Discursos João Paulo II 1997 - 10 de Abril de 1997

Isto leva-nos àquilo que Vossa Excelência justamente definiu como um dos desafios — na realidade, o grande desafio —, que os povos do Médio Oriente estão a enfrentar: a busca da paz. Como o Senhor Embaixador observou, alcançou- se algum progresso e a Santa Sé, constante promotora activa do processo de paz, sente-se feliz quando se obtêm resultados positivos. Contudo, não faltam dificuldades nem crises que, ainda hoje, ameaçam debilitar o optimismo frágil que se está a desenvolver. A este propósito, reitero as expressões da grave solicitude com que a Santa Sé e toda a Comunidade internacional têm observado o recente incremento das tensões numa situação já delicada e volúvel. Existem problemas sérios que diariamente concernem à segurança física de indivíduos, tanto israelianos como palestinos, ameçando a possibilidade de se libertar da aparentemente infinita espiral de acção, reacção e contra-reacção. Com efeito, trata-se de um círculo vicioso do qual não se pode escapar, a não ser que todas as partes ajam com verdadeira boa vontade e solidariedade. Como observei no início deste ano: «Todos [os povos] juntos, judeus, cristãos e muçulmanos, israelitas e árabes, crentes e não-crentes devem criar e consolidar a paz»; esta paz «está apoiada sobre o diálogo leal entre parceiros iguais, no respeito da identidade e da história de cada um... sobre o direito dos povos à livre determinação do próprio destino, sobre a sua independência e segurança» (Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, 13 de Janeiro de 1997, n. 3).

Neste contexto, não posso deixar de mencionar, ainda que brevemente, a singular característica de Jerusalém. A Cidade Santa, a Cidade da Paz, permanece uma parte do património comum de toda a humanidade, e deve ser preservada e salvaguardada para todas as gerações. Diferentes povos identificam-se com as palavras dos Salmos: «Desejai a paz para Jerusalém!» (Sl. 122/121, 6). A Igreja católica continuará a desempenhar a própria parte na promoção da vocação e da missão que o próprio Deus da Revelação confiou à Cidade Santa na sua história complexa e diversificada. E quando pensamos na paz que Deus deseja, não podemos esquecer-nos de que esta exige a paz, o respeito pela dignidade de cada pessoa e o desejo de compreender o próximo.

A Santa Sé e a Igreja católica, consideradas de maneira global, estão profundamente empenhadas na cooperação com o Estado de Israel, «no combate contra todas as formas de anti-semitismo e todos os géneros de racismo e de intolerância religiosa, e na promoção da compreensão mútua entre as nações, da tolerância entre as comunidades e do respeito pela vida e dignidade humanas» (Acordo Fundamental, Artigo 2 § 1). Não há dúvida de que nestes sectores pode e deve ser feito mais. São precisamente estes esforços renovados que hão-de dar ao Grande Jubileu do Ano 2000 um significado deveras universal, não limitado aos católicos ou aos cristãos mas que abarca todos os povos em cada uma das partes do mundo. Estou persuadido de que as autoridades de Israel, e os seus parceiros da Palestina, farão tudo o que estiver ao seu alcance para assegurar que todas as pessoas que visitarem os lugares históricos e sagrados, ligados às três grandes crenças monoteístas, sejam recebidas num espírito de respeito e amizade. Eu mesmo desejo ardentemente estar entre aqueles que realizarão tal peregrinação, e agradeço os amáveis convites que continuo a receber.

Senhor Embaixador, formulo votos pelo bom êxito da sua missão como Representante do seu país junto da Santa Sé, assegurando-lhe a cooperação dos vários departamentos da Cúria Romana no cumprimento dos seus altos encargos. Para Vossa Excelência e para o seu país, faço minha a oração do antigo Autor bíblico: «Javé vos mostre o Seu rosto e vos conceda a paz!» (Nb 6,26).









DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DA RATIFICAÇÃO DOS ACORDOS


ENTRE A SANTA SÉ E A CROÁCIA


10 de Abril de 1997



Senhor Vice-Primeiro-Ministro
Distintas Autoridades
Venerados Irmãos no Episcopado!

Agradeço de coração ao Doutor Jure Radic, Vice-Primeiro-Ministro da República da Croácia e Presidente da Comissão estatal para as relações com as Comunidades religiosas, as amáveis palavras que me dirigiu, também em nome das Autoridades da Croácia. Saúdo cordialmente o Senhor Cardeal Franjo Kuhariae e os demais eclesiásticos que vieram aqui para esta ocasião. A todos dou as minhas mais cordiais boas-vindas.

O motivo da vossa visita é a troca dos instrumentos de ratificação de três Acordos, estipulados entre a Santa Sé e a República da Croácia, a qual teve lugar ontem neste Palácio Apostólico. Trata-se dos seguintes documentos: 1) Acordo entre a Santa Sé e a República da Croácia sobre questões jurídicas; 2) Acordo entre a Santa Sé e a República da Croácia sobre a colaboração no campo educativo e cultural, e 3) Acordo entre a Santa Sé e a República da Croácia sobre a assistência religiosa aos fiéis católicos, membros das Forças armadas e da Polícia da República da Croácia.

Alegra-me que estes Acordos ofereçam agora um claro marco jurídico para a obra da Igreja católica na República da Croácia, permitindo-lhe cumprir de modo adequado a sua missão. Como se sabe, estes Acordos fundam-se em três princípios básicos, que são a liberdade religiosa, a distinção entre a Igreja e o Estado e a necessidade de colaboração entre as duas instituições.

O respeito à liberdade religiosa serve como pano de fundo para estabelecer as relações mútuas entre a comunidade eclesial e a política. Para a Igreja católica, este princípio foi recolhido nos documentos do Concílio Vaticano II e, depois, no Código de Direito Canónico. Com o advento da democracia, esta norma foi sancionada também na Constituição da República da Croácia.

A distinção entre Igreja e Estado, que são duas entidades independentes e autónomas, cada uma na sua ordem, é o segundo princípio inspirador destes Acordos. Cada uma tem o seu específico campo de acção; diversas são as suas origens, as suas finalidades e os meios para as alcançar. Contudo, a Igreja e o Estado encontram-se no homem que é, como cidadão, membro de um Estado e, enquanto crente, membro da Igreja católica.

Portanto, é importante o ulterior princípio de colaboração recta e construtiva entre a Igreja e o Estado, para a promoção do bem comum dos cidadãos e de toda a sociedade. De facto, existe um amplo campo misto, onde as recíprocas competências e acções se aproximam e, com frequência, se entrelaçam.

Estes princípios, já em vigor desde há tempo em vários países que têm um ordenamento jurídico democrático, aplicam- se agora no vosso país, obviamente respeitando as suas características históricas, culturais e religiosas específicas. Não se trata de modo algum de privilégios oferecidos à Igreja, mas de um modo regular de ordenar as relações mútuas em benefício dos cidadãos.

Evidentemente, a regulamentação da situação jurídica permite à Igreja empreender com maior segurança a sua acção de evangelização e de promoção humana. Ela só pede que possa continuar a sua missão de serviço, com renovado vigor, zelo e criatividade, no limiar do novo milénio.

Por uma feliz coincidência, a Santa Sé ratificou os Acordos no passado dia 19 de Março, na festa litúrgica de São José, o qual o Parlamento croata havia proclamado protector da Croácia em Junho de 1687. Confiemos à sua intercessão a adequada aplicação dos Acordos, não só para o bem dos católicos, mas também para o de toda a comunidade.

Sobre cada um de vós e sobre toda a querida Croácia concedo com prazer a Bênção Apostólica.

Louvados sejam Jesus e Maria!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS MEMBROS DA PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA


11 de Abril de 1997



1. Senhor Cardeal, agradeço-lhe de coração os sentimentos que acaba de me manifestar, apresentando a Pontifícia Comissão Bíblica, no início do seu mandato. Saúdo cordialmente os membros antigos e novos da Comissão, presentes nesta Audiência. Saúdo os «antigos » com viva gratidão pelas tarefas já desempenhadas, e os «novos» com particular alegria, suscitada pela esperança. Estou feliz porque esta ocasião me oferece a possibilidade de me encontrar com todos vós pessoalmente e de repetir a cada um como aprecio a generosidade com que prodigalizais a vossa competência de exegetas, ao serviço da Palavra de Deus e do Magistério da Igreja.

O tema que começastes a estudar durante a vossa actual sessão plenária é de enorme relevância: com efeito, trata-se de um tema fundamental para a correcta compreensão do mistério de Cristo e da identidade cristã. Antes de tudo, quereria salientar esta utilidade que poderíamos definir ad intra. Além disso, ela reflecte-se inevitavelmente numa utilidade, por assim dizer, ad extra, porque a consciência da própria identidade determina a natureza das relações com as outras pessoas. Neste caso, determina a natureza dos relacionamentos entre cristãos e judeus.

2. Desde o segundo século depois de Cristo, a Igreja encontrou-se diante da tentação de separar completamente o Novo Testamento do Antigo e de contrapor um ao outro, atribuindo-lhes duas origens diferentes. O Antigo Testamento, segundo Marcião, provinha de um deus indigno deste nome, porque era vingativo e sanguinário, enquanto que o Novo Testamento revelava o Deus reconciliador e generoso. A Igreja rejeitou com firmeza este erro, recordando a todos como a ternura de Deus se manifesta já no Antigo Testamento. Infelizmente, a mesma tentação de Marcião volta a apresentar-se também no nosso tempo. Porém, o que se verifica com maior frequência é a ignorância das profundas relações que vinculam o Novo Testamento ao Antigo, ignorância da qual nalgumas pessoas deriva a impressão de que os cristãos não possuem nada em comum com os judeus.

Séculos de preconceitos e de oposição recíproca escavaram um fosso profundo, que agora a Igreja se esforça por colmar, impelida neste sentido pela tomada de posição do Concílio Vaticano II. Os novos leccionários litúrgicos dedicaram mais espaço aos textos do Antigo Testamento, e o Catecismo da Igreja Católica preocupou-se em haurir constantemente do tesouro das Sagradas Escrituras.

3. Na realidade, não se pode exprimir de maneira plena o mistério de Cristo sem recorrer ao Antigo Testamento. A identidade humana de Jesus define-se a partir do Seu vínculo com o povo de Israel, com a dinastia de David e a descendência de Abraão. E não se trata apenas de uma pertença física. Participando nas celebrações na sinogoga, onde eram lidos e comentados os textos do Antigo Testamento, Jesus adquiria também humanamente consciência de tais textos, com estes nutria o espírito e o coração, servindo-Se dos mesmos na oração e neles inspirando o Seu comportamento.

Ele tornou-se um autêntico filho de Israel, profundamente arraigado na longa história do próprio povo. Quando começou a pregar e a ensinar, hauriu abundantemente do tesouro das Escrituras, enriquecendo este tesouro com novas inspirações e iniciativas inesperadas. Estas — notemo-lo — não tinham em vista abolir a antiga revelação mas, ao contrário, levá-la ao seu cumprimento perfeito. A oposição cada vez mais consistente, com que Jesus teve de se confrontar até ao Calvário, foi por Ele compreendida à luz do Antigo Testamento, que Lhe revelava a sorte reservada aos profetas. Sabia também, do Antigo Testamento, que no fim o amor de Deus resulta sempre vitorioso.

Portanto, privar Cristo da relação com o Antigo Testamento é separá-l’O das Suas raízes e desvirtuar o Seu mistério de todo o sentido. Com efeito, a fim de ser significativa, a Encarnação teve necessidade de se arraigar em séculos de preparação. De outra forma, Cristo teria sido um meteoro caído acidentalmente sobre a terra, isento de conexões com a história dos homens.

4. A Igreja compreendeu bem, desde as origens, o arraigamento da Encarnação na história e, por conseguinte, acolheu plenamente a inserção de Cristo na história do povo de Israel. Considerou as Escrituras hebraicas como Palavra de Deus perenemente válida, dirigida a si mesma e também aos filhos de Israel. É de importância primordial manter e renovar esta consciência eclesial dos relacionamentos essenciais com o Antigo Testamento. Estou certo de que os vossos trabalhos hão-de contribuir de maneira excelente neste sentido, e desde já sinto-me feliz por isso, agradecendo-vos do íntimo do coração.

Sois chamados a ajudar os cristãos a compreender bem a própria identidade. Identidade que se define em primeiro lugar graças à fé em Cristo, Filho de Deus. Contudo, esta fé é inseparável da relação com o Antigo Testamento, dado que se trata da fé em Cristo, «morto pelos nossos pecados, conforme as Escrituras », e «ressuscitado... conforme as Escrituras!» (cf. 1Co 15,3-4). O cristão deve saber que, com a sua adesão a Cristo, se tornou «descendência de Abraão» (Ga 3,29) e foi enxertado na oliveira boa (cf. Rm Rm 11,17 Rm Rm 11,24), isto é, inserido no povo de Israel, para ser «participante da raiz e da seiva da oliveira » (Rm 11,17). Se possuir esta forte convicção, já não poderá aceitar que os judeus enquanto judeus sejam desprezados ou, pior ainda, maltratados.

5. Ao dizê-lo, não pretendo ignorar que o Novo Testamento conserva os vestígios de claras tensões existidas entre comunidades cristãs primitivas e alguns grupos de hebreus não cristãos. São Paulo mesmo atesta nas suas cartas que, como hebreu não cristão, perseguira orgulhosamente a Igreja de Deus (cf. Gál Ga 1,13 1Co 15,9 Ph 3,6). Estas dolorosas recordações devem ser superadas na caridade, em conformidade com o preceito de Cristo. O trabalho exegético deve preocupar-se em progredir sempre nesta direcção e, assim, contribuir para diminuir as tensões e dissipar os mal-entendidos.

Precisamente à luz de tudo isto, o trabalho que iniciastes é altamente importante e merece ser desempenhado com atenção e esmero. Sem dúvida, comporta aspectos difíceis e pontos delicados, mas é muito prometedor. Todavia, é rico de grande esperanças. Faço votos por que seja deveras fecundo para glória do Senhor. Com estes bons votos, asseguro- vos uma recordação constante na oração e concedo a todos vós uma especial Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DE JOVENS PEREGRINOS


DE MARSELHA (FRANÇA)


11 de Abril de 1997



Queridos amigos

Sede bem-vindos na casa dos Sucessores de Pedro. Estou feliz por vos receber aqui, jovens da Arquidiocese de Marselha, vindos a Roma com o vosso Arcebispo, D. Bernard Panafieu. Saúdo- o fraternalmente e agradeço-lhe as palavras que me transmitiu em vosso nome.

Desde há muito tempo Marselha ocupa o seu lugar na Igreja. O Evangelho foi anunciado na vossa região e produziu numerosos frutos, dos quais vós sois os herdeiros. A vossa Arquidiocese recebeu muito e soube dar muito: a canonização do Mons. de Mazenod evocou-o há alguns meses. Por vossa vez, partis em busca dos recursos vivos da vossa fé. Já pudestes sentir como a obra dos Santos Pedro e Paulo assinalou esta Cidade de Roma. Dois mil anos após a sua passagem, não é difícil observar os resultados da sua pregação e de prever também aquilo que ainda se deve realizar para que «Deus seja tudo em todos» (1Co 15,28).

Os primeiros Apóstolos ouviram Cristo dizer-lhes: «Vinde ver» (Jn 1,39). Recebeis este apelo que vos compete transmitir a outros. Vem e verás que quero transformar a tua vida para a vincular ainda mais à Minha!

Vem e verás que a tua vida é repleta de sentido, grandeza e beleza, se a souberes oferecer!

Vem e verás que estou sempre contigo no caminho!

Acabámos de festejar a Ressurreição do Senhor. Em Roma, comungais na fé daqueles que foram as primeiras testemunhas desta Ressurreição; podeis ver o povo que Deus não cessa de fazer crescer. Na Arquidiocese de Marselha, este povo precisa de vós. Tem necessidade de que sejais as testemunhas fiéis do Evangelho e possais, com sinceridade, «dar a razão da vossa esperança» (1P 3,15) e dizer a todos aqueles que querem dar sentido à própria existência que Cristo ressuscitado os espera.

A festa da Páscoa, sabei-o, precede de cinquenta dias a do Pentecostes. Cristo ressuscitado enviou o Espírito Santo aos seus Apóstolos para anunciarem a Boa Nova «até aos extremos da terra» (Ac 1,8). Aqueles de entre vós que se preparam para a confirmação esperam também receber o Espírito do Pentecostes. Graças a Ele, serão mais fortes para dar o testemunho que Cristo lhes pede e assumir assim na Igreja todo o lugar que lhes cabe.

Estimados amigos, é um prazer vervos em tão grande número: sede orgulhosos e felizes por terdes recebido a graça da fé! Sede sempre ardentes em transmiti-la, dado que sois o sal da terra e podeis dar muito àqueles que se apresentam no vosso caminho. Ao vosso Arcebispo, aos sacerdotes e a todos os vossos acompanhadores, a cada um de vós, aos vossos pais, irmãos, irmãs e a todos os membros das vossas famílias, concedo do íntimo do coração a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS BISPOS FRANCESES DA REGIÃO APOSTÓLICA

CENTRO-LESTE EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM»


12 de Abril de 1997





Estimados Irmãos no Episcopado

1. No momento em que se encerra a série das visitas ad Limina dos Bispos da França, estou feliz por vos dar as boas-vindas, a vós que sois os pastores da Igreja na região Centro-Leste. Junto do túmulo dos Apóstolos Pedro e Paulo, viestes reencontrar a nascente do dinamismo evangélico, que estimulou inumeráveis figuras ilustres das vossas Igrejas particulares, desde Ireneu, Francisco de Sales, Margarida Maria, João Maria Vianney, Paulina Jaricot, António Chevrier até aos iniciadores do catolicismo social. Ainda hoje este dinamismo não cessa de fazer viver os discípulos de Cristo pelos quais sois responsáveis, e cujo testemunho encorajais e orientais no seio da sociedade.

Quereria evocar aqui a memória do Cardeal Albert Decourtray, que foi um zeloso pastor da Arquidiocese de Lião e um generoso servidor da Igreja que está na França. Agradeço a D. Claude Feidt, Arcebispo de Chambéry, vosso presidente, a sua lúcida apresentação da vida das vossas dioceses. Pude apreciar o sentido apostólico dos sacerdotes e constatar o importante lugar que reservais, desde há muito tempo, aos leigos na missão da Igreja. O reconhecimento da sua vocação particular e a sua colaboração confiante com os sacerdotes permitem dar um maior impulso à vida eclesial. É também do meu conhecimento o facto de na vossa região o ecumenismo, do qual o Rev.do Pe. Couturier foi um dos grandes inspiradores, constituir uma orientação pastoral constante. Oxalá no meio das satisfações e das dificuldades quotidianas, as vossas comunidades permaneçam para todos um sinal de esperança para o porvir!

2. Quando da minha recente visita à França, a peregrinação, que realizei junto do túmulo de São Martinho em Tours, propiciou-me a ocasião de me encontrar com uma significativa assembleia de «deserdados». Dessa celebração, quisestes fazer o símbolo do compromisso resoluto da Igreja ao lado daqueles que sofrem, dos necessitados da sociedade e das pessoas que são abandonadas pelos caminhos da vida. É este aspecto essencial da Igreja que hoje desejaria abordar convosco.

Os relatórios quinquenais das dioceses do vosso país lançam luz sobre os graves problemas humanos com que se confronta a sociedade. Desta forma, a crise económica leva uma parte da população a conhecer situações de pobreza e precariedade, que atingem cada vez mais arduamente as jovens gerações. A desordem perante as difíceis condições de vida, as desigualdades sociais, o desemprego, cujas causas são por vezes interpretadas de maneira simplista, debilitam as relações entre os diferentes grupos humanos, no interior da comunidade nacional. Assim, as incertezas da existência podem ter como consequência um fechamento sobre si, que impede de prestar atenção aos apelos, tanto dos mais necessitados do próprio ambiente como das pessoas menos favorecidas.

Neste período de profundas transformações, é bom que se desenvolva na vossa região uma conscientização da interdependência entre os homens e entre as nações, e da necessidade de se pôr em prática uma verdadeira solidariedade, compreendida como «a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos» (Sollicitudo rei socialis SRS 38). Os valores da liberdade, igualdade e fraternidade, sobre os quais o povo francês quis fundar a sua vida colectiva, exprimem de certa forma as condições da solidariedade, sem a qual ao homem não é possível viver plenamente no meio dos seus irmãos. A grandeza de uma sociedade julga-se em conformidade com o lugar que esta reserva à pessoa humana e, antes de tudo, à do mais fraco, que não pode ser considerado unicamente em função daquilo que possui ou da sua contribuição mediante a própria actividade.

3. A vossa Conferência Episcopal abordou muitas vezes as questões sociais, sobretudo quando das suas Assembleias plenárias ou por intermédio da sua Comissão social. Ainda recentemente, exortastes a que não se considere como uma fatalidade o «fosso social» que aumenta no vosso país. Inúmeras são também as pessoas que, no meio de vós, intervêm em vista de recordar a tradição evangélica da defesa dos mais frágeis. Com efeito, é importante que a palavra da Igreja se manifeste de forma vigorosa na opinião pública, para promover a dignidade do homem onde quer que esta seja ameaçada, e para propor os princípios evangélicos que dão sentido e valor a toda a vida humana. Enviada ao âmago do mundo para ali anunciar o Evangelho da vida, a Igreja demonstra solicitude pelo bem-estar da sociedade inteira, no respeito das convicções de cada pessoa e de cada grupo.

O Conselho nacional da solidariedade, que criastes há alguns anos, constitui um importante lugar de concertação e de reflexão para um empenhamento e uma coordenação mais eficazes dos organismos de entreajuda. Encorajo-vos vivamente a suscitar, a nível das dioceses, as iniciativas adaptadas para as novas necessidades que se apresentam nas cidades e nas suas periferias, bem como nos campos por vezes esquecidos. As novas formas de pobreza exigem novas respostas. Os cristãos são ainda mais chamados à conversão do coração para desenvolver, pessoal e colectivamente, novas formas de vida, que suscitem de maneira profética os seus conterrâneos a modificar os próprios comportamentos, de maneira a superar as crises e fazer com que cada um possa dispor da parte que lhe cabe da riqueza nacional. Dando prova de liberdade em relação aos seus próprios bens e moderando os seus desejos, hão-de tornar possível uma partilha efectiva com aqueles que vivem na privação. Todos sejam inventivos na busca de novas veredas! Assim, edificarse- á um mundo renovado, onde a vida é mais forte que a morte e o amor domina os poderes do egoísmo.

Hoje, a caridade deve adquirir novas expressões. Não se pode reduzir a uma simples assistência passageira. Exige que se tenha «a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa [autêntica] de ir em socorro do próximo» (Centesimus annus CA 58). As pessoas atingidas pela exclusão ou qualquer outra forma de pobreza, devem poder levar uma vida familiar digna e prover pessoalmente às próprias necessidades, desenvolvendo de maneira plena as suas potencialidades. Assim, não permanecerão à margem das redes sociais; graças aos seus irmãos em humanidade, ser-lhes-ão oferecidos uma esperança e um porvir. Recorde-se que a atenção aos mais pobres não se pode limitar aos aspectos materiais da vida. Deve ter também em consideração o desenvolvimento espiritual de cada um e favorecer o acesso à formação e à cultura. A libertação que Cristo traz transforma a pessoa em todo o seu ser.

4. São mais do que nunca urgentes o despertar e a educação de todos os membros da comunidade cristã às suas responsabilidades em relação aos «deserdados ». «Quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a Quem não vê» (1Jn 4,20). Os discípulos de Cristo são exortados a seguir o seu Mestre pelos caminhos que Ele mesmo traçou, dando a própria vida pela humanidade despojada e desvirtuada. Por conseguinte, situando-se na mesma lógica do amor vivido em conformidade com Cristo, a Igreja deve ser completamente solidária para com os mais humildes. Não se trata de uma tarefa facultativa, mas de um dever imprescindível de fidelidade ao Evangelho, do seu acolhimento e do seu anúncio. Tal fidelidade passa através do cuidado dos membros mais frágeis do Corpo de Cristo, bem como de cada pessoa humana. Que os baptizados se coloquem à escuta dos mais pobres e das suas aspirações, para serem no meio deles verdadeiras testemunhas da salvação que Cristo concede a cada homem! Oxalá adquiram um verdadeiro sentido da partilha, expressão do seu amor pelo próximo! A caridade «é o amor dos pobres, a ternura e a compaixão para com o nosso próximo. Nada honra a Deus mais do que a misericórdia!» (Gregório de Nazianzo, Do amor pelos pobres, n. 27).

Através dos «deserdados» é o rosto do Senhor mesmo que se manifesta. Ele faz-nos dar incessantemente testemunho de que «cada ser mortificado no corpo ou no espírito, cada pessoa privada dos próprios direitos fundamentais é uma imagem viva de Cristo» (Encontro com os «deserdados», em Tours, 21 de Setembro de 1996, ed. port. de L’Osservatore Romano de 28.IX.96, n. 2, pág. 7). Portanto, o encontro do Senhor leva-nos naturalmente a colocarmo-nos ao serviço dos mais pequeninos dos nossos irmãos. A atitude de respeito, de partilha e de compaixão para com os desfavorecidos é um reflexo da nossa fidelidade a Cristo. Cada cristão que, com a sua debilidade, estende a mão ao próprio irmão, ajuda-o a erguer-se e a retomar o caminho, agindo deste modo à maneira do próprio Senhor. «A caridade, na sua dupla face de amor a Deus e aos irmãos, é a síntese da vida moral do crente. Tem em Deus a sua nascente e a sua meta (Tertio millennio adveniente, TMA 50).

Por ocasião da vossa última Assembleia plenária em Lourdes, recordastes que, «mediante a diaconia da caridade, os diáconos são testemunhas e ministros da caridade de Cristo. Têm a responsabilidade ministerial de velar por que se viva concretamente a caridade» (Le diaconat: un don de Dieu à mettre en oeuvre, 1996). Portanto, encorajo-os a dar, no seu ministério diaconal, um lugar importante a esta missão e a sensibilizar as comunidades cristãs ao serviço da caridade. A vossa região possui uma longa tradição de catolicismo social, que deve impelir os fiéis a adquirir um conhecimento sério da doutrina social da Igreja, considerando-a como um incitamento à prática da sua fé. Uma ajuda preciosa oferecem-na também os Institutos católicos de Estudos superiores, especializados nas problemáticas sociais, nomeadamente, na investigação das causas das novas situações de pobreza e na análise das estruturas de injustiça que ferem o homem, a fim de propor soluções concretas. A força do testemunho

5. Nos vossos relatórios quinquenais, recordastes as multíplices formas de presença cristã nos lugares de pobreza e de sofrimento nas vossas dioceses. Assim, numerosos são os cristãos que, com um admirável devotamento, oferecem assistência aos enfermos, aos portadores de deficiência, às pessoas idosas, aos doentes terminais ou às vítimas de novas enfermidades. Em várias das vossas dioceses, tem-se feito um notável esforço no sentido de criar estruturas de acolhimento para os enfermos e as suas famílias. Os cristãos que os amam, através da sua profunda compreensão pelas pessoas e mediante a parte que assumem no sofrimento de cada um, constituem a face de amor e de misericórdia de Cristo e da Sua Igreja em relação àqueles que são provados.

Muitos fiéis estão empenhados, com grande generosidade, no serviço dos seus irmãos mais pobres em diversos movimentos caritativos, como o «Secours Catholique», que recentemente comemorou o quinquagésimo aniversário de fundação, ou ainda, na vossa região, a «Associação dos Desabrigados». Hoje quereria encorajar de modo particular os jovens que, nos movimentos de apostolado ou de educação, como a «Jeunesse Ouvrière Chrétienne» ou o Escutismo, partilham a condição frequentemente difícil dos seus companheiros e trabalham com eles para edificar uma sociedade mais justa, em que cada um encontre o seu lugar e possa viver de maneira digna. Oxalá eles se recordem de que o combate pela justiça é um elemento essencial da missão da Igreja! Saúdo cordialmente os membros da Sociedade de São Vicente de Paulo, cujo fundador, Frederico Ozanam, dentro em breve será beatificado. Assim, é um deles que será proposto aos jovens da França como modelo de fraternidade universal junto dos mais pobres, aquele que declarou: «Gostaria de encerrar o mundo inteiro numa rede de caridade». Encorajo também todos os católicos que, de qualquer modo, nas paróquias, nas novas comunidades, ou na vida associativa do seu bairro ou da sua aldeia, em colaboração com os seus concidadãos de outras correntes de pensamento, animam serviços de entreajuda ou de solidariedade.

É também necessário que os responsáveis políticos, económicos e sociais cumpram o próprio dever com integridade, com o cuidado de dar prioridade ao bem das pessoas e tendo em consideração os impactos humanos das suas opções. Deve animá-los uma clarividente consciência da dignidade do trabalho, concebido em vista do desenvolvimento do homem e do cumprimento da sua vocação. «O trabalho dos homens [...] é muito superior aos restantes elementos da vida económica, visto que estes exercem o papel de meros instrumentos» (Gaudium et spes GS 67).

6. Nem sempre é fácil, num contexto de crise social, reagir a um determinado debilitamento da consciência moral diante do encontro de pessoas de origens ou de culturas diferentes. As fracturas culturais muitas vezes são profundas. Suscitam desconfianças e temores. Às vezes o imigrado é designado à opinião pública como responsável pelos problemas económicos.

O Concílio Vaticano II põe em evidência que «Deus, que cuida paternalmente de todos, quis que todos os homens constituíssem uma só família e mutuamente se tratassem como irmãos. Todos, com efeito, foram criados à imagem de Deus [...] e todos são chamados a um só e mesmo fim, que é o próprio Deus» (Gaudium et spes, GS 24). Deste projecto divino nenhum homem pode ser excluído. Portanto, cada um deve prestar atenção àquele que é estrangeiro na sociedade. Recordastes muitas vezes o premente dever do acolhimento fraterno e do reconhecimento mútuo, salientando que «aos olhos de Deus, todos os homens são da mesma raça e da mesma linhagem » (Carta dos Bispos aos católicos da França). A Revelação apresenta-nos o próprio Cristo como o estrangeiro que bate à nossa porta (cf. Mt Mt 25,38 Ap 3,20), o que impele legitimamente a comunidade cristã a participar no acolhimento e no apoio dos irmãos imigrados, no respeito do que são e da sua cultura, sobretudo quando vivem na desgraça.

A missão da Igreja consiste em recordar que na nossa sociedade, o estrangeiro, como qualquer outro cidadão, possui direitos inalienáveis, como os de viver em família e na segurança, que em nenhum caso lhe podem ser tirados. A elaboração das leis, que determinam os deveres necessários para a vida em comum, deve realizar-se preservando os direitos da pessoa, e num espírito que permite aos cidadãos aprender a viver no pluralismo, para o benefício de todos. Entretanto, os problemas reais apresentados pela imigração não poderão encontrar uma solução duradoura, sem o estabelecimento de novas solidariedades com os países de origem dos imigrados.

Nas paróquias, a fraternidade dos fiéis de origens diferentes manifesta a comunhão em Cristo, segundo a dimensão universal da Igreja, quando a palavra de cada um pode expressar-se e é escutada. De maneira semelhante, o encontro entre os cristãos e os crentes de outras tradições religiosas deve permitir um melhor conhecimento recíproco, a fim de todos juntos participarem na edificação de uma família humana mais unida. Colaborar para o progresso de outros povos

7. Na opinião pública, às vezes parecem manifestar-se um aborrecimento e um decréscimo de interesse em relação aos problemas a mais longo prazo do desenvolvimento das nações mais pobres. Porém, a paz do mundo está assente sobre a solidariedade. Por outro lado, constata-se que a acção imediata mobiliza cada vez mais frequentemente os fiéis; assim, é necessária uma conscientização mais lúcida das graves problemáticas do desenvolvimento. O apelo à urgência de colaborar para o progresso dos povos, «de todo o homem e do homem todo», faz também parte da missão da Igreja. Existe uma longa tradição na França, no campo do exercício concreto da solidariedade das vossas Igrejas particulares com o Terceiro Mundo e, de maneira especial, com a África. Convido-vos a dar cada vez maior vigor à cooperação entre as Igrejas locais, colocando-vos sempre mais à escuta das necessidades dessas Igrejas e procurando instaurar uma verdadeira fraternidade.

Gostaria de mencionar aqui as numerosas iniciativas tomadas pelas Congregações religiosas, por Instituições eclesiais, como a Delegação católica para a Cooperação, e por muitas outras Organizações de inspiração cristã. Estas transmitem o apego efectivo das vossas comunidades aos países do Terceiro Mundo, especialmente mediante o envio «in loco» de religiosos e leigos, para a distribuição dos recursos ou ainda através do acolhimento e da formação, na França, de sacerdotes provenientes desses países.

A fim de ajudar os vossos fiéis e todos os homens de boa vontade a retomar consciência dos graves problemas ligados às estruturas da economia mundial, que põem em questão a vida de inumeráveis homens e mulheres, convido-vos a fazer conhecer o recente documento publicado pelo Pontifício Conselho «Cor Unum» – A fome no mundo. Um desafio para todos: o desenvolvimento solidário. Com efeito, como já disse, «é necessário que no cenário económico internacional se imponha uma ética da solidariedade, se quisermos que a participação, o crescimento económico e uma equitativa distribuição dos bens possam caracterizar o futuro da humanidade » (Discurso à quinquagésima Assembleia geral da Organização das Nações Unidas, 5 de Outubro de 1995, ed. port. de L’Osservatore Romano de 14.X.95, n. 13, pág. 5).

8. Prezados Irmãos no Episcopado, para concluir os encontros que tive por ocasião das visitas ad Limina dos Bispos da França, e a seguir à minha recente viagem no vosso país, quereria transmitir-vos novamente a minha alegria por ter compartilhado as preocupações e as esperanças do vosso ministério episcopal, bem como por ter constatado a vitalidade da Igreja que está na França. Formulo votos para que, por ocasião desta visita ao Sucessor de Pedro, a vossa oração junto do túmulo dos Apóstolos e os vossos encontros com os Dicastérios da Cúria Romana sejam para vós manancial de dinamismo e de confiança no porvir, em comunhão com a Igreja universal. Dentro de alguns meses voltaremos a encontrar-nos, em Paris, para a Jornada Mundial da Juventude. Para os católicos da França e, mais particularmente para os jovens, será a ocasião de acolher irmãos e irmãs do mundo inteiro e partilhar com eles as próprias convicções evangélicas e compromissos de edificar a civilização do amor. Dado que empreendemos a preparação do Grande Jubileu do Ano 2000, através de vós, exorto portanto com vigor todos os católicos da França a irem ao encontro e ao serviço dos seus irmãos. Cristo espera-os!

A cada um de vós e a todos os vossos diocesanos, concedo do íntimo do coração a Bênção Apostólica.






Discursos João Paulo II 1997 - 10 de Abril de 1997