Discursos João Paulo II 1998

VIAGEM APOSTÓLICA À ÁUSTRIA


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NA CERIMÓNIA DE ACOLHIMENTO


EM SALISBURGO


19 de Junho de 1998



Senhor Presidente!

1. Com alegria piso de novo o solo austríaco e saúdo de coração todas as Autoridades públicas, que me honram com a sua presença. Ao mesmo tempo, dirijo o pensamento a todos os cidadãos, mulheres e homens, deste País tão bonito, que me é dado visitar pela terceira vez como Bispo de Roma.

Senhor Presidente, agradeço-lhe intensamente a sua saudação cordial. Com sentimento de estima fraterna dirijo-me aos Bispos deste País, agradecendo-lhes ter-me de novo convidado a visitar a República da Áustria.

Pax! Pax vobis! Saúdo-vos com os votos do Ressuscitado: a paz seja convosco. Paz ao vosso País! Paz à Igreja na Áustria! Paz às comunidades e às paróquias, paz aos corações dos homens e da mulheres! A paz seja com todos vós!

2. A verdadeira paz nasce do coração. «No meio do Continente tu estás, semelhante a um coração forte», diz o vosso Hino nacional. Nos anos passados este país no centro da Europa uniu-se à comunidade daqueles que se puseram a caminho rumo a uma meta prefixada: a unificação do Continente. Para edificar a nova Europa são necessárias muitas mãos, mas sobretudo muitos corações que não só pulsem pela carreira e o dinheiro, mas pelo amor de Deus e do homem. Os meus votos são por que o coração da Europa permaneça forte e sadio. Precisamente por isto oro, a fim de que o pensamento e a acção de todos os austríacos, homens e mulheres, sejam inspirados pela firme vontade de respeitar a dignidade de cada homem e de aceitar, sem condições, a vida em todas as suas formas e fases. Entre as riquezas do património cristão, com efeito, foi antes de tudo o conceito do homem que incidiu profundamente na cultura europeia.

Para projectar de modo adequado uma casa é preciso um apropriado instrumento de medida. Quem não conhece a medida, não atinge também o objectivo. Os construtores da Casa europeia dispõem da imagem do homem, que o cristianismo inculcou na antiga cultura do Continente, criando os pressupostos com base nos quais trabalhar com a criatividade, que é por todos admirada. O conceito do homem criado à imagem e semelhança de Deus não é, portanto, uma peça de museu, mas representa a chave de abóbada para a Europa hodierna, na qual as múltiplas pedras de construção das várias culturas, povos e religiões podem ser mantidas unidas para a edificação do novo edifício. Sem este critério de medida, a Casa europeia em construção corre o perigo de se desmoronar e de não ser duradoura.

3. Com estes sentimentos estendo o olhar para além das fronteiras deste País em direcção à Europa inteira, a todas as nações do nosso Continente com a sua história, desde o Atlântico até aos Urais, do Mar do Norte até ao Mediterrâneo. A Áustria, em particular, compartilhou as vicissitudes da Europa exercendo uma influência decisiva. Ela mostra, de modo exemplar, como múltiplas etnias, restritas num pequeno espaço, podem conviver com tensão frutuosa, trabalhando de maneira criativa para construir a unidade na pluralidade. No actual território austríaco, pequeno em confronto com outras nações, lançaram raízes as características dos celtas e dos latinos, dos germanos, dos húngaros e dos eslavos, que ainda hoje estão presentes na população. Deste modo a Áustria torna-se o espelho e o modelo da Europa unida, que não quer marginalizar ninguém, mas dar espaço a todos.

4. Veni, Creator Spiritus! Vinde, Espírito Criador! Esta súplica ressoará como um refrão nos próximos dias que me serão dados transcorrer no vosso amado País. Durante os próximos três dias, de facto, pertencerei à Áustria!

«Vinde, Espírito Criador, e acendei em nós o fogo do vosso amor!». Com esta súplica quero exprimir-lhe, Senhor Presidente, a vós, estimados Irmãos no Episcopado, a minha viva gratidão. Na jubilosa expectativa de viver a nossa comunhão de fé e de louvor a Deus, repito aos caros habitantes desta terra a minha saudação: A paz seja convosco!



VIAGEM APOSTÓLICA À ÁUSTRIA


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE O ENCONTRO COM AS AUTORIDADES


E O CORPO DIPLOMÁTICO


Viena, 20 de Junho de 1998





Senhor Presidente Federal
Senhor Chanceler Federal
Senhores e Senhoras

1. É para mim motivo de grande honra e de especial alegria poder encontrar-me com Vossa Excelência, Senhor Presidente Federal, juntamente com os membros do Governo Federal e os representantes da vida pública e política da República Austríaca. O nosso encontro hodierno põe mais uma vez em evidência as relações de amizade que desde há muito tempo existem entre a Áustria e a Santa Sé.

Ao mesmo tempo, podemos experimentar visivelmente que este concorde e frutuoso relacionamento está inserido na vasta rede das relações diplomáticas que a Áustria entretece com vários Estados do mundo inteiro. Agradeço aos representantes diplomáticos aqui presentes a sua participação e a homenagem que desta forma me prestam, e estou-lhes grato por tudo o que fazem «na arte da paz».

Este mesmo lugar histórico é particularmente propício para dirigirmos o olhar além das fronteiras deste país, rumo à Europa que se está a unificar e à sua inserção na família das nações de todos os continentes. Além disso, é adequado para considerarmos os problemas existentes no interior da Áustria.

2. A minha primeira visita pastoral à Áustria, em 1983, teve início com as Vésperas dedicadas à Europa e celebradas sob o sinal da Cruz. Nessa ocasião, o Cardeal Franz König dirigia à Assembleia as seguintes palavras: «No nosso pequeno País, que delimita a linha de separação de dois mundos [...] pode-se e deve-se falar da Europa!».

Seis anos mais tarde, quando ruiu o muro de Berlim e caiu a cortina de ferro, a linha de separação entre os dois blocos parecia ter desaparecido. Desde então, muitas euforias se dissiparam e muitas esperanças foram desiludidas. Não basta encher as mãos de bens materiais, quando o coração do homem permanece vazio, sem descobrir o sentido da vida! O homem nem sempre tem esta consciência e com frequência prefere distracções superficiais à verdadeira alegria interior. Porém, no fim ele deve constatar que não se pode viver só de pão e diversões.

3. Com efeito, a linha de separação entre os dois blocos não desapareceu da realidade económica, nem dos ânimos humanos. Até mesmo num país ordenado sob o ponto de vista social e próspero economicamente como a Áustria se alastram o sentido de confusão e o temor do futuro.

Não é acaso verdade que insidiosas rupturas penetraram também na sólida e até agora legitimada estrutura de cooperação entre os grupos sociais, que contribuiu de maneira notável para o bem-estar do país e a prosperidade da população?

Porventura, não estão a difundir-se entre os cidadãos austríacos, poucos anos depois do referendo, o cepticismo e a frustração em relação à sua adesão à Europa?

4. Na geografia europeia a Áustria, que durante muitos decénios permanecera um país de fronteira, tornou-se um «país-ponte». Daqui a poucos dias ela assumirá a presidência de turno no Conselho da União Europeia. Por isso Viena, outrora um centro focal da história europeia, tornar-se-á o fulcro de muitas esperanças para aqueles países que iniciam as negociações em vista de entrar na União Europeia. Faço votos por que se dêem passos válidos no sentido de aproximar o Oriente e o Ocidente do continente: os dois pulmões a que a Europa não pode renunciar se quiser respirar.

A diversidade das tradições orientais e ocidentais promoverá a cultura europeia e constituirá, através da memória e do intercâmbio recíproco, o fundamento para a almejada renovação espiritual. Por isso, dever-se-ia falar não tanto de uma «amplificação rumo ao Oriente», mas de uma «europeização» de toda a área continental.

5. Permiti-me aprofundar este pensamento. No início do meu Pontificado, convidei os fiéis reunidos na Praça de São Pedro em Roma, a abrirem as portas a Cristo (cf. Homilia de 22 de Outubro de 1978). Hoje, nesta cidade de tão amplo respiro histórico, cultural e religioso, reitero o meu apelo ao velho continente: «Europa, abre as portas a Cristo!».

Esta exortação não nasce da fantasia sonhadora, mas fundamenta-se num realismo aberto à esperança. Efectivamente, a cultura, a arte, a história e o presente da Europa foram e ainda são forjados pelo cristianismo, de tal maneira que nem sequer hoje existe uma Europa completamente secularizada ou mesmo ateia. Testemunham-no não só as igrejas e os mosteiros em muitos países europeus, as capelas e as cruzes colocadas ao longo das estradas europeias, as orações e os cânticos cristãos em todas as línguas do continente. Dão-lhe fé de forma ainda mais evidente as numerosas testemunhas vivas: homens e mulheres que procuram, perguntam, crêem, esperam e amam: os santos do passado e do presente.

6. Não se pode esquecer que a história europeia está estreitamente ligada à história do povo do qual provinha o Senhor Jesus. Ao povo judaico na Europa foram infligidos sofrimentos indescritíveis e não podemos afirmar que todas as raízes destas injustiças foram desarraigadas. Portanto, a reconciliação com os judeus faz parte dos deveres fundamentais dos cristãos na Europa.

7. Os construtores da nova Europa deverão enfrentar outro grande desafio: criar um espaço global europeu de liberdade, justiça e paz no lugar da ilha de bem-estar ocidental do continente. Inevitavelmente, os países mais ricos deverão enfrentar sacrifícios concretos para nivelar pouco a pouco o sulco desumano de bem-estar existente na Europa. Há necessidade de uma ajuda espiritual para fazer progredir a construção das estruturas democráticas e a sua consolidação, e para promover uma cultura da política e as justas condições do Estado de direito. Em vista deste esforço, a Igreja oferece como orientação a sua doutrina social, que está centrada na solicitude e na responsabilidade pelo homem, que Cristo lhe confiou: «Não se trata do homem "abstracto", mas do homem real, "concreto", "histórico" [...] que a Igreja não pode abandonar» (Centesimus annus, CA 53).

8. Este contexto abarca o mundo inteiro, o qual se transforma cada vez mais numa «aldeia global». Não é por acaso que hoje muitos especialistas, que se ocupam do desenvolvimento económico em grande escala, falem de globalização. O facto de as regiões da terra se estarem a estreitar entre si a nível económico não deve implicar automaticamente uma globalização na pobreza e na miséria, mas em primeiro lugar uma globalização na solidariedade.

Estou convicto de que a Áustria contribuir á para o processo de globalização não simplesmente por motivos políticos ou económicos, mas antes de tudo em virtude dos vínculos que ligam a sua população às outras nações, como o demonstrou o seu exemplar compromisso em favor dos irmãos e das irmãs necessitados no sudeste europeu, além do apoio constante aos países em vias de desenvolvimento. Gostaria de recordar ainda a disponibilidade da Áustria para acolher as populações de outros países, privadas da liberdade de religião, da liberdade de opinião e do respeito pela dignidade humana. Também numerosos meus compatriotas vos devem muito por quanto lhes fizestes no passado. Permanecei fiéis às boas tradições do vosso País! Conservai também no futuro a disponibilidade para acolher os estrangeiros que devem abandonar a própria pátria.

9. Com estes bons votos, desejo agora falar de uma questão que se torna cada vez mais urgente. Não só vós, que viveis neste País e sois os seus responsáveis, deveis enfrentar um problema que pesa sempre mais nos corações dos indivíduos, de inteiras famílias e classes sociais. Faço alusão à crescente exclusão de muitos, de forma especial jovens e pessoas de meia idade, do direito ao trabalho.

Condicionado pela competição económica, o mercado da mão-de-obra não progride nem sequer com balanços positivos. Por isso, considero meu dever fazer- me porta-voz dos mais frágeis, ressaltando: o sujeito do trabalho é o homem como pessoa! Também no actual mundo do trabalho deve haver espaço para os débeis, os menos dotados, os idosos, os portadores de deficiência e inúmeros jovens que não têm a possibilidade de aceder a uma formação adequada. Na época da técnica sofisticada, nunca se deve esquecer o homem! Na avaliação e retribuição do seu trabalho devem incidir, além do produto objectivamente calculado, também o esforço e o ?compromisso, ?a ?fidelidade ?e ?a ?honestidade.

10. Agora, passo a abordar o último tema que me está muito a peito. Uma das finalidades do meu pontificado é edificar uma «cultura da vida», destinada a opor-se à «cultura da morte», em expansão. Por isso, estou a perorar indefessamente a favor da defesa incondicionada da vida humana, desde a sua concepção até à morte natural. A legalização do aborto nos primeiros três meses – em vigor na Áustria – permanece uma ferida que sangra no meu coração.

Depois, há o problema da eutanásia. Também morrer faz parte da vida. Cada homem tem o direito de morrer de modo digno, segundo a vontade de Deus. Quem pensa em privar o homem deste direito está a tirar-lhe a vida. O valor de cada pessoa é tal que jamais pode ser compensado com o dinheiro. Por isso, nunca deve ser sacrificado por uma ilimitada autonomia particular, nem pelos condicionamentos de ordem social ou económica. Quem tem uma certa idade recorda, não só dos livros de história, os capítulos obscuros escritos no século XX, também neste País. Se nos afastarmos da Lei de Deus, quem é que garante que, a um determinado momento, um poder humano não reivindicará de novo o direito de decidir acerca do valor e do não-valor de uma fase da vida humana?

Senhor Presidente Federal
Senhores e Senhoras!

11. A fidelidade à pátria e a abertura à Europa vinculada à história e disponível ao futuro: estes eram os temas das reflexões que hoje eu vos quis propor.

Evocando com gratidão e orgulho o grandioso tesouro do cristianismo, peço que acolhais este património como uma proposta que a Igreja viva quereria apresentar no final do segundo milénio cristão. Ninguém quer considerar a universalização deste património como uma vitória ou como uma confirmação de superioridade. Professar determinados valores significa apenas empenhar-se em cooperar na edificação de uma verdadeira comunidade humana universal: uma comunidade que já não conhece linhas de separação entre mundos diversos.

Dependerá também de nós, cristãos, se a Europa com as suas aspirações terrenas se fechar em si mesma e nos seus egoísmos, renunciando à própria vocação e ao seu papel histórico, ou voltar a encontrar a sua alma na cultura da vida, do amor e da esperança.

À Áustria compete um papel de ponte no coração da Europa!

Nem a minha reflexão sobre o homem, nem esta constatação são abstractas, mas muito concretas: desejo-vos grande coragem para construir esta ponte!



VIAGEM APOSTÓLICA À ÁUSTRIA


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


DURANTE O ENCONTRO COM


A CONFERÊNCIA EPISCOPAL AUSTRÍACA


Viena, 21 de Junho de 1998





Prezados Irmãos no Episcopado

1. Estou grato pelo facto deste encontro nos oferecer a possibilidade de reflectir em comunhão fraterna acerca da responsabilidade que nós, como Sucessores dos Apóstolos, trazemos sobre os nossos ombros. Saúdo cordialmente todos vós como Colégio e como indivíduos. Faço minhas as palavras de Pedro: «[...] graças à fé, estais guardados pela força de Deus [...] Por isso, deveis alegrar-vos, mesmo que agora, se for necessário, fiqueis tristes por algum tempo, devido às várias provações» (1P 1,5-6).

2. Fostes provados de várias maneiras. Embora não seja este o momento para procurar uma avaliação de conjunto, quereria todavia testemunhar-vos que em todo este período vos tive particularmente presentes nas minhas orações. Como companheiro de viagem em tempos difíceis, em Roma o meu coração batia de modo incessante por vós, a quem foi confiado o cuidado pastoral neste amado País. Nos momentos de reflexão diante do Santíssimo Sacramento do altar, muitas vezes vos recomendei ao Senhor, juntamente com os sacerdotes, os diáconos e os colaboradores no cuidado das almas, e ainda com todos os homens e mulheres a vós confiados, os jovens e os idosos, os crentes, os cépticos e os desencorajados. Agora, com a minha presença no meio de vós, é-me dada a oportunidade de demonstrar visivelmente esta contínua proximidade no espírito. Assim podereis sentir melhor com quanto afecto vos sustento. Efectivamente, considero-me como um «colaborador para que tenhais alegria» (2Co 1,24).

No nosso caminho pessoal, assim como ao longo das estradas nas quais a Igreja progride no curso da história, existem trechos em que é difícil testemunhar a alegria. Existem momentos em que o entrelaçamento de problemas espinhosos torna o exercício do nosso ministério particularmente difícil, também porque está exposto a mal-entendidos e a incompreensões. Por mais dolorosas que sejam estas experiências, nós temos o dever comum de «anunciar boas notícias» (Rm 10,15) à Igreja e ao mundo, isto é, a todos aqueles que esperam grandes coisas do Terceiro Milénio que se está a aproximar. Quando o ministério episcopal grava sobre os nossos ombros mais como um peso que como uma dignidade, é aconselhável remeter o coração e a mente aos inícios, evocando- os com gratidão para reavivar a graça que nos foi transmitida através da imposição das mãos. «De facto, Deus não nos deu um espírito de medo, mas um espírito de força, de amor e de sabedoria » (2Tm 1,6-7).

3. Remontando com a memória ao dia em que nos foram impostas as mãos para sermos constituídos Sacerdotes e depois Bispos, revivemos o diálogo sugestivo no qual, antes de sermos consagrados, pronunciámos diante do Bispo o nosso Adsum:Eis-me. Estou pronto! Neste diálogo, não fomos nós os primeiros que nos pronunciamos. O nosso papel era aquele de dar uma resposta generosa: estou pronto a colocar-me ao serviço do Senhor com as minhas inclinações e capacidades, com as minhas esperanças e esforços, com a minha luz e a minha sombra. Nós trouxemos tudo isto connosco, quando pronunciámos com alegria aquele «Adsum».

Esta afirmação de disponibilidade, expressa em público por cada um de maneira inequivocável, adquiriu para mim um novo significado quando, como jovem Bispo durante o Concílio Vaticano II, pude repeti-la juntamente com os outros membros da assembleia ecuménica: Adsumus, Domine, Sancte Spiritus! Eis-nos Senhor, Espírito Santo! Com estas palavras dava-se início a cada uma das Sessões conciliares. Nesta oração experimentei e compreendi que o «Adsum » pessoal está inserido no «Adsumus » da comunidade. Assim como o mesmo Senhor Jesus, depois de ter chamado os Seus apóstolos por nome, os constituiu também como os «Doze» (cf. Mc Mc 3,13-19), assim a chamada do Senhor e a resposta generosa de cada um representam o fundamento para a nossa dedicação pessoal, em vista de formar uma comunidade sólida e fiel, selada pela imposição das mãos e pela oração. A chamada do Senhor e a missão a realizar a obra comum criam a comunidade. Efectivamente, desde os princípios da Igreja o ministério pastoral não é conferido apenas a pessoas individualmente, mas a cada uma delas, considerada como parte de um grupo, de um colégio. Portanto, é com razão que podemos dizer: «Adsumus». Estamos prontos. Um bispo sozinho não realiza o projecto de Cristo. Os Bispos unidos entre si e com Cristo constituem o pleno sujeito do serviço pastoral na Igreja, em conformidade com o desígnio do Fundador.

4. O estreito vínculo existente entre o «Adsum» e o «Adsumus» convida a reflectir sobre os modos concretos de expressar a comunhão nos nossos dias. Assim como cada comunidade deve criar espaço para o desenvolvimento do indivíduo, assim no interior do «Adsumus» também o não delegável «Adsum» tem o próprio direito e lugar. Na comunidade há necessidade de profundo respeito também pela vocação e missão própria de cada um. No âmbito daquilo que é comum a todos, cada Bispo deve ter a possibilidade de se exprimir e de exercer a própria responsabilidade pastoral. Prescindindo das diferenças de capacidade e de carácter que os Bispos têm a nível individual, eles são revestidos de autoridade própria e, com toda a verdade, são denominados «superintendentes das populações» a que presidem (cf. Lumen gentium LG 27). Esta autoridade exercida de maneira pessoal, em nome de Cristo, não é todavia destinada a dominar, mas configura-se à imagem do bom Pastor que veio não para ser servido, mas para servir (cf. Mt Mt 20,28). A cada Bispo é dirigida a palavra de São Pedro: «Não sejais senhores daqueles que vos foram confiados mas, ao contrário, fazei-vos modelos para o rebanho» (cf. 1P 5,3).

O «Adsumus», que concede espaço conveniente ao «Adsum» do indivíduo, deve manifestar-se também no esforço comum de todos no sentido de permanecerem unidos. De outra forma, o único magistério de Cristo fragmenta-se em muitas vozes individuais. Em vez da harmonia, cria-se espaço à confusão ruidosa. Isto não convém a pessoas que se encontram juntas na longa fila da sucessão apostólica, cuja origem remonta ao Senhor da própria Igreja. A união íntima de cada um com Cristo significa responsabilidade recíproca de todos. Por isso, a acção episcopal compreende inclusivamente a assistência mútua, o sustento no serviço pastoral, no intercâmbio fraterno, na vida pública e, não por último, na oração recíproca. A cada um faz bem saber que não está sozinho. Uma ajuda válida é representada pela Conferência Episcopal que, como diz o Concílio Vaticano II, deve promover «uma santa colaboração de esforços, para o bem comum das Igrejas» (Christus Dominus CD 37), através de um intercâmbio de conhecimentos e de experiências, e mediante a consultação recíproca entre os Bispos. Como Pastores dos rebanhos a vós confiados, encontrais-vos diante de Deus, ligados uns aos outros na comunhão colegial, na qual cada um é inevitavelmente responsável por si mesmo. Uma válida confirmação da vossa guia harmoniosa do povo de Deus peregrinante na Áustria poderia ter-se, por exemplo, na participação conjunta em formas de retiro ou de exercícios espirituais.

5. O «Adsumus» do Concílio não era apenas oração, mas inclusive um programa. Quando os Bispos como comunidade em oração se reuniam em Concílio, colocavam-se também como comunidade em diálogo, sob a salvaguarda e a assistência do Espírito Santo. Portanto, não admira que a relação de Deus Uno e Trino com o homem seja descrita como um diálogo (cf. Gaudium et spes GS 19 Dei Verbum ). À luz do mistério da salvação, a missão da Igreja realiza-se em forma de diálogo. Em Cristo, único mediador entre Deus e o homem, a Igreja, seu Corpo místico, põe-se como sacramento universal da salvação do mundo (cf. Lumen gentium LG 1, 9, 48 e 59; Gaudium et spes Ad gentes AGD 15 Sacrosanctum concilium ).

Por conseguinte, a tarefa da Igreja consiste em entretecer um «diálogo de salvação», a nível tanto interior como exterior, para que todos possam vislumbrar nela «a incalculável riqueza de Cristo » (Ep 3,8). Empenhei-me em prol deste diálogo desde o início do meu pontificado, procurando oferecer-lhe uma contribuição através do meu ministério, que já dura quase vinte anos (cf. Redemptor hominis RH 4). A este propósito, apraz-me recordar o meu predecessor de venerada memória, Papa Paulo VI, que dedicou a sua primeira Encíclica Ecclesiam suam ao tema do diálogo sincero, instituindo ao mesmo tempo durante o seu pontificado competentes e eficazes organismos em vista do diálogo. Nestes anos procurei servir-me de tais organismos para promover o diálogo, sobretudo naqueles sectores em que este conheceu maiores dificuldades (cf. ultimamente a Encíclica Ut unum sint UUS 28-29).

É com profundo apreço que considero as numerosas estruturas, que em muitos ambientes se plasmaram para dar forma concreta ao diálogo da Igreja a nível tanto interior como exterior, e desta maneira, para o tornar frutuoso. Também vós, estimados Irmãos, no âmbito da vossa Conferência Episcopal, empreendestes uma iniciativa destinada a estimular e aprofundar o diálogo. Mediante o Dialog für Österreich, pretendeis promover o confronto entre as Igrejas locais, das quais sois os chefes, e entre as Ordens e as Famílias religiosas, as comunidades espirituais e os vários grupos e movimentos. Com esta finalidade, alargastes o círculo dos possíveis interlocutores e dirigistes-vos aos Conselhos paroquiais e aos «grupos apostólicos », a entidades e associações públicas, bem como às pessoas individualmente e às comunidades (cf. Grundtext zum «Dialog für Österreich», pág. 3).

6. Mediante esta iniciativa de diálogo, da qual não tendes a intenção de excluir ninguém, não desejais apenas facilitar um modo de se relacionar, hoje em voga, ou promover um método neutro para fazer com que as diferentes pessoas se encontrem entre si. O raio das formas de diálogo é largo. Existem intercâmbios amistosos de pensamento, considerações objectivas, debates científicos ou ainda processos formativos do consentimento social. Embora nos últimos decénios a expressão «diálogo» tenha às vezes sido mal interpretada e deformada, não deve contudo ser desacreditada. O diálogo entretecido pela Igreja, e ao qual ela mesma exorta, não é apenas uma forma de abertura para o mundo, nem sequer uma forma de adaptação superficial. Ao contrário, é compreendido como um falar e agir sustentado pela acção de Deus e assinalado pela fé da Igreja. Neste sentido, o Dialog für Österreich, deve tornar-se um «diálogo de salvação». Ele resultaria demasiado uniforme se se realizasse segundo uma dimensão exclusivamente horizontal, limitando-se a um intercâmbio de pontos de vista ou apenas a um confronto estimulador. Pelo contrário, ele deve abrir-se a uma dimensão vertical, que o leve rumo ao Salvador do mundo e ao Senhor da história, Àquele que nos reconcilia connosco mesmos e com Deus (cf. Encíclica Ut unum sint UUS 35).

7. Tal diálogo representa um desafio para todos os interlocutores, uma verdadeira forma de experiência espiritual. Trata-se de escutar o outro e de se abrir a si mesmo no testemunho pessoal, e de aprender também a arriscar, deixando a Deus o êxito do diálogo. O diálogo, diversamente de um colóquio superficial, tem como objectivo a descoberta e o reconhecimento comum da verdade. Quantas vezes vós, Pastores, procurastes e ainda procurais conduzir com paciência, pelas sendas da verdade, os sacerdotes e os leigos a vós confiados, por meio de um diálogo repleto de amor. Sabeis por experiência que um diálogo felizmente concluído pode pôr fim a um problema ou ainda a uma controvérsia que antes estava aberta. Porém, ao mesmo tempo conheceis às vezes o fracasso doloroso dos vossos esforços: em vez de levar à verdade e ao entendimento, o diálogo não vai além de um discurso sem substância que, em última análise, se desinteressa da verdade.

Tal forma não corresponde ao diálogo da salvação. Para todos os interlocutores, este coloca-se sempre sob a luz da palavra de Deus. Portanto, pressupõe um mínimo de acordo e de união de base. É a fé viva transmitida pela Igreja universal, que representa o fundamento do diálogo para todas as partes. Aquele que abandona esta base comum priva cada diálogo na Igreja da possibilidade de se tornar um diálogo de salvação. Por isso, é importante saber se uma determinada divergência não se deve eventualmente remeter a diferenças basilares. Se este for o caso, tais diferenças devem antes ser resolvidas. Se não se consegue resolvê-las, o diálogo corre o perigo de se nivelar no desempenho ou ainda de se reduzir a subtilezas marginais. De qualquer forma, ninguém pode sinceramente desempenhar um papel num processo de diálogo, se não estiver disposto a expor-se à verdade e a crescer nela.

A abertura à verdade significa disposição à conversão. Efectivamente, o diálogo só levará à verdade quando for entretecido não só com o conhecimento de causa, mas com sinceridade e franqueza, com o acolhimento e a escuta da verdade e com a vontade de se corrigir. Sem a disponibilidade para se fazer converter à verdade, exaure-se todo o diálogo. Descer a um compromisso seria uma ilusão. Por isso, deve-se garantir que o consentimento das partes não seja apenas aparente, nem sequer alcançado com o engano mas, ao contrário, nasça do coração. Neste contexto é a vós, Pastores, que compete a tarefa do discernimento, graças ao qual sois «cooperadores da Verdade» (3Jn 8).

8. O diálogo da salvação é um empreendimento espiritual. Aprofunda na comunidade eclesial o conhecimento das riquezas misteriosas da fé. Àqueles que se empenham sinceramente, abre um espaço de comunicação na verdade. Os interlocutores experimentam-na como um «intercâmbio de dons» (cf. Lumen gentium LG 13). Se o diálogo se realizar de maneira convincente no interior da comunidade, não faltará o efeito exterior. Portanto, o diálogo é um instrumento pastoral e favorece a evangelização. De facto, a um diálogo autêntico não faltar á a força irradiadora. Obviamente, ele deverá ser entretecido com honestidade. Por mais que se queira ser aberto, a profissão da fé eclesial deve conservar a sua clareza e firmeza. Interlocutores com perfis nítidos têm muita probabilidade de se fazerem compreender e de suscitarem um respeito sincero, ainda que acerca de uma determinada questão o diálogo possa resultar árduo e cansativo, e a parte oposta não pareça disposta, pelo menos naquele momento, a aceitar o ponto de vista proposto.

9. Todavia, é claro que ao encorajar o diálogo não pretendo simplesmente dizer que se deve falar mais. No nosso tempo fala-se muito, mas isto não facilita de modo automático a compreensão recíproca. Infelizmente, o diálogo pode também malograr. Por isso, quereria sublinhar de maneira particular dois perigos, que sem dúvida não vos são desconhecidos.

O primeiro consiste na pretensão de se ter sempre razão. É o caso de interlocutores que não se fazem guiar pela intenção de compreender, mas exigem apenas para si mesmos todo o espaço do diálogo. Nesta linha, em pouco tempo não existe mais um intercâmbio sincero. A diversidade que enriquece torna-se oposição combativa, em busca do cenário para apresentar o próprio monólogo. Entre os interlocutores ergue-se um muro arrefecido que separa mundos fechados em si mesmos. A sincera busca comum da verdade é substituída por pretensões, ameaças e imposições. Isto contrasta com o sentido do diálogo de salvação, que exige do fiel a prontidão a dar a quem quer que lhe pergunte a razão da sua esperança, como recorda a admoestação do Apóstolo Pedro: «Todavia, faça-se isto com docilidade e respeito » (cf. 1P 3, 15s.).

Outro perigo consiste nas interferências da opinião pública, enquanto o diálogo está em acto. A Igreja do nosso tempo esforça-se por se tornar cada vez mais uma «casa de vidro», transparente e crível. E isto é bom. Mas assim como cada casa possui salas particulares, que no início não são abertas a todos os hóspedes, assim também para o diálogo no interior da Igreja há necessidade de salas para colóquios com a devida reserva. Isto não tem nada a ver com o segredo, mas sim com o respeito recíproco em vantagem da questão que se está a examinar. Com efeito, o bom êxito do diálogo está em perigo se se realiza perante um público não bastante qualificado ou preparado e com o empenhamento nem sempre imparcial dos mass media. Um apressado ou inadequado envolvimento da opinião pública pode perturbar sensivelmente um processo de diálogo, em si promissor.

Diante destes perigos, será vossa preocupação continuar os diálogos de salvação com sensibilidade compreensiva e profundo respeito. A Igreja na Áustria deve tornar-se cada vez mais o «sinal daquela fraternidade que torna possível e robustece o diálogo sincero. Isto, em primeiro lugar, exige que promovamos, dentro da própria Igreja, a mútua estima, o respeito e a concórdia, no reconhecimento de todas as legítimas diversidades e para se estabelecer um diálogo cada vez mais frutuoso entre todos os que constituem o único Povo de Deus, sejam Pastores ou simples cristãos. Pois aquilo que une os cristãos é mais forte que aquilo que os separa: haja unidade no necessário, liberdade na dúvida e caridade em tudo» (Gaudium et spes GS 92).

10. Caros Irmãos no Episcopado! Depois de vos ter aberto o meu coração e confiado os meus pensamentos e as minhas solicitudes em relação à Igreja no vosso amado País, quero concluir exortando-vos: criai espaço em vós para o Espírito Santo! Imitemos a Virgem Maria, cuja vida inteira foi um diálogo de salvação. No Espírito Santo Ela concebeu o Verbo, a fim de que Ele se fizesse homem. Aprendamos d'Aquela que viveu silenciosamente até ao fim, ao pé da cruz, quando Ele entregou o próprio Espírito por nós, homens. Dirijamos o nosso olhar Àquela que estava em oração, juntamente com os apóstolos, quando estes imploravam a descida do Espírito Santo sobre a Igreja nascente. A Virgem Maria não é apenas Aquela que intercede por nós; Ela é também o nosso modelo de vida no Espírito Santo, Aquela da qual aprender como se coopera para a salvação do mundo. Deste modo, havemos de nos tornar colaboradores da alegria e da verdade. Assim como a Virgem Maria se definiu «escrava do Senhor» (Lc 1,38), também nós devemos sempre sentir-nos humildes «ministros de Cristo» e fiéis «administradores dos mistérios de Deus» (1Co 4,1).

Recomendo-vos: não abandoneis o diálogo! Estarei próximo de vós com a minha oração inclusivamente no futuro. Todos sejam um só, a fim de que a Áustria creia! Com estes bons votos, concedo-vos de coração a minha Bênção Apostólica.




Discursos João Paulo II 1998