Discursos João Paulo II 1998 - 20 de Fevereiro de 1998

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À COMISSÃO CONJUNTA DO CONSELHO


DAS CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS


E DAS IGREJAS DA EUROPA


: 20 de Fevereiro de 1998



Senhor Cardeal
Queridos Irmãos em Cristo!

1. Sinto-me feliz em vos receber por ocasião da reunião em Roma do Comité conjunto do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE) e da Conferência das Igrejas da Europa (KEK). Alegro-me com este encontro fraterno e com as numerosas manifestações de reflexão, de oração e de fraternidade ecuménicas que se realizam regularmente em diferentes países do continente europeu. Na perspectiva do grande Jubileu, para o qual conto com a participação activa de todos os cristãos, a atenção dedicada por todas as Igrejas da Europa à causa do ecumenismo é um sinal encorajador no caminho da unidade dos cristãos.

2. O Concílio Vaticano II deu um renovado estímulo ao movimento ecuménico, ao ressaltar a importância do diálogo entre irmãos, sob a guia do Espírito Santo; é de igual modo necessário que os cristãos manifestem a sua caridade comum e o seu desejo de conversão, a fim de superar as suas infidelidades, fonte e causa de divisão, «em vista de viver de modo mais puro segundo o Evangelho» (Conc. Ecum. Vat. II, Unitatis redintegratio UR 3). «O empenho ecuménico deve fundar-se na conversão dos corações e na oração, ambas induzindo depois à necessária purificação da memória histórica» (Ut unum sint UUS 2). Para remover os obstáculos e os ressentimentos que ainda possam existir, é preciso empenhar-se cada vez mais num ecumenismo da vida e da oração, e seria bom realizar projectos comuns, respeitando as próprias actividades promovidas pelas diversas Confissões cristãs. Graças a uma vida espiritual continuamente afirmada, as pessoas e as comunidades cristãs deixar-se-ão conduzir pelo Espírito, que as levará à verdade completa e as tornará audaciosas nos seus esforços. Hoje mais do que nunca Cristo nos solicita e «a aproximação do fim do segundo milénio incita todos a um exame de consciência e a oportunas iniciativas ecuménicas» (Tertio millennio adveniente, TMA 34).

3. É consolador que as questões ecuménicas já façam parte integrante dos programas de estudos teológicos nos seminários, nos institutos eclesiásticos de ensino e na formação permanente. Deste modo, todos os que recebem uma formação cristã na sua Igreja estarão atentos ao que pode favorecer a unidade dos cristãos e terão a preocupação de participar nela de modo activo. Ajudarão os seus irmãos a adquirir um melhor conhecimento das outras Igrejas cristãs, o que é indispensável para caminhar na via da fraternidade e da unidade. Alegro-me também pelo facto de serem prosseguidos e intensificados intercâmbios de professores e de estudantes entre os diferentes lugares de formação e entre as confissões cristãs.

4. Nos vossos encontros e nas reuniões de Bâle e de Graz, manifestastes a vossa preocupação pela aproximação entre o Leste e o Oeste do continente europeu, que durante muito tempo esteve dividido, e ao longo deste século foi ferido. Chamados a superar os seus receios, as comunidades cristãs de diversas confissões estão doravante convidadas a empenharem-se com coragem no caminho rumo à plena unidade, a fazer dom das suas riquezas espirituais e a partilhá-las num intercâmbio confiante. Deste modo, os cristãos abrirão os tesouros da vida espiritual aos homens do nosso tempo que poderão encontrar mais profundamente o Senhor; eles contribuirão também para a união na unidade de todos os filhos de Deus dispersos, segundo a vontade do próprio Cristo (cf. Jo Jn 17,11-23). Esta partilha levará, sem dúvida alguma, a um respeito cada vez maior das sensibilidades particulares e do andamento pastoral de cada confissão cristã, enraizadas numa história e em tradições específicas.

5. O programa do vosso encontro comporta o estudo de projectos inovadores, a fim de dar mais ímpeto ao ecumenismo, interrogando-vos sobre o método, os critérios e o conteúdo das novas colaborações a serem empreendidas, à luz das experiências passadas. Graças ao diálogo entre os responsáveis das Igrejas, possa a Europa ser o crisol duma pesquisa cada vez mais intensa de unidade entre os cristãos do continente e, mais amplamente, entre todos os que se encontram espalhados pelo mundo, no respeito da verdade! Juntos, os discípulos de Cristo são convidados a anunciar de modo explícito o Evangelho nas culturas actuais; eles também devem ter a preocupação de oferecer o seu contributo à sociedade, a nível político, económico e social, tornando-se fermento da edificação do continente, no respeito da criação e da autonomia legítima da disposição das realidades terrestres.

A Europa enfrenta actualmente o problema do acolhimento e da integração de populações e comunidades portadoras de outras tradições religiosas, sobretudo do Islã e das religiões asiáticas; as Igrejas cristãs devem manifestar um espírito de abertura confiante e empenhar-se ainda mais no caminho do «diálogo da vida», para o qual já tive a ocasião de convidar os fiéis católicos e os nossos irmãos muçulmanos; este diálogo abre a via do serviço comum dos homens em numerosos âmbitos (cf. Conc. Ecum. Vat. II Unitatis redintegratio UR 12). A fim de enfrentar este desafio, trabalhais conjuntamente e favoreceis as colaborações entre os fiéis, para responder aos problemas sociais com os quais os homens de hoje se enfrentam; não se pode esquecer os conflitos que martirizam as populações do nosso continente, as dificuldades económicas que tornam as famílias frágeis, bem como os atentados à dignidade e aos direitos das pessoas e dos povos, em particular os que ferem as mulheres e as crianças.

«Pai santo, guarda-os em Teu nome, o nome que Me deste, para que eles sejam um... como Tu, ó Pai, estás em Mim e Eu em Ti. E para que também eles estejam em Nós, a fim de que o mundo acredite que Tu Me enviaste» (Jn 17,11 Jn 17,21). Fazemos nossa hoje esta oração do Senhor. Ela recorda-nos que o testemunho da unidade é um elemento essencial duma evangelização autêntica e profunda. Mediante a sua unidade na mesma Igreja, os discípulos de Cristo fizeram descobrir aos seus irmãos o mistério da Santíssima Trindade, comunhão perfeita de Amor. E nós não nos devemos tranquilizar enquanto não conseguirmos, na docilidade ao Espírito Santo, corresponder a esta oração de Cristo: «Para que eles sejam um!». No final do nosso encontro, invoco sobre vós a assistência do Espírito Santo, cujos frutos são «alegria, paz, paciência, bondade, benevolência, fé, mansidão e domínio de si» (Ga 5,22), e que renova todas as coisas; apresento-vos os meus melhores votos para os vossos trabalhos e invoco sobre vós as Bênçãos divinas, bem como sobre os vossos colaboradores e sobre quantos estão confiados à vossa solicitude pastoral.



PALAVRAS DO PAPA JOÃO PAULO II DURANTE


A CELEBRAÇÃO DO CONSISTÓRIO


ORDINÁRIO PÚBLICO PARA


A CRIAÇÃO DE NOVOS CARDEAIS


Sábado, 21 de Fevereiro de 1998

«Seniores qui in vobis sunt obsecro consenior et testis Christi passionum qui et eius quae in futuro revelanda est gloriae communicator» (1P 5,1).


1. Faço minhas as palavras do apóstolo Pedro ao dirigir-me a vós, venerados e caríssimos Irmãos, que tive a alegria de associar ao Colégio dos Cardeais.

Elas evocam a nossa radicação fundamental, como «seniores», no mistério de Cristo Cabeça e Pastor. Enquanto partícipes da plenitude da Ordem sagrada, d'Ele nós somos, na Igreja e para a Igreja, uma representação sacramental, chamados a proclamar de modo autorizado a Sua palavra, a repetir os Seus gestos de perdão e de oferta da salvação, a exercer a Sua solicitude amorosa até ao dom total de nós mesmos pelo rebanho (cf. Exortação Apostólica Pastores dabo vobis PDV 15).

Esta radicação em Cristo recebe hoje em vós, venerados Irmãos, uma ulterior especificação, uma vez que com a elevação à Púrpura sois chamados e habilitados a um serviço eclesial de responsabilidade ainda mais grave, em estreitíssima colaboração com o Bispo de Roma. Tudo o que hoje se realiza na Praça de São Pedro é, pois, a chamada a um serviço mais empenhativo porque, como escutámos do Evangelho, «quicumque voluerit in vobis primus esse, erit omnium servus» (Mc 10,44). A escolha compete a Deus, a nós o serviço. Não se deve porventura entender o próprio primado de Pedro como serviço à unidade, à santidade, à catolicidade e à apostolicidade da Igreja?

O Sucessor de Pedro é o servus servorum Dei, segundo a expressão de São Gregório Magno. E os Cardeais são os seus primeiros conselheiros e cooperadores no governo da Igreja universal: são os «seus» bispos, os «seus» presbíteros e os «seus» diáconos, não simplesmente na primitiva dimensão da Urbe, mas no apascentar o inteiro povo de Deus, ao qual a Sede de Roma «preside na caridade» (cf. Santo Inácio de Antioquia, Aos Rm 1,1).

2. Com esses pensamentos, dirijo a minha cordial saudação aos venerados Cardeais presentes, que no Colégio cardinalício, e sobretudo neste Consistório público, manifestam de modo eminente o «aspecto sinfónico», por assim dizer, da Igreja, isto é, a sua unidade na universalidade das proveniências e na variedade dos ministérios.

Com eles compartilho a alegria de acolher hoje os vinte novos Coirmãos, que provêm de treze Países de quatro Continentes e deram óptima prova de fidelidade a Cristo e à Igreja, alguns no serviço directo da Sé Apostólica, outros em guiar importantes Dioceses. Agradeço, em particular, ao Cardeal Jorge Arturo Medina Estévez as expressões, com que se fez intérprete dos comuns sentimentos nesta circunstância tão significativa.

É-me grato, neste momento, dirigir um pensamento orante ao saudoso D. Giuseppe Uhaè, que o Deus de toda a graça – como escreve o apóstolo Pedro – chamou a Si pouco antes da nomeação, para lhe oferecer outra coroa: a da glória eterna em Cristo (cf. 1P 5,10). Desejo, ao mesmo tempo, comunicar que reservei in pectore a nomeação a Cardeal a outros dois Prelados.

3. A celebração hodierna realiza-se durante o ano do Espírito Santo, em preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000, segundo o itinerário traçado na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, que recolheu e elaborou as propostas de um memorável Consistório Extraordinário, que se realizou em Junho de 1994.

Que melhor contexto eclesial e espiritual, para invocar sobre os novos Cardeais os dons do Espírito Santo, «spiritus sapientiae et intellectus, spiritus consilii et fortitudinis, spiritus scientiae et pietatis et... spiritus timoris Domini» (Is 11,2-3 Vulg.)? Quem mais do que eles tem necessidade do abundante conforto destes dons, para exercer a missão recebida do Senhor? Quem mais do que eles está consciente do facto que «o Espírito é... o agente principal da nova evangelização» e que «a unidade do Corpo de Cristo está fundada sobre a acção do Espírito, é garantida pelo ministério apostólico e é sustentada pelo mútuo amor» (Tertio millennio adveniente, TMA 45 TMA 47)?

Venerados Irmãos, possa o Espírito Paráclito habitar plenamente em cada um de vós, cumular-vos com a consolação divina e tornar-vos assim consoladores de quantos se encontram na aflição, de modo particular dos membros mais provados da Igreja, das comunidades que maiormente sofrem tribulações por causa do Evangelho. Possais dizer-lhes com o apóstolo Paulo: «Sive autem tribulamur, pro vestra exhortatione et salute; sive exhortamur, pro vestra exhortatione, quae operatur in tolerantia earumdem passionum quas et nos patimur» (2Co 1,6).

4. Venerados Irmãos, vós sois criados Cardeais enquanto nos encaminhamos, já a largos passos, rumo ao terceiro milénio da era cristã. Já vislumbramos no horizonte a Porta Santa do Grande Jubileu do Ano 2000 e isto dá à vossa missão um valor e um significado de enorme relevo. Com efeito, sois chamados, juntamente com os outros Membros do Colégio cardinalício, a ajudar o Papa a conduzir a barca de Pedro para esta meta histórica. Conto com o vosso apoio e o vosso esclarecido e experimentado conselho, para guiar a Igreja na última fase da preparação para o Ano Santo. Ao dirigir, juntamente convosco, o olhar para além do limiar do Ano 2000, peço ao Senhor a abundância dos dons do Espírito divino para a Igreja inteira, a fim de que a «primavera» do Concílio Vaticano II possa encontrar no novo milénio o seu «verão», isto é, o seu amadurecido desenvolvimento.

A missão, a que Deus vos chama neste dia, exige um atento e constante discernimento. Eis por que vos exorto a ser sempre mais homens de Deus, ouvintes que penetram a sua Palavra, capazes de reflectir a sua luz no meio do Povo cristão e entre os homens de boa vontade. Só sustentada pela luz do Evangelho a Igreja pode enfrentar, com esperança segura, os desafios do presente e do futuro.

5. Dirijo agora cordiais boas-vindas aos familiares dos novos Cardeais, assim como às Delegações provenientes das várias Igrejas e às Representações governativas e civis, que quiseram participar neste solene momento eclesial. Caríssimos Irmãos e Irmãs, ilustres Senhores e Senhoras, agradeço-vos a vossa presença, expressão do afecto e da estima que vos ligam aos Arcebispos e Bispos por mim associados ao Colégio cardinalício. Assim como neles, também em vós vejo uma imagem da universalidade da Igreja e, além disso, um sinal eloquente do vínculo de comunhão de leigos e pessoas consagradas com os seus Pastores, assim como de presbíteros e diáconos com os seus Bispos. Doravante, os novos Cardeais terão ainda mais necessidade do vosso apoio espiritual: acompanhai-os sempre com a oração, como já o fazeis.

6. Amanhã terei a alegria de celebrar com particular solenidade a festa da Cátedra de Pedro, juntamente com os novos Cardeais, aos quais entregarei o anel. Quereria invocar, neste momento, a celeste intercessão do Príncipe dos Apóstolos: ele, que sentiu toda a sua própria indignidade diante da glória do seu Senhor, conceda a cada um de vós a humildade do coração, indispensável para acolher cada dia, como um dom, o alto encargo que vos foi confiado. Pedro, que ao seguir Cristo se tornou pescador de homens, vos obtenha o reconhecimento quotidiano pela chamada a serdes partícipes de modo singular no ministério do seu Sucessor. Ele, que nesta cidade de Roma selou com o sangue o seu testemunho de Cristo, vos alcance a graça de dar a vida pelo Evangelho e de fecundar assim a messe do Reino de Deus.

A Maria, Rainha dos Apóstolos, confio as vossas pessoas e o vosso serviço eclesial: a sua presença espiritual hoje, neste nosso cenáculo, seja para vós penhor da constante efusão do Espírito, graças ao qual podereis proclamar a todos, nas várias línguas do mundo, que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.

Amém!




AOS PARTICIPANTES NA IV ASSEMBLÉIA GERAL


DA PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA


24 de Fevereiro de 1998







Ilustres Senhores, gentis Senhoras!

1. Ao dirigir a minha saudação a todos vós, membros ordinários e correspondentes da Pontifícia Academia para a Vida, desejo exprimir um profundo agradecimento ao Presidente, Prof. Juan de Dios Vial Correa, pelas suas amáveis palavras. Saúdo também o Vice-Presidente, D. Elio Sgreccia, que generosamente se prodigaliza pela vossa prestigiosa Instituição.

Aproveito de bom grado a ocasião para exprimir também o meu apreço por quanto a Academia está a realizar, desde os primeiros passos do seu caminho, no cumprimento da sua tarefa de promoção e defesa do valor fundamental da vida.

2. Alegro-me por terdes apresentado à atenção da vossa quarta Assembleia Geral o tema: «Genoma humano: personalidade humana e sociedade do futuro». No maravilhoso percurso que a mente humana realiza para conhecer o universo, a etapa que se regista nestes anos no âmbito genético é particularmente sugestiva, porque leva o homem à descoberta dos segredos mais íntimos da sua própria corporeidade.

O genoma humano é como o último continente que agora se explora. Neste milénio que está para se concluir, tão rico de dramas e de conquistas, através das explorações geográficas e das descobertas, os homens reconheceram-se e de algum modo aproximaram-se. O conhecimento humano realizou também importantes aquisições no mundo da Física, até à descoberta recente da estrutura dos componentes do átomo. Agora os cientistas, através dos conhecimentos de genética e de biologia molecular, vêem com o olhar penetrante da ciência dentro do íntimo tecido da vida e dos mecanismos que caracterizam os indivíduos, garantindo a continuidade das espécies viventes.

3. Estas conquistas revelam cada vez mais a grandeza do Criador, porque consentem que o homem constate a ordem ínsita na criação e aprecie as maravilhas do seu corpo, além do seu intelecto, no qual, dum certo modo, se reflecte a luz do Verbo «por meio do Qual todas as coisas foram criadas» (cf. Jo Jn 1,3).

Todavia, na época moderna é grande a tendência a procurar o saber não tanto para admirar e contemplar, quanto para aumentar o poder sobre as coisas. Saber e poder entrelaçam-se cada vez mais numa lógica que pode aprisionar o próprio homem. No caso do conhecimento do genoma humano, esta lógica poderia levar a intervir na estrutura interna da própria vida do homem com a perspectiva de submeter, seleccionar e manipular o corpo e, em definitiva, a pessoa e as gerações futuras.

Por conseguinte, a vossa Academia para a Vida fez bem ao apresentar a reflexão sobre as descobertas em acto no âmbito do genoma humano, desejando assim colocar na base do seu trabalho um fundamento antropológico, que se baseie na dignidade da pessoa humana.

4. O genoma apresenta-se como o elemento estruturador e construtivo do corpo nas suas características quer individuais quer hereditárias: ele marca e condiciona a pertença à espécie humana, o vínculo hereditário e as características biológicas e somáticas da individualidade. A sua influência na estrutura do ser corpóreo é determinante, desde o primeiro momento da concepção até à hora da morte natural. Com base nesta verdade interna do genoma, já presente no momento da procriação, no qual os patrimónios genéticos do pai e da mãe se unem, a Igreja assumiu a tarefa de defender a dignidade humana de cada indivíduo desde o seu início.

De facto, o aprofundamento antropológico leva a reconhecer que, em virtude da unidade substancial do corpo com o espírito, o genoma humano não tem unicamente um significado biológico; ele é portador de uma dignidade antropológica, que tem o seu fundamento na alma espiritual que o penetra e vivifica.

Não é lícito, portanto, praticar qualquer tipo de intervenção no genoma, a não ser que se destine ao bem da pessoa, entendida como unidade de corpo e espírito; também não é lícito discriminar os sujeitos humanos com base nos eventuais defeitos genéticos verificados antes ou depois do nascimento.

5. A Igreja católica, que reconhece no homem redimido por Cristo o seu caminho (cf. Carta Encíclica Redemptor hominis RH 14), insiste para que seja garantido também pela lei o reconhecimento da dignidade do ser humano como pessoa, desde o momento da concepção. Além disso, ela convida todos os responsáveis políticos e os cientistas a promoverem o bem da pessoa, através da investigação científica destinada a aperfeiçoar oportunas terapias também no âmbito genético, que sejam praticáveis e isentes de riscos desproporcionados. Isto é possível, por reconhecimento dos próprios cientistas, nas intervenções terapêuticas no genoma das células somáticas, mas não no das células germinais e do embrião precoce.

Sinto o dever de exprimir aqui a minha preocupação pelo instaurar-se de um clima cultural que favorece o andamento da diagnose pré-natal rumo a uma direcção que já não é a da terapia, em vista do melhor acolhimento da vida do nascituro, mas antes a da discriminação de todos os que a análise pré-natal demonstra não serem sadios. No momento actual há uma grave desproporção entre as possibilidades diagnósticas, que estão em fase de expansão progressiva, e as escassas possibilidades terapêuticas: este facto apresenta graves problemas éticos às famílias, que têm necessidade de ser apoiadas no acolhimento da vida nascente, mesmo quando ela é atingida por qualquer defeito ou deformação.

6. Sob este perfil, é necessário denunciar o surgimento e a difusão de um novo eugenismo selectivo, que provoca a supressão de embriões e de fetos atingidos por algumas doenças. Por vezes, para esta selecção, serve-se de teorias infundadas sobre a diferença antropológica e ética dos vários graus de desenvolvimento da vida pré-natal: o chamado «gradualismo da humanização do feto». Ou então recorre a uma concepção errada da qualidade da vida, que deveria – a seu parecer – prevalecer sobre a sacralidade da vida. A respeito disto, não se pode deixar de pedir que os direitos proclamados pelas Convenções e pelas Declarações Internacionais acerca da tutela do genoma humano e, em geral, acerca do direito à vida possam ser usufruídos por cada ser humano, desde o momento da fecundação, sem discriminações, quer tais discriminações estejam relacionadas com as imperfeições genéticas ou com defeitos físicos, quer se refiram aos diferentes períodos de desenvolvimento do ser humano. É urgente, portanto, reforçar os baluartes jurídicos perante as imensas possibilidades diagnósticas que são apresentadas pelo projecto sequencial do genoma humano.

7. Quanto mais aumenta o conhecimento e o poder de intervenção, tanto maior deve ser o conhecimento dos valores em questão. Por conseguinte, faço votos por que a conquista deste novo continente do saber, o genoma humano, represente o início de novas possibilidades de vitória sobre as doenças e jamais seja confirmada uma orientação selectiva dos seres humanos.

Nesta perspectiva, será muito útil que as organizações científicas internacionais façam com que as almejadas vantagens da investigação genética sejam postas à disposição também dos povos em vias de desenvolvimento. Deste modo, evitar-se-á uma ulterior fonte de desigualdade, tendo em conta também que para tais investigações se investem enormes recursos financeiros que poderiam ser, segundo o parecer de alguns, prioritariamente empregados para aliviar as doenças curáveis e as persistentes misérias económicas de grande parte da humanidade.

A única certeza que agora temos é que a sociedade do futuro só estará à medida da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre os povos, se as descobertas científicas forem orientadas para o bem comum, que se realiza sempre através do bem de cada pessoa individualmente e requer a cooperação de todos, e hoje sobretudo dos cientistas. Ao invocar sobre os vossos trabalhos a assistência divina para um serviço cada vez mais incisivo e eficaz à causa fundamental da vida humana, a todos abençoo de coração.




AO CLERO DE ROMA POR OCASIÃO


DO INÍCIO DA QUARESMA


Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 1998







1. Caríssimos sacerdotes romanos, párocos, vice-párocos, diáconos, diáconos permanentes, empenhados em todas as outras formas de ministério, saúdo-vos com grande afecto, contente com a vossa participação neste nosso encontro tradicional e familiar.

O Cardeal-Vigário, na sua saudação inicial, apresentou os traços salientes do actual empenho missionário da Igreja de Roma, e os vossos testemunhos enriqueceram o quadro, narrando experiências vivas daquilo que estais a realizar nos vários âmbitos da pastoral.

Na realidade, a «Missão da cidade» entra precisamente agora no seu momento culminante. Numerosas paróquias já iniciaram aquela missão às famílias que eu mesmo abri no domingo, 1° de Fevereiro, encontrando-me com uma família da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus no bairro de «Prati». As outras estão a ponto de começar, agora que teve início o tempo da Quaresma, este ano consagrado de modo especial à missão.

2. Este segundo ano de preparação imediata para o Grande Jubileu é dedicado ao Espírito e à Sua presença santificadora. Recordo com alegria o domingo 30 de Novembro, primeiro do Advento, no qual celebrei convosco e com todos os missionários da Diocese de Roma a abertura do ano do Espírito, entregando a Cruz da missão às paróquias e a cada um dos missionários. Já na Tertio millennio adveniente eu escrevia que «o Espírito é também para a nossa época o agente principal da nova evangelização» (n. TMA 45). Mas a Missão da cidade é, para esta nossa Roma, a actuação concreta da grande tarefa da nova evangelização. Portanto, vale-lhe a pleno título aquilo que eu acrescentava na mesma passagem da Carta Apostólica: «Será, por isso, importante redescobrir o Espírito como Aquele que constrói o Reino de Deus no curso da história e prepara a sua plena manifestação em Jesus Cristo, animando os homens no mais íntimo deles mesmos e fazendo germinar dentro da existência humana os gérmens da salvação definitiva que acontecerá no fim dos tempos».

3. Caríssimos sacerdotes, hoje quereria reflectir convosco sobre o íntimo ligame que une o nosso sacerdócio ao Espírito Santo e à missão. Retornemos ao momento da nossa Ordenação presbiteral, quando o Bispo ordenante evocou sobre nós a efusão do Espírito de santidade. Então, renovou-se em nós aquilo que Jesus ressuscitado tinha operado nos Seus discípulos, na mesma noite da Páscoa: «Ele disse-lhes: "A paz seja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós". Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: "Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos"» (Jn 20,21-23). É em virtude do dom do Espírito Santo que os discípulos encontraram a coragem para ir pelo mundo inteiro no nome do Senhor, a fim de O anunciar, a Ele, à Sua salvação e ao seu Reino; realizaram prodígios no Seu nome; e constituíram em toda a parte as primeiras comunidades cristãs.

Este dom do Espírito não é menos vivo e operante em nós, não perdeu nada do Seu poder renovador e santificador. O Espírito actua em todos os crentes que se fazem missionários, ao obedecerem à chamada do Senhor, e é motivo de alegria ver quantos leigos e quantas religiosas acolheram esta chamada, empenhando-se com grande generosidade na Missão da cidade. Mas o Papa repete-vos, hoje, aquilo que já vos dizia há dois anos nesta mesma circunstância, isto é, que vós, sendo os primeiros colaboradores da Ordem episcopal, sois também aqueles a quem está confiado em primeiro lugar o ministério de anunciar o Evangelho a todos. A Missão da cidade tem necessidade de presbíteros que sejam autênticos evangelizadores e acreditáveis testemunhas da fé: o Bispo de Roma espera isto de vós, meus caríssimos Irmãos. A particular efusão do Espírito Santo que nos foi dada no momento da Ordenação, depois daquelas já recebidas no Baptismo e na Confirmação, é a fonte e a raiz da tarefa especial que nos é confiada na missão e na evangelização.

4. Somos os primeiros chamados a entrar naquela dinâmica, naquele movimento espiritual que é próprio da missão. Devemos entrar nele, como já vos dizia há dois anos, com o nosso ser e a nossa alma de sacerdotes, com a nossa oração e, portanto, com todo o nosso empenho pastoral quotidiano.

Somente o Espírito pode realizar isto em nós. A missão, com efeito, é um empreendimento de amor e a sua eficácia depende, em última análise, da intensidade do amor: somos missionários na medida em que conseguimos testemunhar que Deus ama e salva cada pessoa, esta Cidade e a humanidade inteira. Mas o Espírito Santo é, na Santíssima Trindade, o Amor subsistente. E, como nos recorda o apóstolo Paulo, «o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rm 5,5).

Em concreto, o Espírito Santo torna-nos capazes de olhar quer para o próximo quer para a nossa própria vida com os olhos de Deus, de amar os irmãos com aquele mesmo amor que o Senhor Jesus os amou, portanto de os entender, perdoar, ajudar, confortar e lhes estar de facto próximos em qualquer circunstância, desde a mais alegre até à mais triste, e de o ser não duma maneira qualquer, mas como testemunhas de Cristo e pais na fé. Ao caminharmos assim, juntamente com os missionários leigos, de casa em casa, de família em família, transmitiremos um sinal de confiança e de esperança, daremos novo vigor aos ânimos cansados ou desanimados, poderemos refortalecer os vínculos familiares enfraquecidos ou que estão a ponto de se romperem, poderemos oferecer um sinal palpável do facto de que Deus não Se esquece de ninguém.

5. Mas o Espírito Santo, caros sacerdotes, não só nos acompanha, guia e sustém no caminho da missão. Ele também, e antes de tudo, nos precede. Com efeito, o Espírito está misteriosamente presente e operante no coração, na consciência e na vida de cada mulher e de cada homem. O Espírito não conhece fronteiras. Ao actuar de maneira misteriosa e silenciosa no íntimo de cada um, o Espírito predispõe cada pessoa a acolher Cristo e o seu Evangelho a partir de dentro.

Por isso, caros Irmãos, quando batemos à porta de uma casa, ou à porta de um coração, o Espírito já nos precedeu e o anúncio de Cristo poderá, talvez, ressoar de novo no ouvido de quem nos escuta, mas jamais poderá ressoar de modo completamente estranho no seu coração. Nutrir pessimismo acerca da possibilidade ou da eficácia da missão seria portanto, caros Irmãos, em certo sentido um pecado contra o Espírito Santo, uma falta de confiança na Sua presença e acção.

6. À medida que o Grande Jubileu se aproxima, delineiam-se com maior precisão as ocasiões de graça que o Espírito está a preparar para a Igreja e a humanidade, em particular para esta Igreja e esta Cidade de Roma. Penso no Congresso Eucarístico Internacional, no Dia Mundial da Juventude, no Jubileu das Famílias, no Jubileu dos Sacerdotes e nos outros encontros previstos e esperados. A Missão da cidade prepara-nos, a nós mesmos e aos nossos fiéis, para viver estes eventos no seu verdadeiro significado de graça, de fé e de conversão. Por isso devemos orar insistentemente ao Espírito Santo, pois sabemos bem que só Ele é capaz de converter os corações e de conceder a fé e a graça.

Olhando para os empenhos deste ano, na perspectiva geral do Grande Jubileu, a visita às famílias que realizareis nesta Quaresma representa a melhor preparação para o grande encontro do Jubileu das Famílias, que tem como finalidade pôr Cristo no centro da vida familiar e assim restituir à família a sua autêntica e inalienável dignidade humana e cristã.

De modo análogo, a «Missão dos jovens», que representa um objectivo específico da Missão da cidade, prepara o terreno para o Dia Mundial da Juventude do Ano 2000. Já no Domingo de Ramos deste ano os jovens da Itália e de Roma receberão dos jovens franceses, na Praça de São Pedro, a Cruz do Ano Santo, que peregrinou como missionária através dos Continentes e das Nações, de Roma a Buenos Aires, de Santiago de Compostela a Czêstochowa, de Denver a Manila, a Paris e de novo a Roma. Também o especial encontro dos jovens de Roma com o Papa, na quinta-feira que precede o Domingo de Ramos, este ano terá lugar pela primeira vez ao ar livre, na Praça diante da Basílica de São João, Catedral de Roma: com efeito, queremos poder acolher todos os jovens que participam, cada ano em maior número, e dar evidência à abertura missionária deste evento, dirigido a cada jovem de Roma.

7. Caríssimos sacerdotes, ao lado do seu aspecto cristológico, o Grande Jubileu «tem um aspecto pneumatológico, pois o mistério da Encarnação se realizou "por obra do Espírito Santo"» (Dominum et vivificantem DEV 50). Como bem sabemos, realizou-se no seio da Virgem Maria e através do seu consentimento livre, imediato e total. Maria é, pois, «a mulher dócil à voz do Espírito, mulher do silêncio e da escuta, mulher de esperança, que soube acolher como Abraão a vontade de Deus "esperando contra toda a esperança" (Rm 4,18)» (Tertio millennio adveniente, TMA 48).

A invocação ao Espírito Santo não pode, portanto, estar desvinculada da consagração a Maria, Àquela a quem o meu Venerado Predecessor Paulo VI chamou «Estrela da evangelização». A Ela, portanto, confiamos o nosso sacerdócio e a Missão da cidade. Com estes sentimentos, concedo a todos de coração a minha Bênção.

Quereria ainda acrescentar que este nosso encontro de hoje está muito bem situado. O que vimos em Roma no domingo passado, festa da Cátedra de São Pedro? Foram criados os novos Cardeais. Mas quem são os Cardeais? Na sua grande maioria, são «párocos» romanos. Sete são Bispos suburbicários. Seis são Diáconos das diversas diaconias, cujo número muda. Sobretudo o ofício diaconal, no Colégio Cardinalício, pertence aos Dicastérios Romanos. Nem todos os Prefeitos são Diáconos. Alguns são Bispos, como os Cardeais Ratzinger e Sodano, mas na maior parte são Diáconos. Os outros, a grande maioria, são «párocos» romanos. O que quer dizer isto? Quer dizer que cada paróquia romana é um lugar cardinalício. Parece-me que há sempre mais paróquias romanas que têm um título cardinalício, porque o número dos Cardeais aumentou.

Comemoremos agora o Cardeal Ugo Poletti, que tantas vezes esteve connosco nesta circunstância, na quinta-feira depois das Cinzas. Boa Quaresma e boa Páscoa!




Discursos João Paulo II 1998 - 20 de Fevereiro de 1998