliança, mas só Cristo a pode realizar plenamente. Só Ele, como Filho, dispõe de um poder eterno sobre a história humana: «Se o Filho [do homem] vos libertar, sereis realmente livres » (Jn 8,36). A Carta aos Hebreus ressalta esta verdade com vigor, demonstrando que o único sacrifício do Filho nos obteve uma «redenção eterna» (9, 12), superando abundantemente o valor dos sacrifícios da Antiga Aliança.

A nova criação só pode ser realizada por Aquele que é Omnipotente, pois implica a comunicação da vida divina à existência humana.

5. A perspectiva da origem eterna do Verbo, sublinhada de maneira particular pelo Evangelho de João, estimula-nos a penetrar na profundidade do mistério de Cristo.

Portanto, caminhemos rumo ao Jubileu, professando de modo cada vez mais forte a nossa fé em Cristo, «Deus de Deus, Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro». Estas expressões do Credo abrem-nos a via para o mistério e constituem um convite a aproximar- nos dele. Jesus continua a testemunhar à nossa geração, assim como há dois mil anos aos Seus discípulos e ouvintes, a consciência da Sua identidade divina: o mistério do Eu Sou.

Em virtude deste mistério, a história humana já não é abandonada à caducidade, mas tem um sentido e uma direcção: foi como que fecundada pela eternidade. Para todos ressoa como uma consolação a promessa de Cristo aos Seus discípulos: «Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28,20).



                                                                            Dezembro de 1997


AUDIÊNCIAS 1997