Discursos João Paulo II 1997 - 19 de Junho de 1997

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE A CERIMÓNIA DE ENTREGA


DO PRÉMIO INTERNACIONAL «PAULO VI»


19 de Junho de 1997





Senhores Cardeais
Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. Apresento a minha saudação cordial a todos vós aqui reunidos para a entrega do Prémio que o Instituto Paulo VI, de Bréscia, confere em memória do meu venerado Predecessor, nascido em Concesio precisamente há cem anos. Trata-se de um Prémio que até agora foi atribuído, em prevalência, a personalidades do mundo da cultura e da arte. Este ano, é conferido pela primeira vez a um representante daquele mundo católico, que está activamente empenhado — com motivada inspiração também teórica — na frente da formação humana e da caridade, e de modo particular é-me grato entregá-lo pessoalmente ao Senhor Jean Vanier, fundador da Comunidade da Arca. Ele é um grande intérprete da cultura da solidariedade e da «civilização do amor», tanto no campo do pensamento como no da acção, no empenho em favor do desenvolvimento integral de todo o homem e do homem todo.

Já por duas vezes, em 1984 e em 1987, tive o prazer de acolher o Senhor Vanier aqui no Vaticano, juntamente com representantes das comunidades por ele fundadas. A circunstância hodierna é bastante apropriada para exprimir o reconhecimento da Igreja por uma obra que, com apreciado estilo evangélico, está ao lado das pessoas portadoras de deficiência, oferecendo um serviço social original e, ao mesmo tempo, um eloquente testemunho cristão.

Saúdo o caro Bispo de Bréscia, D. Bruno Foresti, e agradeço-lhe as palavras que há pouco me dirigiu. Apresento as boas-vindas aos responsáveis do Instituto Paulo VI e, de modo particular, ao seu Presidente, Dr. Giuseppe Camadini, e a D. Pasquale Macchi, que esteve tão próximo do Papa Paulo VI. Renovo a todos a expressão do meu apreço pela multiplicidade das iniciativas promovidas pelo benemérito Instituto e, em especial, por este Prémio, que de algum modo prolonga a singular atenção do Servo de Deus Paulo VI para com as personalidades, que o homem contemporâneo reconhece como «mestres» porque são antes de tudo «testemunhas » (Evangelii nuntiandi EN 41).

Na motivação da presente edição do Prémio, faz-se oportunamente referência à Encíclica Populorum progressio, que o Papa Paulo VI promulgou há trinta anos, chamando a atenção de todos para as exigências espirituais e morais do desenvolvimento autêntico. Hoje, enquanto é conferido um importante reconhecimento a Jean Vanier e às Comunidades da Arca, damos graças ao Senhor porque faz nascer e crescer na Sua Igreja sinais concretos de esperança, que mostram como é possível realizar no quotidiano, mesmo em situações por vezes complexas e difíceis, as Bem-aventuranças evangélicas.

2. Numa mensagem dirigida a um grupo de peregrinos da associação «Fé e Luz», que vieram a Roma em 1975 para o Ano Santo, Paulo VI escrevia que a atenção dedicada às pessoas deficientes é «a prova mais significativa duma família plenamente humana, duma sociedade verdadeiramente civilizada, a fortiori duma Igreja autenticamente cristã» (Insegnamenti di Paolo VI, XIII [1975], pág. 1.197).

No caminho que ela percorre há mais de trinta anos, tal como foi recordado pelo Presidente do Instituto Paulo VI, a Arca tornou-se um germe providencial da civilização do amor, um germe verdadeiro e portador dum dinamismo evidente. Isto é verificável pela sua notável expansão em numerosas regiões do mundo: com efeito, está presente em vinte oito países, nos cinco continentes. Contudo, não se limita à filantropia nem sequer a uma simples assistência. Apesar do seu crescimento e da sua difusão, a Arca soube conservar o estilo das origens, um estilo de abertura e de partilha, de atenção e de escuta, que considera sempre o outro como uma pessoa a acolher e a respeitar profundamente.

Sem dúvida alguma, isto é devido à dimensão espiritual que o Senhor Jean Vanier soube pôr sempre no centro da Comunidade da Arca. Eis uma mensagem eloquente para o nosso tempo sedento de solidariedade, mas sobretudo de espiritualidade autêntica e profunda.

A respeito disso, como não pensar espontaneamente no Padre Thomas Philippe, dominicano, que inspirou e encorajou o Senhor Vanier a seguir o caminho para o qual o Senhor o chamava Ele seguiu-o, sempre acompanhado da sua oração e da sua presença. A ele, que vive já na «Arca do céu», prestamos hoje uma ardente homenagem de gratidão.

E como não evocar todos os homens e todas as mulheres que circundaram as diferentes Comunidades da Arca com o seu serviço silencioso e generoso? A distinção conferida hoje quer dirigir-se, ao mesmo tempo, a todas estas pessoas. Ela honra também, e até mesmo sobretudo, as pessoas marcadas por uma deficiência, desde as duas primeiras que o Senhor Jean Vanier acolheu junto de si, até ao grande número daquelas que a Arca abrange actualmente. Elas são, com efeito, as personagens principais da Arca que, com fé, paciência e fraternidade, fazem dela um sinal de esperança e um jubiloso testemunho da Redenção.

3. Enquanto me felicito calorosamente com o Senhor Jean Vanier, faço votos por que a obra por ele fundada — no seu conjunto e em cada comunidade — seja sempre acompanhada pela luz e pela força do Espírito Santo, a fim de responder de maneira adequada ao projecto do Senhor, indo assim ao encontro dos sofrimentos e das necessidades de tantos irmãos e irmãs.

Invoco, para isto, a constante protecção de Maria Santíssima e concedo de coração a todos vós, e de modo particular ao Instituto Paulo VI, bem como ao Fundador e aos membros da Arca, uma especial Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO


PROMOVIDO PELO PONTIFÍCIO CONSELHO


«JUSTIÇA E PAZ»


20 de Junho de 1997



Senhor Cardeal
Ilustres Senhoras e Senhores

1. Em primeiro lugar, desejo expressar o meu vivo apreço por este Congresso europeu de doutrina social da Igreja, que vê reunidos pela primeira vez os professores desta disciplina, com a finalidade de identificar as modalidades mais adequadas para o seu ensino e a sua difusão. Agradeço ao Senhor Cardeal Roger Etchegaray as amáveis palavras com que me apresentou este significativo evento. Torno o meu agradecimento extensivo ao Mons. Angelo Scola, Reitor Magnífico da Pontifícia Universidade Lateranense, e ao Prof. Adriano Bausola, Reitor Magnífico da Universidade Católica do Sagrado Coração, pela efectiva colaboração oferecida ao Pontifício Conselho «Justiça e Paz» na preparação deste profícuo encontro, motivo de consolação e esperança.

A doutrina social da Igreja constitui uma das mais vivas preocupações, pois estou profundamente consciente de quão generosa e qualificada deve ser a solicitude de toda a Igreja, ao anunciar ao homem contemporâneo o Evangelho da vida, da justiça e da solidariedade.

Aprofundando os motivos deste compromisso eclesial, detivestes-vos oportunamente para recordar o 30° aniversário da Populorum progressio, do meu venerado Predecessor o Servo de Deus Paulo VI, e o 10° aniversário da Sollicitudo rei socialis. Estas duas Encíclicas, com a sua mensagem exigente, subsistem como uma admoestação actual e inevitável, a não abandonar o trabalho com que se constrói o desenvolvimento de todo o homem e do homem todo, segundo parâmetros não só económicos mas também morais.

2. No vosso serviço quotidiano de professores de doutrina social da Igreja, confrontais-vos muitas vezes com a pergunta recorrente: «Como se há-de propor na actual situação histórica e cultural a verdade confiada aos cristãos?». A urgência que hoje se impõe cada vez mais nítida e impelentemente é a de promover uma «nova evangelização», uma «nova implantatio evangelica», também com referência ao sector social. Com efeito, o Papa Paulo VI encorajava a superar a ruptura entre Evangelho e cultura, através de uma obra de inculturação da fé, capaz de alcançar e transformar, mediante a força do Evangelho, os critérios de juízo, os valores determinantes, as linhas de pensamento típicas de cada sociedade. A intenção fulcral, particularmente actual se consideramos a situação da Europa, tinha em vista pôr em evidência com renovado impulso a relevância da fé cristã para a história, a cultura e a convivência humana.

A partir de Jesus Cristo, única salvação do homem, é possível salientar o valor universal da fé e da antropologia cristã, bem como o seu significado para cada âmbito da existência. Em Cristo é oferecida ao ser humano uma específica interpretação personalista e solidária da sua realidade aberta à transcendência.

Precisamente a partir desta antropologia, a doutrina social da Igreja pode propor-se não como ideologia, ou «terceira via», semelhante a outras propostas políticas e sociais, mas propriamente como um particular saber teológicomoral, que tem a sua origem em Deus que Se comunica ao homem (cf. Sollicitudo rei socialis SRS 41). Neste mistério, encontra a nascente inexaurível para interpretar e orientar as vicissitudes do homem. A nova evangelização, a que toda a Igreja é chamada, deverá integrarem si, a pleno título, a doutrina social da Igreja (cf. Ibid.), e assim ser mais capaz de alcançar e interpelar os povos europeus, na concretitude dos problemas e das situações.

3. Uma outra perspectiva, da qual se compreende a amplitude de horizontes do vosso compromisso formativo fundamentado sobre a doutrina social da Igreja, diz respeito à ética cristã.

Na hodierna cultura da Europa contemporânea é forte a tendência a «privatizar » a ética e a negar a relevância pública da mensagem moral cristã. A doutrina social da Igreja representa, por si só, a rejeição de tal privatização, porque lança luz sobre as autênticas e decisivas dimensões sociais da fé, ilustrando as suas consequências éticas.

Como em várias circunstâncias tive a ocasião de reafirmar, na perspectiva delineada pela doutrina social da Igreja, jamais se deve renunciar a sublinhar o ligame constituído entre a humanidade e a verdade e a primazia da ética sobre a política, a economia e a tecnologia.

Assim, mediante a sua doutrina social, a Igreja apresenta ao continente europeu, que vive uma época complexa e difícil a nível de integração política, económica e de organização social, a questão da qualidade moral da sua civilização, pressuposto inevitável para se construir um autêntico futuro de paz, liberdade e esperança para cada povo e nação.

4. Diante dos inumeráveis e difíceis desafios da época actual a Igreja, na sua acção evangelizadora, é chamada a desenvolver uma intensa e constante obra de formação no empenhamento social. Estou persuadido de que não deixareis de oferecer a vossa qualificada contribuição, uma vez que esta obra tem a sua estrutura-base na doutrina social da Igreja. À sua luz será possível mostrar como o sentido completo da vocação humana e cristã inclui também a dimensão social. Recorda-o claramente o Concílio Vaticano II que, na Gaudium et spes, afirma: «Os dons do Espírito Santo são diversos: enquanto chama uns a dar um testemunho manifesto do desejo da morada celeste e a mantê-lo vivo na família humana, chama outros ao serviço terreno dos homens, preparando, com este seu ministério, a matéria do reino dos céus» (n. 38).

Nesta perspectiva, a formação no compromisso social manifesta-se como o desenvolvimento de uma espiritualidade cristã autêntica, chamada por sua própria natureza a animar cada actividade humana. O seu elemento essencial será o esforço em viver a profunda unidade entre o amor de Deus e o amor do próximo, entre a oração e a acção. Portanto, para isto deverá voltar-se constantemente o vosso ensino, estimados professores de doutrina social da Igreja. O vosso contributo deve impregnar de maneira cada vez mais orgânica a acção pastoral da comunidade cristã.

5. Uma adequada formação no compromisso social apresenta uma exigência dúplice e unitária: por um lado, conhecer profundamente a doutrina social da Igreja e, por outro, saber discernir de modo concreto as influências da mensagem evangélica sobre a plena realização do homem nas várias circunstâncias da sua existência terrena. Tal dúplice exigência torna-se particularmente premente se se considera a temática do desenvolvimento, por vós abordada durante os trabalhos do Congresso. Com efeito, os actuais processos de globalização económica, embora apresentem multíplices aspectos positivos, manifestam também preocupantes tendências a deixar à margem do desenvolvimento os países mais necessitados e até mesmo inteiras áreas regionais. É sobretudo o mundo do trabalho dependente que tem de enfrentar as consequências, frequentemente dramáticas, de imponentes transformações na produção e na distribuição dos bens e dos serviços económicos.

O sector mais privilegiado nos processos de globalização económica parece ser o que comummente se denomina «privado», pelo seu dinamismo empresarial. A doutrina social da Igreja reconhece- lhe sem dúvida um significativo papel no desenvolvimento, mas ao mesmo tempo recorda a cada um a responsabilidade de agir sempre com viva sensibilidade no que concerne aos valores do bem comum e da justiça social. A falta, a nível internacional, de estruturas adequadas de regulamentação e de orientação do actual processo de globalização económica não diminui a responsabilidade social dos operadores económicos, empenhados neste contexto. A situação das pessoas e das nações mais pobres exorta cada um a assumir as próprias responsabilidades, a fim de que sem hesitações se criem condições de desenvolvimento autêntico para todos.

Os povos têm direito ao desenvolvimento: portanto, são as formas de organização das forças económicas, políticas e sociais e os mesmos critérios de distribuição do trabalho até hoje experimentados que devem ser revistos e correctos, em virtude do direito ao trabalho que cada um tem no contexto do bem comum. O Pontifício Conselho «Justiça e Paz» continua a manter viva esta urgente necessidade, entrando num diálogo esclarecedor com qualificados representantes das várias categorias económicas e sociais, como os empresários, os economistas, os sindicalistas, as instituições internacionais e o mundo académico.

Enquanto agradeço ao Presidente e a todos os Colaboradores deste Dicastério a sua generosa dedicação, apresento cordiais bons votos por que o seu empenhamento contribua eficazmente para implantar a civilização do Amor nos âmbitos das vicissitudes humanas. Formulo ainda votos aos Professores aqui presentes a fim de que sejam especialistas formadores das novas gerações, sustentados pela fé em Cristo, Redentor de todo o homem e do homem todo, pelo constante contacto com as problemáticas da época contemporânea, por uma amadurecida experiência pastoral e pelo uso inteligente dos modernos meios de comunicação social.

A minha Bênção vos conforte no vosso trabalho.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO SENHOR ESTEBAN JUAN CASELLI


NOVO EMBAIXADOR DA REPÚBLICA DA ARGENTINA


JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO


DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


20 de Junho de 1997



Senhor Embaixador

1. É-me grato receber as Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República Argentina junto da Santa Sé.

Antes de tudo, desejo expressar-lhe a minha gratidão pelas amáveis palavras que acaba de me dirigir. Elas manifestam as nobres intenções que o animam neste momento em que Vossa Excelência inicia a missão ao serviço do seu País, testemunhando também as relações sinceras e cordiais que a Santa Sé mantém com a Argentina. Desejo agradecer- lhe, em particular, a deferente saudação que me transmitiu da parte do Senhor Presidente, Dr. Carlos Saúl Menem, e ao mesmo tempo peço que lhe transmita os meus melhores desejos de paz e bem-estar, juntamente com os meus votos pela prosperidade e o progresso integral de todos os filhos e filhas dessa nobre Nação.

2. As minhas palavras, Senhor Embaixador, querem ser de estímulo e esperança, agora que o povo argentino se prepara para enfrentar os desafios do terceiro milénio. Os desafios do futuro são numerosos e representam obstáculos nem sempre fáceis de superar; mas as dificuldades não devem ser motivo de desânimo, pois a Argentina conta com uma base sólida para a construção do seu porvir: as suas profundas raízes cristãs, vestígio eloquente de 500 anos de presença evangelizadora da Igreja em terras americanas.

Neste momento da vida nacional, a Igreja reafirma a sua vocação de serviço a todos os homens, impregnando de sentido cristão a cultura e iluminando a consciência moral de cada um, para que as suas opções tenham sempre em conta os valores éticos fundamentais. Deste modo, a Igreja contribui para a edificação de uma sociedade que corresponda ao plano de Deus: uma sociedade fraterna e reconciliada, onde reinem a laboriosidade, a honestidade e o espírito participativo; uma sociedade em que sejam tutelados sempre os direitos fundamentais de todos os cidadãos, principalmente dos mais frágeis.

3. No exercício da sua missão, tanto no seu País como nos demais lugares onde ela se difunde, a Igreja presta uma atenção singular à formação integral da pessoa, e em particular das crianças e dos jovens, oferecendo um ensinamento baseado nos princípios humanos e morais cristãos. Os católicos argentinos, sobretudo os que estão comprometidos na educação, trabalham com seriedade para ajudar as novas gerações, que representam o futuro da Nação, a ser conscientes dos seus deveres, em ordem ao bem comum e à compreensão cordial entre todos, tão necessária para a vida democrática.

A Igreja considera que o Estado de direito e a aplicação de princípios democráticos, com os quais é possível resolver os conflitos mediante a negociação e o diálogo, são importantes para a salvaguarda e o exercício dos direitos humanos no mundo contemporâneo, contanto que não estejam assentes no relativismo moral, lamentavelmente difundido nos nossos tempos. Este pretende rejeitar toda a certeza sobre o sentido da vida do homem e da sua dignidade fundamental, que devem ser respeitadas por todas as instâncias sociais, e não reage ante diversas formas de manipulação e menosprezo das mesmas, fazendo perder de vista o que constitui a mais genuína nobreza da democracia: a defesa do valor incomparável da pessoa humana.

4. A Santa Sé aprecia o empenho do Governo argentino por fazer valer o direito inalienável à vida, levantando a sua voz, de forma responsável e resoluta nos fóruns internacionais, com frequência em conjunturas caracterizadas pela difusão de uma cultura contrária à vida, que em muitos casos se configura como verdadeira «cultura de morte», e apresenta o recurso ao aborto e à eutanásia como um sinal de progresso e conquista de liberdade. Hoje é urgente, portanto, um esforço ético comum para pôr em prática uma grande estratégia em favor da vida. Esta tarefa compete em particular aos responsáveis sociais, que têm o dever de tomar decisões corajosas na sua defesa, especialmente no campo das disposições legislativas, assegurando o apoio devido à família, uma vez que «a política familiar deve constituir o ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais» (Evangelium vitae EV 90).

A respeito disso, quando não faltam vozes que pretendem difundir uma mentalidade antinatalista e uma visão errada da sexualidade, pedindo que a lei autorize o crime abominável do aborto, e quando se insinua às vezes o perigo da aceitação da manipulação genética dos meios de reprodução humana, os homens e as mulheres de boa vontade são chamados a sustentar e promover a instituição familiar e a sua base insubstituível, que é — segundo o desígnio divino — o matrimónio indissolúvel entre um homem e uma mulher. Não se deve esquecer de que sem a solidez das famílias não só se debilita a vida eclesial, mas também se deteriora o bem comum da Nação.

5. O desenvolvimento dos povos depende em grande parte de uma autêntica integração numa ordem mundial solidária. À Igreja cabe não tanto propor programas operativos concretos, que são alheios à sua competência, quanto iluminar melhor a consciência moral dos responsáveis políticos, económicos e financeiros. Por isso, ela põe em evidência o princípio de solidariedade como fundamento de uma verdadeira economia de comunhão e participação de bens, na ordem tanto internacional como nacional. Esta solidariedade exige que se compartilhem, de modo equitativo, os esforços por resolver os problemas do subdesenvolvimento e os sacrifícios necessários para superar as crises económicas, tendo em conta as necessidades das populações mais indefesas.

6. São louváveis os esforços que se fazem nos diversos âmbitos do País, para elevar o nível espiritual e material dos cidadãos. A este respeito, como tiveram ocasião de o ressaltar também os Bispos argentinos, fazendo-se eco do Magistério, a Igreja afirma que tais iniciativas se devem inspirar nos valores morais, que fundamentam a pacífica e próspera convivência, assegurando o melhor desenvolvimento integral dos membros da comunidade nacional.

Quereria concluir as minhas palavras exortando e encorajando toda a sociedade argentina a fomentar na vida pública as virtudes da prudência, da fortaleza, da temperança e da justiça. Esta atitude será guia segura para o cumprimento leal do próprio dever e responsabilidade, para poder superar as dificuldades que se apresentarem e olhar com esperança para o futuro da Nação.

7. Senhor Embaixador, neste momento em que tem início o exercício da alta função, para a qual Vossa Excelência foi designado, faço votos por que a sua tarefa seja frutuosa e contribua para consolidar cada vez mais as boas relações existentes entre esta Sé Apostólica e a República Argentina, para o que poderá contar sempre com o acolhimento e o apoio dos meus colaboradores. Ao pedir- lhe que se faça intérprete dos meus sentimentos e bons votos junto do Senhor Presidente da Nação e do querido Povo argentino, asseguro-lhe a minha oração ao Todo-poderoso, por intercessão da Virgem de Luján, para que com os seus dons o assista, bem como a sua ilustre família, o pessoal da sua Embaixada e os governantes e cidadãos do seu País, do qual sempre me recordo com particular afecto e sobre o qual invoco abundantes bênçãos do Senhor.



MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


AO CARDEAL CASSIDY POR OCASIÃO


DA SEGUNDA ASSEMBLEIA ECUMÉNICA EUROPEIA


REALIZADA EM GRAZ (ÁUSTRIA)


: Ao Cardeal Edward Idris Cassidy
Presidente do Pontifício Conselho
para a Promoção da Unidade dos Cristãos

«A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós» (2Co 13,13).

1. Com esta saudação do Apóstolo Paulo, exprimo os meus bons votos a Vossa Eminência e aos participantes na segunda Assembleia Ecuménica Europeia, que se realiza em Graz. Peço-lhe que tenha a amabilidade de transmitir a certeza da minha sincera proximidade aos Irmãos e Irmãs das Igrejas cristãs e das Comunidades eclesiais da Europa que, em nome do Senhor e num espírito de reconciliação, se reuniram para escutar a palavra de Deus que nos chama à reconciliação e à comunhão. Essa saudação de São Paulo aos Coríntios é tanto uma proclamação como uma bênção, das quais os cristãos de todas as épocas têm sentido a necessidade. Essa introduz-nos no mistério do amor redentor de Deus, que nos amou a ponto de nos dar o seu Filho unigénito, Jesus Cristo. A Redenção levada a cabo pelo Filho transformou a nossa relação com Deus, não só vencendo o pecado, mas derramando a sua Graça sobre nós e estabelecendo uma nova comunhão de vida: «Quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus por meio da morte do seu Filho» (Rm 5,10). Os cristãos vivem em comunhão com o Pai pelo poder do perdão que receberam através da Cruz de Cristo.

O tema da segunda Assembleia Ecuménica Europeia, reconciliação como «Dádiva de Deus e Manancial da Nova Vida», é deveras oportuno. Como São Paulo no-lo recorda, a reconciliação é obra de Deus (cf. 2Co 5,18). Esta é justamente considerada o fundamento de cada acto de reconciliação eclesial e social. A reconciliação com Deus está intimamente relacionada e é consequência da reconciliação com o próximo, e de facto o Senhor considera a eficácia de cada acto de louvor em relação à reconciliação. «Se fores ao altar para levares a tua oferta — diz Ele — e aí te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a oferta aí diante do altar e vai primeiro fazer as pazes com o teu irmão; depois, volta para apresentar a oferta» (Mt 5,23-24).

2. Esta Assembleia tem lugar depois de um intenso desenvolvimento nas relações e no diálogo teológico entre cristãos, um desenvolvimento que ocasionou uma nova atmosfera entre nós. É com alegria que observo que um resultado particularmente valioso deriva dos nossos contactos e que o diálogo constitui o fortalecimento do nosso empenho na plena unidade, com base na nossa crescente consciência das características da fé que temos em comum (cf. Carta encíclica Ut unum sint, UUS 49). De maneira especial, uma compreensão mais preclara das características de comunhão existentes, que resultou dos diálogos precedentes, forma o fundamento mesmo deste encontro de cristãos com diferentes afiliações confessionais. Estou persuadido de que o vosso encontro constituirá uma fonte de grande júbilo ao discernirdes cada vez mais claramente entre vós mesmos a expressão do próprio Senhor e reconhecerdes nas palavras uns dos outros a admoestação a proclamar juntos a única fé em Cristo.

3. «Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou Consigo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação » (2Co 5,18). Queridos Irmãos e Irmãs, somos chamados a colocar-nos ao serviço da reconciliação, em todos os seus inumeráveis aspectos. Não dá crédito aos cristãos proclamar a mensagem da reconciliação, enquanto permanecerem divididos e às vezes até mesmo forem hostis uns aos outros. Ainda há necessidade da nossa memória histórica, maculada pelas feridas de um passado confuso e por vezes violento.

A Europa goza de um relacionamento muito especial em relação ao ecumenismo. É na Europa que surgiram as maiores divisões entre o Oriente e o Ocidente, e no contexto do Ocidente. Contudo, é também na Europa que têm lugar os esforços sérios em vista da reconciliação cristã e da busca da plena unidade visível. A Assembleia dá testemunho daquilo que se realiza no encorajamento do diálogo teológico, mediante a promoção do movimento espiritual conhecido como diálogo da caridade, que cria as condições em que o diálogo pode desenvolver- se com clareza, franqueza e confiança recíproca.

4. A outro nível, o continente europeu aspira hoje à reconciliação dos seus povos e à eliminação da diferença entre as condições sociais. Um relacionamento mais positivo surgiu entre o Oriente e o Ocidente a seguir ao declínio dos regimes comunistas. Contudo, também nasceram novos problemas e novas tensões que, por vezes, se têm expresso com a violência e os conflitos armados. Os cristãos têm uma especial responsabilidade nestes confrontos, pois o espírito do perdão e da paz faz parte da sua própria herança espiritual.

Numa Europa que está em busca duma coesão não só económica, mas também política e social, os cristãos do Oriente e do Ocidente podem oferecer uma contribuição comum e contudo distinta à dimensão espiritual do continente. Não podemos esquecer nem considerar erroneamente os valores que a cristandade conferiu à história da Europa. Como seguidores de Cristo, todos nós devemos estar profundamente convictos de que temos uma comum responsabilidade no que concerne ao respeito dos direitos humanos, da justiça, da paz e daquilo que pertence à sacralidade da vida. Em particular, no meio do indiferentismo e da secularização crescentes, somos chamados a dar testemunho dos valores da vida e da fé na Ressurreição que impregnam toda a mensagem cristã.

Deus abençoe o trabalho da Assembleia, a fim de que possa ser uma expressão tangível da nossa peregrinação rumo à reconciliação no nome do Senhor. Com a sua ajuda, oxalá os cristãos em toda a parte possam celebrar juntos o Terceiro Milénio e, inspirados na nossa comum fé em Jesus Cristo, Senhor e Salvador do mundo, possamos implorar d’Ele, com renovado entusiasmo e uma consciência mais profunda, a graça de nos prepararmos juntos para oferecer o sacrifício da unidade: pois para Deus a melhor oferta é a paz, a concórdia fraterna e um povo congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. Ut unum sint, UUS 102).

Vaticano, 20 de Junho de 1997.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


A UM GRUPO DE SÓCIOS DO CÍRCULO DE SÃO PEDRO


21 de Junho de 1997





Caríssimos Sócios do Círculo de São Pedro

1. Estou feliz em vos receber por ocasião deste agradável encontro, que me renova a oportunidade de manifestar-vos o meu apreço e o meu reconhecimento pelo vosso generoso compromisso ao serviço da Santa Sé. Esta Audiência realiza-se durante a Novena em preparação para a Solenidade litúrgica dos Santos Pedro e Paulo. Num certo sentido, isto permite-nos prelibar a alegria de tal ocorrência, tão significativa para o vosso benemérito Sodalício e para a Igreja inteira.

O meu pensamento afectuoso dirige-se antes de tudo ao vosso Assistente espiritual, Mons. Ettore Cunial, que desde há muitos anos anima e sustém com admirável zelo a vossa Associação. Depois, agradeço ao vosso Presidente, Marquês Marcello Sacchetti, as amáveis palavras que me dirigiu em nome de todos e a interessante descrição das actividades e dos projectos do Sodalício. Enfim, saúdo cordialmente cada um de vós aqui presentes, expressando o meu reconhecimento ao Marquês Giovanni Serlupi Crescenzi pela generosidade e pelo espírito de fé com que guiou durante vários anos a vida associativa do Círculo.

2. Como há pouco se recordou, reunistes-vos hoje aqui para me oferecer o Óbolo de São Pedro, recolhido nas igrejas de Roma. Agradeço-vos este sinal concreto de solidariedade e a generosa colaboração que me ofereceis nas obras de caridade para com os irmãos. Com efeito, este vosso gesto representa como que um ponto de encontro entre dois movimentos complementares, que se unem num único testemunho de caridade evangélica. De facto, por um lado manifesta o afecto que os habitantes desta Cidade nutrem pelo Sucessor de Pedro e, por outro, exprime a efectiva solidariedade do Papa para com os necessitados que se encontram em Roma, com o olhar que abarca muitas situações de dificuldade e de indigência que, infelizmente, subsistem em tantas partes do mundo.

Aproximando-vos das paróquias romanas, entrastes pessoalmente em contacto com as multíplices sacas de pobreza ainda presentes, mas também pudestes constatar como é forte na maioria das pessoas o desejo de conhecer e amar a Cristo. Com a vossa preparação humana e espiritual, além de prover às necessidades dos menos afortunados, contribuís para difundir uma palavra de esperança que nasce da fé e do amor ao Senhor, fazendo-vos assim arautos do seu Evangelho.

Portanto, caridade e testemunho devem constituir as linhas-mestras do vosso compromisso. Encorajo-vos a prosseguir com constância e generosidade nesta vossa acção, inspirando-vos nos perenes valores cristãos e haurindo sempre novas energias da oração e do espírito de sacrifício — como diz o vosso lema — para continuardes a dar abundantes frutos de bem na Comunidade cristã e na sociedade civil.

3. Como sabeis, durante a última Quaresma teve início a entrega do Evangelho de Marcos a todas as famílias romanas, no âmbito da grande Missão da Cidade. Esta constitui um premente convite à renovação espiritual, cultural e social, que se dirige a todos os âmbitos de vida da Metrópole, para preparar dignamente o Grande Jubileu do Ano 2000. Por ocasião da solene Vigília de Pentecostes do ano passado, tive a oportunidade de salientar que «com esta iniciativa apostólica, a Igreja que está em Roma deseja abrir os braços a todas as pessoas e famílias da Cidade e penetrar como fermento em cada âmbito social, de trabalho, de sofrimento, de arte e de cultura, anunciando e testemunhando aos próximos e aos distantes o Senhor ressuscitado» (ed. port. de L'Osservatore Romano de 1 de Junho de 1996, n. 5, pág. 3).


Discursos João Paulo II 1997 - 19 de Junho de 1997