Discursos João Paulo II 1998 - 8 de Janeiro de 1998

Encontramo-nos no tempo do Natal, entre a solenidade da Epifania e a festa do Baptismo do Senhor, no decorrer deste ano de 1998, dedicado de modo particular ao Espírito Santo. A celebração da Epifania convidou-nos a meditar sobre a missão universal da Igreja, prolongamento da missão salvífica de Cristo, luz dos povos, «Lumen gentium». Cada um de vós, caros seminaristas e jovens presbíteros, está inserido nesta missão da Igreja, e está a preparar-se para a servir de modo complexo e amadurecido. Para isto, é necessário antes de tudo crescer naquela docilidade pessoal ao Espírito Santo, cujo modelo é Maria Santíssima. De Maria aprendemos, neste tempo natalino, rico de estupefacção e de admiração, o empenho em escutar e acolher em profundidade a Palavra de Deus.

2. O Espírito Santo é o protagonista da missão da Igreja, é o protagonista da nova evangelização. No próximo domingo contemplaremos o ícone de Cristo que, baptizado no Jordão, recebe do Pai a unção espiritual. Ele é mais do que nunca eloquente e rico de significado para todo o cristão e, de modo particular, para cada sacerdote. Ele ajuda-nos a aprofundar o mistério do nosso pessoal chamamento e consagração no Espírito Santo, aquela «unção», que, como diz o apóstolo João, «ensina todas as coisas, é verdadeira e não é mentirosa» (1Jn 2,27).

O Espírito Santo conforma-nos a Cristo, dá-nos a força para O seguir e O testemunhar. É fonte de santidade vivida nas provas ordinárias e extraordinárias. A Virgem Inês é, de modo especial para vós, que a venerais como Padroeira, modelo de conformação a Cristo no dom total de si para o Evangelho. O Senhor, pela intercessão desta Virgem mártir, faça de cada um de vós uma testemunha corajosa do Seu amor, um santo sacerdote, uma fiel imagem de Cristo Bom Pastor.

Com estes sentimentos, enquanto vos desejo todo o bem para o ano há pouco iniciado, de coração concedo a todos vós a Bênção Apostólica, fazendo-a extensiva às pessoas que vos são queridas.




À COMUNIDADE DO COLÉGIO PIO ROMENO


POR OCASIÃO DO 60° ANIVERSÁRIO DE FUNDAÇÃO


9 de Janeiro de 1998





Senhor Cardeal
Venerados Irmãos no Episcopado
Caríssimos Superiores e Alunos
do Colégio Pio Romeno

1. «A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador» (Lc 1,46). Queremos elevar juntamente com Maria Santíssima, celeste Padroeira do Colégio, este hino de louvor ao Senhor pelos sessenta anos da sua fundação e por todos os dons recebidos neste arco de tempo.

Recordamos em particular a grandiosa obra do meu Predecessor, o Papa Pio XI, de venerada memória que, sempre atento às necessidades das Igrejas católicas orientais, quis erigir na colina do Janículo um Colégio para os candidatos ao sacerdócio, provenientes da Igreja greco-católica romena. Essa sede, construída graças à magnífica intervenção do mesmo Pontífice, devia assegurar aos estudantes uma adequada formação litúrgica e espiritual no rito bizantino-romeno, permitindo-lhe ao mesmo tempo conhecer as riquezas da Igreja universal.

Eram tempos de grandes esperanças para as Comunidades católicas orientais nessa parte da Europa, e desejava-se sustentá-las e orientá-las para um desenvolvimento sempre mais seguro. Ainda que as sucessivas e trágicas vicissitudes tenham atingido o coração dessas Igrejas, lançando na prisão bispos, sacerdotes e leigos, elas continuaram a servir Cristo, conservando firme a união com a Sé de Pedro.

Como não recordar, neste momento, duas ilustres testemunhas ainda vivas, o Cardeal Alexandru Todea e o Arcebispo Ioan Ploscaru, os quais pagaram um elevado preço para defender os direitos da Igreja e afirmar a liberdade de consciência?

2. Durante todo esse difícil período o Colégio acolhia os estudantes de outras Igrejas orientais, mas ao mesmo tempo conservava uma simbólica presença de sacerdotes greco-católicos romenos, tornando-se assim um sinal de esperança, na expectativa de tempos melhores, e um ponto de referência para a Comunidade romena na Diáspora.

Caros sacerdotes e seminaristas, com a derrocada dos regimes ateus e o cessar das perseguições pudestes vir a Roma e encontrar hospitalidade no Colégio, que é a vossa casa na Urbe. Tende sempre presente a memória desses factos históricos, para que em vós seja vivo o empenho por um renascimento na fraternidade. Isto ajudar-vos-á a testemunhar a Verdade e estimular-vos-á a um generoso serviço evangélico, em benefício de cada pessoa e da sociedade inteira.

A vossa formação, respeitando o seu carácter autenticamente oriental, assinale a tradição dos vossos antepassados e se abra com sabedoria clarividente às necessidades dos tempos novos. A contribuição daqueles cristãos da Roménia que, sendo de tradição bizantina, compartilham as riquezas do Oriente cristão e, ao mesmo tempo, participam da cultura europeia, enriquece não só a Igreja, mas a própria Europa. Com efeito, de um semelhante encontro podem derivar experiências de grande valor, não só no campo religioso, mas também para o progresso do pensamento e do costume social.

3. «Toda a sabedoria vem do Senhor, e está sempre com Ele» (Qo 1,1). A vossa vida no Colégio esteja centrada na Liturgia, que permite ao homem entrar nos mistérios divinos e o inicia nas realidades de Deus. Procurai conhecê-la bem e amá-la, de maneira que se torne para vós fonte de força espiritual. Celebrai-a com o coração de modo vivo, penetrando nos seus conteúdos teológicos e espirituais.

Além disso, o aprofundamento da Sagrada Escritura e das obras dos Padres ajudar-vos-á a compreender melhor qual é a chave de toda a verdadeira teologia. Formados nesta escola pelo valor perene, objecto de veneração e de estudo também por parte dos irmãos ortodoxos, vós estareis simultaneamente ancorados nas raízes da Igreja e sereis capazes de iluminar as vicissitudes contemporâneas com uma luz antiga e sempre nova.

O Senhor chama-vos a servi-l'O na vossa Terra, levando a todos a verdade evangélica que liberta todos os homens da escravidão do pecado, do relativismo moral e da busca da riqueza a qualquer custo, tornando-os mais firmes no momento de enfrentar as dificuldades do momento presente.

Sei que a Igreja greco-católica romena exerce esta sua missão em condições de vida frequentemente difíceis, devendo enfrentar uma persistente carência de estruturas. Sei, porém, que estão a aumentar as construções, para oferecer às comunidades sedes idóneas para a oração e a actividade pastoral, com o desejo de reencontrar nas formas artísticas do templo a continuidade com as origens, sem ignorar naturalmente a sensibilidade cultural hodierna.

4. Caríssimos Irmãos! É-me grato também nesta circunstância exprimir um vivo reconhecimento aos Bispos e a todo o Clero da Eparquia e religioso da Roménia, pelo generoso empenho com que distribuem aos fiéis os Mistérios divinos e lhes oferecem apoio e encorajamento nos momentos de prova, ensinando sempre a sacralidade e a inviolabilidade da vida.

Confio ao Senhor o caminho que a vossa Igreja está a realizar e as suas perspectivas para o futuro. De modo especial, invoco a assistência divina sobre a celebração do quarto Concílio provincial, iniciado no ano passado. Diante das mudanças radicais que dizem respeito à sociedade romena, essa assembleia é chamada a rever metas e métodos pastorais, a fim de tornar mais consciente e activa a missão dos fiéis.

A Comunidade eclesial encontrará assim a força necessária para aquele testemunho que ela é chamada a dar, na fidelidade e na renovação, enquanto se prepara para celebrar o Grande Jubileu do Ano 2000 e o terceiro centenário da sua reencontrada unidade com a Sé romana.

No início do novo Ano, é com sincera alegria que formulo vivíssimos bons votos a todos e, enquanto vos peço que leveis às vossas Eparquias a minha calorosa saudação, concedo de coração a todos uma especial Bênção Apostólica.




AOS MEMBROS DO CORPO DIPLOMÁTICO


ACREDITADO JUNTO DA SANTA SÉ


10 de Janeiro de 1998







Excelências Senhoras e Senhores

1. A homenagem colectiva do Corpo Diplomático, no início de um novo ano, reveste sempre um carácter de comovedora solenidade e de cordial familiaridade. De todo o coração agradeço ao vosso Decano, Senhor Embaixador Atembina-Te-Bombo, que me apresentou com cortesia os vossos votos de amizade e evocou de maneira delicada alguns aspectos da minha missão apostólica. Neste início do ano de 1998, deixemos brilhar para todos os homens de hoje a luz que se elevou sobre o mundo no dia do nascimento do Menino Deus. Pela sua própria natureza, ela é universal, a sua claridade resplandece sobre todos, sem excepção. Ela manifesta tanto os nossos sucessos como os nossos reveses na gestão da criação e nas nossas missões ao serviço da sociedade.

2. De maneira muito feliz não faltam as realizações positivas. A Europa central e oriental prosseguiu a sua caminhada rumo à democracia, libertando-se pouco a pouco do peso e dos condicionamentos do totalitarismo de ontem. Esperamos que este progresso se confirme efectivamente em toda a parte.

Muito perto de nós, a Bósnia-Herzegovina conhece uma paz relativa, embora com alguma dificuldade, ainda que as últimas eleições locais tenham mostrado a precariedade do processo de pacificação entre as diversas comunidades. A respeito disso, quereria convidar com insistência a Comunidade internacional a prosseguir os seus esforços em favor do retorno dos refugiados aos seus lares e do respeito dos direitos fundamentais das três comunidades étnicas que compõem o país. Ali existem as condições necessárias à vitalidade desse país: a minha inesquecível visita pastoral a Sarajevo, na Primavera passada, permitiu-me percebê-lo ainda melhor.

O alargamento da União Europeia em direcção do Leste, assim como os esforços por uma estabilidade monetária deveriam conduzir a uma complementaridade progressiva dos povos, no respeito pela identidade e história de cada um deles. Trata-se, de algum modo, de partilhar o património de valores que cada nação contribuiu para fazer despontar: a dignidade da pessoa humana, os seus direitos fundamentais imprescritíveis, a inviolabilidade da vida, a liberdade e a justiça, o sentido da solidariedade e a rejeição da exclusão.

Sempre neste continente, não se pode senão encorajar o diálogo retomado entre as partes que, há tantos anos, se opõem na Irlanda do Norte. Que todos tenham a coragem da perseverança, a fim de superar os obstáculos actuais, tanto lá como noutras regiões da Europa! Na América Latina, o processo de democratização tem continuado, mesmo que aqui e ali reflexos perversos tenham podido reter a sua marcha, como demonstraram os acontecimentos trágicos ocorridos na província de Chiapas, no México, alguns dias antes do Natal. No final deste mês, se Deus quiser, irei em visita pastoral a Cuba. A primeira visita de um Sucessor de Pedro a essa ilha dar-me-á o ensejo de confortar não só os católicos tão corajosos desse país, mas também todos os seus concidadãos, nos seus esforços para o advento duma pátria cada vez mais justa e solidária, onde cada um encontre o seu lugar e se veja reconhecido nas suas legítimas aspirações.

No que concerne à Ásia, onde vive mais de metade da humanidade, deve-se incentivar as conversações entre as duas Coreias, que se estão a realizar em Genebra. O seu sucesso aliviaria notavelmente a tensão em toda a região e, sem dúvida, encorajaria um diálogo construtivo entre outros países da região, ainda divididos ou antagonistas, estimulando-os assim a adoptar uma dinâmica da solidariedade e da paz. As oscilações financeiras que recentemente ocuparam a vanguarda do cenário em alguns países dessa parte do mundo, exortam a uma séria reflexão sobre a moralidade dos intercâmbios económicos e financeiros que, nestes últimos anos, conduziram a um considerável desenvolvimento da Ásia. Maior sensibilidade à justiça social e mais respeito das culturas locais poderiam evitar no futuro surpresas desastrosas, cujas vítimas acabam sempre por ser as populações.

Não há necessidade de insistir para recordar o interesse com que o Papa e os seus colaboradores acompanham a evolução da situação na China, fazendo votos por que ela favoreça o estabelecimento de relações serenas com a Santa Sé. Isto permitiria aos católicos chineses viver a sua fé, plenamente inseridos na comunhão da Igreja inteira em caminho rumo ao grande Jubileu.

O meu pensamento abrange também a Igreja que está no Vietnã e que aspira sempre a melhores condições de existência. Não posso esquecer, além disso, os habitantes de Timor Leste, e em particular os filhos da Igreja que vivem nessa terra, os quais ainda esperam conhecer uma existência mais tranquila, a fim de poderem olhar para o futuro com mais confiança.

Quereria aqui dirigir uma saudação cordial à Mongólia, que manifestou o desejo de estabelecer laços mais estreitos com a Sé Apostólica.

3. Duma maneira mais geral, eu consideraria entre os aspectos positivos do nosso balanço a sensibilidade crescente no mundo às questões ligadas à preservação dum ambiente digno do homem, ou ainda o consenso internacional que permitiu, há apenas um mês em Otava, a assinatura dum tratado sobre a interdição das minas anti-homem (que aliás a Santa Sé se apresta a ratificar). Tudo isto manifesta um respeito sempre mais concreto pela pessoa humana, considerada nas suas dimensões individual e social, assim como no seu papel de administradora da criação; e isto corresponde também à convicção de que não poderemos ser felizes senão uns com os outros, jamais uns contra os outros.

As iniciativas tomadas pelos responsáveis da Comunidade internacional em favor da infância, infelizmente muitas vezes aviltada na sua inocência, a luta contra o crime organizado ou o comércio da droga, os esforços envidados para contrastar o horrendo tráfico de seres humanos sob todas as suas formas, mostram bem que, com a vontade política, se pode atacar as causas dos desregramentos que com muita frequência desfiguram a pessoa humana.

Todos estes progressos têm necessidade de ser consolidados, visto que o mundo que nos circunda permanece uma realidade em mudança, cujo equilíbrio pode ser comprometido em qualquer momento por um conflito imprevisto, por uma súbita crise económica ou pelas consequências nefastas da extensão inquietante da pobreza.

4. A fragilidade das nossas sociedades é-nos dolorosamente significada pelos «pontos candentes», que permanecem no primeiro plano da actualidade e que perturbaram mais uma vez o clima jubiloso das celebrações destes últimos dias.

Penso antes de tudo na Argélia que, praticamente cada dia, é enlutada por massacres odiosos. Eis um país refém duma violência inumana que nenhuma causa política, e menos ainda uma motivação religiosa, poderia legitimar. Sinto o dever de repetir a todos com clareza, mais uma vez, que ninguém pode matar no nome de Deus; isto seria abusar do nome divino e blasfemar. Seria necessário que todas as pessoas de boa vontade, nesse país e noutras partes, se unissem para fazer com que a voz daqueles que crêem no diálogo e na fraternidade, seja por fim escutada. E estou convicto de que eles constituem a maioria do povo argelino.

A situação no Sudão nem sempre permite falar de reconciliação e de paz. Além disso, os cristãos desse país continuam a ser objecto de graves discriminações, das quais a Santa Sé se fez eco em várias ocasiões junto das autoridades civis, sem que ainda se constate, infelizmente, um melhoramento notável.

A paz parece estar distante do Médio Oriente, uma vez que o processo de paz, posto em acto em Madrid em 1991, se encontra como que suspenso, quando não está comprometido por iniciativas ambíguas ou até mesmo violentas. Neste momento penso em todos aqueles – Israelenses e Palestinos – que tinham cultivado nestes últimos anos a esperança de ver finalmente despontar nessa Terra Santa a justiça, a segurança, a paz, uma vida quotidiana normal. Onde está hoje esta vontade de paz? Os princípios da Conferência de Madrid e as orientações da reunião de Oslo, de 1993, pavimentaram o caminho rumo à paz. Eles ainda hoje continuam a ser os únicos elementos válidos para progredir. Não se deve aventurar por outros caminhos. Quereria assegurar-vos e, através de vós, a inteira Comunidade internacional, que a Santa Sé, por sua vez, continuará a dialogar com todas as partes interessadas, a fim de encorajar numas e noutras a vontade de salvaguardar a paz e de curar as chagas da injustiça. A Santa Sé tem para com essa região do mundo uma constante solicitude e conduz a sua acção segundo os princípios que sempre a guiaram. O Papa, em particular, nestes anos que precedem a celebrção do Jubileu do Ano 2000, dirige o seu olhar para Jerusalém, a Cidade Santa entre todas, orando cada dia para que ela se torne quanto antes e para sempre, com Belém e Nazaré, um lugar de justiça e de paz onde judeus, cristãos e muçulmanos possam, enfim, caminhar juntos sob o olhar de Deus.

Não longe dali, um povo inteiro é vítima dum isolamento que o põe em condições de sobrevivência aleatórias: refiro-me aos nossos irmãos do Iraque, submetidos a um embargo impiedoso. Ao ouvir os apelos de socorro que chegam continuamente à Santa Sé, sinto o dever de interpelar as consciências daqueles que, no Iraque e noutras partes, dão prioridade a considerações políticas, económicas ou estratégicas e não ao bem fundamental das populações, pedindo-lhes que tenham compaixão. Os débeis e os inocentes não deveriam pagar pelos erros de que não são responsáveis. Oro, então, para que esse país possa reencontrar a sua dignidade, conheça um desenvolvimento normal e seja, assim, capaz de restabelecer relações frutuosas com os outros povos, no quadro do direito internacional e da solidariedade mundial.

Não podemos deixar de mencionar o drama das populações curdas que, nestes dias, chamou a atenção de todos: a necessária compaixão para com os refugiados extenuados não pode fazer esquecer milhões dos seus irmãos, que estão em busca de condições de existência seguras e dignas.

Por fim, devo infelizmente chamar a vossa atenção para o drama das populações da parte central da África. Nestes últimos meses assistimos a uma recomposição regional dos equilíbrios étnicos e políticos. Todas as vossas chancelarias conhecem os eventos que se sucederam em Ruanda, no Burundi, na República Democrática do Congo e, ainda mais recentemente, no Congo-Brazzaville. Não recordarei aqui os factos, mas evocarei essencialmente as provas infligidas às populações: os combates, os deslocamentos de pessoas, o drama dos refugiados, as condições sanitárias deficientes, uma administração defeituosa da justiça... Diante dessas situações, ninguém pode ter a consciência tranquila. Ainda hoje, no maior silêncio, continua-se a intimidar ou a matar. Eis por que desejaria aqui dirigir-me aos responsáveis políticos desses países: se a conquista violenta do poder se tornar a norma, o etnocentrismo continuar a impregnar todas as coisas, a representação democrática for sistematicamente deixada de lado, a corrupção e o comércio das armas ainda causarem sevícias, então a África nunca conhecerá a paz nem o desenvolvimento, e as gerações futuras terão um juízo impiedoso sobre estas páginas da história africana.

Quanto a isto, quereria de igual modo exortar à solidariedade para com os países do Continente. Os Africanos não devem esperar tudo da ajuda exterior. Entre eles, muitas mulheres e homens têm todas as aptidões humanas e intelectuais para enfrentar os desafios da nossa época e administrar as sociedades de maneira adequada. Mas é necessária mais solidariedade «africana», para sustentar os países em dificuldade, e também para que não lhes sejam impostas medidas ou sanções discriminatórias. Uns e outros deveriam ajudar-se mutuamente para a análise e a avaliação das opções políticas, e também aceitar não participar no fornecimento de armas. Antes, é preciso que os Países do continente favoreçam a pacificação e a reconciliação, se for necessário por meio de forças de paz compostas de soldados africanos. Então, a credibilidade da África será mais concreta aos olhos do resto do mundo e a ajuda internacional tornar-se-á sem dúvida mais intensa, no respeito da soberania das nações. É urgente que as controvérsias territoriais, as iniciativas económicas e os direitos do homem mobilizem as energias dos africanos para encontrar soluções equitativas e pacíficas, que ponham a África em condições de enfrentar o século XXI com maiores possibilidades e confiança.

5. Em última análise, todos estes problemas ressaltam como a mulher e o homem deste final de século são vulneráveis. É sem dúvida muito bom que as Organizações internacionais, por exemplo, se preocupem cada vez mais por indicar os critérios para melhorar a qualidade da vida humana e empreender iniciativas concretas. A Sé Apostólica sente-se solidária com estas actividades da diplomacia multilateral, com a qual colabora de bom grado, graças às suas Missões de observação. A respeito disso, quereria apenas mencionar esta manhã o facto de a Santa Sé se associar, de maneira institucional, aos trabalhos da Organização Mundial do Comércio, com a finalidade de favorecer o progresso humano e espiritual num sector vital para o desenvolvimento dos povos.

Mas não se deve esquecer que os nossos contemporâneos estão muitas vezes submetidos a ideologias que lhes impõem modelos de sociedade ou de comportamento que pretendem decidir tudo, tanto a sua vida como a sua morte, a sua intimidade e o seu pensamento, a procriação e o património genético. A natureza tornou-se um simples material, aberto a todas as experiências. Por vezes tem-se a impressão de que a vida não é apreciada senão em função da utilidade ou do bem-estar que pode propiciar, que o sofrimento é considerado desprovido de significado. Negligenciam-se a pessoa deficiente e o idoso porque são incómodos e, com muita frequência, considera-se o nascituro como um intruso numa existência planeada em função de interesses subjectivos pouco generosos. O aborto ou a eutanásia rapidamente aparecem então como «soluções» aceitáveis.

A Igreja católica – e a maior parte das famílias espirituais – sabem por experiência que infelizmente o homem é capaz de trair a sua humanidade. É preciso, então, iluminá-lo e acompanhá-lo para que, no seu caminho, possa sempre encontrar as fontes da vida e da ordem que o Criador inscreveu no mais íntimo do seu ser. Lá onde o homem nasce, sofre e morre, a Igreja, por sua vez, estará sempre presente a fim de significar que, no momento em que ele faz a experiência da sua finitude, Alguém o chama para o acolher e dar um sentido à sua frágil existência.

Consciente da minha responsabilidade de Pastor ao serviço da Igreja universal, muitas vezes tive a ocasião de evocar, nos actos do meu ministério, a absoluta dignidade da pessoa humana desde o momento da concepção até ao seu último respiro, o carácter sagrado da família como lugar privilegiado da protecção e promoção da pessoa, a grandeza e a beleza da paternidade e da maternidade responsáveis, assim como as nobres finalidades da medicina e da investigação científica.

Existem elementos que se impõem à consciência dos crentes. Quando o homem corre o risco de se considerar como um objecto que pode ser transformado ou submetido a bel-prazer, quando já não se percebe nele a imagem de Deus, quando a sua capacidade de amar e de se sacrificar é deliberadamente ocultada, quando o egoísmo e o lucro se tornam as motivações primeiras da actividade económica, então tudo é possível e a barbárie não está distante.

Excelências, Senhoras e Senhores, conheceis bem estas considerações, vós que sois as testemunhas quotidianas da acção do Papa e dos seus colaboradores. Mas eu quis propô-las mais uma vez à vossa reflexão, pois muitas vezes se tem a impressão de que os responsáveis, tanto das sociedades como das organizações internacionais, se deixam condicionar por uma nova linguagem, que parece acreditada por tecnologias recentes e que algumas legislações admitem ou até ratificam. Na realidade, trata-se da expressão de ideologias ou de grupos de pressão, que tendem a impor a todos as suas concepções e os seus comportamentos. Assim, o pacto social é profundamente debilitado e os cidadãos perdem as suas características.

Aqueles que são garantes da lei e da coesão social dum país, ou os que dirigem organizações criadas para o bem da comunidade das nações, não podem iludir a questão da fidelidade à lei não escrita da consciência humana, da qual já falavam os antigos e que é para todos, crentes ou não-crentes, o fundamento e o garante universal da dignidade humana e da vida em sociedade. Quanto a isto, não posso deixar de retomar o que escrevi há não muito tempo: «Se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder...» (Enc. Centesimus annus CA 46). Diante da consciência, «não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último "miserável", sobre a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais» (Enc. Veritatis splendor VS 96).

6. É deste modo que concluo o meu discurso, Excelências, Senhoras e Senhores, invocando sobre cada um de vós, as vossas famílias, as autoridades dos vossos países e os vossos concidadãos, a protecção divina durante todo este ano. Queira Deus Todo-poderoso ajudar cada um de nós a traçar novas vias, onde os homens se reencontrem e caminhem juntos! Esta é a oração que todos os dias elevo a Deus pela humanidade inteira, a fim de que seja sempre mais digna deste nome!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DA VISITA À SEDE


DA CÂMARA MUNICIPAL DE ROMA - CAPITÓLIO


15 de Janeiro de 1998





Senhor Presidente da Câmara Municipal
Senhores Assessores e Conselheiros do Município de Roma
Autoridades aqui presentes!


1. O primeiro sentimento, que naturalmente brota do meu coração pelo cordial acolhimento que me é reservado, exprime-se hoje num agradecimento comovido: obrigado a todos vós pela vossa presença, obrigado sobretudo ao Senhor Presidente da Câmara Municipal que, com amável cortesia, há algum tempo me convidou para vir a este histórico palácio, sede do primeiro Magistrado da Urbe, e quis fazer-se intérprete dos vossos sentimentos, ressaltando o significado que esta minha visita reveste.

Também eu desejava subir a esta Colina, que no decurso dos séculos se tornou berço, sede e emblema da história e da missão de Roma. E hoje, eis-me finalmente entre vós para prestar homenagem à realidade e à vocação desta Cidade. No início de cada ano costumo acolher no Vaticano os representantes da Administração municipal para a troca dos bons votos. Hoje, sou eu que venho visitar-vos, ilustres Senhores, para vos apresentar as felicitações do novo ano, que acaba de iniciar, e ao mesmo tempo continuar o colóquio amistoso que se iniciou desde o dia da minha eleição a Bispo de Roma e se aprofundou em tantos encontros com os cidadãos romanos e com os seus Representantes.

Não posso ocultar que a moldura pomposa desta histórica sala, dedicada a Júlio César, a presença do Papa numa reunião solene do Conselho Municipal e o clima criado pelo aproximar-se do novo Milénio aumentam a minha comoção e tornam este encontro ainda mais significativo: ele propõe-se como ocasião para um balanço retrospectivo e, ao mesmo tempo, como estímulo para elaborar um concorde projecto para o caminho futuro.

2. Os Representantes do Povo romano, o Sucessor de Pedro, o Capitólio: eis reunidos os protagonistas da peculiar e irrepetível vocação de Roma que, como recordava o Senhor Presidente da Câmara Municipal, não pode prescindir do «entrelaçamento» dessas presenças. Neste lugar fortemente evocativo da história e das magnificências da Urbe marcaram um encontro, hoje de manhã, os actuais intérpretes da sua tradição milenária. Aqui se encontram a Roma civil e a Roma cristã, não contrapostas, não alternativas, mas unidas no respeito das diferentes competências, pela paixão por esta Cidade e pelo desejo de tornar o seu rosto exemplar para o mundo inteiro.

Neste momento solene, o meu pensamento dirige-se aos últimos Pontífices que visitaram o Capitólio. Pio IX veio aqui pouco antes da anexão de Roma ao Estado Italiano, numa época assinalada por complexas e difíceis vicissitudes. Paulo VI subiu a esta colina no dia 16 de Abril de 1966, depois da última sessão do Concílio Vaticano II, para agradecer à Urbe o acolhimento oferecido aos Padres Conciliares. Ele, que já no dia 10 de Outubro de 1962, na vigília da abertura da Assembleia ecuménica, tivera ocasião, como Arcebispo de Milão, de pronunciar aqui um importante discurso sobre «Roma e o Concílio», inaugurou com a sua presença neste lugar, num momento histórico caracterizado por grandes agitações, um novo estilo de diálogo com a Cidade e com os seus Representantes.

Repercorrendo os anos transcorridos e a soma de rápidas mudanças que se sucederam nestas décadas, é espontâneo voltar o pensamento à Providência divina que, com imperscrutável sabedoria, guia os passos por vezes incertos dos homens e torna fecundos os esforços das pessoas de boa vontade. Quantas transformações caracterizaram a vida da Cidade! De Capital do Estado Pontifício a Capital do Estado Italiano; de cidade recolhida dentro dos muros aurelianos a metrópole de cerca de três milhões de residentes; de ambiente humano homogéneo a comunidade multiétnica, na qual convivem, ao lado da visão católica, visões da vida inspiradas em outros credos religiosos e também em concepções não religiosas da existência.

O rosto humano da Urbe mudou profundamente. O afirmar-se de diferentes modelos culturais e sociais e de novas sensibilidades tornaram a convivência citadina mais complexa, mais aberta, mais cosmopolita, mas também mais problemática: ao lado de reconhecidos aspectos positivos, não faltam, infelizmente, dificuldades e inquietudes. Ao lado de luzes e sinais de esperança, não estão ausentes sombras no panorama de uma Cidade chamada a ser, também no próximo milénio, farol de civilização, «discípula da verdade» (Leão Magno, Tract. septem et nonaginta), e «mãe acolhedora de povos» (Prudêncio, Peristephanon, poema 11, 191).

3. Há pouco eu falava da profícua relação entre o Bispo de Roma e o seu povo, que as mudadas situações sociais, políticas e religiosas jamais tornaram menos intensa. Antes, alguns acontecimentos, como o declínio do poder temporal, a assinatura dos Pactos Lateranenses, a trágica experiência da guerra e o novo período promovido pelo Concílio Ecuménico Vaticano II tornaram-na ainda mais cordial e dinâmica.

A visita hodierna assinala uma ulterior etapa desta história comum. Diante das transformações que interessaram e continuam a interessar a Cidade, também eu quereria repetir, confirmando-as, as palavras repletas de verdade e de humanidade, aqui pronunciadas pelo meu venerado predecessor Paulo VI: «O nosso amor, não diminuiu... o nosso amor cresceu!» (Paulo VI, Insegnamenti IV, pág. 179).

Cada dia cresce esta relação de estima e de afecto, que se exprime e se revigora nas frequentes visitas às Paróquias e nos encontros com os fiéis romanos. Ela consolida-se, graças à generosa e constante solicitude do Cardeal-Vigário, do Vice-Gerente, dos Bispos Auxiliares, dos sacerdotes, dos religiosos, dos leigos e de quantos, a vários títulos, cooperam no empenho da evangelização. Penso nas 328 Paróquias romanas, presentes em todos os bairros e povoados, embora às vezes sem estruturas adequadas. Penso nas comunidades religiosas, nas escolas católicas, nos institutos de cura e de assistência, nas associações e movimentos laicais, nas variegadas expressões do voluntariado, que constituem um recurso surpreendente e confortador da nossa Cidade, onde o anonimato e a solidão seriam doutro modo riscos mais frequentes e funestos.

Trata-se de um amor concreto que quer alcançar as pessoas, a gente toda, oferecendo-lhes motivos de esperança, propostas culturais, ajuda e apoio nas dificuldades morais e materiais, espaços de acolhimento e de escuta, ocasiões de compreensão e de fraternidade. É um amor atento à realidade que muda, à fadiga do quotidiano, aos riscos morais que corre também esta nossa Roma.

4. Precisamente para fazer frente aos fenómenos negativos que correm o risco de desfigurar a fisionomia de Roma, convoquei a Comunidade cristã, empenhando-a em dar à Cidade um suplemento de amor com a «Missão da cidade», em vista do Ano Santo 2000. O meu desejo é que, graças também a ela, a Urbe se apresente interior e visivelmente renovada para o encontro do Grande Jubileu, de maneira a oferecer aos peregrinos o próprio rosto cristão, como anúncio de uma era de paz e de esperança para a humanidade inteira.

Roma e o Jubileu: duas realidades que se evocam e se ilustram reciprocamente! Roma reflecte-se no Jubileu e o Jubileu faz referência à realidade de Roma. A celebração repropõe a fé em Jesus Cristo, anunciada e testemunhada aqui pelo apóstolo Pedro; evoca a exigência de restabelecer a efectiva igualdade de direitos entre todos os homens, à luz da lei e da justiça de Deus; exorta à superação das divisões e das suas causas, para instaurar uma verdadeira comunhão entre todos os seres humanos. Com a sua história religiosa e civil e com a sua dimensão «católica», Roma evoca de modo admirável estes valores. Ela é a Sede do Príncipe dos Apóstolos e do seu Sucessor; conserva as memórias do martírio dos Santos Pedro e Paulo; é conhecida como pátria do direito e da civilização latina e cristã; é apreciada como cidade universalmente aberta ao acolhimento. Por essas correspondências singulares, Roma é chamada a viver de modo exemplar a graça do Jubileu.

É certamente tarefa dos cristãos renovar e purificar o rosto desta Igreja que «preside na caridade», segundo a famosa expressão de Santo Inácio de Antioquia (Carta aos , pág. Rm 253), para que reflicta sempre melhor a luz de Cristo. Mas a peculiar relação de Roma com o Jubileu deverá tornar também as Autoridades civis particularmente solícitas em promover uma convivência civil e uma qualidade da vida dignas do homem e da vocação da nossa cidade.

Por ocasião desta visita, além de me ser oferecida uma pedra proveniente do anfiteatro Flávio, quisestes descerrar nesta Sala do Conselho uma lápide comemorativa. Enquanto formulo um cordial agradecimento pela vossa cortesia, faço votos por que este gesto simbólico constitua o sinal permanente de uma nova era de empenho comum, em prol do progresso humano e civil da nossa Cidade.

5. Com o olhar voltado para o Ano 2000, dirijo-me agora a ti, Roma, que o Senhor me chamou a guiar pelo caminho do Evangelho, no limiar de um novo Milénio!

O Senhor confiou-te, Roma, a tarefa de ser no mundo «prima inter Urbes», farol de civilização e de fé. Está à altura do teu passado glorioso, do Evangelho que te foi anunciado, dos Mártires e dos Santos que fizeram grande o teu nome. Abre a Cristo, Roma, as riquezas do teu coração e da tua história milenária. Não temas, Ele não humilha a tua liberdade nem a tua grandeza. Ele ama-te e deseja tornar-te digna da tua vocação civil e religiosa, para que continues a prodigalizar os tesouros de fé, de cultura e de humanidade aos teus filhos e aos homens do nosso tempo.

Ao aproximarem-se da tua fé, dos testemunhos eloquentes da tua caridade, do desenvolvimento metódico da tua existência quotidiana, possam os peregrinos do Grande Jubileu ser ajudados a crer e a esperar na nova civilização do Amor.

Confio-te, Roma, à solícita protecção de Maria, «Salus populi Romani», e à intercessão dos Santos Padroeiros Pedro e Paulo.

Roma, cidade que não teme o tempo, nem o dinamismo do progresso; Roma, encruzilhada de paz e de civilização; Roma, minha Roma, abençoo-te e, contigo, abençoo os teus filhos e todos os teus projectos de bem!

Roma, cujo nome lido ao contrário soa Amor. Como diz um poeta polaco: «Se dizes Roma, responde-te Amor». É assim. É esta a constatação conclusiva, e também um voto para Roma. Nesta circunstância hodierna tão importante. Obrigado!




Discursos João Paulo II 1998 - 8 de Janeiro de 1998