Discursos João Paulo II 1998 - 17 de Outubro de 1998

4. O Código especifica os deveres dos Bispos no que se refere à instituição dos tribunais e à sua actividade. A fim de funcionarem correctamente, não basta assegurar que os tribunais diocesanos disponham de pessoas e instrumentos. A vossa responsabilidade de Bispos - sobre a qual vos encorajo a vigiar de maneira especial - consiste em assegurar que os tribunais diocesanos exerçam com fidelidade o ministério da verdade e da justiça. No meu próprio ministério, sempre senti o peso desta particular responsabilidade. Como Sucessor de Pedro, tenho motivos para estar profundamente grato aos meus colaboradores nos vários Tribunais da Sé Apostólica: de forma especial à Penitenciaria Apostólica, ao Supremo Tribunal da Signatura Apostólica e ao Tribunal da Rota Romana, que me assistem naquela parte do meu ministério que contempla a adequada administração da justiça.

O Direito Canónico diz respeito a cada um dos aspectos da vida da Igreja e, portanto, impõe sobre os Bispos uma vasta gama de responsabilidades, mas é inquestionavelmente na área do matrim ónio que tais responsabilidades se fazem sentir com maior acuidade e são mais complexas. A indissolubilidade do matrimónio constitui um ensinamento que provém de Cristo mesmo, e por conseguinte o primeiro dever dos pastores e dos agentes de pastoral é ajudar os casais a superarem quaisquer dificuldades que surjam. A deferência das causas matrimoniais ao tribunal deveriam constituir o último recurso. Deve-se tomar grande cuidado quando se explica aos fiéis o significado da declaração de nulidade, a fim de evitar o perigo dela ser concebida como um divórcio sob outro apelativo. O tribunal exerce um ministério de verdade: a sua finalidade é «averiguar a existência ou não de factos que, por lei natural, divina ou eclesiástica, invalidam o matrimónio, de tal modo que se possa chegar à emanação de uma sentença verdadeira e justa acerca da asseverada inexistência do vínculo conjugal » (Discurso à Rota Romana, 4 de Fevereiro de 1980, n. 2, em ed. port. de L'Osservatore Romano de 17.2.1980, pág. 5). O processo destinado a levar a uma decisão judicial acerca da presumível nulidade do matrimónio deveria demonstrar dois aspectos da missão pastoral da Igreja. Em primeiro lugar, manifestar claramente o desejo de ser fiel ao ensinamento do Senhor, acerca da natureza permanente do matrimónio sacramental. Em segundo lugar, deveria inspirar-se na genuína solicitude pastoral por aqueles que recorrem ao ministério do tribunal em vista de esclarecer a própria posição na Igreja.

5. A justiça exige que o trabalho dos tribunais seja levado a cabo de maneira conscienciosa e em estreita observância das directrizes e procedimentos canónicos. Como Moderadores dos tribunais das vossas dioceses, tendes o dever de assegurar que os oficiais do tribunal sejam apropriadamente qualificados (cf. C.I.C., cânones 1420 § 4; 1421 § 3; 1428 § 2; 1435), possuam um doutorado ou pelo menos uma licença em Direito Canónico. Se tal for o caso, eles precisam de ser devidamente dispensados pela Signatura Apostólica, depois de receberem uma formação especializada para ocupar a sua posição. No que diz respeito aos oficiais do tribunal, exorto-vos em particular a fazer com que o defensor do vínculo seja diligente na apresentação e explicação de tudo o que pode ser razoavelmente argumentado contra a nulidade do matrimónio (cf. C.I.C., cân. 1432). Os Bispos, cujos tribunais enfrentam causas em segunda instância, deveriam garantir que os seus tribunais abordem a própria competência com seriedade, evitando de agir me-ramente como uma confirmação quase automática do juízo do tribunal de primeira instância.

Ambas as partes envolvidas numa causa matrimonial têm direitos que devem ser escrupulosamente respeitados. Eles incluem o direito a serem escutados para a formulação da dúvida, a saberem com que motivações a causa será julgada, a escolherem as próprias testemunhas, a examinarem as actas, a conhecerem e rejeitarem os argumentos da outra parte e do defensor do vínculo, e a receberem uma cópia da sentença final. As partes devem ser informadas sobre os modos como podem opor-se à sentença definitiva, inclusivamente o direito ao apelo junto do Tribunal da Rota Romana em segunda instância. No que diz respeito às causas julgadas com base na incapacidade psíquica, ou seja, nalguma séria anomalia que torna a pessoa incapaz de contrair um matrimónio válido (cf. C.I.C., cân. 1095), o tribunal deve recorrer aos serviços de um especialista em psicologia ou psiquiatria, que compartilhe a antropologia cristã em conformidade com o entendimento da Igreja sobre a pessoa humana (cf. Discurso à Rota Romana, 5 de Fevereiro de 1987).

O processo canónico jamais deve ser visto como uma mera formalidade a observar, ou uma série de regras a manipular. O juiz pode eximir-se de declarar uma sentença em favor da nulidade do matrimónio, se antes não adquiriu a certeza moral acerca da existência de tal nulidade; apenas a probabilidade não é suficiente para decidir uma causa (cf. ibid., n. 6; cf. C.I.C., cân. 1608). A certeza moral - que não é somente uma probabilidade ou convicção subjectiva - «caracteriza-se, do lado positivo, pela exclusão da dúvida bem fundada ou razoável. Do lado negativo, não admite a absoluta possibilidade do contrário e nisto difere da certeza absoluta» (cf. Pio XII, Discurso à Rota Romana, 1 de Outubro de 1942, n. 1). A certeza moral procede de uma infinidade de indica- ções e demonstrações que, consideradas separadamente, podem não ser decisivas mas, tomadas juntas, podem excluir qualquer dúvida razoável. Se o juiz não puder alcançar uma certeza moral no processo canónico, deverá decidir a favor da validade do vínculo matrimonial (cf. C.I.C., cân. 1608 § 3 e § 4): o matrimónio goza do favor da lei.

6. Dilectos Irmãos Bispos, a finalidade destas breves considerações é encorajar-vos a supervisionar a aplicação fiel da legislação canónica: isto é essencial se a Igreja quiser mostrar-se cada vez mais equitativa na tarefa de realizar a missão que lhe é própria (cf. Constituição Apostólica Sacrae disciplina leges). Um profundo apreço pela importância do Direito Canónico na vida da Igreja e a tomada de medidas em vista de garantir uma administração mais eficaz e conscienciosa da justiça devem constituir uma solicitude fulcral do vosso ministério episcopal. A fidelidade ao direito eclesiástico deveria ser uma parte vital da renovação das vossas Igrejas particulares. Ela é uma condição para libertar novas energias para a evangelização, enquanto nos aproximamos do Terceiro Milénio cristão. Confio os vossos esforços pastorais neste sentido à intercessão maternal de Maria, Espelho de Justiça, e é de bom grado que concedo a minha Bênção Apostólica a vós, aos sacerdotes, aos religiosos e fiéis leigos das vossas Dioceses.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS PEREGRINOS DA BIELO-RÚSSIA


17 de Outubro de 1998





1. Com grande alegria e comoção saúdo-vos, caros peregrinos da Bielo- Rússia. De modo particular, saúdo o Senhor Cardeal Kazimierz Swiatek, Arcebispo de Minsk-Mohylew e Primeiro-Administrador de Piñsk, e agradeço-lhe as palavras que me dirigiu. A pessoa do Cardeal é-me muito querida e, por isso, sinto-me feliz por poder dar-lhe as boas-vindas neste encontro. Saúdo o Bispo de Grodno juntamente com o seu Bispo Auxiliar, e também os representantes do clero, das congregações religiosas e dos fiéis da Igreja da Bielo-Rússia. Agradeço a vossa presença e as orações oferecidas segundo a intenção do meu ministério universal. Deus vos recompense!

2. A maior parte de vós vem pela primeira vez à Cidade Eterna. Certamente, esta é uma peregrinação histórica. Com efeito, vindes de um país que reconquistou a independência; nele a Igreja pode agora realizar livremente a própria missão evangelizadora. Isto ocorreu graças aos eventos históricos que se verificaram na Europa Centro-Oriental, entre os anos 1989-1990. Quantos de vós trazem ainda no coração as recordações dolorosas e as feridas daquelas trágicas experiências e daquelas injustiças sofridas nas impiedosas deportações forçadas para longínquas terras desconhecidas ou nas deportações para os campos de concentração! Quantos sofrem ainda hoje por causa da separação e da morte daqueles a quem tanto amavam. Desejo mencionar também as perseguições sofridas naquele tempo pela Igreja católica. Quem pode contar todos os sofrimentos dos fiéis leigos, dos sacerdotes, dos religiosos e das religiosas na Bielo-Rússia? Falo disto hoje, porque trago profundamente no coração tudo aquilo que fostes obrigados a sofrer nos terríveis anos da segunda guerra mundial e no imediato pós-guerra. Com isto quereria também prestar homenagem àqueles que nestas horríveis condições conservaram a sua dignidade, dando muitas vezes um heróico testemunho de amor a Deus e à Igreja. Dirijo-me em particular ao Senhor Cardeal cuja vida, caracterizada por sofrimentos e humilhações, reflecte de algum modo o destino de famílias inteiras ou de pessoas individualmente.

3. Viestes aos túmulos dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo para dar graças a Deus, que vos sustentou com a Sua força nos tempos da prova e da opressão. Agradecestes a Deus o dom da fé e a coragem com que defendestes a tradição cristã. Viestes também para procurar aqui o conforto capaz de vos sustentar no caminho que ainda vos está reservado. Não é suficiente possuir a liberdade, mas é preciso conquistá-la e formá-la constantemente. Dela pode-se fazer um bom ou mau uso, pondo-a ao serviço de um bem autêntico ou aparente. Hoje, o mundo é atravessado por um conceito deformado da liberdade. Não faltam aqueles que proclamam uma falsa liberdade. É preciso que cada um tome profundamente consciência disto. Deve-se orar a Deus para que faça frutificar o bem que se realizou no passado e que continua ainda hoje a ser feito na vossa terra, a fim de que não faltem nos corações a fortaleza, a magnanimidade e a esperança.

4. Fixai o olhar em Cristo, «enraizados e edificados n'Ele, tornando-vos firmes na fé» (Col 2,7). Ele é «o caminho, a verdade e a vida» (Jn 14,6) para cada homem, para inteiras sociedades e nações. Edificai em Cristo o futuro das vossas famílias e do vosso Estado. Só Ele pode conceder a luz e as energias para responderdes a todos os desafios que a vossa Comunidade nacional está a enfrentar. No caminho rumo ao Terceiro Milénio vos acompanhe a Santa Mãe de Deus e vos ajude a conservar o grande e precioso património da fé.

Aproveito a ocasião para enviar uma saudação cordial a todos os cidadãos da Bielo-Rússia. Desejo ao vosso País todo o bem e um propício desenvolvimento espiritual e material. Que na vossa terra todos se sintam felizes. Edificai juntos o vosso presente e o vosso futuro.

Recebo de vós muitas cartas que me convidam a visitar a Bielo-Rússia. Talvez a Divina Providência me permita acolher o vosso convite. Esperamos que seja assim. É preciso orar para isto com fervor.

De coração abençoo todos vós aqui presentes, e também as vossas famílias e entes queridos.





DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA ITALIANA


20 de Outubro de 1998



Senhor Presidente!

1. Eis-me de novo neste histórico Palácio, residência do primeiro Magistrado da República italiana, para realizar uma visita programada desde há muito tempo e anunciada oficialmente há um mês. Obrigado pelas gentis expressões de boas-vindas com que Vossa Excelência houve por bem receber-me, fazendo-se intérprete dos sentimentos do Povo italiano. Agradeço a atenção com que, no reconhecimento das respectivas competências, Vossa Excelência se empenha a realizar aquela colaboração entre Estado e Igreja «para a promoção do homem e o bem do País», desejada pelos Acordos de 18 de Fevereiro de 1984.

A visita hodierna situa-se no sulco de outros frutuosos encontros e testemunha que a colaboração entre Igreja e Estado na Itália pode proporcionar efeitos benéficos na vida concreta dos cidadãos italianos e das Instituições. Por este motivo, alegro-me e elevo ao Senhor, nesta ocasião tão significativa, um público agradecimento.

2. Encontro-me hoje aqui como Sucessor de Pedro e Pastor da Igreja universal. De facto, é em Roma - nesta «nossa» Roma - que me é dado exercer esta missão apostólica. Em virtude do mandato que me foi confiado por Cristo, que me constitui Bispo de Roma e Primaz da Itália, eu, apesar de vir de um País distante, sinto-me plenamente romano e italiano.

O meu envolvimento na história desta Cidade e da Itália não representa apenas um facto formal: com o passar dos anos aumentou a minha participação cordial na vida de um Povo, no meio do qual a Providência me inseriu desde os anos da juventude quando, depois da Ordenação sacerdotal, fui enviado aqui pelo meu Bispo para aperfeiçoar os estudos académicos. Já então pude entrar em contacto com a vivaz humanidade e a sincera religiosidade dos Romanos. Recordo-me sempre desta rua do Quirinal, porque morei aqui no número 28, no Colégio Belga. Todos os dias, de manhã e de tarde, percorria esta rua, passando perto do Palácio presidencial. Isto aconteceu entre os anos 1946 e 1948. Esta proximidade aprofundou-se depois com as minhas frequentes vindas a Roma e consolidou-se durante o Concílio Ecuménico Vaticano II. Quando me nomeou Cardeal, o meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, inscreveu-me no Clero romano conferindo-me o Título da Igreja de S. Cesareo in Palatio. Depois, na tarde do dia 16 de Outubro de há vinte anos, o Senhor chamou-me para ser Sucessor de Pedro, ligando para sempre, com um misterioso desígnio, a minha vida à Itália. Quero recordar ainda outras circunstâncias. Foi na Itália, sobretudo em Montecassino, que os meus companheiros de classe combateram. Muitos deles perderam a vida e estão sepultados perto de Ancona e noutros lugares. Também eles, num certo sentido, me prepararam o caminho.

Durante estes vinte anos de Pontificado participei cada vez mais nas alegrias e tristezas, nos problemas e esperanças da Nação italiana, estabelecendo nas visitas pastorais e nos frequentes encontros relações profundas com os fiéis de cada uma das suas Regiões, e recebendo em toda a parte demonstrações de estima e de afecto.

3. Roma e a Sé de Pedro! Há dois mil anos que estas duas realidades, mesmo com a sucessão das pessoas e das instituições, se encontram e se relacionam. As formas desta relação, no decorrer dos séculos, sofreram várias vicissitudes, nas quais se misturaram momentos de luz e de sombra. Contudo, a ninguém passa despercebido que elas pertencem uma à outra e que não é possível compreender a história da primeira sem se referir à missão da segunda.

Esta relação particular, com o passar dos séculos, evidencia os benefícios que as duas instituições têm desta providencial proximidade. À presença de Pedro e dos seus Sucessores, Roma e o povo italiano devem a maior riqueza do seu património espiritual e da sua identidade cultural: a fé cristã.

Não podemos deixar de pensar aqui nos surpreendentes cenários de arte, direito, literatura, estruturas urbanas, obras caritativas, bem como no variado património de tradições e costumes populares, que constituem a expressão eloquente da radicada e feliz presença do cristianismo na vida do Povo italiano. Destas riquezas de humanidade e cultura a Igreja de Cristo obteve, depois, instrumentos preciosos para a difusão do Evangelho em todos os recantos do mundo.

4. A laboriosa concórdia entre a Itália e a Igreja católica deve agora confirmar-se, ou melhor, intensificar-se na preparação do Grande Jubileu do Ano 2000. Com esta celebração, os cristãos desejam dar graças ao Senhor pelo evento decisivo da encarnação do Filho de Deus e preparar-se para cruzar, renovados espiritualmente, o limiar do Terceiro Milénio. O Jubileu é um acontecimento sobretudo espiritual, uma ocasião de reconciliação e conversão, proposta aos seguidores de Cristo e a todos os homens de boa vontade, para que possam tornar-se a alma e o fermento dum novo milénio, marcado pela verdadeira justiça e pela paz autêntica. O nosso século conheceu as tragédias causadas por ideologias que, combatendo qualquer forma de religião, se iludiram de poder construir uma sociedade sem Deus ou até contra Deus.

Oxalá o próximo Jubileu ofereça a todos a oportunidade de reflectir sobre a urgente responsabilidade de construir um mundo que seja a «Casa do homem», de cada homem, no pleno respeito da vida humana, desde a sua concepção até ao seu fim natural. Os cristãos têm, a este respeito, a missão de proclamar e testemunhar que Cristo é o centro e o coração da nova humanidade, inclinada para a realização da «civilização do amor».

Também para o Povo italiano o Jubileu constituirá uma preciosa ocasião para redescobrir a sua autêntica identidade e para se empenhar, à luz dos grandes valores cristãos da própria tradição, na construção duma nova era de progresso e de convivência fraterna.

5. O empenho e a cooperação de todos farão com que o próximo Ano Santo constitua outro capítulo da extraordinária história de fidelidade ao Evangelho e de disponibilidade para o acolhimento que distinguem a Itália. O pensamento dirige-se espontaneamente para o florescimento de Santos e Santas que o Povo italiano conta. Deve-se recordar também as numerosas plêiades de sacerdotes, religiosos e religiosas que se fizeram mestres e inspiradores do bem em cada lugar da Itália e em tantas partes do mundo. E que dizer, depois, dos numerosos pais e mães que com dedicação discreta, amorosa e fiel transmitiram aos filhos modelos de vida singularmente ricos de sabedoria humana e cristã?

Considerando precisamente estes resultados e a obra formadora da família, da qual eles dependem, sinto o dever de dirigir um premente apelo, para que na sociedade italiana seja defendida de todos os modos esta instituição primordial, segundo o projecto querido pelo Criador. Os recursos para o crescimento moral e civil do País encontram-se na firme fidelidade dos cônjuges e na sua generosa abertura à vida.

Famílias sadias, País sadio: não podemos iludir-nos de poder tê-lo sem nos preocuparmos de fazer quanto é necessário para que elas existam. Uma família sadia sabe transmitir os valores nos quais se baseia qualquer ordinária convivência, a começar pelo valor fundamental da vida, com cujo maior ou menor respeito se mede o grau de civilização dum Povo.

Sob esta luz, faço votos por que tudo seja feito em vista da tutela imediata e iluminada de cada expressão da vida humana, a fim de vencer a chaga do aborto e esconjurar qualquer forma de legalização da eutanásia. No amplo contexto do serviço à vida, desejo que sejam traduzidos em intervenções legislativas adequadas os princípios de liberdade e de pluralismo contidos na Constituição italiana, também no que se refere ao direito que os pais têm de escolher o modelo educativo, considerado mais adequado para o crescimento cultural dos filhos. Tudo isto requer tanto a garantia dum efectivo direito ao estudo, quanto a possibilidade de opção do tipo de escola preferido, sem discriminações nem penalizações, como já se verifica na maior parte dos Países europeus.

6. O amor e a solicitude pela Itália fazem-me recordar os graves problemas que ainda afligem a Nação, sendo o primeiro deles o desemprego. Desejo de igual modo manifestar a minha atenção solidária aos numerosos imigrados, às vítimas dos sequestros e de violências, aos jovens que se interrogam com preocupação acerca do seu futuro. A este propósito, exprimo profundo apreço por quantos, nas instituições e nas múltiplas e beneméritas formas de voluntariado, se empenham pela resolução de tais problemas.

Nos últimos anos, a Igreja acompanhou as vicissitudes italianas, quer com a «Grande oração pela Itália», quer com a pontual proposta de indicações e de contributos ideais para que a Nação recupere a sua alma profunda e faça frutificar a sua grande herança de fé e de cultura. Tenho presente o difícil momento que a Itália está a viver e garanto a minha constante recordação ao Senhor por este Povo, que me é tão querido.

Senhor Presidente! Neste momento solene desejo formular votos por que a Nação italiana, recordada da própria tradição e fiel aos valores civis e espirituais que a distinguem, possa haurir destas riquíssimas potencialidades orientações e estímulo para alcançar as metas de autêntica moralidade, prosperidade e justiça às quais aspira, e oferecer qualificados contributos à assembleia das Nações para a causa do desenvolvimento e da paz.

Com estes votos, enquanto invoco a intercessão dos Santos Padroeiros e sobretudo da Virgem Maria, amada com tanta ternura em todas as partes deste País, desejo a Vossa Excelência e a todos os italianos a constante Bênção do Senhor.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO NOVO EMBAIXADOR DA IRLANDA


JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO


DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


Sexta-feira, 23 de Outubro de 1998





Senhor Embaixador

É-me muito grato dar-lhe hoje as boas-vindas ao Vaticano e aceitar as Cartas Credenciais mediante as quais Vossa Excelência é designado Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da Irlanda. Agradeço-lhe as expressões de bons votos que Vossa Excelência me transmitiu da parte de Sua Excelência o Senhor Presidente McAleese e é de bom grado que lhe retribuo com os melhores votos e a certeza das minhas orações pelo amado Povo irlandês, com o qual a Santa Sé já entretece um longo e singular vínculo de fé e de amizade desde o século V.

A história do seu País testifica um compromisso profundamente arraigado na fé cristã. Este empenhamento inspirou os monges que ao longo dos séculos levaram a luz da fé e da ciência a muitas partes da Europa, após a queda do Império Romano; ele sustentou os numerosos sacerdotes, religiosos e leigos que derramaram o próprio sangue num supremo testemunho de fidelidade à Igreja nos tempos de perseguição; além disso, tem encorajado os inumeráveis missionários irlandeses a levarem o Evangelho até aos extremos confins da terra nos tempos mais recentes. A impressionante herança cristã da Irlanda tem contribuído em grande medida para o aprofundamento do sentido de solicitude que os irlandeses sempre demonstraram em relação aos outros povos que lutam pela liberdade, justiça e desenvolvimento. Hoje, ela põe em evidência o seu próprio desejo de desempenhar um papel activo na promoção do progresso e da paz entre os povos do mundo inteiro.

Vossa Excelência mencionou o facto de a Irlanda e a Santa Sé participarem e cooperarem em muitas Organizações e em importantes Encontros internacionais. Uma das mais significativas iniciativas da comunidade internacional nos últimos anos foi o Encontro mundial sobre o Desenvolvimento social, realizado em Copenhaga no ano de 1995. Nesse encontro, países de diferentes culturas e níveis económicos puderam alcançar um amplo consenso acerca dos princípios a seguir, em vista do desenvolvimento da sociedade e da obtenção de melhores condições de vida para todos. Foi encorajador observar a determinação de colocar a pessoa humana no centro dos esforços em prol do desenvolvimento e de lutar por um progresso humano que tenha em consideração e respeite os valores éticos, culturais e religiosos. Efectivamente, o desenvolvimento de um país nunca pode ser reduzido a uma simples acumulação de riquezas e a uma maior disponibilidade de bens e serviços em geral. Um profundo sentido da dignidade inviolável da pessoa humana deve constituir o fundamento dos projectos sociais, económicos e educativos que têm em vista melhorar a vida das pessoas e corresponder genuinamente às necessidades humanas de forma mais efectiva. Reconhecer cada homem e cada mulher como sujeitos com direitos e liberdades inalienáveis significa que as nações e a comunidade internacional devem garantir de maneira eficaz que as dimensões sociais, culturais e espirituais da vida sejam respeitadas e promovidas constantemente e em toda a parte.

Para proporcionar um autêntico desenvolvimento humano e social, é essencial salvaguardar a família e promover o seu bem-estar. A família é a primeira escola das virtudes sociais, as quais constituem o princípio animador do desenvolvimento e do progresso da sociedade (cf. Exortação Apostólica Familiaris consortio FC 42). As famílias sólidas e unidas formam os seus membros no respeito dos direitos e da dignidade dos outros, no reconhecimento da sacralidade de toda a família humana, de maneira especial dos mais vulneráveis, e na prática daquelas qualidades e virtudes que promovem e edificam o bem comum. Tudo aquilo que debilita o tecido da vida familiar ou reduz as responsabilidades distintivas da família causa um grave prejuízo à sociedade em geral. Na minha Carta às Famílias, escrita em 1994 por ocasião do Ano Internacional da Família, salientei a importância da vida familiar para o bem-estar dos povos: «Uma nação verdadeiramente soberana e espiritualmente forte é sempre composta por famílias fortes, cientes da sua vocação e da sua missão na história» (n. 17). O apreço pela contribuição indispensável da família para o bem-estar do seu país encorajou os idealizadores da Constituição irlandesa a darem grande relevância à família como uma comunidade primária e fundamental na sociedade, possuidora de «direitos inalienáveis e imprescritíveis, antecedentes e superiores a todo o direito positivo» (Bunreacht na hÉireann, art. 41, 1, 1°). Isto impeliu-os a defender o direito dos pais a serem os principais agentes da educação religiosa, moral, intelectual, física e social dos próprios filhos (cf. ibid., art. 42, 1). Haurindo destes princípios básicos, que reflectem a preciosa herança cultural e religiosa do seu País, a Irlanda pode continuar a ser uma voz convincente no foro internacional, todas as vezes que se trata de salvaguardar e revigorar a cultura internacional do respeito da pessoa humana, a família e a dimensão transcendente da existência do homem.

Ao aproximarmo-nos do termo do século XX, um período que testemunhou ingentes violências, guerras, perseguições e atentados fundamentalmente ideológicos da parte de regimes totalitários que visavam aniquilar povos inteiros, deveria ser clarividente o facto de que os esforços no sentido de instituir uma ordem social renovada a níveis tanto nacional como internacional só obterão bom êxito se se garantirem juridicamente as normas morais universais e imutáveis, assentes na natureza humana e acessíveis à razão. Segundo a visão cristã, os direitos fundamentais do homem são consequentes da natureza humana e em última análise derivam de Deus e não são simplesmente conferidas pelas autoridades humanas. A incapacidade de reconhecer a existência de uma verdade que transcende as realidades sociais e culturais constitui uma vereda breve rumo ao domínio exclusivo do Estado sobre todos os aspectos da vida. Desta forma, abre-se o caminho para as imposições totalitárias de todos os géneros (cf. Carta Encíclica Centesimus annus CA 44). Quando se removem os sólidos pontos de referência moral e prevalece o relativismo ético, os direitos e as liberdades fundamentais são ameaçados até mesmo numa sociedade que parece ser democrática (cf. Carta Encíclica Veritatis splendor VS 101). «Se não existir nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra » (Carta Encíclica Centesimus annus CA 46). Enquanto nos preparamos para entrar no novo milénio, em particular as nações da Europa enfrentam o desafio que consiste em determinar os princípios do seu desenvolvimento futuro. Senhor Embaixador, o seu País, cuja experiência está arraigada num profundo sentido da presença de Deus em todas as vicissitudes humanas (cf. Bunreacht na hÉireann, Preâmbulo), está em boas condições de oferecer um inestimável contributo para a fundação da nova Europa sobre as suas autênticas bases espirituais e culturais.

Recordo-me sempre com afecto da Visita pastoral que realizei ao seu País em 1979, quando testemunhei pessoalmente as maravilhosas qualidades humanas e espirituais do povo irlandês. Nessa época, a Irlanda do Norte estava imersa na violência que causara ingentes sofrimentos nas décadas passadas. Uma nova era de esperança abriu-se com a assinatura do chamado Good Friday Agreement («Acordo da Sexta-Feira Santa»), que lançou uma nova base para o governo e a cooperação entre todas as camadas da população. A paz permanente é sempre uma realidade frágil e exige esforços diuturnos da parte de todos. O caminho em frente requer de todos os interessados não só a disponibilidade ao compromisso, mas principalmente um empenho positivo em vista de criar «o conjunto daquelas condições de vida social, que permitem aos homens, às famílias e aos grupos poderem alcançar [...] a sua própria perfeição» (Concílio Vaticano II, Gaudium et spes GS 74). Rezo para que o futuro de todo o povo da Irlanda, sem qualquer distinção, se fundamente na justiça, equidade e harmonia.

Senhor Embaixador, ao iniciar a sua missão, no seguimento de uma longa tradição de ilustres Diplomatas irlandeses, asseguro-lhe as minhas orações pelo seu bom êxito. Pode estar certo de que os vários Departamentos da Cúria Romana estarão totalmente disponíveis a assisti-lo no cumprimento dos seus deveres.

Guím beannacht Dé ar phobal na hÉireann.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


NO II ENCONTRO DE POLÍTICOS


E LEGISLADORES DA EUROPA


23 de Outubro de 1998





Senhores Cardeais
Caros Irmãos no Episcopado
Senhoras e Senhores

1. Por ocasião do segundo encontro de homens políticos e de legisladores da Europa, organizado pelo Pontifício Conselho para a Família, sinto-me feliz por vos acolher na casa do Sucessor de Pedro. Dirijo os meus agradecimentos calorosos ao Senhor Cardeal Alfonso López Trujillo, Presidente deste Conselho, pelas palavras que acabou de me dirigir em vosso nome.

Exprimo a todos vós a minha viva gratidão por terdes aceite, por iniciativa do Pontifício Conselho para a Família, participar nas reflexões da Santa Sé sobre as questões que não cessam de se apresentar em relação à família e aos sectores éticos. Os progressos científicos e técnicos impõem uma reflexão moral séria e aprofundada, assim como legislações apropriadas, para colocar a ciência ao serviço do homem e da sociedade. Com efeito, eles não dispensam ninguém de apresentar a si próprio as questões morais fundamentais e de lhes encontrar respostas adequadas, para a boa ordem social (cf. Encíclica Veritatis splendor VS 2-3). Ao empenharem-se por conhecer de maneira clara os diferentes aspectos científicos, aqueles que têm o dever de tomar decisões políticas e sociais nas suas nações, são chamados a basear a sua diligência essencialmente nos valores antropológicos e morais, e não sobre o progresso técnico que, em si mesmo, não é critério nem de moralidade nem de legalidade. No decurso deste século, pudemos constatar várias vezes na Europa que, quando os valores são negados, as decisões públicas não podem senão oprimir o homem e os povos.

2. Como se verificou na antiguidade com Sófocles e Cícero, o filósofo contemporâneo Jacques Maritain recorda que «o bem comum das pessoas humanas » consiste na «vida boa da multidão» (Les droits de l'homme e la loi naturelle, pág. 20). O ponto de partida desta filosofia é a pessoa humana, que «tem uma dignidade absoluta, pois ela está numa relação directa com o absoluto» (ibid, pág. 16). Sabe-se como alguns quereriam justificar, nos nossos dias, a obra do homem político que «devia separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o do comportamento público» (Evangelium vitae EV 69). Mas, na realidade, o valor deste último, de modo particular no quadro da vida democrática, «vive ou morre nos valores que ela encarna e promove: fundamentais e imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do "bem comum" como fim e critério regulador da vida política» (ibid., n. 70).

3. No âmbito da vida social, a Igreja dedica uma grande atenção às instituições primordiais como a da família, célula base da sociedade, que não pode existir senão no respeito dos princípios. A família representa para cada nação e para a humanidade inteira um bem da mais alta importância. Já na antiguidade, como o demonstrava Aristóteles, ela era reconhecida como a instituição social primeira e fundamental, anterior e superior ao Estado (cf. Ética a Nicómaco, VII, 12, 18), contribuindo de maneira eficaz para a bondade da própria sociedade.

É necessário, pois, que aqueles que foram chamados a conduzir o destino das nações reconheçam e fortaleçam a instituição matrimonial: com efeito, o matrimónio tem um estatuto jurídico específico, reconhecendo os direitos e deveres da parte dos cônjuges, de um para com o outro e em relação aos filhos, e o papel das famílias na sociedade, cuja perenidade é por elas assegurada, é primordial. A família favorece a socialização dos jovens e contribui para deter os fenómenos de violência, mediante a transmissão dos valores, assim como pela experiência da fraternidade e da solidariedade que ela permite realizar cada dia. Na busca de soluções legítimas para a sociedade moderna, ela não pode ser posta no mesmo plano de simples associações ou uniões, e estas não podem beneficiar de direitos particulares ligados exclusivamente à protecção do empenho conjugal e da família, fundada sobre o matrimónio, como comunidade de vida e de amor estável, fruto do Dom total e fiel dos cônjuges, aberta à vida. Do ponto de vista dos responsáveis da sociedade civil, é preciso que eles saibam criar as condições necessárias à natureza específica do matrimónio, à sua estabilidade e ao acolhimento do Dom da vida. Com efeito, mesmo respeitando a legítima liberdade das pessoas, tornar outras formas de relações entre as pessoas equivalentes ao matrimónio legalizando-as, é uma decisão grave que não pode deixar de prejudicar a instituição conjugal e familiar. A longo prazo, seria pernicioso que leis, já não fundadas sobre os princípios da lei natural mas sobre a vontade arbitrária das pessoas (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1904), dessem o mesmo estatuto jurídico a diferentes formas de vida comum, o que comportaria inúmeras confusões. As reformas concernentes à estrutura familiar consistem então, antes de tudo, num fortalecimento do vínculo conjugal e num apoio cada vez mais forte às estruturas familiares, recordando-se de que os filhos, que serão amanhã os protagonistas da vida social, são os herdeiros dos valores recebidos e da solicitude atribuída à sua formação espiritual, moral e humana.

Nunca se deve subordinar a dignidade da pessoa e da família unicamente aos elementos políticos ou económicos, ou ainda a simples opiniões de eventuais grupos de pressão, mesmo que sejam importantes. O exercício do poder baseia-se na busca da verdade objectiva e na dimensão de serviço do homem e da sociedade, reconhecendo a todo o sujeito humano, mesmo ao mais pobre e pequeno, a dignidade transcendente e imprescritível da pessoa. Tal é o fundamento sobre o qual devem ser elaboradas as decisões políticas e jurídicas indispensáveis para o futuro da civilização.


Discursos João Paulo II 1998 - 17 de Outubro de 1998