Discursos João Paulo II 1997

JOÃO PAULO II


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NA XVII ASSEMBLEIA PLENÁRIA


DO PONTIFÍCIO CONSELHO PARA OS LEIGOS


30 de Outubro de 1997



Prezados Irmãos no Episcopado
Queridos Amigos

1. Estou feliz por vos receber, a vós que participais na XVII Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para os Leigos. Saúdo de maneira muito especial os novos membros e os novos consultores do Conselho, reunidos pela primeira vez depois do início do seu mandato quinquenal. Esta é também a primeira Assembleia Plenária guiada pelo vosso Presidente, D. James Francis Stafford, tendo como Secretário D. Stanislaw Rylko. Agradeço a todos vós a preciosa colaboração; exprimo também a minha gratidão àqueles que trabalham ao serviço deste Conselho em Roma. Apraz-me dizer aqui que, mediante o afecto fraterno e a oração, me sinto próximo do Senhor Cardeal Eduardo Pironio, que por longos anos presidiu ao vosso Dicastério com competência e dedicação.

Queridos Irmãos e Irmãs, tendes uma particular responsabilidade: as nomeações que recebestes fazem de vós colaboradores do Sucessor de Pedro no seu ministério pastoral, para servir a vasta e diversificada realidade do laicado católico. Estou-vos reconhecido por terdes aceite este encargo com generosa disponibilidade. Fostes chamados a título especial; consequentemente, o Conselho conta com a vossa experiência cristã, com o vosso sensus Ecclesiae, com a vossa capacidade de compreender e de fazer conhecer a riqueza da vida cristã na diversidade dos povos e das culturas, as experiências de pedagogia, de vida associativa e de entreajuda, vividas em todos os ambientes. A vossa Assembleia constitui um tempo forte de escuta e de discernimento das necessidades e das expectativas dos fiéis leigos, a fim de encorajar os seus testemunhos e as suas acções e de definir melhor as tarefas do Conselho que está ao seu serviço, à luz do Magistério doutrinal e pastoral da Igreja.

2. Transcorreram trinta anos desde que o Papa Paulo VI, respondendo a um desejo dos Padres do Concílio Vaticano II, fundava este Conselho. No passado fui um dos seus consultores e posso testemunhar tanto a continuidade do trabalho levado a cabo no decurso destes três decénios, como a sua constante renovação; por isto dou graças juntamente convosco.

O Pontifício Conselho para os Leigos inspira-se nos ensinamentos essenciais do Concílio Vaticano II: a Igreja tomou mais vivamente consciência de ser mistério de comunhão e de possuir uma natureza missionária; a dignidade, a coresponsabilidade e o papel activo dos leigos foram melhor reconhecidos e valorizados. Estes trinta anos dão-nos muitos motivos de esperança: hoje, a maturidade dos fiéis leigos manifesta-se mediante as suas actividades nas comunidades, as instituições e os serviços eclesiais mais variegados. Eles participam mais intensamente na vida litúrgica e sacramental da Igreja, nascente e ápice da vida cristã. Aspiram a uma formação metódica e completa. Tendo em consideração a pluralidade dos carismas, dos métodos e dos compromissos, vê-se desenvolver uma nova geração de associações de fiéis, que produzem abundantes frutos de santidade e de apostolado, dando um impulso renovado à comunhão e à missão do povo cristão.

Os Dias Mundiais da Juventude — pensamos na recentíssima e impressionante Jornada de Paris — demonstraram que os jovens são precisamente a esperança da Igreja que vai entrar no terceiro milénio. Os jovens exprimem com vigor a sua necessidade de sentido e de ideal, a sua aspiração a uma vida mais humana e mais verdadeira: trata-se de sentimentos radicados no coração dos homens e na cultura dos povos, mais profundos e mais vivos do que o conformismo niilista que parece impregnar numerosos espíritos.

Nestes últimos anos, o processo de afirmação da verdadeira dignidade da mulher encontrou a simpatia activa da Igreja, dado que o «génio feminino» enriquece cada vez mais a comunidade cristã e a sociedade. Além disso, é preciso admirar o compromisso de inumeráveis cristãos nas obras mais diversificadas, tendo em vista a entreajuda humana e social, demonstrando a criatividade construtiva da caridade e colocando-se ao serviço do bem comum nas instituições políticas, culturais e económicas. A Exortação apostólica Christifideles laici analisou estes sinais de esperança no itinerário pós-conciliar do laicado católico. Agora, cabe a vós dar continuidade a este caminho. A Igreja inteira conta com um empenhamento ainda mais activo dos fiéis, em todos os lugares de vanguarda do mundo.

3. No contexto da preparação para o Grande Jubileu, a vossa Assembleia realiza- se durante o ano consagrado a Jesus Cristo (cf. Tertio millennio adveniente, TMA 40-43). O Jubileu convida a fazer memória, na acção de graças, da presença do Verbo encarnado: trata-se da memória vivente da sua Presença, aqui e agora, tão verdadeira e tão nova como há dois mil anos. Aprofundar o mistério da Encarnação leva a insistir durante este ano «sobre a redescoberta do Baptismo como fundamento da existência cristã» (Ibid., 41). Em Paris, durante a vigília do Dia Mundial da Juventude, a celebração do baptismo de dez jovens convidou vigorosamente centenas de milhares de jovens congregados, mas também todos os cristãos, a retomarem consciência do dom que é o seu baptismo e das responsabilidades que daí derivam.

Hoje em dia, o principal desafio é representado por uma difundida descristianização. Por conseguinte, o Jubileu exorta a um sério compromisso catequético e missionário. É necessário que todos os homens possam descobrir a presença de Cristo e o olhar amoroso do Senhor sobre cada pessoa, que voltem a escutar as suas Palavras, «Vem, segue-Me!». Eis o motivo por que o mundo espera um testemunho mais evidente da parte de homens e mulheres livres, reunidos na unidade que, mediante o seu estilo de vida, demonstram que Jesus Cristo oferece de forma totalmente gratuita uma resposta que exaure as suas aspirações de verdade, felicidade e amadurecimento humano. Portanto, para os fiéis é essencial, como diz o tema da vossa Assembleia, «ser cristãos no limiar do terceiro milénio», viver o seu baptismo, a sua vocação e a sua responsabilidade cristã.

Infelizmente, vê-se aumentar o número dos não-baptizados, mesmo nas regiões de tradição cristã secular. Além disso, muitos baptizados tendem a esquecer- se daquilo que se tornaram pela graça recebida, ou seja, «novas criaturas » (Ga 6,15) que se revestiram de Cristo. Tais situações exigem mais do que nunca um exame atento. Há que reavivar o impulso missionário mediante a proposta de itinerários de iniciação cristã para os numerosos jovens e adultos que pedem para ser baptizados, e de uma renovação da formação cristã para aqueles que se afastaram da fé recebida.

Com efeito, trata-se da questão fundamental da educação para a fé e na fé, numa época em que a capacidade de transmitir a fé na continuidade da tradição parece ter perdido o seu vigor. Sinto- me feliz pela escolha do tema do vosso Conselho; não há dúvida de que as vossas reflexões e recomendações finais serão de grande utilidade.

A vossa Assembleia tem também a tarefa de definir os programas de trabalho do Dicastério para os anos vindouros. Sei que se está a preparar o Congresso Mundial dos Movimentos e as suas peregrinações a Roma; trata-se de iniciativas de grande alcance. Os dois acontecimentos que programastes para o Grande Jubileu terão também particular importância: o Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos, retomando a tradição de encontros periódicos, iniciada ainda antes do Concílio Vaticano II, e o Jubileu dos Jovens na via de uma Igreja jovem em caminho.

Obrigado por terdes vindo aqui hoje. Na oração confio ao Senhor, por intercessão de Maria Mãe da Igreja, os trabalhos do Pontifício Conselho para os Leigos. E a todos vós aqui presentes, aos vossos entes queridos e aos vossos irmãos e irmãs das diferentes Igrejas particulares, concedo do íntimo do coração a Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À CONFERÊNCIA EPISCOPAL REGIONAL


DO NORTE DA ÁFRICA (CERNA) EM VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


30 de Outubro de 1997



Caros Irmãos no Episcopado

1. É para mim uma grande alegria acolher-vos nesta casa, a vós que sois os pastores da Igreja de Cristo na Região do Norte da África. Viestes em peregrinação aos túmulos dos Apóstolos para renovar a vossa esperança e o vosso dinamismo apostólico, a fim de viverdes o vosso ministério episcopal de maneira cada vez mais intensa no meio dos povos da vossa região. Agradeço a D. Teissier, Arcebispo de Argel e Presidente da vossa Conferência Episcopal, as palavras tão fortes que fizeram ressaltar os sofrimentos e os dramas dos vossos povos, mas também as alegrias e as luzes que ali manifestam a obra de Deus. Ao receber- vos, devo antes de tudo recordar a memória do Cardeal Duval que, durante longos anos, foi Presidente da vossa Conferência e cujo ministério episcopal tanto marcou a vida da Igreja no Norte da África. Como Sucessor de Pedro, quereria hoje encorajar-vos no vosso serviço pastoral. Transmiti também a minha saudação afectuosa aos fiéis de cada uma das vossas dioceses e, através deles, a todos os habitantes dos países do Magrebe.

2. A vossa presença em Roma dá-me o ensejo de voltar o meu olhar para cada uma das vossas comunidades. No decorrer dos últimos meses, a Igreja na Líbia teve a alegria de acolher um novo pastor, no Vicariato Apostólico de Benghazi. Sinto-me feliz por o receber e lhe desejar um fecundo ministério episcopal. Espero também que terminem quanto antes as dificuldades do povo líbio, devidas ao embargo aéreo imposto ao seu país há muitos anos.

Tenho o prazer de me recordar da visita que efectuei no ano passado a Túnis, e do acolhimento caloroso que me foi reservado pelos fiéis católicos e pelo povo tunisino. Durante essa jornada memorável nas pegadas dos Santos e Santas que marcaram a história do país, pude encontrar-me com todos vós, Bispos do Magrebe, pela primeira vez no solo da vossa região.

A comunidade católica de Marrocos continua presente na minha memória, após o feliz dia do meu encontro com ela e com a juventude marroquina em Casablanca, o qual deu um novo impulso às relações e ao diálogo entre cristãos e muçulmanos. Desejo-lhe que prossiga com ardor o seu testemunho de fraternidade evangélica no meio dos habitantes desse país.

Quereria saudar e encorajar, com particular afecto, os católicos da Argélia. Conheço os seus sofrimentos e os de todo o povo argelino. Estou-lhes reconhecido por compartilharem com coragem, no nome de Cristo, as provas dessa nação tão tragicamente tocada na sua carne e na sua alma. Dezanove religiosos e religiosas verteram o próprio sangue durante estes últimos anos, aceitando irem até ao extremo dom de si mesmos pelos seus irmãos. Entre eles, devo nomear em particular D. Pierre Claverie, Bispo de Orã, e os sete monges trapistas de «Notre-Dame de l’Atlas». Visto que continua a desencadear- se uma violência inaceitável para toda a consciência humana, peço a Deus que dê, enfim, a paz à terra da Argélia e conduza cada um pelos caminhos do respeito por toda a vida humana, em vista duma verdadeira reconciliação e da cura de inúmeras feridas, causadas ao coração de tantas pessoas. Da minha parte, tenho muitas vezes feito apelo a todos os homens de boa vontade para que colaborem para o restabelecimento da paz na Argélia. Conheço o calvário doloroso que padece essa terra e estou próximo de todos os que choram o desaparecimento de entes queridos. Mais uma vez, quereria dar a certeza de que a Santa Sé não negligenciará esforço algum a fim de contribuir para o retorno da paz à Argélia.

3. A Igreja na vossa região exprime de maneira particular o mistério da Encarnação de Deus entre os homens, especialmente o mistério de Nazaré. Com efeito, ela torna manifesta a presença discreta mas muito viva de Cristo, respeitosa tanto das pessoas como das diferentes comunidades humanas e religiosas, a fim de comunicar a todos a plenitude do amor do Pai celeste. A vocação das vossas comunidades é também uma vocação à esperança, fundada em Cristo. Como pequeno rebanho, que na vida social não possui poder nem pretensão senão do amor, vós sois conduzidos a depositar totalmente a vossa confiança em Deus, certos de que é Ele que vos guia nos caminhos do encontro com os vossos irmãos. Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, cujo centenário da «entrada na vida» celebramos este ano e que foi proclamada Doutora da Igreja universal há alguns dias, escrevia: «Desde quando compreendi que me era impossível fazer algo por mim mesma, [...] senti que a única escolha necessária era unir-me cada vez mais a Jesus e que o resto me seria concedido por acréscimo. Com efeito, jamais a minha esperança foi frustrada» (Manuscrito C, 22 v). Que o Senhor vos ajude a perseverar na fé e no amor, mesmo quando os resultados das vossas obras se fizer esperar!

Queridos Irmãos no Episcopado, tendes o pesado encargo de sustentar o povo que vos foi confiado no seu caminho rumo ao Reino e no seu testemunho no meio dos homens. Ao fazer-vos um só coração no seio da vossa Conferência Episcopal, tornais cada vez mais forte a unidade das vossas comunidades, no reconhecimento das diversidades legítimas! Sede guias atentos, sabendo escutar e encorajar cada um na sua vida cristã, para que possa crescer na fé e na caridade.

4. Na missão da Igreja, os sacerdotes ocupam um lugar particular. Como homens da comunhão na comunidade cristã, eles estão ao serviço da existência e do crescimento do povo de Deus, anunciando- lhe a Palavra de Vida e proporcionando- lhe os sacramentos da Igreja. Convido-os a dar à Eucaristia um lugar central na sua própria existência e a estimar o seu ministério, descobrindo nele, de maneira cada vez mais profunda, o acontecimento em que Cristo, vindo ao encontro da humanidade, Se oferece inteiramente pela salvação do mundo.

O sacerdote é também «chamado a encetar um relacionamento de fraternidade, de serviço, de procura comum da verdade, de promoção da justiça e da paz» (Pastores dabo vobis PDV 18). Na vossa Região, com muita generosidade e coragem, através duma presença atenciosa a cada um, os vossos sacerdotes testemunham no meio dos seus irmãos e irmãs, com frequência entre os mais pobres, a universalidade e a gratuidade do amor de Deus. Encorajo-os a consolidar o seu testemunho, caminhando com segurança na via da santidade. Estejam certos de que a autenticidade da vida, que vem de Deus, se exprime antes de tudo mediante a qualidade do próprio ser espiritual, fundada sobre a sua disponibilidade à obra do Espírito Santo entre eles.

5. Quereria saudar de maneira especial os religiosos e as religiosas do Magrebe, que oferecem à vida da Igreja a riqueza dos seus carismas. A Igreja está-lhes reconhecida pelo testemunho evangélico que dão no meio dos seus irmãos e irmãs.

Nas vossas situações particulares, nas quais os membros dos Institutos de vida consagrada formam muitas vezes um núcleo importante dos membros permanentes das vossas comunidades, é necessário que um diálogo confiante entre os Bispos e os responsáveis destes Institutos permita examinar em conjunto as exigências da vida pastoral, ligadas à presença dos seus membros. Desejo vivamente que os Superiores e as Superioras das Congregações manifestem com generosidade a sua solidariedade com as vossas Igrejas particulares, sobretudo suscitando vocações para o testemunho eclesial na vossa região.

As evoluções das situações humanas exigem das pessoas consagradas um grande espírito de fé, para se adaptarem às circunstâncias novas e às diferentes necessidades que se manifestam. Encorajo- as a permanecer fiéis ao próprio carisma, tendo a audácia da criatividade. É antes de tudo de autênticas testemunhas do amor de Deus que o mundo tem necessidade. A todos os consagrados repito com firmeza: «vivei plenamente a vossa dedicação a Deus, para não deixar faltar a este mundo um raio da beleza divina que ilumine o caminho da existência humana» (Vita consecrata VC 109).

6. O papel dos fiéis leigos, alguns dos quais estão ligados muito intimamente aos destinos do povo dos vossos países, reveste um grande significado para exprimir a profunda realidade da Igreja. Com efeito, «já no nível do ser, ainda antes do nível do agir, os cristãos são ramos da única fecunda videira que é Cristo, são membros vivos do único Corpo do Senhor, edificado na força do Espírito» (Christifideles laici CL 55). Com os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, em comunhão com os seus Bispos, os leigos formam esta Igreja-família que a Assembleia especial do Sínodo dos Bispos para a África quis promover. Convido-os a participar de maneira cada vez mais activa na vida e no testemunho das suas comunidades, a fim de constituírem uma Igreja local radiante, acolhedora de todos.

Por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em Paris, apreciei a presença de jovens que vieram da vossa região, sobretudo estudantes. Nas vossas comunidades eles têm um lugar importante e dão um bonito testemunho de vida evangélica no meio dos seus irmãos e irmãs nas universidades e nas escolas, muitas vezes em condições difíceis. De igual modo, repito-lhes ainda, por vosso intermédio: «Continuai a contemplar a glória de Deus, o amor de Deus; e sereis iluminados para construir a civilização do amor, para ajudar o homem a ver o mundo transfigurado pela sabedoria e amor eternos» (Homilia em Longchamp, n. 6).

Caros Irmãos no Episcopado, permiti-me pedir-vos que transmitais uma saudação afectuosa do Papa aos discípulos do Evangelho, que estão nas situações mais difíceis ou que vivem na prova. Conheço a sua coragem e o seu apego a Cristo e à sua Igreja. Que eles depositem toda a sua confiança no Senhor, que jamais os abandonará!

7. Por ocasião das assembleias sinodais que se realizaram em muitas das vossas dioceses, o desejo duma formação espiritual e doutrinal sólida foi muitas vezes expresso pelos fiéis. O Catecismo da Igreja Católica constitui já uma referência comum, que convém fazer conhecer. É para desejar que o aprofundamento da fé contribua para a unidade de vida de cada um, a fim de «crescer incessantemente na intimidade com Jesus Cristo, na conformidade com a vontade do Pai, na dedicação aos irmãos, na caridade e na justiça» (Christifideles laici CL 60). Um lugar privilegiado deve também ser dado ao conhecimento da cultura do povo, no qual os cristãos são chamados a viver, a fim de que, numa atitude de escuta e de diálogo, sejam mais capazes de testemunhar o Evangelho diante das questões e dos problemas novos que interpelam o homem e a sociedade de hoje.

8. O serviço aos mais pobres é um sinal profético do empenhamento dos cristãos no seguimento de Cristo. Conheço e aprecio o trabalho realizado nas vossas dioceses para manifestar, assim, a gratuidade do amor de Deus para com todos os homens. Como já tive ocasião de ressaltar aquando da beatificação de Frederico Ozanam, «o próximo é todo o ser humano, sem excepção. É inútil perguntar sobre a sua nacionalidade, a sua pertença social ou religiosa. Se está em necessidade, é preciso ir ajudá-lo. É isto que pede a primeira e a maior Lei divina, a lei do amor de Deus e do próximo» (Homilia, Paris, 22/8/1997, n. 1). Através dos diversos organismos diocesanos de ajuda mútua, como a Cáritas, com frequência em colaboração com outras associações, e também pela partilha pessoal, não só contribuís para oferecer aos desprotegidos os meios de existência, mas sobretudo ajudai-os a reencontrar a sua dignidade de homens e de mulheres, criados à imagem de Deus. As vossas actividades ao serviço da saúde, da educação e da promoção da pessoa humana, que muitas vezes se devem adaptar às novas necessidades, permanecem instrumentos privilegiados para manifestar a caridade de Cristo e lugares de encontro e de partilha, onde os corações se podem abrir na confiança mútua.

9. As vossas comunidades são entre os crentes do Islão um sinal da estima que a Igreja católica lhes tributa e do seu desejo de prosseguir com eles a caminhada dum diálogo verdadeiro, no respeito mútuo. Num período muitas vezes conturbado pelos sentimentos de desconfiança ou até de animosidade, as vossas comunidades dão um abnegado testemunho de amizade e de convivência, que por vezes se revelou heróico nas situações trágicas vividas por algumas delas. E é uma felicidade constatar que a participação nas mesmas provas favorece um novo olhar de confiança e de compreensão recíprocas. Apesar das dificuldades, continuai firmes na convicção de que o diálogo é «um caminho que conduz ao Reino e seguramente dará frutos, mesmo se os tempos e os momentos estão reservados ao Pai» (Redemptoris missio RMi 57).

10. Caros Irmãos no Episcopado, preparamo-nos para o Grande Jubileu do Ano 2000; o próximo ano será consagrado ao Espírito Santo e à redescoberta da Sua presença e da Sua acção na Igreja e no mundo. Para os católicos será a ocasião de renovarem a sua esperança, virtude fundamental que «por um lado impele o cristão a não perder de vista a meta final que dá sentido e valor à sua existência inteira, e por outro lhe oferece motivações sólidas e profundas para o empenhamento quotidiano na transformação da realidade, a fim de a tornar conforme ao projecto de Deus» (Tertio millennio adveniente, TMA 46).

Nas vossas condições particulares, por vezes tão dramáticas, convido-vos então a procurar e a valorizar os sinais de esperança que nos revelam a obra do Espírito de Deus no coração dos homens. Peço à Mãe de Cristo, a Virgem Santíssima, que em toda a sua vida se deixou conduzir pelo Espírito, que vos guie nos caminhos da confiança e da paz para o encontro de seu divino Filho. De todo o coração, concedo a Bênção Apostólica a cada um de vós, aos vossos sacerdotes, aos diáconos, aos religiosos e às religiosas, assim como a todos os fiéis das vossas dioceses.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NO ENCONTRO SOBRE


O ANTIJUDAÍSMO PROMOVIDO PELA COMISSÃO


TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000


31 de Outubro de 1997



Senhores Cardeais
Prezados Irmãos no Episcopado
Queridos Amigos

1. Sinto-me feliz por vos receber durante o vosso Simpósio sobre as raízes do antijudaísmo. Saúdo de modo particular o Senhor Cardeal Roger Etchegaray, Presidente do Comité Central para o Grande Jubileu do Ano 2000, que preside aos vossos trabalhos. Agradeço a todos terem consagrado estes dias a um estudo teológico de grande relevância.

O vosso Colóquio inscreve-se na preparação do Grande Jubileu, mediante a qual exorto os filhos da Igreja a fazerem o balanço do milénio transcorrido e especialmente do nosso século, no espírito de um necessário «exame de consciência », no limiar do tempo que deverá constituir um período de conversão e reconciliação (cf. Tertio millennio adveniente, TMA 27-35).

A finalidade do vosso Simpósio é a interpretação teológica correcta das relações da Igreja de Cristo com o povo judeu, cujas bases foram lançadas pela declaração conciliar Nostra aetate e sobre as quais, no exercício do meu magistério, eu mesmo tive a ocasião de intervir várias vezes. Com efeito, no mundo cristão — não digo da parte da Igreja enquanto tal — circularam por demasiado tempo interpretações erróneas e injustas do Novo Testamento sobre o povo judeu e a sua presumível culpabilidade, gerando sentimentos de hostilidade no que se refere a esse povo. Estes contribuíram para amortecer muitas consciências, de maneira que, quando se desferiu sobre a Europa a onda das perseguições inspiradas por um anti-semitismo pagão que, na sua essência, era igualmente um anticristianismo, ao lado de cristãos que fizeram tudo para salvar os perseguidos, até ao perigo da própria vida, a resistência espiritual de muitas pessoas não foi aquela que a humanidade tinha o direito de esperar da parte dos discípulos de Cristo. O vosso olhar lúcido no passado, em vista de uma purificação da memória, é deveras oportuno para demonstrar de modo clarividente que o anti-semitismo não tem qualquer justificação e é absolutamente condenável.

Os vossos trabalhos completam a reflexão levada a cabo de forma especial pela Comissão para as Relações Religiosas com o Judaísmo, traduzida entre outras, nas Orientações de 1 de Dezembro de 1974 e nas Notas para uma correcta apresentação dos judeus e do Judaísmo na pregação da catequese da Igreja católica, de 24 de Junho de 1985. Aprecio o facto de se desejar levar a cabo com grande rigor a investigação de natureza teológica realizada pelo vosso Simpósio, na convicção de que servir a verdade é servir ao próprio Cristo e à sua Igreja.

2. O Apóstolo Paulo, na conclusão dos capítulos da Carta aos Romanos (cf. capp. 9-11), nos quais nos oferece luzes decisivas sobre o destino de Israel em conformidade com o desígnio de Deus, faz ressoar um cântico de adoração. «Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus!» (Rm 11,33). Na alma ardente de Paulo, este hino constitui um eco do princípio que ele acaba de enunciar e é como que o tema central de toda a epístola: «Deus encerrou a todos na desobediência, para ser misericordioso com todos» (Ibid., 11, 32). A história da salvação, mesmo quando as suas peripécias não parecem desconcertantes, é guiada pela misericórdia d’Aquele que veio salvar o que estava perdido. Uma atitude de adoração diante das insondáveis profundezas da Providência amorosa de Deus só permite entrever algo daquilo que é um mistério de fé.

3. Na origem desse pequeno povo situado entre grandes impérios de religião pagã, que o fascinam com a riqueza da sua cultura, está o facto da eleição divina. Esse povo é convocado e guiado por Deus, Criador do céu e da terra. A sua existência não é, por conseguinte, um mero facto de natureza nem de cultura, no sentido em que mediante a cultura o homem emprega os recursos da sua própria natureza. Trata-se de um facto sobrenatural. Esse povo persevera perante e contra tudo, porque é o povo da Aliança e, não obstante as infidelidades dos homens, o Senhor é fiel à sua Aliança. Ignorar esta dádiva primordial é aventurar-se pelo caminho de um marcionismo contra o qual a Igreja reagira imediatamente com vigor, consciente do seu vínculo vital com o Antigo Testamento, sem o qual o próprio Novo Testamento é desvirtuado do seu sentido. As Escrituras são inseparáveis desse povo e da sua história, a qual conduz a Cristo, o Messias prometido e esperado, o Filho de Deus que Se fez homem. A Igreja não cessa de confessá-l'O quando, na sua liturgia, repete quotidianamente os salmos, assim como os cânticos de Zacarias, da Virgem Maria e de Simeão (cf. Sl Ps 132,17 Lc 1,46-55 Lc 1,68-79 Lc 2,29-32).

Eis o motivo por que aqueles que consideram o facto de Jesus e o seu ambiente terem sido judeus como um simples dado cultural contingente, que seria possível substituir por uma outra tradição religiosa, da qual a pessoa do Senhor poderia ser separada sem perder a sua identidade, não só desconhecem o sentido da história da salvação, mas mais radicalmente apropriam-se da verdade mesma da Encarnação e tornam impossível uma concepção autêntica da inculturação.

4. A partir do que se disse, podemos tirar conclusões susceptíveis de orientar a atitude do cristão e do trabalho do teólogo. A Igreja condena com determinação todas as formas de genocídio, bem como as teorias racistas que as inspiraram e que pretenderam justificá-las. Poder-se-iam evocar as Encíclicas de Pio XI Mit brennender Sorge (1937) e de Pio XII Summi Pontificatus (1939); esta última recordava a lei da solidariedade humana e da caridade para com todos os homens, independentemente do povo a que pertençam. Portanto, o racismo é uma negação da identidade mais profunda do ser humano, que é uma pessoa criada à imagem e semelhança de Deus. À malícia moral de todo o genocídio acrescenta-se, juntamente com o shoah, a malícia de um ódio que se apropria do plano salvífico de Deus para a história. A Igreja mesma tem sido directamente atingida por este ódio.

O ensinamento de Paulo na Carta aos Romanos indica-nos quais são os sentimentos fraternais, arraigados na fé, que devemos ter para com os filhos de Israel (cf. Rm Rm 9,4-5). O Apóstolo salienta-o: «Por causa dos Patriarcas» são amados por Deus, cujos dons e eleição são irrevogáveis (cf. Rm Rm 11,28-29).

5. Estai persuadidos da minha gratidão pelos trabalhos que realizais sobre um tema de grande alcance e que tenho muito a peito. Assim, contribuís para o aprofundamento do diálogo entre os católicos e os judeus, e congratulamo-nos por este se ter renovado positivamente durante os últimos decénios.

Formulo os melhores votos para vós e os vossos entes queridos, e de bom grado concedo-vos a Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO SENHOR J. FERNAND TANGUAY


NOVO EMBAIXADOR DO CANADÁ


JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO


DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


31 de Outubro de 1997

: Senhor Embaixador

1. Ao receber as Cartas que acreditam Vossa Excelência junto da Sé Apostólica, como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário do Canadá, é-me grato apresentar-lhe as boas-vindas à Cidade eterna. Agradeço vivamente as palavras que acaba de me dirigir, e que manifestam interesse e compreensão para com a vida e a acção da Igreja católica.

Sensibilizado pelas mensagens que transmitiu da parte de Sua Excelência o Senhor Primeiro-Ministro e de outras personalidade governamentais, ficar-lhe-ia reconhecido se lhes exprimisse toda a minha gratidão.

Vossa Excelência fez-se intérprete da adesão à Sé de Pedro dos católicos das Primeiras Nações da sua terra, que tive a felicidade de saudar por ocasião das minhas visitas ao Canadá, assim como dos vários encontros aqui realizados; peço- lhe que se digne exprimir-lhes a minha grata recordação e os meus agradecimentos cordiais por estes sinais de atenção para comigo. Muito me sensibilizaram os bons votos que Vossa Excelência me transmitiu da parte dos seus compatriotas de origem polaca e estou-lhes grato pela fidelidade à Igreja, assim como à terra e à cultura que nos são tão caras.

2. Vossa Excelência houve por bem evocar diversos aspectos da acção da Igreja e, de modo particular, da Santa Sé em favor da paz; e ressaltou que o espírito que a orienta está de acordo com o papel do seu país na vida internacional e com os seus princípios. É-me grato constatar também, mais uma vez, a sintonia entre as preocupações da Igreja católica e as do seu país, no que se refere à obra sempre inacabada da consolidação da paz no mundo e do desenvolvimento, que deveria assegurar de modo duradouro o bem-estar dos povos. O Canadá participa nos debates das instâncias internacionais e os seus compatriotas não hesitam em se empenhar com generosidade nas frentes da ajuda humanitária e da manutenção da paz, por vezes muito distantes dos seus países e à custa de reais sacrifícios. O seu devotamento pelas grandes causas da humanidade é muito apreciado e, esperamo-lo, estimulará muitos outros a perseguirem eficazmente os mesmos objectivos.

No importante e delicado âmbito do desarmamento, cuja necessidade deveria ser melhor compreendida pela humanidade, Vossa Excelência chamou oportunamente a atenção para o processo enfim empreendido para eliminar a arma terrível das minas anti-homem. Otava, capital do seu país, receberá em breve os signatários de um acordo destinado a evitar a morte ou a mutilação de inúmeros inocentes em muitas regiões do mundo. Formulo ardentes votos por que todos os países adiram a esse pacto e que não se tarde em livrar multidões de homens, mulheres e crianças destes engenhos destruidores, insidiosamente colocados nos seus passos.

Quando se consideram os conflitos que continuam a devastar os povos nos diferentes continentes, posso compreender a sua triste constatação de que em muitos lugares se transmite «de geração em geração uma herança de ódio e de vingança». Ninguém pode resignar-se ao prosseguimento destes confrontos. O esforço dos artífices de paz não deve restringir- se a limitar os efeitos dos conflitos, a cuidar dos feridos, a sanar as carências alimentares ou a acolher da melhor forma possível os refugiados, ainda que os esforços neste sentido devam ser mantidos e intensificados. No nome da mensagem evangélica, a Igreja não cessa de chamar os nossos contemporâneos a aceitarem-se e a respeitarem-se mutuamente, a considerarem com lucidez as origens históricas das oposições, a fim de melhor as superar, a desenvolverem a convivência a que é chamada a única família humana, em virtude da sua profunda identidade de destino. É neste espírito que a intensificação das relações entre pessoas e povos de boa vontade tem a sua maior razão de ser; estou certo de que os seus compatriotas e os seus dirigentes encontram aqui as preocupações da Igreja católica para o bem comum da humanidade.

3. Vossa Excelência, Senhor Embaixador, ressaltou que uma parte importante dos seus concidadãos é constituída por membros da Igreja católica, solidamente arraigada na sua terra desde as primeiras gerações de pioneiros do Evangelho que lá chegaram da Europa no século XVII. Por seu intermédio, quereria dirigir a todos os católicos do Canadá as saudações cordiais do Bispo de Roma. Conheço os frutos de santidade e de dinamismo missionário que foram produzidos pelos seus antecessores. Eles são-lhes afeiçoados como é testemunhado pelo fervor com que celebram os aniversários das fundações, que aos poucos estruturaram as suas dioceses e comunidades. Hoje, encorajo-os a prosseguir esta construção, menos evidente que no passado, mas fundada nos corações pela adesão à verdade do Evangelho e que se tornou firme e radiante pela comunhão fraterna.

A história da sua terra é tal que, no seu país, a própria Igreja conhece uma diversidade sensível: as origens culturais são múltiplas e as tradições de rito oriental permanecem vivas ali. Esta situação representa uma verdadeira riqueza e, sem dúvida, ajuda os católicos a tomar consciência da unidade na diversidade, que caracteriza os discípulos de Cristo.

4. Hoje, o meu pensamento dirige-se também para os seus compatriotas que pertencem a outras Igrejas ou comunidades eclesiais; saúdo-os como irmãos, no desejo de que os intercâmbios continuem entre eles e os católicos, a fim de procurarem a verdade, condição essencial para progredir rumo à plena comunhão tão desejada e para fundar a vida social sobre uma sólida base humana.

Com aqueles que pertencem a outras tradições religiosas, os católicos estão empenhados em aprofundar o diálogo, não só da convivência quotidiana nas mesmas cidades, mas também dum conhecimento mútuo mais elaborado; deste modo torna-se possível a todas as pessoas de convicções religiosas diferentes trabalhar juntas, em vista de tornar a vida social cada vez mais humana. No Canadá, estou certo de que os católicos desejam progredir em profundidade no caminho destas diferentes relações e diálogos, que não podem deixar de ser benéficos para todos.

5. A sua missão, Senhor Embaixador, tem início pouco tempo antes de se realizar em Roma a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a América. Preparado pela sua experiência da vida internacional e pelo seu conhecimento da vida eclesial, Vossa Excelência poderá acompanhar os intercâmbios desta reunião excepcional dos Pastores da Igreja católica na América do Norte, do Centro e do Sul. Certamente, Vossa Excelência contribuirá para fazer com que os seus compatriotas captem o carácter próprio da investigação de ordem pastoral, que será conduzida pelos membros desta Assembleia, juntamente com o Bispo de Roma e os seus colaboradores, e também em ligação com os representantes do episcopado dos outros continentes. Através das consultações aprofundadas deste tipo, a Igreja católica deseja tornar-se cada vez mais fiel à sua missão ao serviço dos seus irmãos e irmãs deste tempo, sobretudo neste caso, fortalecendo a solidariedade que une as diversas comunidades do seu continente.

6. No momento em que tem início a sua função, Excelência, desejo-lhe um feliz desempenho das suas tarefas, para que se consolidem sempre mais as relações da Santa Sé com o Canadá. Tenho a certeza de que obterá as satisfações que Vossa Excelência espera durante a permanência em Roma, junto da Sé de Pedro.

Da parte dos meus colaboradores, esteja certo de que haverá de encontrar um acolhimento atencioso e a assistência de que precisar.

Na sua pessoa, saúdo o Excelentíssimo Governador-Geral, as Autoridades e o inteiro povo do Canadá, apresentando a todos os meus melhores votos de felicidade e de prosperidade.

Deus lhe conceda todos os benefícios das suas Bênçãos, assim como aos seus familiares, aos membros da sua Embaixada, às Autoridades do seu país e aos seus compatriotas.



                                                                  Novembre de 1997


Discursos João Paulo II 1997