Discursos João Paulo II 1998 - Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 1998

CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II


À DIRECTORA DO CENTRO DE ESTUDOS SOBRE A REGULAMENTAÇÃO NATURAL DA FERTILIDADE








Ex.ma Professora ANNA CAPPELLA
Directora do Centro de Estudos
e Pesquisas sobre a Regulação Natural da Fertilidade

1. Tomei conhecimento com grande prazer de que este Centro organizou um Congresso Nacional para comemorar o XXX aniversário da Encíclica Humanae vitae do meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI.

Desejo, em primeiro lugar, fazer-lhe chegar a minha saudação, gentil Professora, bem como aos Responsáveis, aos Pesquisadores e aos Operadores da benemérita Instituição a que preside, manifestando estima e apreço pelo válido contributo oferecido durante estes anos à salvaguarda e à promoção da vida humana na fase inicial. O meu pensamento torna-se extensivo também aos Congressistas e aos Relatores que participam nos trabalhos do Congresso: a todos desejo um proveitoso aprofundamento do ensinamento da Igreja acerca da «verdade» do acto de amor, no qual os cônjuges se tornam partícipes da acção criadora de Deus.

2. A verdade deste acto brota do facto de ele ser expressão da doação pessoal recíproca dos cônjuges, uma doação que não pode deixar de ser total, uma vez que a pessoa é una e indivisível. No acto que exprime o seu amor, os esposos são chamados a fazer um dom recíproco de si mesmos na integridade da sua pessoa: nada daquilo que constitui o seu ser pode permanecer excluído desta doação. Eis a razão da intrínseca ilicitude da contracepção: ela introduz uma substancial limitação no interior desta doação recíproca, interrompendo aquela «conexão inseparável» entre os dois significados do acto conjugal, o unitivo e o procriativo, que Paulo VI indicava como inscrita pelo próprio Deus na natureza do ser humano (cf. Humanae vitae HV 12).

Nesta linha de reflexão, o grande Pontífice justamente ressaltava a «diferença essencial» existente entre a contracepção e os recursos aos métodos naturais em referência à actuação de uma «procriação responsável». A diferença é de ordem antropológica porque envolve, em última análise, dois conceitos da pessoa e da sexualidade humana, entre si irredutíveis (cf. Familiaris consortio FC 32). Não é frequente, no pensamento corrente, que os métodos naturais de regulação da fertilidade sejam separados da dimensão ética que lhes é própria e propostos no seu aspecto meramente funcional. Não causa admiração que se deixe de compreender a diferença profunda existente entre eles e os métodos artificiais, e se chegue por conseguinte a falar acerca deles como se se tratasse de uma forma diferente de contracepção. Mas não é nesta óptica que eles devem ser vistos e aplicados. Pelo contrário, é unicamente na lógica do dom recíproco entre o homem e a mulher que a regulação natural da fertilidade pode ser rectamente compreendida e vivida de modo autêntico, como expressão qualificada de uma real e mútua comunhão de amor e de vida. Vale a pena recordar aqui que «a pessoa nunca pode ser considerada um meio para alcançar uma finalidade; nunca, sobretudo, um meio de ieprazerl,. Ela é e deve ser apenas o fim de cada acto. Só então a acção corresponde à verdadeira dignidade da pessoa» (cf. Humanae vitae HV 12).

3. A Igreja está consciente das dificuldades de vários tipos que, sobretudo no actual contexto social, os esposos podem encontrar não só na actuação, mas também na própria compreensão da norma moral que lhes diz respeito. Como mãe, a Igreja torna-se próxima dos casais em dificuldade, a fim de os ajudar; mas faz isto recordando-lhes que o caminho para encontrar a solução aos seus problemas não pode deixar de passar através do respeito pleno da verdade do seu amor. «Não minimizar em nada a doutrina salutar de Cristo – admoestava Paulo VI – é forma de caridade eminente para com as almas» (Humanae vitae HV 29).

A Igreja põe à disposição dos casais os meios de graça que Cristo oferece na Redenção, e convida-os a recorrer a eles com confiança sempre renovada. Sobretudo, exorta-os a invocar o dom do Espírito Santo, que é efundido no coração deles graças à eficácia do sacramento que lhes é típico: essa graça é fonte da energia interior necessária para cumprir as numerosas tarefas do seu estado, a começar por aquela de serem coerentes com a verdade do amor conjugal. Ao mesmo tempo, a Igreja solicita o empenho dos homens de ciência, dos médicos, do pessoal do âmbito da saúde, dos agentes pastorais, para que sejam postos à disposição dos cônjuges todos os subsídios que se possam revelar um válido apoio para viverem em plenitude a sua vocação (cf. Humanae vitae HV 23-27).

É precisamente nesta perspectiva que se enquadra também a obra preciosa, à qual se dedicam Centros como o que Vossa Excelência, gentil Professora, promoveu e continua a animar com louvável empenho. Ao tomar conhecimento, com apreço, da actividade de sensibilização que o Centro desempenha mediante a promoção de conferências, seminários, congressos e cursos a nível quer nacional quer internacional, quereria aproveitar a ocasião para ressaltar a importância da actividade de estudo e pesquisa, que faz parte das finalidades próprias da Instituição, como é evidenciado pela denominação que a qualifica. De facto, é necessário empenhar-se, por um lado na difusão em âmbito médico do conhecimento dos fundamentos científicos, sobre os quais se baseiam os métodos naturais de regulação da fertilidade e, por outro, no desenvolvimento do estudo e da investigação sobre a natureza dos eventos bioquímicos e biofísicos que acompanham e tornam reconhecíveis os períodos da fertilidade, consentindo desta maneira uma actuação mais fácil e segura da paternidade responsável.

4. Faço votos por que os qualificados contributos dos estudiosos, que participam dos trabalhos do actual Congresso Nacional, se revelem úteis para as pesquisas que estão a ser feitas neste campo. Os conhecimentos científicos cada vez mais avançados, juntamente com o respeito dos valores morais defendidos pela Igreja, não deixarão de dar um ulterior contributo à afirmação da concepção do amor como dom incondicionado e total das pessoas, e da fecundidade como riqueza a ser acolhida com gratidão das mãos do Criador. Enquanto invoco sobre Vossa Excelência, os Congressistas e quantos estão em contacto com este Centro a incessante protecção de Maria, Mãe do belo amor, e de São José, Protector do Redentor, invoco de coração, como penhor de afecto sempre reconhecido, a desejada Bênção Apostólica.

Vaticano, 27 de Fevereiro de 1998.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO PRIMEIRO GRUPO DE BISPOS ESTADUNIDENSES


DA PROVÍNCIA ECLESIÁSTICA DE NOVA IORQUE


EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


27 de Fevereiro de 1998





Eminência
Estimados Irmãos Bispos

1. No início desta série de visitas ad Limina dos Pastores da Igreja que está nos Estados Unidos, saúdo-vos cordialmente, componentes do primeiro grupo de Bispos – provenientes da Província Eclesiástica de Nova Iorque – e transmito calorosas saudações a todos os membros da Conferência Episcopal. Ao encontrar-me convosco, o meu primeiro pensamento é dar sinceras acções de graças a Deus pela comunidade católica presente no vosso país, enquanto procurais sujeitar-vos cada vez mais ao Senhor no amor e na fidelidade (cf. Ef Ep 5,24), progredindo no meio das provações deste mundo e das consolações de Deus, anunciando a cruz salvífica e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1Co 11,26). Expresso o meu agradecimento de modo particular a vós e aos vossos Irmãos, pela amizade espiritual e pela comunhão na fé e no amor que nos une no serviço do Evangelho. Estou-vos grato por todos os modos de compartilhardes as minhas preocupações pastorais pela Igreja universal. Durante todos os anos do meu Pontificado, tive inumeráveis oportunidades de experimentar o amor e a solidariedade, característicos dos católicos dos Estados Unidos, para com o Sucessor de São Pedro. Neste ano de preparação para o Grande Jubileu, consagrado ao Espírito Santo, rezo para que «o Senhor, Dador da vida», recompense a Igreja que está nos Estados Unidos com os Seus dons de fortaleza e consolação.

2. O Jubileu exorta-nos a recordar e celebrar as bênçãos que o Pai tem derramado sobre nós em Jesus Cristo, Senhor da História e «supremo Pastor» das nossas almas (cf. 1P 5,4). Livres do pecado e purificados no sangue do Cordeiro, tornámo-nos verdadeiramente filhos de Deus, capazes de nos voltarmos para Ele com absoluta confiança: porque sabemos que Ele nos ama e jamais nos abandonará. Embora o nosso ministério nos recorde constantemente os sofrimentos de inúmeros dos nossos irmãos em humanidade, de modo especial os pobres e aqueles que são perseguidos por causa da sua fé em Cristo, estamos persuadidos de que, na proximidade do Terceiro Milénio, Deus está a preparar uma grande primavera para o Cristianismo (cf. Redemptoris missio RMi 86).

Mediante a encarnação do Filho de Deus, a eternidade entrou no tempo. O próprio tempo se tornou a arena em que a história da salvação se desenvolve; assim, aniversários e jubileus são períodos de graça – «um dia abençoado pelo Senhor», «um ano do Senhor» (cf. Tertio millennio adveniente, TMA 32). O Grande Jubileu do Ano 2000 será um tempo de bênçãos singulares para a Igreja e para o mundo, uma graça já preparada por aquele extraordinário evento dos últimos tempos, o Concílio Vaticano II, cujos frutos ainda estão a amadurecer em vista da sua plena integridade. Uma vez que os documentos do Concílio representam o fundamental ponto de referência para a compreensão que a Igreja tem de si mesma e da sua missão neste período da história, é oportuno que a nossa preparação para o Jubileu inclua uma séria meditação acerca do modo como nós, Bispos, recebemos e aperfeiçoamos o rico magistério elaborado pelos Padres do Concílio (cf. Tertio millennio adveniente, TMA 36). Nos meus encontros deste ano com os Prelados dos Estados Unidos, proponho-me reflectir sobre determinados temas do Concílio, num esforço por discernir a melhor maneira de assegurarmos que tudo aquilo que Deus deseja para a Igreja se torne realidade.

3. Qual é o maior desafio que se nos apresenta, a nós Bispos da Igreja? Qual é a maior necessidade dos nossos contemporâneos? Os homens e as mulheres de hoje, assim como os de todos os tempos e lugares, aspiram à salvação. Desejam redescobrir a verdade do domínio de Deus sobre a criação e a história, encontrar a Sua auto-revelação e experimentar o Seu amor misericordioso em todas as dimensões da própria vida. A grande verdade a ser proclamada nesta e em todas as épocas é que Deus entrou na história humana a fim de que os homens e as mulheres deveras pudessem tornar-se filhos de Deus. A Constituição dogmática sobre a Revelação divina, Dei Verbum, recorda-nos de maneira clarividente que a verdade que proclamamos não é uma sabedoria humana, mas depende completamente da auto-revelação de Deus: «Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido o mistério da sua vontade (cf. Ef Ep 1,9), por meio do qual os homens, através de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e n'Ele se tornam participantes da natureza divina» (op. cit., 2). Este é o cerne da mensagem cristã e a verdade essencial que os Bispos devem anunciar «oportuna e inoportunamente» (2Tm 4,2).

Na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, apresentei o seguinte interrogativo: «Em que medida a Palavra de Deus se tornou mais plenamente alma da teologia e inspiradora de toda a existência cristã, como pedia a "Dei Verbum"?» (n. TMA 36). A fidelidade à palavra revelada exige de cada um, mas de maneira especial dos Bispos, uma atitude de receptividade atenta e sincera. Requer que nos deixemos renovar e transformar mediante o nosso encontro com a sua palavra viva. Então, seremos capazes de ajudar os fiéis a compreender que a Sagrada Escritura é uma dádiva que recebemos no seio da Igreja. Não se trata meramente de um «texto» a ser analisado; é sobretudo um convite à comunhão com o Senhor. Deve ser lido e recebido num espírito de abertura a este convite. Isto não implica uma abordagem acrítica da Escritura, mas admoesta contra leituras informadas segundo um racionalismo estéril ou por pressões culturais que comprometem a verdade bíblica. Tais abordagens são insensíveis ao chamamento de Deus e desvirtuam o texto sagrado do seu poder de salvação (cf. Rm Rm 1,16). São Paulo dá graças a Deus pelas pessoas que aceitaram a Escritura por aquilo que ela realmente é: palavra de Deus em acção no seio da comunidade dos crentes (cf. 1Th 4,13).

Há que prestar homenagem aos inúmeros e excelentes exegetas e teólogos católicos nos Estados Unidos, que se prodigalizam indefessamente para ajudar o povo cristão a compreender de modo mais claro a palavra de Deus presente na Escritura, «a fim de que possa aceitá-la melhor em vista de viver em plena comunhão com Deus» (Discurso sobre a Interpretação da Bíblia na Igreja, 23 de Abril de 1993, n. 9). Este importante trabalho só dará o fruto a que o Concílio almejava se for sustentado por uma vigorosa vida espiritual no interior da comunidade dos crentes. Só o amor «que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia» (1Tm 1,5) nos torna capazes de compreender a linguagem de Deus, que é Amor (cf. Jo Jn 4,8).

4. Se quisermos que a nova evangelização seja eficaz, a nossa catequese deve transmitir a verdade integral do Evangelho, pois a plenitude da verdade é a fonte mesma da nossa capacidade de ensinar com autoridade: uma autoridade que os fiéis reconhecem com facilidade quando abordamos o que é essencial e comunicamos aquilo que recebemos (cf. 1Co 15,3). O nosso múnus magisterial «não está acima da palavra de Deus, mas serve-a, ensinando somente o que foi transmitido enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente (pie audit), a guarda santamente (sancte custodit) e a expõe com fidelidade (fideliter exponit)» (Dei verbum DV 10).

Através do ministério da pregação e do ensinamento, toda a comunidade dos fiéis deve considerar e amar a Escritura e a Tradição que, juntas, nos levam a compreender a presença salvífica de Deus na história e a mostrar o caminho para a comunhão de vida com Ele. Deste modo, a Igreja inteira entrará mais plenamente no mistério da salvação e reconhecerá que a história humana é o lugar do encontro entre Deus e o homem, o lugar em que se oferece, recebe e constrói a comunhão com Deus.

5. A mensagem evangélica é sempre a mesma, embora a proclamemos no contexto de uma cultura que passa por constantes transformações. Precisamos de reflectir sobre a dinâmica da cultura contemporânea a fim de discernirmos os sinais dos tempos que influenciam a proclamação da mensagem salvífica de Cristo. Por outro lado, em toda a parte vemos a aspiração das pessoas à liberdade e à felicidade, e isto fala-nos de uma profunda fome espiritual. As pessoas procuram satisfazer esta fome de muitas maneiras; todavia, o insucesso de muitas soluções propostas, quer elas sejam filosofias, ideologias ou modas, tem levado a uma grande inquietude, quando não a uma corrente de desespero no interior da cultura contemporânea. A nossa época é com frequência definida como um tempo de incerteza; esta incerteza, elevada a princípio mediante o qual se nega que o homem possa conhecer a verdade das coisas, influencia a vida moral, a vida de oração e a rectidão teológica da fé das pessoas (cf. Tertio millennio adveniente, TMA 36).

Por outro lado, muitas pessoas estão cada vez mais conscientes de que, para se construir uma sociedade livre, justa e próspera e assim criar as condições para satisfazer as mais profundas e nobres aspirações do espírito humano, a cultura mediante a qual elas interagem e se comunicam deve corresponder a determinadas verdades básicas acerca da pessoa humana. A minha última visita ao vosso país realizou-se em 1995, durante a celebração do 50° aniversário da Organização das Nações Unidas. Na Assembleia Geral, expressei a convicção de que o progresso da busca humana da liberdade constitui uma das maiores dinâmicas da história moderna em todas as partes do mundo. Tal dinâmica manifesta-se claramente nos povos do mundo que reivindicam uma maior participação na determinação das opções políticas e económicas que lhes concernem (cf. Discurso à 50ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 5 de Outubro de 1995, n. 2). Não testemunhamos porventura, no decurso da história, o progresso gradual de certas verdades evangélicas: a dignidade da pessoa humana, o maior respeito pelos direitos humanos, o devido reconhecimento da igual dignidade das mulheres e a rejeição da violência como instrumento para resolver conflitos?

6. Contudo, a afirmação de determinados valores morais não é ainda a proclamação de Jesus Cristo, o único Medianeiro entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5). A nossa época tem necessidade de escutar a verdade revelada acerca de Deus, do homem e da condição humana. Chegou a hora do querigma. O desafio pastoral do Grande Jubileu consiste em proclamar com renovado vigor «Jesus Cristo, o único Salvador do mundo, ontem, hoje e sempre» (cf. Hb He 13,8). A comunidade católica nos Estados Unidos é chamada a fazê-lo numa atmosfera cultural, cujos elementos mais poderosos duvidam da existência de uma verdade objectiva e absoluta, rejeitando a própria ideia do ensinamento autorizado. O desafio do cepticismo radical pode levar a concluir que a Igreja está à margem da vida contemporânea. Aceitar esta consideração, por sua vez, pode conduzir à noção de que o Catolicismo e, de facto, o Cristianismo em geral, são simplesmente uma das inumeráveis formas da genérica realidade humana denominada «religião».

Esta não é a mensagem do Concílio Vaticano II, que com coragem proclamou a centralidade de Jesus Cristo para a história humana e a missão essencial da Igreja, que consiste em anunciar o Evangelho a todas as nações: porque «debaixo do céu não existe outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos» (Ac 4,12). A Igreja é enviada ao mundo com uma proposta: e a proposta evangélica que apresentamos é que, mediante o Evangelho, o mundo possa compreender a própria história e as suas aspirações de modo mais adequado e mais verídico. Se esta é a verdade que proclamamos, então a Igreja jamais está à margem, mesmo quando parece frágil aos olhos do mundo. Diante de uma modernidade que perdeu a capacidade de realizar a nobre aspiração que se propôs – a completa libertação do homem, de cada homem e de cada mulher – a Igreja continua a ser uma testemunha do pleno significado da liberdade humana. Abre-se uma nova fase na história da liberdade e nestas circunstâncias é necessário que a Igreja, especialmente através dos seus Pastores, ensine e evidencie que «as capacidades libertadoras da ciência, da técnica, do trabalho, da economia e da acção política só darão frutos se encontrarem a sua inspiração e medida na verdade e no amor mais fortes do que o sofrimento, revelados aos homens por Jesus Cristo» (Documento da Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação, 22 de Março de 1986, n. 24).

O desafio é enorme mas o tempo é oportuno, dado que outras forças culturais – exaustas, improváveis ou isentas de recursos intelectuais adequados – não satisfazem a aspiração humana à libertação genuína, embora ainda consigam exercer uma atracção poderosa, especialmente através dos meios de comunicação. A grande realização do Concílio consiste no facto de ter tornado a Igreja capaz de comprometer a modernidade na verdade acerca da condição humana que nos foi transmitida em Jesus Cristo, Aquele que é a resposta ao interrogativo representado pela vida humana. A tarefa do Bispo não é senão esta: ser uma testemunha convincente e um mestre corajoso da verdade que liberta o homem (cf. Jn 8,42).

7. Prezados Irmãos Bispos, na última Ceia, Jesus desafiou e encorajou os seus discípulos: «Se alguém Me ama, guarda a Minha palavra e Meu Pai o amará. Eu e Meu Pai viremos e faremos nele a Nossa morada» (Jn 14,23). Sabemos que o Espírito habita no meio da Igreja e conduz os fiéis a uma compreensão cada vez mais profunda da palavra de Deus, porque Cristo disse aos Seus discípulos que o Espírito «vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que Eu vos disse» (Jn 14,26). O Espírito vos assista sempre no cumprimento da tarefa que o Concílio confiou sobretudo aos Pastores da Igreja: comunicar a verdade e a graça de Cristo aos homens e às mulheres do mundo contemporâneo (cf. Ad gentes AGD 2 cf. também Redemptoris missio RMi 1). Confio à intercessão de Maria, Mãe da Igreja e Padroeira dos Estados Unidos, as alegrias e as dificuldades do vosso ministério, bem como as necessidades e as esperanças das vossas Igrejas locais e de toda a comunidade católica presente no vosso país. Concedo cordialmente a minha Bênção apostólica a cada um de vós e a todos os sacerdotes, religiosos e leigos das vossas Dioceses.



DISCURSO DO SANTO PADRE AO NOVO EMBAIXADOR


DO PANAMÁ JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO


DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


: Sábado 28 de Fevereiro de 1998





Senhor Embaixador

É-me sumamente grato recebê-lo neste acto solene em que apresenta as Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República do Panamá junto da Santa Sé, e que me oferece também a oportunidade para o saudar e lhe dar as minhas mais cordiais boas-vindas.

Agradeço de coração a deferente mensagem que o Senhor Presidente da República, Dr. Ernesto Pérez Balladares, teve a gentileza de me enviar por seu intermédio. Desejo retribuir a mesma, manifestando os meus melhores votos de prosperidade e paz para o querido povo panamenho. Por isso, peço-lhe, Senhor Embaixador, que se faça intérprete desses votos à mais alta autoridade da sua Nação.

2. Desde que Núñez de Balboa, atravessando as suas terras, descobrira o Oceano Pacífico para a cultura europeia, o Panamá distinguiu-se por ser encruzilhada entre as terras americanas e os grandes mares que as rodeiam, especialmente depois da construção do canal interoceânico, que tem o seu nome. Ao aproximar-se já o momento em que o seu País assumirá a gestão desta grande obra do engenho humano, ele prepara-se para dar também um passo decisivo na vocação que o destino parece ter-lhe designado, de ser ponte de comunicação e lugar de encontro.

Deste modo, o começo do terceiro milénio adquire para os panamenhos características muito particulares e abre-lhes fundadas esperanças de um sensível melhoramento nas condições de vida do seu povo, uma crescente afirmação da sua própria identidade e um maior protagonismo na história.

Além disso, a coincidência deste acontecimento com a celebração do Grande Jubileu do Ano 2000, oferece ao povo panamenho uma ocasião providencial para viver com particular intensidade o «ano de graça», que a Igreja proclama para todos os cristãos. Com efeito, a tradição bíblica do Jubileu afunda as suas raízes no supremo domínio de Deus sobre a terra e na vontade de o exercer em favor dos homens, especialmente os mais desafortunados, abrindo sobretudo para eles novas possibilidades (cf. Lv 25,23 Tertio millennio adveniente TMA 12-13). Dessa experiência profunda de fé na intervenção salvífica e providente do Senhor, nasce no homem uma atitude agradecida e, ao mesmo tempo, respeitosa e responsável ante os bens da criação.

3. Estas perspectivas de um futuro promissor são também um apelo a todos os panamenhos, e de modo especial aos seus representantes e àqueles que têm responsabilidades directas na administração do bem comum, para que as circunstâncias favoráveis sejam postas ao serviço de um progresso integral para todos os cidadãos. Com efeito, o simples incremento dos bens materiais não é o mais importante na vida dos homens, dos empreendimentos e dos povos. Ao contrário, «o desenvolvimento volta-se contra aqueles a quem se quereria favorecer» (Sollicitudo rei socialis SRS 28) quando se limita à dimensão económica. «É necessário, por isso, esforçar-se por construir estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento» (Centesimus annus CA 36).

É, pois, para desejar que as novas oportunidades sejam aproveitadas para incrementar a solidariedade, sobretudo com as pessoas e os grupos menos favorecidos, e potenciar com maiores esperanças de êxito as iniciativas já enfrentadas pelo Governo, encaminhadas a promover as zonas mais deprimidas do País ou remediar as consequências produzidas pelas adversidades naturais, respeitando sempre o devido antagonismo de cada sector, o que requer que se possa contar com a participação de todos na elaboração e realização dos projectos. Com efeito, a história recente da humanidade demonstra como é efémero e frágil um desenvolvimento que, em benefício da máxima produtividade de bens materiais, sacrifica o papel primordial da pessoa em toda a actividade humana ou explora de maneira desmedida e destrutiva uma terra, que o Criador confiou ao homem como administrador responsável e respeitoso (cf. Gn Gn 1,28).

4. É-me grato constatar que as relações do seu País com a Santa Sé estão caracterizadas pelo respeito mútuo e o espírito de colaboração. Elas são o reflexo da íntima relação que une a Igreja com o povo panamenho, ao qual serviu e acompanhou desde que a Cruz de Cristo foi plantada nessas terras, proclamando e iluminando nos seus filhos «a sublime vocação do homem e o gérmen divino que nele está depositado» (Gaudium et spes GS 3).

Conscientes dos valores que, inspirados pelo Evangelho, enobrecem as pessoas e as nações, os católicos sentem como um dever iniludível cooperar para o bem comum, pondo ao seu serviço, além das capacidades técnicas e intelectuais de cada um, uma especial sensibilidade pelos aspectos éticos e espirituais que dignificam e enriquecem o ser humano e sustentam a sua convivência em sociedade. Ao proclamar a grandeza da dignidade da pessoa, criada e querida tual e religiosa próprias do ser humano.

Estas relações, além disso, põem de manifesto a comum estima pelos valores humanos e espirituais, que a Santa Sé proclama constantemente nos foros internacionais. Esses valores precisam de ser afirmados com vigor, num momento histórico em que a comunicação e a interdependência económica, política e cultural entre as nações tornam necessária uma frente comum, nas grandes opções que podem determinar o futuro da humanidade. Com efeito, é de capital importância que, apesar das insídias de certos interesses imediatos, se promovam os direitos humanos em todo o seu alcance e integridade, como recordei na minha última mensagem para o Dia Mundial da Paz (cf. n. 2), se continue confiando no diálogo como o melhor meio para resolver os conflitos e, por fim, se promova uma autêntica civilização da vida e do amor.

5. Ao terminar este encontro, Senhor Embaixador, quero dizer-lhe que, apesar dos anos transcorridos desde a minha Visita Pastoral em 1983, tenho muito viva a recordação do Panamá, das suas comunidades eclesiais, das suas famílias e povos. Como naquela ocasião, desejo-lhes prosperidade e paz, pedindo para todos o grande dom da esperança que «oferece motivações sólidas e profundas para o empenhamento quotidiano na transformação da realidade, a fim de a tornar conforme ao projecto de Deus» (Tertio millennio adveniente, TMA 46).

Com estes sentimentos, reitero as minhas cordiais boas-vindas a Vossa Excelência e à sua distinta família, ao mesmo tempo que formulo os meus melhores votos para que a sua permanência em Roma seja muito grata e a sua missão produza os frutos que todos esperamos para o bem da querida Nação panamenha.

                           

                                                                                  Março de 1998

MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


À PRESIDENTE DO DEPARTAMENTO


INTERNACIONAL CATÓLICO DA INFÂNCIA






Ex.ma Senhora M. Beccaria
Presidente do Departamento Internacional Católico da Infância

1. O Departamento Internacional Católico da Infância festeja neste ano de 1998 o quinquagésimo aniversário da sua fundação. Nesta ocasião, sinto-me feliz por dar graças ao Senhor pelo desenvolvimento desta Organização Internacional Católica e por quanto realizou em favor das crianças, em todos os continentes.

2. Encorajo de bom grado todos os que, no BICE ou em concomitância com ele, se tornam advogados da causa das crianças e desenvolvem numerosos projectos para a sua defesa e promoção. Como demonstra a recente relação da vossa Associação, em muitos dos países ricos ou pobres, as crianças ainda são com muita frequência exploradas, a sua dignidade é ofendida e o seu desenvolvimento psíquico, psicológico, intelectual, moral e espiritual, gravemente comprometido. Neste final de milénio, as situações de opressão que atingem as crianças são numerosas; o recurso criminal ao aborto constitui um atentado à vida e ao respeito que é devido a cada ser humano, sobretudo aos mais pequenos, com os quais Cristo se identificou: quem recebe um menino, é a Mim que recebe (cf. Mt Mt 18,5); as crianças deficientes são postas à margem da sociedade; ainda muito pequeninas, outras crianças encontram-se à mercê de empregadores sem escrúpulos e, colocadas muito cedo nos circuitos económicos, são submetidas a trabalhos extenuantes ou degradantes que não lhes deixam a mínima possibilidade de seguir um curso escolar indispensável para a sua maturação; determinadas crianças não têm casa e devem viver na rua, em centros sociais ou de detenção; de igual modo, as redes da droga e da pornografia, os tráficos de órgãos ou as situações de conflito levam a formas detestáveis de exploração da juventude. Como já fazeis, é urgente continuar a denunciar de forma vigorosa situações como estas. Neste espírito, convido portanto as Autoridades civis e todas as instituições que desempenham um papel na protecção e na educação das crianças a conti- nuarem a opôr-se com extrema firmeza a estes tipos de opressão (cf. Evangelium vitae EV 10).

3. Neste campo, a missão da vossa Organização, próxima das realidades locais, é de primeiro plano. Garantindo uma função de vigilância na vida internacional e propondo numerosas iniciativas, o Departamento Internacional Católico da Infância ajuda as associações locais de promoção e de desenvolvimento. Com os seus numerosos parceiros, contribui para reconstruir em redor das crianças o tecido humano e afectivo indispensável ao seu crescimento integral, tendo em conta as suas fragilidades nativas e necessidades primordiais. Com efeito, no mundo da infância, seria bom poder ver em toda a parte reconhecidos como fundamentais a família com a presença do pai e da mãe, o afecto e a ternura calorosa do lar, a escola, os jogos, os sorrisos, a descoberta jubilosa e pacífica da vida, a fim de que cada criança possa, na sua família e na sociedade, juntamente com os seus irmãos e companheiros, desabrochar e dar ao mundo o melhor de si própria.

Por conseguinte, o quinquagésimo aniversário do BICE oferece-me a ocasião oportuna para me dirigir a todos os homens e mulheres de boa vontade: peço-lhes que se empenhem por que cada criança seja protegida, ajudada e sustentada na edificação da sua personalidade e na construção do seu futuro pessoal, familiar e social. Na perspectiva do Grande Jubileu para o qual a Igreja se está a preparar de maneira activa, seria bom redescobrir a virtude teologal da esperança, «a pequena filha esperança», de acordo com a frase de Charles Péguy (Le porche du mystère de la deuxième vertu). De facto, as crianças são a esperança da humanidade: é portanto tarefa dos adultos dar-lhes confiança renovada no futuro, a fim de que elas sejam as protagonistas e as primeiras responsáveis do mundo de amanhã.

4. Para favorecer e acompanhar o desenvolvimento da criança, é sobretudo importante apoiar as famílias e as comunidades naturais dos jovens; a este propósito, exorto os responsáveis, os educadores e os animadores do BICE a continuarem a sua obra de prevenção e de reinserção empreendida em favor das crianças de rua, tendo em vista afastá-las dos ambientes que as levam à delinquência, inseri-las numa estrutura familiar e proporcionar-lhes uma educação humana e moral; o mesmo é válido no que se refere à acção junto das crianças deficientes, que têm necessidade de serem circundadas e assistidas de maneira particular. Os projectos de alfabetização, de educação de base e de formação profissional devem ser prosseguidos e intensificados, a fim de que cada criança, tendo recebido a instrução necessária, possa dispor dos meios para se inserir na vida social e económica. Saúdo de maneira especial as mulheres que estão empenhadas nos diferentes programas. Devido à sua grande proximidade às crianças, têm uma influência benéfica, pois estabelecem com elas uma relação afectiva e educativa fundada na confiança e na aprendizagem progressiva da responsabilidade.

5. A níveis local, nacional e internacional, o BICE é também um parceiro no diálogo e na acção com as diferentes autoridades civis e com as instituições que têm responsabilidades em relação às crianças, para que nelas se possa verificar uma mudança favorável das políticas no que concerne à juventude, ao respeito pela sua dignidade, cultura e evolução humana e religiosa. A participação na elaboração da Convenção dos Direitos da Criança é um aspecto significativo da obra empreendida.

6. Quero agradecer profundamente a todos os que, no Departamento Internacional Católico da Infância, se dedicam à causa da juventude e participam também de modo muito concreto na evangelização. Manifesto de igual modo a minha gratidão aos organismos e às pessoas que o apoiam com os seus donativos. Exorto-os todos a renovar continuamente a sua presença junto das crianças, para lhes levar o conforto e o apoio de que têm necessidade, a fim de se tornarem cidadãos a pleno título, capazes de construir o seu futuro e de participar de maneira activa na vida social. Através de quantos lhes estão próximos, elas hão-de descobrir a face de Cristo, atento a cada uma das das Suas crianças, pois o que se faz aos mais pequeninos, é ao Senhor que se faz (cf. Mt Mt 25,45).

Neste cinquentenário do Departamento Internacional Católico da Infância, concedo a Bênção apostólica aos responsáveis desta Organização Internacional Católica, a todos os seus membros e a quantos com eles colaboram.


Discursos João Paulo II 1998 - Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 1998