AUDIÊNCIAS 1998 - AUDIÊNCIA


JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 27 de Maio de 1998



1. Jesus está unido com o Espírito Santo desde o primeiro instante da Sua existência no tempo, como recorda o Símbolo niceno-constantinopolitano: «Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine». A fé da Igreja neste mistério funda-se na palavra de Deus: «O Espírito Santo — anuncia o anjo Gabriel a Maria — virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a Sua sombra. Por isso mesmo é que o Santo que vai nascer há-de chamar-Se Filho de Deus» (Lc 1,35). E a José foi dito: «O que ela concebeu é obra do Espírito Santo» (Mt 1,20).

Graças à intervenção directa do Espírito Santo, actua-se na Encarnação a suprema graça, a «graça da união» da natureza humana com a pessoa do Verbo. Essa união é fonte de todas as outras graças, como explica S. Tomás (S. Th. III, q. 2, a. 10-12; q. 6, a. 6; q. 7, a. 13).

2. Para aprofundar o papel do Espírito Santo no evento da Encarnação, é importante retornar aos dados que nos oferece a palavra de Deus.

São Lucas afirma que o Espírito Santo desce como força do alto sobre Maria, a qual é recoberta pela Sua sombra. Mediante o Antigo Testamento, nós sabemos que todas as vezes que Deus decide fazer brotar a vida, age através da «força» do Seu sopro criador: «Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, pelo sopro da Sua boca todos os Seus exércitos juntou» (Ps 33,6). Isto vale para cada ser vivo, a ponto que se Deus «retirasse o Seu sopro e fizesse voltar a Si o espírito do homem, toda a carne pereceria no mesmo instante e o homem voltaria ao pó» (Jb 34,14-15). Deus faz intervir o seu Espírito sobretudo nos momentos em que Israel experimenta a impotência de se erguer só com as suas forças. Sugere-o o profeta Ezequiel na visão dramática do imenso vale cheio de esqueletos: «O espírito entrou neles. Retornando a vida, endireitaram-se» (37, 10).

A concepção virginal de Jesus é «a maior obra realizada pelo Espírito Santo na história da criação e da salvação» (Dom. et viv., 50). Neste evento de graça, uma virgem tornou-se fecunda, uma mulher, remida desde a sua concepção, gera o Redentor. Prepara-se assim uma nova criação e tem início a nova e eterna aliança: começa a viver um homem que é o Filho de Deus. Jamais antes deste evento se dissera que o Espírito Santo tivesse descido directamente sobre a mulher para a tornar mãe. Quando na história de Israel se verificam nascimentos prodigiosos, a intervenção divina, quando a ela se alude, é referida ao nascituro e não à mãe.

3. Se nos perguntamos por que o Espírito Santo realizou o evento da Encarnação, a palavra de Deus responde-nos de maneira sintética, na segunda carta de Pedro, que isto ocorreu para que nos tornássemos «partícipes da natureza divina» (1, 4). «Com efeito — explica Santo Ireneu de Lião — este é o motivo por que o Verbo se fez homem, e o Filho de Deus, Filho do homem: para que o homem, entrando em comunhão com o Verbo e recebendo assim a filiação divina, se tornasse filho de Deus» (Adv. Haer. 3, 19, 1). Nesta mesma linha se põe Santo Atanásio: «Quando o Verbo desceu sobre a santa Virgem Maria, o Espírito juntamente com o Verbo entrou nela; no Espírito o Verbo assumiu um corpo e adaptou-o a Si, querendo, por meio de Si mesmo, unir e conduzir ao Pai toda a criação» (Ad Serap. 1, 31). Estas afirmações são retomadas por S. Tomás: «O Filho unigénito de Deus, querendo que fôssemos partícipes da Sua divindade, assumiu a nossa natureza humana a fim de, ao fazer-Se homem, tornar os homens deuses» (Opusc. 57 in festo Corp. Christi, 1), isto é, por graça partícipes da natureza divina.

O mistério da Encarnação revela o maravilhoso amor de Deus, do qual o Espírito Santo é a personificação mais excelsa, sendo Ele o Amor de Deus em pessoa, a Pessoa-Amor: «Nisto se manifestou o amor de Deus para connosco: em ter enviado o Seu Filho unigénito ao mundo, para que, por Ele vivamos» (1Jn 4,9). Na Encarnação, mais do que em qualquer outra obra, revela-se a glória de Deus.

Com muita razão no Gloria in excelsis cantamos: «Nós Vos louvamos e bendizemos... nós Vos damos graças pela vossa imensa glória». Esta expressão pode ser aplicada de modo especial à acção do Espírito Santo, que na Primeira Carta de Pedro é chamado «o Espírito da glória» (4, 14). Trata-se duma glória que é pura gratuidade: não consiste em tomar ou em receber, mas só em dar. Ao dar-nos o seu Espírito, que é fonte de vida, o Pai manifesta a Sua glória, tornando-a visível na nossa vida. Neste sentido Santo Ireneu afirma que «a glória de Deus é o homem vivo» (Adv. Haer. IV, 20, 7).

4. Se agora procuramos ver mais de perto o que o evento da Encarnação nos revela a respeito do mistério do Espírito, podemos dizer que este evento nos manifesta, antes de tudo, que Ele é a força benévola de Deus que gera a vida.

A força que «estende a sua sombra» sobre Maria evoca de novo a nuvem do Senhor que se pousava sobre a tenda do deserto (cf. Êx Ex 40,34) ou que enchia o templo (cf. 1R 8,10). É portanto a presença amiga, a proximidade salvífica de Deus que vem estabelecer um pacto de amor com os Seus filhos. É uma força ao serviço do amor, que se desenvolve no sinal da humildade: não só inspira a humildade de Maria, a escrava do Senhor, mas como que se esconde atrás dela, a ponto de ninguém em Nazaré conseguir intuir que «o que ela concebeu é obra do Espírito Santo» (Mt 1,20). Santo Inácio de Antioquia exprime de modo estupendo este mistério paradoxal: «Ao príncipe deste mundo permaneceu escondida a virgindade de Maria e também o seu parto, e de igual modo a morte do Senhor. São estes os três mistérios da voz excelsa, que se realizaram no descanso silencioso de Deus» (Ad Eph. 19, 1).

5. O mistério da Encarnação, visto em perspectiva do Espírito Santo que o operou, lança luz também sobre o mistério do homem.

Com efeito, se o Espírito age de modo singular no mistério da Encarnação, Ele está presente também na origem de cada ser humano. O nosso ser é um «ser recebido», uma realidade reflectida, amada e doada. Não basta a evolução para explicar a origem do género humano, como não basta a causalidade biológica dos pais para explicar, por si só, o nascimento de um filho. Embora na transcendência da Sua criação, sempre respeitosa das «causas segundas», Deus cria a alma espiritual do novo ser humano, comunicando-lhe o sopro vital (cf. Gn Gn 2,7), através do seu Espírito que é «o dador da vida». Cada filho deve, portanto, ser visto e acolhido como um dom do Espírito Santo.

Também a castidade dos celibatários e das virgens constitui um reflexo singular daquele amor «derramado nos nossos corações por meio do Espírito Santo» (Rm 5,5). O Espírio que tornou partícipe da fecundidade divina a Virgem Maria, assegura também a quantos escolheram a virgindade por causa do Reino dos céus uma descendência numerosa no âmbito da família espiritual, formada por todos aqueles que «não nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim de Deus» (Jn 1,13).



                                                                           Junho de 1998

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 3 de Junho de 1998



1. Outra significativa intervenção do Espírito Santo na vida de Jesus, depois daquela da Encarnação, realiza-se no baptismo d’Ele no rio Jordão.

No Evangelho de Marcos o evento é assim narrado: «Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi baptizado por João, no Jordão. No momento em que saía da água, viu os céus abertos e o Espírito como uma pomba, descer sobre Ele. E dos céus veio uma voz: “Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti pus toda a Minha complacência”» (1, 9-11 e par.). No quarto evangelho é referido o testemunho dado pelo Baptista: «Vi o Espírito Santo a descer do Céu como uma pomba e permanecer sobre Ele» (Jn 1,32).

2. No concorde testemunho evangélico, o evento do Jordão constitui o início da missão pública de Jesus e da Sua revelação como Messias, Filho de Deus.

João pregava «um baptismo de penitência para remissão dos pecados» (Lc 3,3). Na multidão de pecadores que vêm para ser baptizados por ele, eis que está Jesus. Ele reconhece-O e proclama o cordeiro inocente que tira o pecado do mundo (cf. Jo Jn 1,29), para reconduzir a humanidade inteira à comunhão com Deus. O Pai exprime a Sua complacência pelo Filho dilecto, que Se faz servo obediente até à morte, e comunica-Lhe o poder do Espírito para que possa realizar a missão de Messias-Salvador.

Certamente Jesus possui o Espírito desde a Sua concepção (cf. Mt Mt 1,20 Lc 1,35), mas no baptismo recebe uma nova efusão do Espírito, uma unção de Espírito Santo, como atesta São Pedro no discurso na casa de Cornélio: «Deus ungiu com o Espírito Santo e poder a Jesus de Nazaré» (Ac 10,38). Esta unção é uma elevação de Jesus «aos olhos de Israel como Messias, isto é, ungido com o Espírito Santo»; é uma verdadeira exaltação de Jesus enquanto Cristo e Salvador (cf. Dom. et vivif., 19).

Enquanto Jesus viveu em Nazaré, Maria e José puderam experimentar o Seu crescimento em idade, sabedoria e graça (cf. Lc Lc 2,40 Lc 2,51), sob a guia do Espírito Santo que operava n’Ele. Agora, ao contrário, são inaugurados os tempos messiânicos; tem início uma nova fase na existência histórica de Jesus. O baptismo no Jordão é como um «prelúdio» de quanto acontecerá depois. Jesus começa a estar ao lado dos pecadores para lhes revelar o rosto misericordioso do Pai. A imersão no rio Jordão prefigura e antecipa o «baptismo» nas águas da morte, enquanto a voz do Pai, que O proclama Filho predilecto, prenuncia a glória da ressurreição.

3. Após o baptismo no Jordão, Jesus começa a exercer a Sua tríplice missão: missão real, que O empenha na luta contra o espírito do mal, missão profética, que O torna pregador incansável da Boa Nova, e missão sacerdotal, que O impele ao louvor e à oferta de Si ao Pai para a nossa salvação.

Os três sinópticos sublinham como, imediatamente após o baptismo, Jesus é «levado» pelo Espírito Santo ao deserto «para ser tentado por Satanás» (Mt 4,1 cf. Lc Lc 4,1 Mc 1,12). A proposta de Satanás é a de um messianismo triunfal, feito de prodígios espectaculares, como transformar as pedras em pão, lançar-se do pináculo do templo ficando ileso, conquistar num instante o domínio político de todas as nações. Mas a escolha de Jesus, em pleno obséquio à vontade do Pai, é clara e inequívoca; Ele aceita ser o Messias sofredor e crucificado, que oferecerá a Sua vida pela salvação do mundo.

Iniciada no deserto, a luta com Satanás prossegue durante toda a vida de Jesus. Uma Sua actividade típica é a do exorcismo, razão por que o povo brada admirado: «Até manda nos espíritos impuros, e eles obedecem-Lhe» (Mc 1,27). Quem ousa afirmar que esse poder de Jesus deriva do próprio Satanás, blasfema contra o Espírito Santo (cf. Mc Mc 3,22-30): com efeito, é precisamente «com o Espírito de Deus» que Jesus expulsa os demónios (Mt 12,28). Como afirma São Basílio de Cesareia, com Jesus «o diabo perdeu o seu poder na presença do Espírito Santo» (De Spir. S. 19).

4. Segundo o evangelista Lucas, depois da tentação no deserto, «impelido pelo Espírito, Jesus voltou para a Galileia (...) e ensinava nas sinagogas» (4, 14-15). A presença poderosa do Espírito Santo verifica-se também na actividade evangelizadora de Jesus. Ele mesmo o ressalta no sermão inaugural na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-30), aplicando a Si a passagem de Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre Mim» (Is 61,1). Em certo sentido, pode-se dizer que Jesus é o «missionário do Espírito», enviado como é pelo Pai para anunciar com a força do Espírito Santo o evangelho da misericórdia.

Animada pelo poder do Espírito, a palavra de Jesus exprime verdadeiramente o Seu mistério de Verbo feito carne (Jn 1,14). Por isso é a palavra de alguém que tem «autoridade», ao contrário dos escribas (Mc 1,22). É «uma doutrina nova», como reconhecem estupefactos os ouvintes do Seu primeiro sermão em Cafarnaum (Mc 1,27). É uma palavra que realiza e supera a lei mosaica, como emerge no sermão da montanha (Mt 5-7). É palavra que comunica o perdão divino aos pecadores, oferece cura e salvação aos doentes, até mesmo ressuscita os mortos. É a Palavra d’Aquele «que Deus enviou», e é de tal modo habitado pelo Espírito, que O pode comunicar «sem medida» (Jn 3,34).

5. A presença do Espírito Santo é ressaltada de maneira especial na oração de Jesus.

O evangelista Lucas refere que no momento do baptismo no Jordão, «enquanto Se encontrava em oração (...), o Céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Ele» (3, 21-22). Esta ligação entre a oração de Jesus e a presença do Espírito retorna explicitamente no hino de júbilo: «Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo e disse: “Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra...”» (Lc 10,21).

O Espírito acompanha assim a experiência mais íntima de Jesus, a da Sua filiação divina, que O impele a dirigir-Se a Deus Pai chamando-O «Abba» (Mc 14,36) com uma familiaridade singular, que não é atestada a propósito de nenhum outro judeu ao dirigir-se ao Altíssimo. Precisamente através do dom do Espírito, Jesus fará participar os crentes na Sua comunhão filial e na Sua intimidade com o Pai. Como nos assegura São Paulo, o espírito Santo faz-nos chamar a Deus: «Abba, Pai» (Rm 8,15 cf. Gl Ga 4,6).

Esta vida filial é o grande dom que recebemos no Baptismo. Devemos redescobri-la e cultivá-la de novo, tornando-nos dóceis à obra que o Espírito Santo realiza em nós.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 10 de Junho de 1998



1. Toda a vida de Cristo se desenvolveu no Espírito Santo. São Basílio afirma que o Espírito Lhe foi «companheiro inseparável em tudo» (De Spir. S. 16) e oferece-nos esta admirável síntese da história de Cristo: «Vinda de Cristo: o Espírito Santo precede; encarnação: o Espírito Santo está presente; acções milagrosas, graças e curas: através do Espírito; os demónios expulsos, o diabo aprisionado: mediante o Espírito Santo; remissão dos pecados, união com Deus: mediante o Espírito Santo; ressurreição dos mortos: por virtude do Espírito Santo» (Ibid., 19).

Depois de meditarmos sobre o baptismo de Jesus e a Sua missão realizada no poder do Espírito, queremos agora reflectir acerca da revelação do Espírito na «hora» suprema de Jesus, a hora da Sua morte e ressurreição.

2. A presença do Espírito Santo no momento da morte de Jesus deve-se supor já pelo simples facto que na cruz morre, na sua natureza humana, o Filho de Deus. Se «unus de Trinitate passus est» (DS 401), isto é, «se aquele que sofreu é uma Pessoa da Trindade», na Sua paixão torna-se presente toda a Trindade, portanto também o Pai e o Espírito Santo.

Devemos, porém, perguntar-nos: qual foi precisamente o papel do Espírito na hora suprema de Jesus? A esta pergunta só é possível responder se se compreende o mistério da redenção como mistério de amor.

O pecado, que é rebelião da criatura contra o Criador, interrompera o diálogo de amor entre Deus e os Seus filhos.

Com a Encarnação do Filho Unigénito, Deus exprime à humanidade pecadora o Seu amor fiel e apaixonado, a ponto de Se tornar vulnerável em Jesus. O pecado, por sua parte, manifesta no Gólgota a sua natureza de «atentado contra Deus», de maneira que todas as vezes que os homens voltam a pecar gravemente, como diz a carta aos Hebreus, «crucificam o Filho de Deus em si mesmos, expondo-O à ignomínia» (cf. 6, 6).

Ao entregar o seu Filho pelos nossos pecados, Deus revela-nos que o Seu desígnio de amor precede qualquer mérito nosso e supera abundantemente todas as nossas infidelidades. «Nisto consiste o [Seu] amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados» (1Jn 4,10).

3. A paixão e morte de Jesus é um inefável mistério de amor, no qual estão envolvidas as três Pessoas divinas. O Pai tem a iniciativa absoluta e gratuita: Ele é o primeiro a amar e, ao entregar o Filho às nossas mãos homicidas, expõe o Seu bem mais querido. Como diz Paulo, Ele «não poupou o próprio Filho», isto é, não O conservou para Si como um tesouro cioso, mas «entregou-O por todos nós» (Rm 8,32).

O Filho compartilha plenamente o amor do Pai e o Seu projecto de salvação: «Entregou-Se a Si mesmo pelos nossos pecados... segundo a vontade de Deus, nosso Pai» (Ga 1,4).

E o Espírito Santo? Assim como no íntimo da vida trinitária, também nesta circulação de amor, que se realiza entre o Pai e o Filho no mistério do Gólgota, o Espírito Santo é a Pessoa-Amor, para a Qual convergem o amor do Pai e do Filho.

A carta aos Hebreus, desenvolvendo a imagem do sacrifício, declara de forma específica que Jesus Se ofereceu «com um Espírito eterno» (9, 14). Na Encíclica Dominum et vivificantem mostrei que neste trecho «Espírito eterno» indica precisamente o Espírito Santo: assim como o fogo consumia as vítimas sacrificais dos antigos sacrifícios rituais, assim também «o Espírito Santo agiu de modo especial nesta autodoação absoluta do Filho do homem, para transformar o sofrimento em amor redentor» (n. 40). «O Espírito Santo como Amor e Dom desce, em certo sentido, ao próprio coração do sacrifício que é oferecido na Cruz. Referindo-nos à tradição bíblica, podemos dizer: Ele consuma este sacrifício com o fogo do Amor, que une o Filho ao Pai na comunhão trinitária. E dado que o sacrifício da Cruz é um acto próprio de Cristo, também neste sacrifício Ele “recebe” o Espírito Santo» (Ibid., n. 41).

Justamente na liturgia romana, o sacerdote reza antes da comunhão com estas significativas expressões: «Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, que por vontade do Pai e por obra do Espírito Santo, morrendo deu a vida ao mundo...».

4. A história de Jesus não termina com a morte, mas abre-se à vida gloriosa da Páscoa. «Mediante a ressurreição dos mortos, Jesus Cristo, Nosso Senhor» foi «constituído Filho de Deus com poder, segundo o Espírito de santificação» (cf. Rm Rm 1,4).

A ressurreição é o complemento da Encarnação e acontece, também ela, como a geração do Filho no mundo, «por obra do Espírito Santo». «Nós — afirma Paulo em Antioquia da Pisídia — estamos aqui para vos anunciar a Boa Nova de que a promessa feita a nossos pais, Deus a cumpriu em nosso benefício, para nós Seus filhos, ressuscitando Jesus, como está escrito no salmo segundo: “Tu és Meu Filho, Eu gerei-Te hoje”» (Ac 13,32).

O dom do Espírito que o Filho recebe em plenitude na manhã de Páscoa é por Ele efundido em superabundância na Igreja. Aos Seus discípulos reunidos no cenáculo, Jesus diz: «Recebei o Espírito Santo» (Jn 20,22) e comunica-O «como que através das feridas da Sua crucifixão: “mostrou-lhes as mãos e o lado”» (Dom. et viv., 24). A missão salvífica de Jesus sintetiza-se e cumpre-se na comunicação do Espírito Santo aos homens, para os reconduzir ao Pai.

5. Se a «obra-prima» do Espírito Santo é a Páscoa do Senhor Jesus, mistério de sofrimento e de glória, através do dom do Espírito é possível também aos discípulos de Cristo sofrer com amor e fazer da cruz a via para a luz: «per crucem ad lucem». O Espírito do Filho dá-nos a graça de termos os mesmos sentimentos de Cristo e de amarmos como Ele amou, a ponto de oferecer a vida pelos irmãos: «Ele deu a Sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1Jn 3,16).

Ao comunicar-nos o seu Espírito, Cristo entra na nossa vida, para que cada um de nós possa dizer como Paulo: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Ga 2,20). Assim, toda a vida se torna uma Páscoa contínua, uma incessante passagem da morte para a vida, até à Páscoa derradeira, quando passaremos também nós, com Jesus e como Jesus, «deste mundo para o Pai» (Jn 13,1). Com efeito — afirma Santo Ireneu de Lião — «aqueles que receberam e trazem o Espírito de Deus são conduzidos ao Verbo, isto é, ao Filho, e o Filho acolhe-os e apresenta-os ao Pai, e o Pai dá-lhes a incorruptibilidade» (Demonstr. Ap 7).



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 17 de Junho de 1998



1. Na última ceia Jesus dissera aos Apóstolos: «Contudo, digo-vos a verdade: convém-vos que Eu vá; porque, se Eu não for, o Consolador não virá a vós e se Eu for, enviar-vo-Lo-ei» (Jn 16,7). Na tarde do dia da Páscoa Jesus mantém a promessa: aparece aos Onze reunidos no cenáculo, sopra sobre eles e diz: «Recebei o Espírito Santo» (Jn 20,22). Cinquenta dias depois, no Pentecostes, tem-se «a definitiva manifestação daquilo que se realizara no mesmo cenáculo já no domingo de Páscoa» (Dom. et viv., 25). O livro dos Actos dos Apóstolos conservou-nos a descrição do evento (cf. 2, 1-4).

Ao reflectirmos sobre este texto, podemos perceber algum traço da misteriosa identidade do Espírito Santo.

2. É importante, antes de tudo, captar o nexo entre a festa judaica do Pentecostes e o primeiro Pentecostes cristão.

No início o Pentecostes era a festa das sete semanas (cf. Tb Tb 2,1), a festa da colheita (cf. Êx Ex 23,16), quando se oferecia a Deus as primícias do trigo (cf. Nm NM 28,26 Dt 16, 9). Sucessivamente recebeu um novo significado: tornou-se a festa da aliança que Deus estabelecera com o Seu povo no Sinai, quando tinha dado a Israel a Sua lei.

São Lucas narra o evento do Pentecostes como uma teofania, uma manifestação de Deus análoga à do monte Sinai (cf. Êx Ex 19,16-25): rumor fragoroso, vento forte, línguas de fogo. A mensagem é clara: o Pentecostes é o novo Sinai, o Espírito Santo é a nova aliança, é o dom da nova lei. De modo penetrante Santo Agostinho capta este ligame: «Há um grande e maravilhoso mistério, irmãos: se prestardes atenção, no dia de Pentecostes (os judeus) receberam a lei escrita com o dedo de Deus e no mesmo dia de Pentecostes vem o Espírito Santo» (Ser. Mai 158, 4). E um Padre do Oriente, Severiano de Gábala, anota: «Era conveniente que no dia em que foi dada a lei antiga, naquele mesmo dia fosse dada a graça do Espírito Santo» (Cat. in Act. Apost. 2, 1).

3. Cumpre-se assim a promessa feita aos antepassados. Lemos no profeta Jeremias: «Esta será a Aliança que farei com a casa de Israel — oráculo do Senhor: imprimirei a Minha Lei, gravá-la-ei no seu coração» (31, 33). E no profeta Ezequiel: «Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Dentro de vós porei o Meu espírito, fazendo com que sigais as Minhas leis e obedeçais os Meus preceitos» (36, 26-27).

De que modo o Espírito Santo constitui a nova e eterna aliança? Arrancando o pecado e derramando no coração do homem o amor de Deus: «A lei do Espírito de vida em Cristo Jesus libertou-me da lei do pecado e da morte» (Rm 8,2). A lei mosaica indicava obrigações, mas não podia mudar o coração do homem. Era necessário um coração novo, e é precisamente aquilo que Deus nos oferece em virtude da redenção operada por Jesus. O Pai arranca o nosso coração de pedra e dá-nos um coração de carne, como o de Jesus, animado pelo Espírito Santo que nos faz agir por amor (cf. Rm Rm 5,5). Com base neste dom se instaura a nova aliança entre Deus e a humanidade. S. Tomás afirma de modo incisivo que o próprio Espírito Santo é a Nova Aliança, operando em nós o amor, plenitude da lei (cf. Comment. in 2Co 3,6).

4. No Pentecostes desce o Espírito e nasce a Igreja. A Igreja é a comunidade daqueles que «renasceram do alto», «da água e do Espírito», como se lê no Evangelho de João (cf. Jo Jn 3,3 Jo Jn 3,5). Antes de tudo a comunidade cristã não é o resultado da livre decisão dos crentes; na sua origem há primariamente a gratuita iniciativa do Amor de Deus, que oferece o dom do Espírito Santo. O assentimento da fé a este dom de amor é «resposta» à graça e, ele mesmo, é suscitado pela graça. Entre o Espírito Santo e a Igreja existe, portanto, um ligame profundo e indissolúvel. A respeito disso, diz Santo Ireneu: «Onde está a Igreja, ali está também o Espírito de Deus; e onde está o Espírito do Senhor, ali está a Igreja e toda a graça» (Adv. Haer. 3, 24, 1). Compreende-se, então, a arrojada expressão de Santo Agostinho: «Tem-se tanto Espírito Santo quanto se ama a Igreja» (In Jn 32,8).

A narração do evento do Pentecostes ressalta que a Igreja nasce universal: é este o sentido do elenco dos povos — Partos, Medos, Elamitas... (cf. Act Ac 2,9-11) — que escutam o primeiro anúncio feito por Pedro. O Espírito Santo é dado a todos os homens de qualquer raça e nação, e realiza neles a nova unidade do Corpo místico de Cristo. São João Crisóstomo põe em evidência a comunhão operada pelo Espírito Santo, com esta concreta observação: «Quem vive em Roma sabe que os habitantes das Índias são seus membros» (In Jn 65,1).

5. Do facto que o Espírito Santo é «a nova aliança», deriva que a obra da terceira Pessoa da Santíssima Trindade consiste em tornar presente o Senhor Ressuscitado e, com Ele, Deus Pai. Com efeito, o Espírito exerce a sua acção salvífica tornando imediata a presença de Deus. Nisto consiste a nova e eterna aliança: Deus já Se tornou alcançável para cada um de nós. Cada um, «desde o mais pequeno até ao maior» (cf. Jr Jr 31,34), está dotado, em certo sentido, do conhecimento directo do Senhor, como lemos na primeira carta de São João: «Quanto a vós, a unção que d’Ele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a Sua unção vos ensina todas as coisas, e é verdadeira e não é mentirosa, permanece n’Ele como ela vos ensinou» (2, 27). Cumpre-se assim a promessa feita por Jesus aos Seus discípulos durante a última ceia: «O Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em Meu nome, Este ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito» (Jn 14,26).

Graças ao Espírito Santo, o nosso encontro com o Senhor acontece no tecido ordinário da existência filial, no «face a face» da amizade, fazendo experiência de Deus como Pai, Irmão, Amigo e Esposo. Este é o Pentecostes. Esta é a Nova Aliança.

Saudação

Caros Irmãos e queridas Irmãs!

Hoje pus no centro da minha catequese o Espírito Santo que, na solenidade do Pentecostes, desceu sobre a comunidade primitiva. Dentro de dois dias iniciarei a minha terceira visita pastoral à Áustria, com o tema: «Vinde Espírito criador!».

Desde agora dirijo uma saudação afectuosa à população austríaca. Ao longo da história os cristãos da Áustria contribuíram muito para a evangelização da Europa e do mundo. Estes últimos anos foram um período de grande sofrimento para a Igreja na Áustria. O Papa e os Bispos quereriam contribuir para superar as dificuldades. Desejam encorajar os fiéis a colaborarem para a edificação do Reino de Deus, que já está no meio de nós, mas não completamente (cf. Lumen gentium LG 5). Alegro-me com a beatificação em Viena de três cristãos exemplares, que são o sinal da vitalidade da Igreja na Áustria. Na esperança de que a minha visita contribua para a unidade da Igreja, na verdade e no amor, digo de coração a todos os austríacos: «Grüß Gott!».



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 24 de Junho de 1998



Caros Irmãos e Irmãs

1. Nos dias passados realizei a minha terceira Visita Pastoral à Áustria e agora, tendo retornado a Roma, reflicto sobre os significativos encontros tidos com aquelas queridas populações. O sentimento que domina na minha alma é a gratidão.

Em primeiro lugar agradeço a Deus, dador de todo o bem, que me concedeu viver esta intensa experiência espiritual, rica de celebrações litúrgicas, de momentos de reflexão e de oração, na perspectiva duma renovada primavera da Igreja naquele amado País. Um agradecimento particular dirige-se aos meus venerados Irmãos no Episcopado, que nestes tempos não fáceis não pouparam energias ao prodigalizarem-se ao serviço da verdade e da caridade. Encorajo-os no seu empenho pastoral. Quereria, além disso, agradecer de novo ao Presidente Federal e às Autoridades públicas, bem como a todos os cidadãos, que me acolheram com uma hospitalidade verdadeiramente cordial.

2. Com a minha visita quis manifestar à população austríaca a minha estima e o meu apreço, indicando ao mesmo tempo, como Sucessor de Pedro, algumas perspectivas úteis para o caminho futuro daquelas Igrejas particulares.

Enquanto em Salisburgo abordei o tema da missão, em Sankt Pölten convidei a reflectir sobre o problema das vocações. Por fim, como ponto culminante e motivo principal da minha viagem, tive a alegria de incluir os nomes de três Servos de Deus no livro dos Beatos. Durante a celebração sugestiva na Heldenplatz em Viena, recordei a todos que o heroísmo do cristão está na santidade.

Os «heróis da Igreja» não são necessariamente aqueles que escreveram a história segundo critérios humanos, mas mulheres e homens que talvez diante dos olhos de muitos pareceram pequenos, mas que na realidade se revelaram grandes diante de Deus. Procurá-los-emos em vão nas filas dos poderosos; eles permanecem inscritos de modo indelével, com letras maiúsculas, no «livro da vida».

As biografias dos novos Beatos contêm uma mensagem para os nossos dias. São documentos acessíveis a todos, que as pessoas de hoje podem ler e compreender sem dificuldade: com efeito, falam com a linguagem eloquente da vida vivida.

3. Com grande prazer recordo a presença e o entusiasmo de numerosos jovens, aos quais recordei que a Igreja vê neles a promitente riqueza do futuro. Ao convidá-los à coragem do testemunho por Cristo sem compromissos, reafirmei quanto escrevi na Encíclica Redemptoris missio: «O homem contemporâneo acredita mais nas testemunhas do que nos mestres, mais na experiência do que na doutrina, mais na vida e nos factos do que nas teorias» (n. 42).

Os jovens, que são naturalmente sensíveis ao fascínio do ideal, sobretudo quando está encarnado na vida, apreciaram este discurso. Entenderam o sentido da minha visita ao seu País: fui à Áustria como peregrino da fé, colaborador da alegria e cooperador da verdade.

4. Não posso deixar de mencionar duas ocasiões bastante diversas entre si, mas ambas significativas no próprio âmbito: o encontro com as Autoridades e o Corpo Diplomático na Hofburg e a visita aos doentes e moribundos no Hospital «Rennweg» Caritas Socialis. Nestes dois momentos expus sob vários ângulos o mesmo tema de fundo: o essencial dever do respeito pela imagem de Deus impressa em cada ser humano. Este é um dos pontos fulcrais da mensagem que eu quis levar não só aos católicos, mas a todos os habitantes da Áustria.

Cada homem, em qualquer fase da vida, reveste um valor inalienável. O discurso sobre a «cultura da vida», dirigido aos arquitectos da Casa Europeia realiza-se, entre outras coisas, em instituições como a do Hospital, onde se escreve de novo, dia após dia, o «evangelho do sofrimento», lido à luz da fé.

Ao lado de quantos incansavelmente prestam serviço nos hospitais e nas casas de saúde, assim como ao lado daqueles que não abandonam os seus familiares gravemente doentes, está presente o Senhor que reconhece como dirigidas a Si mesmo os seus cuidados amorosos. Os doentes, com o peso dos próprios sofrimentos suportados por amor de Cristo, constituem um tesouro precioso para a Igreja, a qual tem neles colaboradores eficacíssimos na acção evangelizadora.

5. Ao pensar nas intensas emoções provadas, sinto a necessidade de repetir quanto afirmei no final da visita: Credo in vitam! Creio na vida. Creio que a Igreja na Áustria é viva. Creio que esta vida é mais forte que as provas que não poucos fiéis atravessaram e atravessam naquele amado País. Fui até eles para os ajudar a superar as dificuldades hodiernas e para os encorajar a retomar com generosidade o caminho rumo ao Grande Jubileu.

Também em Roma o coração do Papa continua a pulsar pela Áustria. A todos repito as palavras de Cristo: «Não se turve o vosso coração!» (Jn 14,1). Não olheis apenas para o passado! Preparai o futuro com a ajuda do Espírito Santo! A minha Visita Pastoral à Áustria terminou; tenha início agora uma nova etapa da peregrinação que levará o Povo de Deus na Áustria a cruzar o limiar do novo milénio para comunicar, juntamente com os seus Bispos, a Boa Nova de Cristo às gerações que virão.

«Vergelt’s Gott!» — Obrigado por tudo. Deus vos recompense!



                                                                           Julho de 1998

AUDIÊNCIAS 1998 - AUDIÊNCIA