Discursos João Paulo II 1997 - 30 de Setembro de 1997

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO INTERNACIONAL


DE JOVENS CONSAGRADOS


30 de Setembro de 1997



Caríssimos jovens consagrados e consagradas

1. É-me deveras grato encontrar-me convosco, que viestes a Roma de todas as partes do mundo, por ocasião do Congresso Internacional dos Jovens Religiosos e Religiosas. Saúdo o Senhor Cardeal Eduardo Martínez Somalo, Prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, e agradeço-lhe as cordiais palavras que há pouco me quis dirigir em nome de todos vós. Saúdo o Rev.do Padre Camilo Maccise e a Rev.da Madre Giuseppina Fragasso, Presidentes respectivamente das Uniões dos Superiores-Gerais e das Superioras-Gerais. Eles promoveram o hodierno encontro, que vê congregados pela primeira vez jovens pertencentes a inumeráveis Famílias religiosas, em um momento significativo da história da Igreja e da vida consagrada. Dirijo a minha saudação aos Superiores-Gerais e às Superioras- Gerais dos vários Institutos aqui representados.

Saúdo especialmente vós, prezados consagrados e consagradas. Alguns de vós se fizeram intérpretes dos sentimentos de todos, manifestando-me as expectativas e as generosas aspirações que animam a vossa juventude consagrada a Deus e à Igreja. A vossa presença tão numerosa e festiva não pode deixar de evocar à memória a imagem, ainda viva na minha mente e querida ao meu coração, do XII Dia Mundial da Juventude, celebrado em Paris no passado mês de Agosto. Assim como aquela multidão entusiasta de jovens, através da consagração a Deus que «alegra a juventude », vós representais a manifestação rica e exaltante da perene vitalidade do espírito. Pode-se dizer que agora os jovens estão de moda: jovens em Paris, jovens no sábado passado, em Bolonha. Vamos ver agora, no Rio de Janeiro.

2. É com prazer que observo um motivo de continuidade entre o evento de Paris e o actual Congresso, felizmente posto em evidência pelas temáticas dos dois encontros. Com efeito, se o tema do Dia Mundial da Juventude era proposto pelas palavras do Evangelho de João: «Mestre, onde moras?». «Vinde ver!» (Jn 1,38-39), o do vosso Congresso indica o acolhimento do convite dirigido por Jesus aos discípulos, culminado no anúncio pascal da descoberta decisiva do Ressuscitado: «Nós vimos o Senhor» (Jn 20,25). Vós sois as testemunhas privilegiadas desta formidável verdade, perante o mundo inteiro: o Senhor ressuscitou e torna-Se companheiro de viagem do homem peregrino ao longo das veredas da vida, até que as sendas do tempo se cruzem com a via do Eterno, quando «O veremos como Ele é» (1Jn 3,3).

A vida consagrada reveste assim um carisma profético porque se estende entre a experiência do «ter visto o Senhor» e a esperança certa de O ver «como Ele é». Trata-se de um caminho que iniciastes e que vos levará progressivamente a adquirir os mesmos sentimentos de Jesus Cristo (cf. Fl Ph 2,5). Deixai que o Pai, mediante a acção do Espírito, plasme nos vossos corações e nas vossas mentes o mesmo sentir de seu Filho.

Vós sois chamados a vibrar com a Sua própria paixão pelo Reino, a oferecer como Ele as vossas energias, o tempo, a juventude e a existência pelo Pai e pelos irmãos. Desta forma havereis de aprender uma autêntica sabedoria de vida. Caros jovens, esta sabedoria é o sabor do mistério de Deus e o gosto da intimidade divina, mas é também a beleza do estar juntos em Seu nome, é a experiência de uma vida casta, pobre e obediente, despendida pela Sua glória, é o amor pelos pequeninos e pelos pobres, e a transfiguração da vida à luz das bem-aventuranças. Este é o segredo da alegria de inúmeros religiosos e religiosas, alegria desconhecida ao mundo e que vós tendes o dever de comunicar aos outros vossos irmãos e irmãs, mediante o testemunho luminoso da vossa consagração.

3. Queridos religiosos e religiosas, quanta riqueza espiritual possui a vossa história! Quão preciosa é a herança que tendes nas vossas mãos! Porém, recordai que tudo isto vos é concedido não só para a vossa perfeição, mas também para que o coloqueis à disposição da Igreja e da humanidade, a fim de que constitua motivo de sabedoria e de felicidade para todos.

Assim o fez Santa Teresa de Lisieux, com o seu «caminho da infância espiritual », que é uma autêntica teologia do amor. Jovem como vós, conseguiu transmitir a inumeráveis almas a beleza da confiança e o abandono em Deus, da simplicidade da infância evangélica, da intimidade com o Senhor, da qual brotam espontaneamente a comunhão fraterna e o serviço ao próximo. A simples e grande Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face será proclamada Doutora da Igreja precisamente por este motivo: porque com a «teologia do coração» soube indicar, com termos acessíveis a todos, um caminho seguro para buscar a Deus e para se deixar encontrar por Ele.

Esta é também a experiência de muitos irmãos e irmãs vossos, tanto do passado como do presente. Eles souberam encarnar, no silêncio e na vida oculta, a alma tipicamente apostólica da vida religiosa e, em particular, a extraordinária capacidade da pessoa consagrada de unir a intensidade da contemplação e do amor a Deus ao ardor da caridade para com os pobres, os necessitados e todas as pessoas que o mundo frequentemente marginaliza e rejeita.

4. O vosso Congresso não é apenas um encontro de pessoas jovens e para jovens religiosos, mas é uma proclamação e um testemunho proféticos para todos. Viestes de todos os recantos do mundo para reflectir acerca dos temas fulcrais da vida consagrada: vocação, espiritualidade, comunhão e missão. Além disso, desejais compartilhar as vossas experiências em um contexto de oração e de fraternidade jubilosa. Desta forma, a vida consagrada resplandece de vivacidade, como uma parte do espírito sempre juvenil da Igreja.

Em virtude do facto de serdes tão numerosos e jovens, ofereceis uma imagem vibrante e contemporânea da vida consagrada. Decerto, todos nós estamos cônscios dos desafios que se devem enfrentar nessa vida, especialmente em determinados países. Entre estes desafios estão incluídos a idade avançada dos religiosos e das religiosas, a reorganização dos apostolados, a presença decrescente e a diminuição numérica das vocações. Contudo, estou persuadido de que o Espírito Santo não deixará de estimular e encorajar em muitos jovens como vós a vocação à total consagração a Deus, tanto nas tradicionais formas da vida religiosa, como nas formas inovativas e originais.

5. Prezados amigos, agradeço-vos terdes vindo ver-me. Rejuvenesceis a Igreja com o entusiasmo e a alegria que demonstrais, antes ainda que através da vossa idade. Quereria que lêsseis no meu coração o afecto e a estima que nutro por todos e cada um de vós. O Papa ama-vos, tem confiança em vós, reza por vós e está convicto de que sereis capazes não somente de evocar e narrar a gloriosa história que vos precedeu, mas também de continuar a edificá-la no futuro que o Espírito Santo vos prepara (cf. Vita consecrata VC 110).

Enquanto nos dispomos para entrar no ano do Espírito Santo, em preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000, confiamos precisamente ao Espírito do Pai e do Filho a grandiosa dádiva da vida consagrada e todos aqueles que, em cada uma das partes do mundo, se colocam generosamente na sequela de Cristo casto, pobre e obediente. Invoquemos com esta intenção a intercessão dos Santos Fundadores e Fundadoras das vossas Ordens e Congregações; invoquemos sobretudo a ajuda de Maria, a Virgem consagrada por excelência.

6. Maria, jovem filha de Israel, Tu que respondeste imediatamente «sim» à proposta do Pai, torna estes jovens atentos e obedientes à vontade de Deus. Tu que viveste a virgindade como acolhimento total do amor divino, faze com que descubram a beleza e a liberdade de uma existência casta. Tu que nada possuíste a fim de seres rica somente de Deus e da sua Palavra, liberta o coração deles de todos os apegos mundanos, para que o Reino de Deus constitua o seu único tesouro, a sua única paixão.

Jovem Filha de Sião, que permaneceste sempre virgem no teu coração apaixonado por Deus, conserva neles e em todos nós a perene juventude do espírito e do amor. Virgem das dores, que permaneceste junto da Cruz do Filho, gera em cada um dos teus filhos, como o fizeste no Apóstolo João, o amor que é mais forte do que a morte. Virgem Mãe do Ressuscitado, faze de todos nós testemunhas da alegria de Cristo eternamente vivo.

De coração, abençoo todos vós.

                                                                              

                                                                                      Outubro de 1997

MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DO 80° ANIVERSÁRIO


DAS APARIÇÕES MILAGROSAS


DE NOSSA SENHORA DE FÁTIMA




Venerável Irmão Serafim de Sousa Ferreira e Silva
Bispo de Leiria-Fátima


Fraternas saudações em Cristo Senhor

O octogésimo aniversário daquele dia 13 de Outubro de 1917, quando houve no céu a prodigiosa «dança do sol», torna-se ocasião propícia para me dirigir em espírito, dada a impossibilidade de o fazer fisicamente, até esse Santuário com uma prece à Mãe de Deus pela preparação do povo cristão — e de algum modo da humanidade inteira — para o Grande Jubileu do Ano 2000, e com um apelo às famílias e comunidades eclesiais para a reza diária do Terço.

Às portas do Terceiro Milénio, olhando os sinais dos tempos neste século XX, Fátima conta-se certamente entre os maiores, até porque anuncia na sua Mensagem e condiciona à vivência dos seus apelos muitos dos restantes que lhe sobrevieram; sinais como as duas guerras mundiais, mas também grandes assembleias de Nações e povos sob o signo do diálogo e da paz; a opressão e convulsões sofridas por diversas Nações e povos, mas também a voz e a vez dadas a populações e gentes que entretanto se levantaram na Arena internacional; as crises, deserções e tantos sofrimentos nos membros da Igreja mas também uma renovada e intensa sensação de solidariedade e mútua dependência no Corpo Místico de Cristo, que se vai consolidando em todos os baptizados, segundo as respectivas vocação e missão; o afastamento e abandono de Deus da parte de indivíduos e sociedades, mas também uma irrupção do Espírito da Verdade nos corações e nas comunidades, tendo-se chegado à imolação e ao martírio para salvar «a imagem e semelhança de Deus no homem» (cf. Gn Gn 1,27), para salvar o homem do homem. De entre estes e outros sinais dos tempos, como dizia, sobressai Fátima, que nos ajuda a ver a mão de Deus, Guia providente e Pai paciente e compassivo também deste século XX.

Lendo, a partir de Fátima, o afastamento humano de Deus, convém recordar que não é esta a primeira vez que Ele, sentindo-Se rejeitado e repelido pelo homem, deixa a sensação, no respeito da liberdade dos homens, de afastar-Se com o consequente obscurecimento da Vida, que faz cair a noite sobre a História, mas depois de providenciar um abrigo. Já assim aconteceu no Calvário, quando Deus humanado, pela mão dos homens, foi crucificado e morreu. E que fez Ele? Depois de ter invocado a clemência do Céu com as palavras «perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34), entregou a humanidade a Maria, sua Mãe: «Mulher, eis aí o teu Filho» (Jn 19,26). Uma leitura simbólica deste quadro evangélico permitiria ver espelhada nele a cena final da experiência, conhecida e frequente, do filho que, sentindo- se incompreendido, confuso ou revoltado, abandona a casa paterna para se adentrar na noite... E é o xale da mãe que o vem cobrir no sono frio, pondo remédio ao desespero e à solidão. Sob o Manto maternal que, de Fátima, se estende a toda a terra, a humanidade sente voltar-lhe a saudade da Casa do Pai e do seu Pão (cf. Lc Lc 15,17). Amados peregrinos, como se pudésseis abraçar toda a humanidade, peço-vos que, em seu nome e por ela, digais: «À vossa protecção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita».

«Mulher, eis aí o teu filho!». Assim falou Jesus à sua Mãe, pensando em João, o discípulo amado que se achava, ele também, ao pé da cruz. A cruz, quem a não tem?! Carregá-la dia a dia, seguindo os passos do Mestre, é a condição que o Evangelho nos impõe (cf. Lc Lc 9,23), certamente como uma bênção de salvação (cf. 1Co 1,23-24). O segredo está em não perder de vista o Primeiro Crucificado, a Quem o Pai respondeu com a glória da ressurreição, e que abriu esta peregrinação de bem-aventurados. Essa contemplação tomou a forma simples e eficaz da meditação dos mistérios do Terço, consagrada popularmente e recomendada com grande insistência pelo Magistério da Igreja. Caríssimos irmãos e irmãs, rezai o Terço todos os dias! Peço encarecidamente aos Pastores que rezem e ensinem a rezar o Terço nas suas comunidades cristãs. Para o fiel e corajoso cumprimento dos deveres humanos e cristãos próprios do estado de cada um, ajudai o Povo de Deus a voltar à recitação diária do Terço, esse doce colóquio de filhos com a Mãe que «receberam em sua casa» (cf. Jo Jn 19,27).

Associando-me a esse colóquio e fazendo minhas as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de cada um, saúdo fraternalmente quantos tomam parte, física ou espiritualmente, nesta peregrinação de Outubro, invocando para todos, mas de modo especial para os doentes, o conforto e a fortaleza de Deus, para aceitarem «completar na sua carne o que falta aos sofrimentos de Cristo» (cf. Cl Col 1,24), recordados daquele «mistério tremendo e nunca suficientemente meditado» de que «a salvação de um grande número de almas depende das orações e mortificações voluntárias, suportadas com essa intenção, dos membros do Corpo Místico de Jesus Cristo, e da obra de colaboração que os Pastores e os fiéis, especialmente os pais e mães de família, devem prestar ao nosso divino Salvador» (PIO XII, Enc. Mystici Corporis, 1ª parte, II § 26). A todos, Pastores e fiéis, sirva de encorajamento a minha Bênção Apostólica.

Vaticano, 1 de Outubro de 1997.



JOÃO PAULO II




MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES DO ENCONTRO INTERNACIONAL


«HOMENS E RELIGIÕES» REALIZADO EM PÁDUA E VENEZA






Ao venerado Irmão ROGER Cardeal ETCHEGARAY
Presidente do Pontifício Conselho «Justiça e Paz»

1. É-me particularmente grato fazer chegar, por seu intermédio, a minha saudação cordial e a expressão da minha estima aos ilustres Representantes das Igrejas e Comunidades cristãs e das grandes Religiões mundiais, reunidos por ocasião do Encontro Internacional de Oração, que tem como tema: «A paz é o nome de Deus». Passaram-se doze anos desde que se realizou em Assis, no final do mês de Outubro, a histórica Jornada de Oração pela Paz. Desejei muito aquele encontro. Diante do drama de um mundo dividido e sujeito à terrível ameaça da guerra, não podia deixar de brotar do coração de cada crente um coral brado ao Deus da paz! Reunidos no monte de Assis, orámos todos por um futuro melhor em benefício da humanidade inteira. No dia seguinte àquela significativa jornada, exortei todos a perseverarem na difusão da mensagem de paz e no empenho a viver o «espírito de Assis», de maneira que constituísse o início de um caminho de reconciliação sempre mais vasto e participado.

2. Hoje sinto-me feliz por constatar como a dinâmica de paz, que em Assis recebeu um impulso singular, se tenha enriquecido em amplitude e profundidade. Agradeço de coração à Comunidade de Santo Egídio que, com entusiasmo e fidelidade, acolheu o «espírito de Assis» e, em torno dele, continuou a fazer convergir crentes de todas as Religiões e de todos os continentes, convidando-os a reflectir e a orar pela paz. Deste modo, formou-se e consolidou-se uma peregrinação de pessoas de boa vontade, desejosas de mostrar aos próprios irmãos o nome pacífico de Deus, o Qual quer salvaguardar e promover a vida de cada criatura racional. Esta simbólica marcha da paz faz paragem, este ano, antes em Pádua e depois em Veneza. Uno-me espiritualmente a ela e dirijo, antes de tudo, um afectuoso pensamento ao Cardeal Marco Cé, Patriarca de Veneza, e a D. António Mattiazzo, Arcebispo-Bispo de Pádua, que hospedam tão importante iniciativa. Saúdo, de igual modo, as Comunidades cristãs da Região Véneta, que no decurso dos séculos exerceram uma importante função de ponte entre o Oriente e o Ocidente. A história ensina como é precioso e profícuo o encontro entre os povos, e como é importante eliminar com vontade decidida conflitos, divisões e contrastes, para dar lugar à cultura da tolerância, do acolhimento e da solidariedade. Este processo de paz deve conhecer uma aceleração, agora que faltam apenas dois anos para o alvorecer do novo Milénio. Na perspectiva dessa data histórica, a expectativa é repleta de reflexão e esperança. Se considerarmos os séculos passados e, sobretudo, estes últimos cem anos, não é difícil vislumbrar, juntamente com as luzes, muitas sombras. Como não recordar as imensas tragédias que se abateram sobre a humanidade durante o século que está para terminar Ainda é viva a memória das duas guerras mundiais, com os atrozes extermínios por elas provocados. E persistem infelizmente, ainda hoje, violentos e cruéis massacres de homens, mulheres e crianças inermes. Para o crente, assim como para todos os homens de boa vontade, tudo isto é inaceitável! Pode-se talvez permanecer indiferente diante desses dramas? Eles constituem, para cada homem e para cada mulher de recto sentir, um premente apelo ao empenho de oração e de testemunho em favor da paz.

3. Eu tinha bem presentes no espírito estas preocupantes situações quando, na mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, escrevia: «É tempo de nos decidirmos a empreender, juntos e com ânimo firme, uma verdadeira peregrinação de paz, cada qual a partir da situação concreta em que se encontra. As dificuldades são, por vezes, demasiado grandes: a proveniência étnica, a língua, a cultura, a crença religiosa constituem frequentemente uma série de obstáculos. Caminhar juntos, quando sobre os ombros pesam experiências traumatizantes ou mesmo divisões seculares, não é uma empresa fácil» (n. 1). A fé, dom de Deus, certamente não torna os crentes estranhos às dificuldades da história. Ao contrário, impele-os a agir com todos os meios, para que cresça a consciência da comum responsabilidade em construir a paz. Mais que nunca é necessário abandonar a «cultura da guerra», a fim de desenvolver uma sólida e duradoura «cultura da paz». A esta empresa os crentes são chamados a oferecer a sua peculiar contribuição. Entretanto, jamais se deve esquecer que as guerras são tragédias que deixam atrás de si vítimas e destruições, ódios e vinganças, mesmo quando pretendem sufocar as controvérsias e resolver os conflitos.

4. Quanto a isto, os responsáveis das diferentes Religiões podem oferecer uma contribuição determinante. Elevando a voz contra as guerras e enfrentando com coragem os riscos que delas derivam. Além disso, eles podem deter os excessos de violência que periodicamente se manifestam, não favorecendo quantos prefiguram conflitos entre os que pertencem a crenças diferentes e actuando para extirpar as raízes amargas da desconfiança, do ódio e da inimizade. São precisamente estes sentimentos que estão na origem de muitos conflitos. Eles nascem e prosperam no terreno da estraneidade e é neste âmbito que se torna necessário intervir com decisão e coragem.

Vencer as inúmeras incompreensões que separam e opõem os homens entre si: eis a tarefa urgente a que são chamadas todas as Religiões! A reconciliação sincera e duradoura é a via a seguir, a fim de dar vida a uma paz autêntica, fundada sobre o respeito e a compreensão recíproca. Ser artífice solerte da paz: este é o empenho de cada crente, sobretudo na fase histórica que a humanidade está a viver já no limiar do Terceiro Milénio.

Veneza representa nestes dias um singular fragmento de esperança na obra de construção da paz. O Deus da justiça e da paz abençoe e proteja todos os que nestes dias se empenham em testemunhar entre as queridas populações da Região véneta o «espírito de Assis», fazendo- se construtores de solidariedade para um mundo mais justo e fraterno.

Enquanto confio a Vossa Eminência, Senhor Cardeal, o encargo de exprimir aos ilustres Representantes provenientes das várias partes do mundo e a todos os Participantes neste importante encontro a minha mais sentida solidariedade, asseguro uma particular lembrança na oração e a todos saúdo cordialmente.

Vaticano, 1 de Outubro de 1997.

JOÃO PAULO II




VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO RIO DE JANEIRO - BRASIL POR OCASIÃO

DO II ENCONTRO MUNDIAL COM AS FAMÍLIAS

(2-6 DE OUTUBRO DE 1997)

CERIMÓNIA DE BOAS-VINDAS

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


Aeroporto da Base Aérea do Galeão, Rio de Janeiro

Quinta-feira, 22 de Outubro de 1997



Senhor Presidente

1. Tenho a grata satisfação de apresentar a Vossa Excelência, na sua qualidade de Chefe e representante supremo da grande Nação brasileira, as minhas respeitosas saudações. Agradeço de coração pela delicadeza que teve em acolher-me. Para mim é uma honra e um prazer encontrar-me novamente no Brasil, entre este Povo, cuja hospitalidade admirável e cuja alegria contagiante me são bem conhecidas.

Saúdo também a vós, veneráveis Irmãos no Episcopado. Em primeiro lugar, ao Senhor Cardeal Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro e seus Bispos Auxiliares, cuja Arquidiocese me oferece acolhida no marco do Segundo Encontro Mundial do Sucessor de Pedro com as Famílias; meus afetuosos cumprimentos vão, igualmente, ao Presidente do Pontifício Conselho para a Família e a todo o Conselho Episcopal Latino-Americano, bem como à Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que, em gesto de fraterna solidariedade, aqui vieram para colaborar e recolher os frutos destes dias de confraternização e, com a ajuda de Deus, levá-los de volta aos países em que realizam seu ministério. Dirijo, também, minha afetuosa saudação aos membros representantes da Pastoral Familiar, que vieram para acolher-me com este simpático grupo de crianças e de jovens. Na verdade, deixai-me dizê-lo..., aqui estou para vós, vim para estar convosco, e convosco desejo estar!

Aos representantes do Povo brasileiro, membros do Governo, personalidades civis e militares, e a todos os que aqui se encontram reunidos, saúdo com imenso afeto. Muito obrigado por terem querido receber-me tão amavelmente à minha chegada, nesta peregrinação apostólica, que considero como parte do meu ministério universal. O dinamismo da nossa fé desperte sempre mais o sentido de fraternidade e de colaboração harmoniosa, para uma convivência pacífica a impulsionar e consolidar os esforços por um progresso ordenado, que alcance todas as famílias e categorias sociais, em conformidade com os princípios da justiça e caridade cristãs.

2. Hoje venho novamente ao Brasil, para celebrar o Segundo Encontro Mundial das Famílias. Agradeço a Providência por estar aqui neste País de dimensões continentais, colocado pelas riquezas do seu solo e subsolo e pelo gênio empreendedor do seu povo na vanguarda entre as maiores Potências do mundo. A própria tradição cultural e a fé da sua gente têm marcado a evolução da sua história, que promete um futuro alvissareiro às vésperas do Terceiro Milênio. Certamente, os desequilíbrios sociais, a distribuição desigual e injusta dos meios econômicos, geradora de conflitos na cidade e no campo; a necessidade de uma ampla difusão dos meios básicos de saúde e de cultura; os problemas da infância desprotegida das grandes cidades, para não citar outros, constituem para os seus governantes um desafio de enormes proporções. Faço votos de que os valores do patrimônio cultural e religioso da Nação brasileira sirvam de base para estimular decisões justas em defesa dos valores familiares e da Pátria.

Neste contexto, desejo estender também a expressão da minha estima e afeto a duas componentes do País. Em primeiro lugar, aos povos indígenas descendentes dos primeiros habitantes desta terra antes que aqui chegassem os descobridores e colonizadores. Eles contribuíram, com sua cultura, a injetar na cultura brasileira um profundo senso da família, de respeito aos antepassados, de intimidade e de afeto doméstico. Eles merecem toda a atenção para que vivam com dignidade esta sua cultura. Exprimo os mesmos sentimentos à porção afro-brasileira – numerosa e altamente significativa – da população desta terra. Pela sua presença notável na história e na formação cultural deste País, estes brasileiros de origem africana merecem, têm direito e podem, com razão, pedir e esperar o máximo respeito aos traços fundamentais da sua cultura a fim de que, com esses traços, continuem a enriquecer a cultura da Nação, na qual estão perfeitamente integrados como cidadãos a pleno título.

Irmãos e Irmãs do Brasil, da América e do mundo inteiro! Invoco sobre todos a abundância da graça divina: que Deus os abençoe e derrame sobre as Nações de todos os Continentes, paz e prosperidade! O Cristo Redentor, que do alto do Corcovado abre os seus braços em forma de cruz, ilumine as famílias, as Comunidades eclesiais e toda a sociedade temporal com a Luz do Alto, e conceda a todos, pela intercessão de Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira da América Latina, tudo quanto de bom seu coração deseja. Muito obrigado!





VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II

AO RIO DE JANEIRO - BRASIL POR OCASIÃO

DO II ENCONTRO MUNDIAL COM AS FAMÍLIAS

(2-6 DE OUTUBRO DE 1997)

ENCONTRO COM OS BISPOS E DELEGADOS

DO CONGRESSO TEOLÓGICO SOBRE A FAMÍLIA


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


Centro de Congressos "Riocentro" - Rio de Janeiro

Sexta-feira, 3 de Outubro de 1997



Veneráveis Irmãos no Episcopado,
Queridos Congressistas

1. É grande a alegria que sinto por me encontrar com as famílias que participaram, em representação de várias nações, neste Congresso Teológico-Pastoral realizado em vista do Segundo Encontro Mundial das Famílias. Saúdo a vós, veneráveis Irmãos no Episcopado do Brasil, da América Latina e de todo o mundo, e saúdo igualmente as famílias presentes e todas quantas nelas estão representadas. Ao invocar do Todo-Poderoso abundantes graças de sabedoria e de fortaleza, que sirvam de estímulo para reafirmar com fé o lema: «Família: Dom e compromisso, esperança da humanidade», eu gostaria de refletir convosco algumas pistas e exigências do trabalho apostólico e pastoral com as famílias que tendes por diante.

Algumas das considerações, que de modo especial proponho a vós Bispos, Mestres da fé e Pastores do rebanho - chamados a imprimir um renovado dinamismo à Pastoral Familiar -, já foram objeto de atento estudo no Congresso Teológico-Pastoral. Agradeço as saudações do Senhor Cardeal Alfonso López Trujillo, Presidente do Pontifício Conselho para a Família, e convido os participantes - Delegados das Conferências Episcopais, dos Movimentos, das Associações e Grupos -, vindos de todo o mundo, a aprofundar e difundir com entusiasmo os frutos deste trabalho, empreendido com plena fidelidade ao Magistério da Igreja.

2. O homem é a via da Igreja. E a família é a expressão primordial desta via. Como escrevia na Carta às Famílias, «o mistério da Encarnação do Verbo está (...) em estreita relação com a família humana. Não apenas com uma, a de Nazaré, mas de certa forma com cada família, analogamente a quanto afirma o Concílio Vaticano II do Filho de Deus que, na Encarnação, "Se uniu de certo modo com cada homem" (Gaudium et spes GS 22). Seguindo a Cristo que "veio" ao mundo "para servir" (Mt 20,28), a Igreja considera o serviço à família uma das suas obrigações essenciais. Neste sentido, tanto o homem como a família constituem "a via da Igreja"» (Gratissimam sane, 2).

O Evangelho ilumina, portanto, a dignidade do homem, e redime tudo o que pode empobrecer a visão do homem e da sua verdade. É em Cristo onde o homem percebe a grandeza da sua chamada como imagem e filho de Deus; é n'Ele onde se manifesta em todo o seu esplendor, o projeto original de Deus-Pai sobre o homem, e é em Cristo onde tal projeto alcançará sua plena realização. É em Cristo, igualmente, onde essa primeira e privilegiada expressão da sociedade humana que é a família, encontra a luz e a plena capacidade de realização conforme os planos amorosos do Pai.

«Se é certo que Cristo "revela plenamente o homem a si mesmo", fá-lo a começar da família onde Ele escolheu nascer e crescer» (Gratissimam sane, 2). Cristo lumen gentium, luz dos povos, ilumina os caminhos dos homens. Entre eles fica iluminada, sobretudo, a íntima comunhão de vida e de amor dos esposos, que é a encruzilhada necessária na vida dos homens e dos povos, em que Deus sempre veio-lhes ao encontro.

Este é o sentido sagrado do matrimônio, de algum modo presente em todas as culturas, embora com as sombras devidas ao pecado original, e que adquire uma altura e um valor eminentes com a revelação: «Assim como Deus outrora tomou a iniciativa duma aliança de amor e fidelidade com o seu povo, assim agora o Salvador dos homens e Esposo da Igreja vem ao encontro dos esposos cristãos através do sacramento do Matrimônio. Além disso, permanece com eles, para que assim como Ele amou a Igreja e Se entregou por ela, assim os esposos, com sua mútua entrega, se amem em perpétua fidelidade» (Gaudium et spes GS 48).

3. A família não é para o homem uma estrutura acessória e extrínseca, que impede seu desenvolvimento e sua dinâmica interior. «O homem, por sua própria natureza, é um ser social, que não pode viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os outros» (Gaudium et spes GS 12). A família, longe de ser um obstáculo para o desenvolvimento e o crescimento da pessoa, é o âmbito privilegiado para fazer crescer todas as pontencialidades pessoais e sociais que o homem leva inscritas no seu ser.

A família, fundamentada e vivificada pelo amor, é o lugar próprio onde cada pessoa está chamada a experimentar, fazer próprio e participar daquele amor sem o qual o homem não pode viver, e toda a sua vida fica destituída de sentido (cf. Redemptor hominis RH 10 Familiaris consortio, 18).

As trevas que afetam, hoje em dia, a mesma concepção do homem atacam primeira e diretamente a realidade e as expressões que lhe são conaturais. Pessoa e família correm paralelas na estima e no reconhecimento da própria dignidade, como também nos ataques e tentativas de decomposição. A grandeza e a sabedoria de Deus manifestam-se em suas obras. Hoje em dia, porém, parece que os inimigos de Deus, mais que atacar frontalmente o Autor da criação, preferem defrontá-Lo em suas obras. E o homem é o cume, o auge das suas criaturas visíveis. «Gloria enim Dei, vivens homo; vita autem hominis, visio Dei» (S. Ireneu, Adv. haer. 4, 20, 7).

Entre as verdades obscurecidas no coração do homem, por causa da crescente secularização e do hedonismo reinantes, ficam especialmente afetadas todas aquelas relacionadas com a família. Em torno à família e à vida se trava hoje o combate fundamental da dignidade do homem. Em primeiro lugar, a comunhão conjugal não é reconhecida nem respeitada nos seus elementos de igualdade na dignidade dos esposos, e de necessária diferença e complementaridade sexual. A mesma fidelidade conjugal e o respeito pela vida, em todas as fases da sua existência, estão subvertidos por uma cultura que não admite a transcendência do homem criado à imagem e semelhança de Deus. Quando as forças desagregadoras do mal conseguem separar o matrimônio da sua missão respeito à vida humana, atentam contra a humanidade, furtando-lhe uma das garantias essenciais do próprio futuro.

4. O Papa quis vir até ao Rio de Janeiro para saudar-vos de braços abertos, à semelhança do Cristo Redentor, que domina esta Cidade maravilhosa do alto do Corcovado. E veio para confirmar-vos na fé, para sustentar vosso esforço em testemunhar os valores evangélicos. Por isso, diante dos problemas centrais da pessoa e da sua vocação, a atividade pastoral da Igreja não pode responder com uma ação setorial do seu apostolado. É necessário empreender uma ação pastoral nas quais as verdades centrais da fé irradiem sua força evangelizadora nos vários setores da existência, especialmente sobre os temas da família. Trata-se de uma tarefa prioritária fundada na «certeza de que a evangelização, no futuro, depende em grande parte da Igreja doméstica» (Familiaris consortio FC 65). É preciso despertar e apresentar uma frente comum, inspirada e apoiada nas verdades centrais da Revelação, que tenha como interlocutor a pessoa, e como agente a família.

Por isso, os Pastores se conscientizam cada vez mais de que a Pastoral Familiar exige agentes com uma esmerada preparação e, por sua vez, estruturas ágeis e adequadas nas Conferências Episcopais e nas dioceses, que sirvam de centros dinâmicos de evangelização, de diálogo e de ações organizadas em conjunto, com projetos bem elaborados e planos pastorais.

Ao mesmo tempo, quero encorajar todo esforço dirigido a promover adequadas estruturas organizativas, tanto no âmbito nacional como no internacional, que assumam a tarefa de tecer um diálogo construtivo com as instâncias políticas, das quais depende em boa medida a sorte da família e da sua missão a serviço da vida. Encontrar os caminhos oportunos para continuar propondo eficazmente ao mundo os valores básicos do plano de Deus, significa comprometer-se para salvaguardar o futuro da humanidade.

5. Además de iluminar y reforzar la presencia de la Iglesia como levadura, luz y sal de la tierra para que no se descomponga la vida de los hombres, es necesario dar prioridad a programas de pastoral que promuevan la formación de hogares plenamente cristianos, y acrecienten en los esposos la generosidad de encarnar en sus propias vidas las verdades que la Iglesia propone para la familia cristiana.

La concepción cristiana del matrimonio y de la familia no modifica la realidad creatural, sino que eleva aquellos componentes esenciales de la sociedad conyugal: comunión de los esposos que generan nuevas vidas, las educan e integran en la sociedad, y comunión de las personas como vínculo firme entre los miembros de la familia.

6. Hoje, ao vir a este Centro de Congressos – o Riocentro – , invoco sobre vós, Cardeais, Arcebispos, Bispos, representantes das diversas Conferências Episcopais do mundo inteiro e sobre os delegados do Congresso Teológico Pastoral e suas famílias, a luz e o calor do Espírito Santo. A Ele se volta a Igreja, para que infunda sobre todos sua presença santificadora, e renove na Esposa de Cristo «o ardor missionário para que todos cheguem a conhecer a Cristo, verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro Filho do homem» (cf. Oração para o Primeiro Ano em preparação ao Jubileu do Ano 2000). Amanhã celebraremos no Estádio do Maracanã o Ato Testemunhal, com todos vós que trouxestes aqui a imensa riqueza, as preocupações e as esperanças de vossas Igrejas e povos, e que servirá de moldura para a Eucaristia do domingo, no Aterro do Flamengo, no qual viveremos, à luz da fé, o mistério do Pão vivo, descido dos Céus, o Maná das famílias que peregrinam em direção a Deus!

Faço votos de que, pela mediação da Santíssima Virgem Maria, os frutos deste nosso encontro possam encontrar corações bem dispostos para acolher, com renovado ardor missionário, as luzes do Altíssimo, em vista de uma nova evangelização da família e de toda a sociedade humana. Que o Espírito do Pai e do Filho, que é também o Espírito-Amor, nos conceda a todos a bênção e a graça que desejo transmitir aos filhos e filhas da Igreja e a toda a família humana.



Discursos João Paulo II 1997 - 30 de Setembro de 1997