AUDIÊNCIAS 1999




                                                                           Janeiro de 1999

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 13 de Janeiro de 1999

O rosto de Deus Pai, ardente desejo do homem




1. «Fizestes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Vós» (Conf. 1, 1). Esta célebre afirmação, que abre as Confissões de Santo Agostinho, exprime de modo eficaz a necessidade irresistível que impele o homem a procurar o rosto de Deus. É uma experiência atestada pelas diversas tradições religiosas. «Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias — disse o Concílio — encontra-se nos diversos povos certa percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos; encontra-se por vezes até o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai» (Nostra aetate NAE 2).

Na realidade, muitas orações da literatura religiosa universal exprimem a convicção de que o Ser supremo pode ser percebido e invocado como um pai, ao qual se chega através da experiência das solicitudes afectuosas recebidas do pai terreno. Precisamente esta relação suscitou nalgumas correntes do ateísmo contemporâneo a suspeita de que a ideia mesma de Deus é a projecção da imagem paterna. A suspeita, na realidade, é infundada.

Contudo, é verdade que, partindo da sua experiência, o homem é às vezes tentado a imaginar a divindade com traços antropomórficos, que reflectem muito o mundo humano. A busca de Deus procede assim «às apalpadelas», como Paulo disse no discurso aos atenienses (cf. Act Ac 17,27). É preciso, pois, ter presente este claro-escuro da experiência religiosa, na consciência de que só a revelação plena, na qual o próprio Deus Se manifesta, pode dissipar as sombras e os equívocos e fazer resplandecer a luz.

2. A exemplo de Paulo, que precisamente no discurso aos atenienses cita um versículo do poeta Árato sobre a origem do homem (cf. Act Ac 17,28), a Igreja olha com respeito para as tentativas, que as várias religiões fazem para captar o rosto de Deus, distinguindo nas suas crenças aquilo que é aceitável de quanto é incompatível com a revelação cristã.

Nesta linha, a percepção de Deus como Pai universal do mundo e dos homens deve-se considerar uma intuição religiosa positiva. Ao contrário, não pode ser acolhida a ideia duma divindade dominada pelo arbítrio e o capricho. Entre os antigos gregos, por exemplo, o Bem, como ser supremo e divino, era chamado também pai, mas o deus Zeus manifestava a sua paternidade tanto na benevolência quanto na ira e na maldade. Na Odisseia lê-se: «Pai Zeus, ninguém é mais funesto do que tu entre os deuses: dos homens não tens piedade, depois de os teres gerado e confiado à desventura e a graves sofrimentos» (XX, 201-203).

Contudo, a exigência de um Deus superior ao arbítrio caprichoso está presente também entre os gregos antigos, como testemunha, por exemplo, o «Hino a Zeus» do poeta Cleantes. A ideia de um pai divino, pronto ao dom generoso da vida e próvido em fornecer os bens necessários à existência, mas também severo e punidor, e nem sempre por uma razão evidente, liga-se na sociedade à instituição do patriarcado e transfere a sua concepção mais habitual para o plano religioso.

3. Em Israel, o reconhecimento da paternidade de Deus é progressiva e continuamente insidiada pela tentação idolátrica, que os profetas denunciam com vigor: «Dizem a um pau: “Tu és meu pai” — e a uma pedra: “Tu me geraste”» (Jr 2,27). Na realidade, para a experiência religiosa bíblica a percepção de Deus como pai está ligada, mais do que à Sua acção criadora, à Sua intervenção histórico-salvífica, através da qual estabelece com Israel uma especial relação de aliança. Muitas vezes Deus Se lamenta que o Seu amor paterno não encontrou uma correspondência adequada: «O Senhor diz: “Criei filhos e fi-los crescer, mas eles revoltaram-se contra Mim”» (Is 1,2).

A paternidade de Deus mostra-se a Israel mais firme do que a humana: «Se meu pai e minha mãe me abandonarem, o Senhor me acolherá» (Ps 27,10). O salmista, que fez esta dolorosa experiência de abandono e encontrou em Deus um pai mais solícito do que o terreno, indica-nos a via por ele percorrida para chegar a esta meta: «O meu coração pressente os teus dizeres: “Procurai a minha face!”. É a vossa face, Senhor, que eu procuro» (ibid., 27, 8). Procurar o rosto de Deus é um caminho necessário, que se deve percorrer com sinceridade de coração e empenho constante. Só o coração do justo pode alegrar-se ao procurar o rosto do Senhor (cf. Sl Ps 105,3 ss.) e sobre ele pode, então, resplandecer o rosto paterno de Deus (cf. Sl Ps 119,135 cf. também Ps 31,17 Ps 67,2 Ps 80,4 Ps 80,8 Ps 80,20). Ao observar-se a lei divina, goza-se também plenamente da protecção do Deus da aliança. A bênção com a qual Deus gratifica o Seu povo, através da mediação sacerdotal de Aarão, insiste precisamente neste revelar-se luminoso do rosto de Deus: «Que o Senhor faça resplandecer a Sua face sobre ti e te seja benevolente. Que o Senhor dirija o Seu olhar para ti e te conceda a paz» (NM 6,25 s.).

4. Desde que Jesus veio ao mundo, a busca do rosto de Deus Pai assumiu uma dimensão ainda mais significativa. No seu ensinamento, Jesus, tendo como base a própria experiência de Filho, confirmou a concepção de Deus como pai, já delineada no Antigo Testamento; antes, evidenciou-a constantemente, tendo-a vivido de modo íntimo e inefável, e proposto como programa de vida para quem quer obter a salvação.

Sobretudo Jesus Se põe de modo absolutamente único em relação com a paternidade divina, manifestando-Se como «filho» e oferecendo-Se como o único caminho para chegar ao Pai. A Filipe, que Lhe pede: «mostra-nos o Pai e isso nos basta» (Jn 14,8), Ele responde que conhecê-l’O significa conhecer o Pai, porque o Pai age através d’Ele (cf. ibid., 14, 8-11). Portanto, para quem quiser encontrar o Pai, é necessário crer no Filho: mediante Ele, Deus não Se limita a assegurar-nos uma próvida assistência paterna, mas comunica a Sua própria vida tornando-nos «filhos no Filho». É quanto sublinha com comovida gratidão o apóstolo João: «Vede com que amor nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E, de facto, somo-lo» (1Jn 3,1).

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs:

Foi com fé e humildade que Santo Agostinho nos deixou estas palavras universalmente famosas: «Para Vós nos criastes, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto em Vós não descansar» (Conf. 1,1). É a linguagem do homem que busca sem cessar a face de Deus. A partir da vinda de Cristo ao mundo, o desejo de contemplar a Deus assume nova dimensão: Jesus põe-se como o único caminho para chegar ao Pai. Mais, Ele afirma, sem margem de dúvida: «Quem Me vê, vê ao Pai» (cf. Jo Jn 14,8). Por isso, pela graça que nos alcançou nosso Redentor, fomos constituídos filhos de Deus, para contemplá-Lo um dia face a face, se formos fiéis à sua mensagem de salvação.

Saúdo cordialmente aqueles que me escutam, desejando-lhes felicidades, com os favores de Deus, e que o ano que está a começar seja realmente, para todos, um Ano Bom! Com a minha Bênção.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 20 de Janeiro de 1999

A «paternidade» de Deus no Antigo Testamento




Queridos irmãos e irmãs,

1. O povo de Israel - como já acenámos na catequese passada - teve experiência de Deus como pai. De igual modo como todos os outros povos, ele intuiu n'Ele os sentimentos paternos hauridos da experiência habitual de um pai terreno. Sobretudo captou em Deus uma atitude particularmente paterna, partindo do conhecimento directo da Sua especial atenção salvífica (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 238).

Do primeiro ponto de vista, o da experiência humana universal, Israel reconheceu a paternidade divina a partir da admiração diante da criação e do renovar-se da vida. O milagre de uma criança que se forma no seio materno não é explicável sem a intervenção de Deus, como recorda o salmista: «Fostes Vós que plasmastes o meu interior, me tecestes no seio de minha mãe» (Ps 139 [138], 13). Israel pôde ver em Deus um pai também em analogia com alguns personagens que detinham uma função pública, especialmente religiosa, e eram considerados pais: assim os sacerdotes (cf. Jz Jg 17,10 Jg 18,19 Gn 45,8) ou os profetas (cf. 2R 2,12). Compreende-se bem, além disso, como o respeito que a sociedade israelita requeria dos pais e genitores, induzisse a ver em Deus um pai exigente. Com efeito, a legislação mosaica é muito severa em relação aos filhos que não respeitam os genitores, até prever a pena de morte para quem fere ou mesmo só amaldiçoa o pai ou a mãe (Ex 21,15 Ex 21,17).

2. Mas para além desta representação sugerida pela experiência humana, em Israel matura uma imagem mais específica da paternidade divina, a partir das intervenções salvíficas de Deus. Salvando-o da escravidão egípcia, Deus chama Israel a entrar numa relação de aliança com Ele e até a considerar-se o Seu primogénito. Deus demonstra assim que lhes é pai de maneira singular, como emerge das palavras que dirige a Moisés: «Dir-lhe-ás (ao Faraó): «Assim fala o Senhor: Israel é o Meu filho primogénito» (Ex 4,22). Na hora do desespero, este povo-filho poderá permitir-se invocar com o mesmo título de privilégio o Pai celeste, para que renove mais uma vez o prodígio do êxodo: «Tende piedade do Vosso povo, que foi chamado pelo Vosso nome, e de Israel que tratastes como filho primogénito» (Si 36,11). Em virtude desta situação, Israel teve de observar uma lei que o diferencia dos outros povos, aos quais deve testemunhar a paternidade divina de que goza de modo especial. Sublinha-o o Deuteronómio no contexto dos empenhos que derivam da aliança: «Vós sois os olhos do Senhor, vosso Deus... Porque és um povo consagrado ao Senhor, teu Deus, que te escolheu para Ele como um povo especial entre todos os povos da terra» (14, ).

Não observando a lei de Deus, Israel age em contraste com a sua condição filial, provocando para si as repreensões do Pai celeste: «Desprezas o Rochedo que te gerou, e esqueces o Deus que te deu o ser» (Dt 32,18). Esta condição filial envolve todos os membros do povo de Israel, mas é aplicada de modo singular ao descendente e sucessor de David, segundo o célebre oráculo de Natan no qual Deus diz: «Eu serei para ele um pai e ele será para Mim um filho» (2S 7,14 1Ch 17,13). Apoiada neste oráculo, a tradição messiânica afirma uma filiação divina do Messias. Ao rei messiânico, Deus declara: «Tu és Meu filho, hoje mesmo te gerei» (Ps 2,7 cf. Ps 110 [109], Ps 3).

3. A paternidade divina em relação a Israel é caracterizada por um amor intenso, constante e compassivo. Não obstante as infidelidades do povo, e as consequentes ameaças de castigo, Deus revela-Se incapaz de renunciar ao Seu amor. E exprime-o em termos de profunda ternura, mesmo quando é constrangido a lamentar a falta de correspondência dos Seus filhos: «Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos Meus braços, mas não reconheceram que era Eu Quem cuidava deles. Segurava-os com os laços humanos, com laços de amor, fui para eles como a espuma que acaricia as suas faces, e dei-lhes alimento... Como te abandonarei, Efraim? Entregar-te-ei, ó Israel?... O Meu coração dá voltas dentro de Mim, comove-se a Minha compaixão» (Os 11,3 s. 8; cf. Jr Jr 31,20).

Até mesmo a repreensão se tornou expressão de um amor de predilecção, como explica o livro dos Provérbios: «Meu filho, não rejeites a correcção do Senhor, nem te irrites quando Ele te repreende. Porque o Senhor castiga aquele a quem ama, como um pai a um filho querido» (3, 11-12).

4. Uma paternidade tão divina e, ao mesmo tempo, tão «humana» nos modos como se exprime, resume em si também as características que habitualmente se atribuem ao amor materno. Ainda que raras, as imagens do Antigo Testamento nas quais Deus se compara a uma mãe, são extremamente significativas. Lê-se, por exemplo, no livro de Isaías: «Sião dizia: O Senhor abandonou-me, o meu Senhor esqueceu-Se de mim. Acaso pode uma mulher esquecer- se do menino que amamenta, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria» (49, 14-15). E ainda: «Como uma mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei» (ibid., 66, 13).

A atitude divina para com Israel manifesta-se assim também com traços maternos, que exprimem a sua ternura e condescendência (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 239). Este amor, que Deus efunde com tanta riqueza no Seu povo, faz exultar o velho Tobias e faz- lhe proclamar: «Louvai-O, filhos de Israel, diante dos gentios; porque Ele dispersou-vos no meio deles. Proclamai a Sua magnificência, e exaltai-O diante de todos os viventes, porque Ele é o nosso Senhor e o nosso Deus, é o nosso Pai por todos os séculos dos séculos» (13, 3-4).

Apelo do Santo Padre



O destino da paz ainda é ameaçado em tantas partes do mundo. Nestes dias sucedem-se manifestações de ferocidade e crueldade, em particular no Kossovo e na Serra Leoa.

Com renovada confiança peçamos a Deus que, lá onde abunda o ódio, faça superabundar a Sua misericórdia de Pai, despertando as consciências daqueles que guiam o destino dos povos e movendo os ânimos de todos a propósitos de paz.

Um pensamento de particular aproximação e solidariedade dirige-se ao Arcebispo de Freetown, às missionárias e missionários, que estão presos como reféns dos combatentes na Serra Leoa, apesar da sua incansável dedicação ao serviço das populações naquele País africano. Faço apelo aos responsáveis, para que sejam quanto antes restituídos à liberdade e ao seu ministério de evangelização e de caridade.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, a vossa visita alegra-me e isto vos agradeço; mas recorda-me também que muitos outros me esperam. Depois de amanhã, confiando na vossa retaguarda espiritual, espero partir para o Continente Americano, a fim de entregar às suas comunidades cristãs o fruto do caminho e da assembleia sinodal já realizados e que há-de servir de guia e inspiração no próximo futuro a construir. Aos presentes e a quantos me esperam, a minha cordial saudação e bênção no Senhor!

Saúdo os peregrinos francófonos presentes nesta audiência. Do íntimo do coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.

Dou as boas-vindas ao Coro «Viva Vox» da Catedral de Helsínquia e encorajo-vos a continuar a dedicar o vosso talento ao louvor cantado a Deus. Saú- do os muitos peregrinos e visitantes de língua inglesa, de modo especial aos da Dinamarca, Finlândia, Austrália, Japão e Estados Unidos da América. Sobre vós e as vossas famílias, invoco as abundantes bênçãos do Deus Omnipotente

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua espanhola, vindos da Espanha, Chile, Argentina e de outros países da América Latina. Saúdo também o Senhor D. Elías Yanes, Presidente da Conferência Episcopal Espanhola e Arcebispo de Saragoça, e o Senhor D. Estepa, Arcebispo Castrense da Espanha. Na véspera da minha Visita ao México, convido-os a elevar as vossas orações a Nossa Senhora de Guadalupe, para que guie os passos da Nova Evangelização nos queridos povos de língua e cultura hispânicas. Ela vos acompanhe e proteja sempre.

Dirijo cordiais boas-vindas aos peregrinos de língua italiana, em particular às Servas do Coração Imaculado de Ma- ria e às Missionárias do Sagrado Coração de Jesus. Saúdo os fiéis do Movimento «Nossa Senhora dos pobres» da homónima Paróquia de Milão, que vieram aqui para benzer a estátua da Virgem de Banneux, que «visitará» as comunidades da província religiosa dos Oblatos de São José. Caríssimos, exprimo-vos a minha satisfação por esta «peregrinatio» mariana, em preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000, e faço votos por que ela constitua para todos uma ocasião de renovado anúncio do Evangelho e de jubiloso testemunho cristão. Uma saudação especial aos peregrinos de Caserta e Salerno.

O meu pensamento dirige-se, por fim, aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais.

Encontramo-nos na Semana de Oração pela unidade dos cristãos, todos somos convidados a contribuir, com a oração e o empenho concreto, na causa da plena comunhão entre os crentes em Cristo.

Vós, caros jovens, dedicai a esta finalidade o vosso entusiasmo e as vossas vigorosas energias; vós, queridos doentes, oferecei por essa intenção dificuldades e sofrimentos, em união com o Sacrifício eucarístico; e vós, prezados jovens esposos, sede testemunhas da unidade querida pelo Senhor a partir das vossas famílias, pequenas igrejas domésticas.



                                                                             Fevereiro de 1999

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Praça S. Pedro, 3 de Fevereiro de 1999




Um mal desta época obrigou-me a suspender as actividades destes dias. Contudo, hoje, não posso deixar de vos dirigir a minha palavra, a vós que viestes para o habitual encontro da quarta-feira.

Caríssimos Irmãos e Irmãs, saúdo-vos a todos com afecto. O Senhor, que contemplámos na festa de ontem como Luz que ilumina o caminho de salvação de cada homem, resplandeça na vida de cada um e a encha da sua ale- gria e paz. Dirijo uma saudação especial aos Diáconos da Arquidiocese de Milão e a todos os Sacerdotes, Religiosos e Religiosas aqui presentes.

Quereria depois enviar um cordial pensamento a todos os que mais sofrem devido ao frio, sobretudo os desabrigados, as vítimas do terramoto, os doentes, os idosos e as crianças. Espero que chegue a cada um o auxílio necessário.

Desejo que, como diz um famoso provérbio, «Quando vien la Candelora, de l'inverno semo fora» - Quando chega a Candelária, acaba o Inverno - , e voltem depressa dias de sol bonitos e quentes. A todos uma especial Bênção.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 10 de Fevereiro de 1999

Um grande apelo à América: acolhe o Evangelho da vida e da família




1. Ainda estão vivas em mim as impressões suscitadas pela recente peregrinação ao México e aos Estados Unidos, sobre a qual desejo hoje deter-me.

Da minha alma surge espontânea a acção de graças ao Senhor: na Sua providência, Ele quis que eu retornasse à América, a vinte anos exactos desde a minha primeira viagem internacional, para concluir aos pés da Virgem de Guadalupe a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a América, que se realizou no Vaticano no final de 1997. Desta Assembleia — como foi para a África e será depois também para a Ásia, a Oceânia e a Europa — recolhi análises e propostas numa Exortação Apostólica sob o título Ecclesia in America, que na Cidade do México entreguei oficialmente aos destinatários.

Desejo hoje repetir o meu intenso agradecimento àqueles que contribuíram para a realização desta peregrinação. Antes de mais, estou grato aos Senhores Presidentes do México e dos Estados Unidos da América, que com grande cortesia me apresentaram as boas-vindas; aos Arcebispos da Cidade do México e de São Luís e aos outros venerados Irmãos no episcopado, que me acolheram com afecto. Agradeço, além disso, aos sacerdotes, aos religiosos, às religiosas e aos inúmeros irmãos e irmãs que, com tanta fé e cordialidade, me acompanharam durante aqueles dias de graça. Juntos vivemos a experiência comovente de um «encontro com Jesus Cristo vivo, caminho para a conversão, a comunhão e a solidariedade».

2. Depositei os frutos do primeiro Sínodo pan-americano da história aos pés de Santa Maria de Guadalupe, sob cuja protecção maternal se desenvolveu a evangelização do Novo Mundo. Ela é hoje justamente invocada como a estrela da sua nova evangelização. Por este motivo estabeleci que a memória litúrgica a Ela dedicada, 12 de Dezembro, seja estendida como festa ao inteiro Continente americano.

Seguindo o modelo da Virgem Maria, a Igreja na América acolheu a Boa Nova do Evangelho e, no arco de quase cinco séculos, gerou muitos povos para a fé. Agora — como dizia o lema da visita ao México: «Nasce um Milénio. Reafirmemos a Fé» — as comunidades cristãs do Norte, do Centro, do Sul e do Caribe são chamadas a renovar-se na fé, para desenvolverem uma solidariedade sempre mais forte. Elas são convidadas a colaborar em projectos pastorais coordenados, cada uma oferecendo ao empenho comum as próprias riquezas espirituais e materiais.

Este espírito de cooperação é indispensável, naturalmente, também no plano civil e, por isso, necessita de bases éticas compartilhadas, como tive ocasião de ressaltar no encontro com o Corpo Diplomático no México.

3. Os cristãos são «alma» e luz» do mundo: recordei esta verdade à imensa multidão reunida para a celebração eucarística dominical no Autódromo da Capital mexicana. A todos, especialmente aos jovens, dirigi o apelo contido no Grande Jubileu: converter-se e seguir Cristo. Os mexicanos, com o seu inconfundível entusiasmo, responderam ao convite do Papa, e nos seus rostos, na sua fé ardente, na sua adesão convicta ao Evangelho da vida reconheci, mais uma vez, consoladores sinais de esperança para o grande Continente americano.

Tive provas concretas destes sinais também no encontro com o mundo do sofrimento, onde o amor e a solidariedade humana sabem tornar presentes, na debilidade, a força e a solicitude de Cristo ressuscitado.

Na Cidade do México, o Estado «Azteca», famoso por memoráveis competições desportivas, foi sede de um extraordinário momento de oração e de festa com os representantes de todas as gerações do século XX, dos mais anciãos aos mais jovens: um maravilhoso testemunho do modo como a fé consegue unir as gerações e sabe responder aos desafios de cada época da vida.

Nesta passagem de século e de milénio a Igreja, na América e no mundo inteiro, vê nos jovens cristãos o fruto mais belo e promissor do seu trabalho e dos seus sofrimentos. Grande é a minha alegria por ter encontrado, tanto no México como nos Estados Unidos, um tão elevado número de jovens. Com a sua participação rica de entusiasmo e também atenta e trépida, com os seus aplausos nas passagens do discurso em que eu apresentava os aspectos mais exigentes da proposta cristã, eles demonstraram que querem ser os protagonistas de um novo período de testemunho corajoso, de solidariedade efectiva, de generoso empenho ao serviço do Evangelho.

4. É-me grato acrescentar que encontrei os católicos americanos muito atentos e empenhados na defesa da vida e da família, valores inseparáveis que constituem um grande desafio para o presente e o futuro da humanidade. Esta minha viagem constituiu, num certo sentido, um grande apelo à América, para que acolha o Evangelho da vida e da família; repudie e combata qualquer forma de violência contra a pessoa humana, desde a sua concepção até à morte natural, com coerência intelectual e moral. Não ao aborto e à eutanásia; basta com o desnecessário recurso à pena de morte; não ao racismo e também às injustiças contra as crianças, as mulheres e os indígenas; ponha-se fim às especulações sobre as armas e sobre a droga e à destruição do património ambiental!

Para vencer estas batalhas é preciso difundir a cultura da vida, que une a liberdade à verdade. A Igreja trabalha quotidianamente em vista disto anunciando Cristo, verdade sobre Deus e verdade sobre o homem. Trabalha antes de tudo nas famílias, que constituem os santuários da vida e as fundamentais escolas da cultura da vida: com efeito, na família a liberdade aprende a crescer sobre sólidas bases morais e, no fundo, sobre a lei de Deus. A América só poderá desempenhar o seu importante papel na Igreja e no mundo, se defender e promover o imenso património espiritual e social das suas famílias.

5. México e Estados Unidos, dois grandes Países que bem representam a multiforme riqueza do Continente americano, assim como as suas contradições. Profundamente inserida no tecido cultural e social, a Igreja convida todos a encontrar Jesus Cristo, que continua a ser também hoje «caminho para a conversão, a comunhão e a solidariedade».

Esse encontro, com a materna intervenção de Santa Maria de Guadalupe, marcou de maneira indelével a história da América. Confio à intercessão da Padroeira daquele amado Continente os votos por que o encontro com Cristo continue a iluminar os povos do Novo Mundo, no milénio que está para iniciar.

Caríssimos Irmãos e Irmãs:

Após a recente Viagem Pastoral à Cidade do México e S. Louis, nos Estados Unidos, meu coração enche-se, desde já, de gratidão à Virgem guadalupana pelos frutos que, pela bondade de Deus, todos esperamos alcançar. Como já o disse, espero que esta visita sirva de encorajamento no generoso esforço de anunciar Jesus Cristo com renovado ardor, em vista do novo Milénio.

Saúdo com particular afecto todos os peregrinos de língua portuguesa que porventura aqui se encontrem, de modo especial os portugueses da Escola Secundária Ferreira Dias de Cacém, com votos de paz e amor em Cristo, que estendo igualmente aos seus dirigentes, alunos e familiares, ao dar-lhes a minha Bênção.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 17 de Fevereiro de 1999


A Quaresma é o tempo de uma particular solicitude de Deus




1. Tem início hoje, com a austera cerimónia da imposição das cinzas, o itinerário penitencial da Quaresma. Este ano ele é marcado de modo particular pelo apelo à misericórdia divina: com efeito, estamos no Ano do Pai, que imediatamente nos prepara para o Grande Jubileu do Ano 2000.

«Pai, pequei contra ti...» (Lc 15,18). Estas palavras, no período da Quaresma, suscitam singular emoção, sendo este um tempo em que a Comunidade eclesial é convidada à profunda conversão. Se é verdade que o pecado fecha o homem a Deus, ao contrário, a sincera confissão dos pecados abre-lhe a consciência à acção regeneradora da Sua graça. Com efeito, o homem não encontrará de novo a amizade com Deus enquanto não brotarem dos seus lábios e do seu coração as palavras: «Pai, pequei». O seu esforço, então, torna-se eficaz pelo encontro de salvação que se verifica graças à morte e ressurreição de Cristo. É no mistério pascal, coração da Igreja, que o penitente recebe como dom o perdão das culpas e a alegria do renascimento para a vida imortal.

2. À luz desta extraordinária realidade espiritual, adquire uma imediata eloquência a parábola do filho pródigo, com a qual Jesus quis falar-nos da terna misericórdia do Pai celeste. Três são os momentos-chave na história deste jovem, com o qual cada um de nós, num certo sentido, se identifica quando cede à tentação e cai no pecado.

O primeiro momento: o afastamento. Afastamo-nos de Deus, como aquele filho do seu pai, quando, esquecendo que os bens e os talentos que possuímos foram dados por Deus como uma tarefa, os desperdiçamos com grande leviandade. O pecado é sempre um desperdício da nossa humanidade, esbanjamento de valores mais do que nunca preciosos, tais como a dignidade da pessoa e a herança da graça divina.

O segundo momento é o processo de conversão. O homem, que com o pecado se afastou voluntariamente da casa paterna, ao verificar quanto perdeu, amadurece em si mesmo o passo decisivo do retorno: «Levantar-me-ei e irei ter com meu pai» (Lc 15,18). A certeza de que Deus «é bom e me ama» é mais forte do que a vergonha e o desânimo: com uma luz nova ilumina o sentido da culpa e da própria indignidade.

Enfim, o terceiro momento: o retorno. Uma coisa é importante para o pai: o filho foi reencontrado. O abraço entre ele e o filho pródigo torna-se a festa do perdão e da alegria. Comovedora é esta cena evangélica, que manifesta em cada pormenor a atitude do Pai do Céu, «rico em misericórdia» (cf. Ef Ep 2,4).

3. Quantos homens de todos os tempos reconheceram nesta parábola os traços fundamentais da sua história pessoal! O caminho que, depois da triste experiência do pecado, reconduz à casa do Pai passa através do exame de consciência, do arrependimento e do firme propósito de conversão. É um processo interior que muda o modo de avaliar a realidade, faz tocar com a mão a própria fragilidade e impele o crente a abandonar-se entre os braços de Deus. Quando o homem, sustentado pela graça, percorre no íntimo do seu espírito estas etapas, nasce nele a necessidade viva de se encontrar consigo mesmo e com a dignidade de filho, no abraço do Pai.

Esta parábola, tão querida à tradição da Igreja, descreve assim, de modo simples e profundo, a realidade da conversão, oferecendo a expressão mais concreta da obra da misericórdia divina no mundo humano. O amor misericordioso de Deus «reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem... constitui o conteúdo fundamental da mensagem messiânica de Cristo e a força constitutiva da sua missão» (cf. Dives in misericordia, DM 6).

4. No início da Quaresma é importante preparar o nosso espírito para receber em abundância o dom da misericórdia divina. A palavra de Deus exorta-nos a converter-nos e a crer no Evangelho, e a Igreja indica-nos na oração, na penitência e no jejum, assim como na generosa ajuda aos irmãos os meios, através dos quais podemos entrar no clima da autêntica renovação interior e comunitária. É-nos concedido, desse modo, experimentar a superabundância do amor do Pai celeste, que em plenitude foi dado à humanidade inteira no mistério pascal. Poderíamos dizer que a Quaresma é o tempo duma particular solicitude de Deus ao perdoar e remir os nossos pecados: é o tempo da reconciliação. Por este motivo, ela é mais do que nunca período propício para que nos aproximemos, de maneira frutuosa, do sacramento da Penitência.

Caríssimos Irmãos e Irmãs, conscientes de que a nossa reconciliação com Deus se efectua graças a uma autêntica conversão, percorramos a peregrinação quaresmal com o olhar fixo em Cristo, nosso único Redentor.

A Quaresma ajudar-nos-á a cair em nós mesmos, a abandonar com coragem tudo o que nos impede de seguir o Evangelho com fidelidade. Contemplemos, de maneira especial nestes dias, o ícone do abraço entre o Pai e o filho que retornou à casa paterna, que bem simboliza o tema deste ano que nos introduz no Grande Jubileu do Ano 2000. O abraço da reconciliação entre o Pai e a inteira humanidade pecadora aconteceu no Calvário. O Crucificado, sinal do amor de Cristo que Se imolou pela nossa salvação, suscite, no coração de cada homem e de cada mulher do nosso tempo, aquela mesma confiança que animou o filho pródigo a dizer: «Levantar-me-ei e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei!». Ele recebeu como dom o perdão e a alegria.

Saudações

Queridos Irmãos e Irmãs! A minha saudação cordial a todos os peregrinos de língua portuguesa, com a certeza de que Deus é bom e vos ama; nesta certeza está a chave para superar hesitações, desânimos ou adiamentos no abraço reconciliador com o Pai do Céu. Sobre vós e os vossos entes queridos, desça a minha Bênção.

Saúdo os peregrinos francófonos presentes nesta audiência, em particular os membros da Escola da Fé de Friburgo, um grupo do Seminário diocesano de Villars-sur-Glâne, os jovens de Lião, Montbrison, Arbois e Reims. Do íntimo do coração concedo a todos a Bênção Apostólica.

É-me grato dar as boas-vindas aos visitantes e peregrinos de língua inglesa, de modo especial aos da Inglaterra, Irlanda, Japão e Estados Unidos da América. Sobre vós e as vossas famílias, invoco a força e a alegria de nosso Senhor Jesus Cristo.

Saúdo com afecto os peregrinos da Espanha, México, Chile e demais Países da América Latina. Saúdo também o numeroso grupo de jovens desportistas argentinos aqui presentes. Ao exortar todos vós a percorrer o caminho quares- mal com o olhar fixo em Cristo, vencedor do pecado e da morte, invoco sobre vós e as vossas famílias a infinita misericórdia do Pai celestial e abençoo-vos de coração.

Uma cordial saudação a todos os pe- regrinos belgas e holandeses! Faço votos por que a vossa peregrinação aos túmulos dos Apóstolos vos renove interiormente, em particular durante o período da Quaresma, que inicia hoje, Quarta- Feira de Cinzas. De coração concedo a Bênção Apostólica. Louvado seja Jesus Cristo!

Dirijo cordiais boas-vindas aos peregrinos provenientes de Fagaras si Brasov, na Roménia. Caríssimos, agradeço-vos de coração a grata visita, e ao desejar que o tempo quaresmal, que estamos para iniciar, sirva para confirmar a vossa fé e o vosso generoso empenho de testemunho evangélico, abençoo-vos, a vós e às vossas famílias.

Saúdo cordialmente os peregrinos eslovacos de Banovce nad Bebravou e dos arredores. Com a Quarta-Feira de Cinzas inicia o tempo da Quaresma. Faço votos por que estes dias de preparação para a Páscoa, aumentem o fervor espiritual e o generoso empenho de testemunho cristão na vossa Pátria. De coração vos abençoo, a vós, aos vossos entes queri- dos e à inteira Eslováquia. Louvado seja Jesus Cristo!

Dirijo uma saudação cordial a todos os peregrinos italianos presentes, e a cada um asseguro a minha lembrança na oração, no início deste tempo qua- resmal.

Abraço com afecto, de modo especial, os Jovens, os Doentes e os jovens Casais.Caros jovens, exorto-vos a viver a Quaresma com um autêntico espírito penitencial, como um retorno à casa do Pai, que a todos espera com braços abertos. Queridos doentes, encorajo-vos a oferecer os vossos sofrimentos juntamente com Cristo pela conversão de quantos ainda se encontram longe de Deus; e a vós, prezados jovens esposos, faço votos por que construais com coragem e generosidade a vossa família sobre a sólida rocha do amor divino.



                                                                          Março de 1999

AUDIÊNCIAS 1999