Discursos João Paulo II 1998 - 19 de Novembro de 1998

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PARTICIPANTES NA ASSEMBLEIA PLENÁRIA


DA CONGREGAÇÃO PARA A EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS


20 de Novembro de 1998





Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no Episcopado
Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. É-me grato apresentar as minhas cordiais boas-vindas a todos vós, membros da Plenária e Oficiais do Dicastério para a Evangelização dos Povos. Agradeço ao Senhor Cardeal Jozef Tomko as gentis expressões que quis dirigir-me, também em nome dos presentes. Saúdo cada um de vós e agradeço-vos o generoso empenho com que trabalhais a favor da difusão da mensagem evangélica.

O tema da vossa Plenária, neste ano, trata da «Dimensão missionária dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica». Argumento da máxima importância e actualidade, insere-se no sulco dos ensinamentos contidos na Encíclica Redemptoris missio e na Exortação Apostólica Vita consecrata.

Justamente focalizastes as vossas reflexões sobre o papel da vida consagrada na missão ad gentes. Com efeito, é grande a contribuição oferecida à evangelização por esta vasta multidão de monges, religiosos, membros de Institutos de vida religiosa e missionária, de Sociedades de vida apostólica. No último século também as religiosas se inseriram em grande número no dinamismo missionário, manifestando com o seu peculiar carisma o rosto misericordioso de Deus e o coração materno da Igreja.

A história de todos os povos foi tocada pela presença dos consagrados, pelo seu testemunho, pela sua actividade caritativa e evangelizadora, pelos seu sacrifício. E tudo isto não é apenas história do passado. Nos territórios de missão, numerosos são ainda os sacerdotes religiosos; com as religiosas e os irmãos eles constituem a maioria das forças vivas para a missão. Nos países onde foi recentemente retomada a presença da Igreja, ainda são os religiosos que trabalham na vanguarda da proclamação do Evangelho a todos os povos.

Quereria, neste dia, renovar aos religiosos e às religiosas o mais vivo e grato encorajamento. Caríssimos, o Papa e a Igreja inteira contam convosco sobretudo para a missão ad gentes, que constitui a tarefa primordial e o paradigma de toda a missão da Igreja (cf. Redemptoris missio RMi 34 Redemptoris missio, 34 e 66).

2. À luz dos ensinamentos do Concílio Vaticano II, são inúmeros os sinais do Espírito que incidem sobre a própria vida consagrada e sobre o seu papel missionário. Graças também aos Sínodos, na Igreja tomou-se maior consciência da vocação missionária, que investe os vários estados de vida: cristãos leigos, ministros ordenados, consagrados. Estes estados, no interior da comunidade cristã, são necessários e complementares: eis por que devem ser promovidos e encorajados na comunhão recíproca.

Além disso, nos anos do pós-Concílio, os membros dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica empenharam-se com generosidade na renovação proposta pela Igreja e no aprofundamento dos seus carismas específicos. Descobriram assim a dimensão missionária ínsita na constituição e na praxe de cada um deles.

Depois, damos graças ao Senhor porque as vocações à vida consagrada, nas suas diversas formas, estão em nítido aumento nas jovens Igrejas, fazendo bem esperar no futuro da missão. Os religiosos e as religiosas, gerados por essas Igrejas, põem à disposição a sua efectiva presença e contribuem para a obra missionária universal.

Também os Bispos, Pastores do povo cristão, animadores da comunhão eclesial e propulsores do empenho pastoral, perceberam nestes anos com mais clareza o seu papel de guardiães e promotores dos carismas da vida consagrada. Como eu escrevia na citada Exortação Apostólica Vita consecrata: «No Sínodo, os Bispos confirmaram-no por diversas vezes: "De re nostra agitur", "é algo que nos diz respeito". Na verdade, a vida consagrada está colocada mesmo no coração da Igreja, como elemento decisivo para a sua missão» (n. 3). A esse respeito, dirijo um apelo premente aos Bispos que têm a responsabilidade de Institutos diocesanos, numerosos em muitos territórios de missão, a fim de que dediquem especiais atenções à formação e ao crescimento espiritual dos candidatos.

3. Apesar dos grandes progressos até agora realizados, as necessidades para a missão ad gentes permanecem ainda hoje imensas e urgentes. Eu escrevia na Redemptoris missio: «A actividade missionária ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja. À medida que se aproxima o fim do segundo milénio da Redenção, é cada vez mais evidente que os povos que ainda não receberam o primeiro anúncio de Cristo constituem a maioria da humanidade» (n. 40). E acrescentava: «O nosso tempo, com uma humanidade em movimento e insatisfeita, exige um renovado impulso na actividade missionária da Igreja. Os horizontes e as possibilidades da missão alargam-se, e é-nos pedida, a nós cristãos, a coragem apostólica, apoiada sobre a confiança no Espírito» (Ibid., 30). Também por ocasião da nomeação de Bispos nalgumas Dioceses, especialmente da Ásia, dou-me conta que a missão ainda está no início.

A missão ad gentes, no alvorecer do Terceiro Milénio, exige um renovado impulso e novos missionários, interpelando entre os primeiros, em virtude da sua vocação, precisamente os consagrados. Eu sublinhava na mencionada Exortação Apostólica: «Ainda hoje, este dever continua a interpelar urgentemente os Institutos de vida consagrada e as Sociedades de vida apostólica: o anúncio do Evangelho de Cristo espera deles a máxima contribuição possível. Mesmo os Institutos que surgem ou trabalham nas jovens Igrejas são convidados a abrirem- se à missão junto dos não-cristãos, dentro e fora da sua pátria. Apesar das compreensíveis dificuldades que alguns deles possam atravessar, é bom que todos se lembrem que da mesma forma que "é dando a fé que ela se fortalece", assim também a missão reforça a vida consagrada, estimula a sua fidelidade e a actividade missionária, por sua vez, oferece amplos espaços para acolher as mais variadas formas de vida consagrada » (Vita consecrata VC 78).

Convido, pois, os Institutos de especial consagração a empenharem-se mais ainda na missão ad gentes, persuadido de que este ardor missionário atrairá para eles vocações autênticas e será fermento para a genuína renovação das comunidades.

Dirijo-me agora a vós, caros Pastores de Igrejas antigas e jovens, pedindo-vos não só que cultiveis a vida consagrada, mas também que a animeis nesse sentido. Os Institutos exclusivamente missionários esperam ser confirmados e encorajados na primeira evangelização e na animação missionária (cf. Redemptoris missio RMi 65-66); as religiosas e os religiosos, tanto contemplativos como activos, têm necessidade de ser animados a «prestar o seu serviço especialmente na acção missionária, dentro do estilo próprio do Instituto» (CIC, cân. 783; Redemptoris missio RMi 69); as pessoas consagradas, juntamente com os sacerdotes diocesanos e os leigos, devem ser encorajados a empenhar-se na missão ad gentes, ainda que durante períodos limitados do seu ministério (cf. Redemptoris missio RMi 67-68 Redemptoris missio, 67-68 e 71-72).

É a Igreja inteira que tem necessidade deste florescente empenho apostólico. A evangelização e a obra missionária constituem, de facto, a inicial e fundamental contribuição que ela oferece à humanidade.

4. É claro que a missão não consiste nem se exaure numa actividade meramente organizativa, mas está estritamente ligada à universal vocação à santidade (cf. Redemptoris missio RMi 90). Isto vale para todo o cristão e, com maior razão, para aqueles cristãos que vivem a sua fé compartilhando o projecto de um Instituto de vida consagrada ou de uma Sociedade de vida apostólica. Eles são chamados a uma relação íntima com Deus que é amor (cf. Vita consecrata VC 84). A profissão religiosa pede- lhes uma conformação sempre mais integral e visível a Cristo casto, pobre e obediente (cf. ibid., 93). A vida comunitária impele-os a viver a comunhão e a ser sinais e instrumentos de unidade no Povo de Deus (cf. ibid., 51), enquanto o serviço eclesial os interpela à coerência entre a vida e a actividade apostólica (cf. ibid., 85).

«Tender à santidade»: eis, em síntese, o programa de cada vida consagrada. «Deixar tudo por Cristo, preferindo a sua Pessoa a tudo o mais, para poder participar plenamente no mistério pascal » (ibid., 93): eis o sentido de um seguimento capaz de envolver e transformar as pessoas.

A este programa e a este seguimento as comunidades de vida consagrada, também nas jovens Igrejas, dedicarão a sua maior atenção e tornar-se-ão oásis e «escolas de verdadeira espiritualidade evangélica», indicando a si mesmas, aos outros fiéis e ao mundo os valores definitivos e as metas últimas do caminho humano.

Enquanto confio esta vossa Plenária à protecção de Maria Santíssima, Rainha dos Apóstolos, invoco a sua materna assistência sobre todos os consagrados e consagradas empenhados na acção missionária em todos os cantos da terra.

A todos e a cada um asseguro a minha lembrança na oração e, de bom grado, concedo uma especial Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II

AOS BISPOS DA ÁUSTRIA

EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


20 de Novembro de 1998





Senhor Cardeal
Venerados Irmãos no Episcopado!

1. A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos e com cada um de vós! Muito me alegra poder receber-vos por ocasião da vossa visita «ad Limina». A peregrinação aos túmulos dos Príncipes dos Apóstolos é um momento significativo na vida de cada Pastor. Com efeito, oferece-lhe a possibilidade de exprimir a sua comunhão com o Sucessor de Pedro e partilhar com ele a solicitude e as esperanças conexas com o ministério episcopal.

O «affectus collegialis» reúne-nos na oração, na celebração eucarística, na fraterna reflexão sobre os problemas pastorais mais urgentes, movidos todos pela vontade de captar a voz do Senhor no meio da multiplicidade de vozes e opiniões humanas, a fim de respondermos de maneira cada vez mais eficaz às Suas expectativas. Ao Sucessor de Pedro foi confiada a missão de confirmar na fé os seus irmãos (cf. Lc Lc 22,32) e de ser, na Igreja, «o princípio e o fundamento perpétuo e visível da unidade de fé e comunhão» (Lumen gentium LG 18), pela qual, aliás, todos os Bispos, juntamente com ele, são a modo próprio responsáveis.

2. Há poucos meses, esta minha solicitude pastoral impeliu-me a fazer a vós, Pastores, e aos fiéis que vos estão confiados na Áustria, uma terceira Visita Pastoral. Naquela ocasião, chamei à atenção um tema que parece particularmente urgente na Igreja do vosso amado País: o verdadeiro sentido do diálogo dentro da Igreja. Ao expor-vos alguns critérios que caracterizam o diálogo como experiência espiritual, pus então em evidência alguns riscos capazes de o tornar inconcludente. Naquela ocasião, foi meu cuidado pastoral encorajar-vos a desenvolver no seio da Igreja um diálogo de salvação: «Para todos os interlocutores, este coloca-se sempre sob a luz da palavra de Deus. Portanto, pressupõe um mínimo de acordo e de união de base. É a fé viva transmitida pela Igreja universal que representa o fundamento do diálogo para todas as partes» (Discurso aos Bispos austríacos, em Viena, 21/6/98, n. 7).

3. Estou feliz por que um verdadeiro diálogo a todos os níveis, nas Igrejas particulares a vós confiadas, se tornou o empenho mais urgente da vossa solicitude pastoral e procurou envolver nele todos os fiéis.

Precisamente isto oferece-nos o motivo para a nossa reflexão hodierna: quereria meditar convosco sobre a comunhão. Ela é o pressuposto do diálogo. Por isto, no discurso há pouco citado, referia-me à necessidade de um «mínimo de acordo e de união de base», para poder enfrentar um diálogo construtivo. Ao mesmo tempo, a comunhão é também fruto do diálogo: se o confronto for sincero e aberto e se os interlocutores tiverem uma base de convicções comuns, o colóquio pode facilmente levar a um aprofundamento do entendimento recíproco. O diálogo de salvação deve realizar-se na comunhão da Igreja. Sem esta convicção basilar, corre-se o perigo de ele se perder numa superficial experiência de convivência sem empenho.

4. Neste contexto, convém olhar, com os olhos do Concílio Vaticano II, para a índole e a missão da Igreja. Ao examinarmos os numerosos documentos conciliares que ilustram os vários aspectos da Igreja, deparamos com uma perspectiva que merece ser ressaltada. Precisamente sobre o tema de comunhão, no início os textos conciliares não tratam tanto as questões organizativas da Igreja: as estruturas, as competências, os métodos. Eles detêm-se sobretudo sobre a res, da qual nasce a Igreja e pela qual ela vive. Os textos falam da Igreja como de um mistério. Descobrir de novo este mistério da Igreja e traduzi-lo na vida eclesial, eis a «actualização» muitas vezes reafirmada pelo Concílio. Essa actualização não tem nada a ver com a adequação da verdade salvífica à moda do momento, nem com uma espiritualização ingénua da Igreja na evanescência de um mistério inefável.

Recordo a impressão que em muitos Padres suscitou o título «De Ecclesiae mysterio», no primeiro capítulo da Lumen gentium. Para muitos, então, esta expressão resultou tão desconhecida quanto o é hoje de novo para várias pessoas. Este «mistério» significa uma transcendente realidade salvífica, que se manifesta de maneira visível na história. Para o Concílio o mistério da Igreja consiste no facto que, através de Cristo, nós temos acesso ao Pai num só Espírito, para participarmos assim da mesma natureza divina (cf. Lumen gentium, LG 3-4 Dei Verbum DV 1). A comunhão da Igreja é, portanto, modelada, realizada e mantida pela comunhão trinitária do Pai, Filho e Espírito Santo.

5. À primeira vista, estas definições poderiam parecer distantes das solicitudes pastorais de quem está em contacto com os problemas concretos do Povo de Deus. Estou certo de que concordais comigo, ao considerar essa impressão sem fundamento. Quem considera a sério a Igreja como realidade salvífica, dá-se conta de que ela não é tal por virtude própria. Uma Igreja concebida exclusivamente como comunidade humana não seria capaz de encontrar respostas adequadas ao anélito humano a uma comunhão capaz de sustentar e dar sentido à vida. As suas palavras e acções não poderiam resistir diante da gravidade das questões que pesam sobre os corações humanos. Com efeito, o ser humano aspira a alguma coisa que o transcenda, que supere todas as visões humanas, desmascarando-as na sua finitude que não satisfaz. A Igreja como mistério consola-nos e, ao mesmo tempo, encoraja-nos. Ela transcende-nos e, como tal, pode tornar-se embaixadora de Deus. Na Igreja, a autocomunicação de Deus é oferecida ao desejo do homem de encontrar a plena realização de si mesmo.

6. A esta altura põe-se a questão de Deus - talvez o problema mais sério que vós, Pastores na Áustria, deveis enfrentar. Ainda que a questão de Deus não seja proposta em público de maneira tão clara, ela atinge de igual modo os corações humanos. Infelizmente, a ela responde-se hoje, muitas vezes, com o ateísmo mascarado ou com a indiferença ostensiva. Estas são atitudes que escondem o desejo de construir a serenidade e a comunhão humana, mesmo sem Deus. Mas estas tentativas não dão nem podem dar resultados satisfatórios. Ai da Igreja se estivesse muito empenhada nas questões temporais, e não encontrasse o tempo para se ocupar das temáticas que se referem ao eterno!

Hoje, é urgente promover a renovação da dimensão espiritual da Igreja. As questões concernentes à estrutura da Igreja passam automaticamente para um segundo plano, quando a questão decisiva de Deus é inserida na agenda do debate eclesial. Essa questão quer ser tratada com paciência, num sincero diálogo de salvação com os homens e as mulheres, dentro e fora da Igreja. Na Igreja-mistério encontra-se também a chave da nossa missão de Bispos ao serviço do Povo de Deus. A primeira pergunta que pode ser dirigida a nós como Pastores, não é: «O que programastes?», mas: «Quem conduzistes à comunhão com Deus Uno e Trino?».

7. Esta reflexão ilumina a Igreja como mistério, pondo-a em relação com a participação nos dons salvíficos de Deus. E aqui a Eucaristia assume um significado particular. Não por acaso a proximidade à Mesa eucarística é também chamada «comunhão». De propósito Santo Agostinho qualificou a Eucaristia como «sinal da unidade e vínculo da caridade» (In Ioannis Evangelium Tractatus, XXVI, VI, 13). A isto fizeram referência os Padres conciliares, quando viram a comunhão eclesial ancorada na comunhão eucarística: «Ao participar realmente do corpo do Senhor, na fracção do pão eucarístico, somos elevados à comunhão com Ele e entre nós» (Lumen gentium LG 7).

8. A este ponto, não posso deixar de manifestar duas graves preocupações, que emergem de alguns dados negativos: os relativos, por um lado, à participação na Celebração eucarística e, por outro, à falta de vocações. Enquanto exprimo o meu apreço por tudo o que fazeis para tutelar o Domingo na vida social e económica, sinto o dever de vos exortar a recordar, incansavelmente e com firmeza, aos fiéis a vós confiados a observância do mandamento dominical, tal como fizeram os Pastores desde os primeiros séculos até hoje: «No dia do Senhor, deixai tudo e correi à vossa assembleia que é o vosso louvor a Deus. Que justificação terão perante Deus aqueles que, no dia do Senhor, não se reúnem para ouvir a palavra da vida e nutrir-se do pão divino e eterno?» (Didascalia Apostolorum, II, 59, 2-3).

Dizei aos vossos sacerdotes que o Papa conhece as dificuldades de muitos Pastores de almas para enfrentar a sobrecarga de trabalho e de preocupações de todo o tipo, conexas com o ministério. O Papa conhece a solicitude pastoral dos muitos sacerdotes diocesanos e religiosos, cujo empenho às vezes os leva até ao esgotamento. A dificuldade aumenta ulteriormente nas comunidades paroquiais de dioceses como as vossas, onde também a geografia do território é tal que requer muita canseira e inúmeros sacrifícios.

Ao exprimir apreço para com os sacerdotes, sinto o dever de encorajar também os leigos a um diálogo benévolo e respeitoso com os próprios Pastores, não os considerando como «modelo obsoleto» de uma estrutura eclesial que, segundo alguns, poderia também prescindir do ministério sacerdotal.

9. Precisamente esta convicção, difundida também entre homens e mulheres crentes, não é por certo estranha ao fenómeno da redução das vocações nas vossas Igrejas. Conheço os esforços que estais a fazer para facilitar aos jovens o encontro com Cristo e a descoberta da chamada que Ele dirige a cada um, para uma determinada função na Igreja. Bem sabemos, aliás, que as vocações não podem ser «produzidas» pelos homens, mas devem ser invocadas a Deus com constante oração. No início, a vocação é como um delicado e vulnerável rebento, que tem necessidade de muito cuidado e atenção. Deve haver uma viva relação entre aqueles que já são sacerdotes e os jovens que talvez sintam um apelo oculto para esta estrada. É muito importante que esses jovens encontrem sacerdotes serenos e críveis, profundamente convictos da opção feita e ligados por amizade cordial com os coirmãos e com o seu Bispo. Para isto é necessário que o Bispo não seja sentido como um «ministro» distante ou um «chefe» autoritário, mas considerado como um pai e um amigo por aqueles que compartilham com ele o serviço dos fiéis.

Uma cultura de verdadeira comunhão entre sacerdotes e Bispos, assim como a sua alegre cooperação para o bem da Igreja representam o melhor terreno, no qual poderão florescer as vocações. Isto já foi reafirmado pelo Concílio: os Bispos comportem-se no meio dos seus fiéis «como quem serve, como bons pastores que conhecem as suas ovelhas e por elas são conhecidos como verdadeiros pais», de maneira que os sacerdotes se considerem a si mesmos «como filhos e amigos» (Christus Dominus CD 16).

10. Venerados Irmãos, apesar de tudo, uma certeza dá-nos esperança: os sinais da aurora da salvação são mais numerosos que os dados resultantes das tendências negativas. Disto são testemunho as duas Mesas que o Senhor, na Sua bondade, nos prepara continuamente: a da Palavra divina e a da Eucaristia (cf. Sacrosanctum Concilium SC 51 Dei Verbum DV 21). Precisamente a vós, Pastores, compete a grande honra, não separada do sagrado dever, de fazer in persona Christi as «honras de casa», proporcionando aos fiéis a possibilidade de se nutrirem abundantemente na mesa da Palavra e do Sacramento.

11. Nos documentos conciliares, a Igreja é descrita como «creatura Verbi», uma vez que «é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual » (Dei Verbum DV 21 cf. Lumen gentium LG 2). Esta consciência despertou no Povo de Deus um vivo interesse pela Sagrada Escritura, com inegáveis vantagens para o caminho de fé de cada um.

Infelizmente não têm faltado também mal-entendidos e interpretações erróneas: insinuaram-se algumas concepções da Igreja que não correspondem aos dados bíblicos nem à Tradição da Igreja apostólica. A expressão bíblica «povo de Deus» (laos tou theou) foi entendida no sentido de um povo estruturado politicamente (demos), segundo as normas válidas para qualquer outra sociedade. E dado que a forma de regime mais conforme à sensibilidade hodierna é a democrática, difundiu-se entre um certo número de fiéis a exigência de uma democratização da Igreja. Vozes deste tipo multiplicaram-se também no vosso País, e para além das suas fronteiras. Ao mesmo tempo, a interpretação autêntica da palavra divina e o anúncio da doutrina da Igreja deixaram às vezes lugar a um pluralismo mal-entendido, em virtude do qual se pensou poder determinar a verdade revelada por meio da visão política e de maneira democrática.

Como não sentir profunda tristeza ao constatar estes conceitos errados a respeito da fé e da moral que, juntamente com alguns temas da disciplina da Igreja, se introduziram nas mentes de tantos membros do laicado? Sobre a verdade revelada nenhuma «base» pode decidir. A verdade não é o produto de uma «Igreja que vem de baixo», mas um dom que vem «do alto», de Deus. A verdade não é uma criação humana, mas dom do céu. O próprio Senhor a confiou a nós, sucessores dos Apóstolos, a fim de que - revestidos de «um carisma da verdade» (Dei Verbum DV 8) - a transmitamos integralmente, a conservemos com zelo e a exponhamos com fidelidade (cf. Lumen gentium LG 25).

12. Com afectuosa participação nas sofridas solicitudes do vosso ministério, digo-vos: venerados Irmãos, tende a coragem da caridade e da verdade! É certamente justo não querer reconhecer alguma verdade que seja desprovida de caridade. Porém, é igualmente imperioso não aceitar uma caridade desprovida de verdade! Anunciar aos homens a verdade na caridade - este é o verdadeiro remédio contra o erro. Peço-vos que cumprais esta tarefa com todas as vossas forças. A cada um de nós são dirigidas as palavras de Paulo ao discípulo Timóteo: «Suporta comigo os trabalhos como bom soldado de Jesus Cristo (...). Procura apresentar-te diante de Deus como um homem digno de aprovação, como um operário que não tem de que se envergonhar, que distribui rectamente a palavra da verdade. (...) Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina» (2Tm 2,3-15 ibid 2Tm 4,2).

13. Assim como participo nas vossas preocupações, de igual modo é-me grato compartilhar a vossa satisfação por tudo o que estais continuamente a realizar na Igreja e na sociedade a favor da cultura da vida. Precisamente a cultura da vida move-se dentro dos pólos da verdade e da caridade. Perseverai com coragem no testemunho da doutrina transmitida, permanecendo firmes nela.

Em particular, no que concerne ao matrimónio, ainda que a experiência humana se encontre muitas vezes impotente diante do rompimento de tantas uniões conjugais, o matrimónio sacramental é e continua a ser, por vontade divina, indissolúvel. E de igual modo: embora a maior parte da sociedade decidisse de maneira diversa, a dignidade de cada um dos seres humanos permanece inviolável desde a concepção no seio materno até ao seu termo natural querido por Deus. E ainda: apesar das contestações renascentes, como se se tratasse apenas de uma questão disciplinar, a Igreja não obteve do Senhor a autoridade para conferir a ordenação sacerdotal às mulheres (cf. Carta Apost. Ordinatio sacerdotalis, 4).

14. Não me detenho noutros temas apesar de serem significativos. Contudo, não posso deixar de fazer observar este aspecto: enquanto no mundo a unidade de homens e povos é sentida com intensidade sempre maior, embora no respeito pelas várias e apreciáveis características culturais, tem-se às vezes a impressão de que a Igreja no vosso País ceda à tentação de se fechar em si mesma, para se ocupar de questões sociológicas em vez de se entusiasmar pela grande unidade católica: a comunhão universal, que é comunhão de Igrejas particulares reagrupadas em torno do Sucessor de Pedro (cf. Lumen gentium LG 23).

Procurai, venerados Irmãos, todas as oportunidades para convidar os vossos fiéis a levantar o olhar para além das torres das igrejas austríacas. Precisamente o Grande Jubileu do Ano 2000 poderia representar a ocasião para ajudar os vossos fiéis a redescobrirem, com renovada paixão, a Igreja una, santa, católica e apostólica em todas as suas riquezas, para a amarem de modo mais intenso.

15. Caros Irmãos no episcopado, é com grande afecto que vos confio estas reflexões sobre a Igreja-comunhão. Poder-se-ia dizer e escrever muito sobre a comunhão, mas o mais importante é que nós, como sucessores dos Apóstolos, procuremos vivê-la de modo irrepreensível. Por fim, quereria confiar-vos um meu desejo: nos anos e meses passados foram escritas muitas coisas sobre a Igreja na Áustria. Não seria, talvez, um bom sinal se no vosso amado País se conseguisse discutir menos sobre a Igreja e, ao contrário, se meditasse mais sobre ela? No início eu disse que a Igreja- comunhão constitui o ícone da comunhão que existe no seio da Trindade santíssima. Diante de um ícone, em vez de ceder à análise crítica, sente-se a necessidade de se abandonar à contemplação afectuosa, para poder penetrar cada vez mais no mistério divino: é este o pano de fundo no qual se pode compreender verdadeiramente a Igreja.

16. Concluo estas minhas palavras convidando-vos a olhar para aquele ícone da comunhão eclesial, que é a Santíssima Virgem, tão venerada por muitos dos vossos compatriotas: «Eternamente presente no mistério de Cristo» (Redemptoris Mater RMA 19). Ela encontra-se no meio dos Apóstolos no coração da Igreja primitiva e da Igreja de todos os tempos: «A Igreja reunia-se no andar superior com Maria, a mãe de Jesus, e com os seus irmãos. Não se pode, portanto, falar de Igreja se não estiver presente também Maria, a mãe do Senhor, com os seus irmãos» (Cromazio de Aquileia, Sermo 30, 1).

Maria, a Magna Mater Austriae, vos acompanhe com a sua intercessão no esforço de exercerdes o vosso ministério, sustentados por um sereno e corajoso sentire cum Ecclesia, para ajudar a formar uma alma eclesiástica no coração dos fiéis a vós confiados. Ao assegurar-vos a minha constante lembrança na oração, para que o Espírito vos assista com a abundância dos Seus dons no vosso caminho, de coração concedo a vós e a todos os membros das vossas dioceses a Bênção Apostólica



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DA NOVA ZELÂNDIA


POR OCASIÃO DA VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


21 de Novembro de 1998





Eminência Dilectos Irmãos Bispos

1. É na paz do Senhor ressuscitado que vos saúdo, Bispos da Nova Zelândia, por ocasião da vossa visita ad limina Apostolorum. A vossa presença aqui tem um especial significado e intensidade, dado que coincide com a vossa participação na Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Oceânia, centrado sobre Cristo, luz das nações e esperança de cada povo e de todos os tempos. Vós e os vossos irmãos Bispos da Austrália, do Pacífico, da Papua-Nova Guiné e das Ilhas Salomão estais reunidos para reflectir acerca do que significa, no limiar do Terceiro Milénio, «seguir o Seu caminho, proclamar a Sua verdade e viver a Sua vida». A minha ardente esperança é de que vivais estes dias com grande alegria e encorajamento, conscientes de que mediante a graça de Jesus Cristo, «vós sois raça eleita, sacerdócio régio, nação santa, povo adquirido por Deus, para proclamar as obras maravilhosas d'Aquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa» (1P 2,9).

Uma parte especialmente significativa desta visita ad Limina é a vossa oração junto dos túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo, cuja «memória» nesta Cidade recorda sem cessar à Igreja inteira o significado de ser plenamente fiel ao Senhor. De modo particular, recorda aos Sucessores dos Apóstolos tudo quanto o Senhor lhes pode pedir. Como Bispos, reflectis aqui uma vez mais sobre o vosso ministério e acerca do modo como ele exige o compromisso, o sacrifício e muitas vezes o sofrimento por amor do Evangelho. De facto, somos mestres de um grande paradoxo: segundo as palavras de São Paulo, «nós anunciamos a Cristo crucificado» (1Co 1,23), a ponto de que, «quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por Minha causa, encontrá-la-á» (Mt 16,25). A Cruz de Jesus Cristo é a origem da graça que nos sustém; constitui o manancial da nossa comunhão. Somente «configurando-se à Sua morte» (cf. Fl Ph 3,10) Pedro e Paulo ultrapassaram as próprias diferenças (cf. Gl Ga 2,11-21) e confirmaram a unidade que eventualmente os levaria a proclamar em uníssono o amor que é maior do que tudo aquilo que divide. Como vosso irmão mais velho, convido-vos a animar-vos e, tendo o exemplo dos Apóstolos diante de vós, a continuar com nova fé e novo amor a fazer o que Cristo vos pede, por amor daqueles que Ele mesmo redimiu mediante o sangue da sua Cruz.

2. Sem uma reflexão sincera acerca do sacrifício de Cristo no Calvário, jamais compreenderemos plenamente a relação entre a Igreja e o mundo. Este constituiu um tema-chave durante o Concílio Vaticano II, que ocupa um lugar tão importante nas nossas mentes e nos nossos corações durante estes dias do Sínodo, ao revivermos algo daquela enorme graça de comunhão e de fraternidade experimentada pelos Padres do Concílio. Depois da devastação das duas guerras mundiais e num mundo desestabilizado em virtude das tragédias de Auschwitz e de Hiroshima, os Padres do Concílio procuraram discernir as renovadas energias que o Espírito Santo estava a conceder para uma nova evangelização. Não se deveria esquecer que a finalidade do Concílio era uma dedicação mais intensa à missão da Igreja, um objectivo que adquiriu incomensurável relevância nestes últimos anos. A tarefa da evangelização apresenta sempre a questão da relação entre a Igreja e o mundo; e este tema é importante, na realidade é crucial para o vosso ministério ao serviço da Igreja que hoje está na Nova Zelândia. A vossa solicitude deve inspirar e guiar as energias da nova evangelização no contexto de uma sociedade que é amplamente secularizada. Esta crescente secularização da sociedade é um fenómeno complexo, mas não está isenta de aspectos positivos; contudo, ela pode impelir rumo a uma situação em que a própria comunidade cristã se torne secularizada e a distinção entre a Igreja e o mundo seja obscurecida. O Concílio insistiu em que o diálogo da Igreja com a cultura precisa de ser enfrentado com seriedade. Todavia, isto não significa que a cultura se deve tornar absoluta, a ponto de permitir que determine de modo consistente, por assim dizer, o itinerário da Igreja. Quando isto se verifica, encontramo-nos diante daquilo a que o Servo de Deus Paulo VI, na sua primeira Carta Encíclica, chamava «conformidade com o espírito do mundo» que, insistia ele, não pode «animar a Igreja e torná-la capaz de receber o poder e a força dos dons do Espírito Santo»; não é isto que «fortalece a Igreja no seu seguimento de Cristo»; isto não «encoraja a Igreja a desejar viver na caridade fraterna, nem a torna mais capaz de comunicar a mensagem da salvação» (cf. Ecclesiam suam, 51). Nenhuma cultura humana pode manipular a Cruz de Jesus Cristo, que está sempre presente para nos recordar que a distinção entre a Igreja e o mundo é paradoxalmente a premissa essencial do diálogo com a cultura, motivo pelo qual o Concílio foi convocado.


Discursos João Paulo II 1998 - 19 de Novembro de 1998