AUDIÊNCIAS 1999 - AUDIÊNCIA


JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 26 de Maio de 1999


Escatologia universal: a humanidade a caminho do Pai




1. O tema acerca do qual estamos a reflectir neste último ano de preparação para o Jubileu, isto é, o caminho da humanidade rumo ao Pai, sugere-nos a meditação sobre a perspectiva escatológica, ou seja, a meta final da história humana. Especialmente no nosso tempo tudo acontece com incrível rapidez, tanto no que concerne às descobertas da ciência e da técnica, como no que diz respeito aos meios de comunicação social. Então, é espontâneo perguntar-nos qual é o destino e a meta derradeira da humanidade. A este interrogativo oferece uma resposta específica a Palavra de Deus, que nos apresenta o desígnio de salvação realizado pelo Pai na história, por meio de Cristo e mediante a obra do Espírito.

No Antigo Testamento é fundamental a referência ao Êxodo, com a sua orientação rumo ao ingresso na Terra Prometida. O Êxodo não é apenas um acontecimento histórico, mas a revelação de uma actividade salvífica de Deus, que se realizará progressivamente como os profetas foram encarregados de mostrar, iluminando o presente e o futuro de Israel.

2. No tempo do Exílio, os profetas anunciam um novo Êxodo, um retorno à Terra Prometida. Com este renovado dom da terra, Deus não só reunirá o seu povo disperso entre as gentes, mas transformará cada um no coração, ou seja, nas suas capacidades de conhecer, de amar e de agir: «Dar-lhes-ei um coração novo e infundirei no seu íntimo um espírito novo. Arrancarei da sua carne o coração de pedra e dar-lhes-ei um coração de carne, para que caminhem segundo os meus preceitos e observem as minhas leis e as cumpram. Eles serão o meu povo e Eu serei o seu Deus» (Ez 11,19-20 cf. Ez 36,26-28).

Empenhando-se em observar as normas estabelecidas na aliança, o povo poderá habitar num ambiente semelhante àquele que saiu das mãos de Deus no momento da criação: «Esta terra, que se encontrava devastada, tornou-se um jardim do Éden; e estas cidades em ruínas, desertas e assoladas, estão agora restauraas e repovoadas» (Ibid., 36, 35). Tratar-se-á de uma nova aliança, concretizada na observância de uma lei inscrita no coração (cf. Jr Jr 31,31-34).

Depois, a perspectiva alarga-se e é prometida uma nova terra. A meta final é uma nova Jerusalém, na qual cessarão todas as aflições, como lemos no livro de Isaías: «Olhai, Eu vou criar novos céus e uma nova terra... vou criar uma Jerusalém destinada à alegria, e o seu povo ao júbilo. Jerusalém será a minha alegria, e o meu povo o meu júbilo; e doravante não mais se ouvirão aí choros nem lamentos» (65, 17-19).

3. O Apocalipse retoma esta visão. João escreve: «Vi, depois, um novo Céu e uma nova Terra, porque o primeiro Céu e a primeira Terra haviam desaparecido, e o mar já não existia. E vi a cidade santa, a nova Jerusalém que descia do Céu, de junto de Deus, bela como uma esposa que se ataviou para o seu esposo» (21, 1-2).

A passagem para este estado de nova criação exige um compromisso de santidade, que o Novo Testamento revestirá de uma radicalidade absoluta, como se lê na segunda Carta de Pedro: «Uma vez que todas as coisas serão assim dissolvidas, como deve ser santa a vossa vida e grande a vossa piedade! Como deveis esperar e apressar a chegada do dia do Senhor, em que os céus inflamados se dissolverão e os elementos com o ardor do fogo se fundirão! Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos céus novos e uma nova terra, onde habita a justiça» (3, 11-13).

4. A ressurreição de Cristo, a sua ascensão e o anúncio do seu retorno abriram novas perspectivas escatológicas. Efectivamente, no sermão após a Ceia Jesus disse: «Vou preparar-vos um lugar. E quando tiver ido e vos tiver preparado um lugar, virei outra vez e levar-vos-ei comigo para que, onde Eu estiver, estejais vós também» (Jn 14,2-3). Depois, São Paulo escrevia aos Tessalonicenses: «Quando for dado o sinal, à voz do Arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá do Céu e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós, os vivos, os sobreviventes, seremos arrebatados juntamente com eles sobre as nuvens; iremos ao encontro do Senhor nos ares e assim estaremos para sempre com o Senhor» (1Th 4,16-17).

Não nos é dado saber a data deste evento final. É necessário ter paciência enquanto se espera Jesus ressuscitado que, quando os apóstolos lhe perguntaram se devia reconstituir o reino de Israel, respondeu convidando-os à pregação e ao testemunho: «Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria, até aos confins do mundo» (Ac 12,7-8).

5. A tensão para o evento final deve ser vivida com esperança serena, empenhando-se no tempo presente na construção daquele Reino que no fim será entregue por Cristo nas mãos do Pai: «Depois virá o fim, quando entregar o Reino a Deus Pai, após ter destruído todo o Principado, toda a Dominação e Potestade» (1Co 15,24). Juntamente com Cristo, vencedor sobre os poderes adversários, também nós participaremos na nova criação, que consistirá num retorno definitivo de todas as coisas Àquele de Quem tudo proveio: «E quando tudo lhe estiver sujeito, então também o próprio Filho se submeterá Àquele que tudo lhe submeteu, a fim de que Deus seja tudo em todos» (Ibid., 15, 28).

Portanto, devemos estar convencidos de que «nós... somos cidadãos do Céu e de lá esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo» (Ph 3,20). Aqui não temos uma cidade permanente (cf. Hb He 13,14). Peregrinos em busca de uma morada definitiva, devemos aspirar como os Padres na fé a uma pátria melhor, «isto é, a celestial» (Ibid., 11, 16).

                                                                             Junho de 1999

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 2 de Junho de 1999


A morte como encontro com o Pai




1. Depois de ter reflectido sobre o destino comum da humanidade, o qual se realizará no fim dos tempos, agora queremos chamar a atenção para outro tema que nos concerne directamente: o significado da morte. Hoje é difícil falar da morte, porque a sociedade do bem-estar está propensa a remover esta realidade, cujo pensamento causa angústia. Com efeito, como observou o Concílio, «é em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa» (Gaudium et spes GS 18). Todavia, sobre esta realidade a Palavra de Deus oferece-nos uma luz que ilumina e consola, embora de maneira progressiva.

No Antigo Testamento, as primeiras indicações são dadas pela comum experiência dos mortais, ainda não iluminada pela esperança de uma vida bem-aventurada além-morte. Pensava-se sobretudo que a existência humana se concluísse no «sheol», lugar de sombras, incompatível com a vida em plenitude. Muito significativas a este propósito são as palavras do Livro de Job: «Não são breves os dias da minha vida? Deixa-me só para que possa ter um pouco de conforto antes que parta, a fim de não mais voltar para a região das trevas e das sombras da morte, terra de espantosa confusão e desordem, onde a mesma luz é como a obscuridade» (10, 20-22).

2. Nesta dramática visão da morte, a revelação de Deus progride lentamente, e a reflexão humana abre-se para um novo horizonte que receberá luz plena no Novo Testamento.

Compreende-se antes de mais que, se a morte é aquele inexorável inimigo do homem, que procura derrotá-lo e reconduzi-lo sob o seu poder, Deus não a poderia ter criado, porque não pode alegrar-se com a perdição dos vivos (cf. Sb Sg 1,13). O projecto originário de Deus era diferente, mas foi contrastado pelo pecado cometido pelo homem por influxo demoníaco, como explica o Livro da Sabedoria: «Com efeito, Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria natureza. Por inveja do demónio é que a morte entrou no mundo, e prová-la-ão os que pertencem ao demónio» (2, 23-24). Também Jesus evoca esta concepção (cf. Jo Jn 8,44) e nela está assente o ensinamento de São Paulo sobre a redenção de Cristo, novo Adão (cf. Rm Rm 5,12 Rm Rm 5,17 cf. 1Co 15,21). Com a sua morte e ressurreição, Jesus derrotou o pecado e a morte, que é a sua consequência.

3. À luz de quanto Jesus realizou, compreende-se a atitude de Deus Pai diante da vida e da morte das suas criaturas. Já o Salmista intuíra que Deus não pode abandonar os seus fiéis no túmulo, nem permitir que o seu Santo veja o sepulcro (cf. Sl Ps 16,10). Isaías indica um futuro em que Deus eliminará a morte para sempre, enxugando «as lágrimas de todas as faces» (25, 8) e ressuscitando os mortos para uma nova vida: «Os vossos mortos reviverão, os seus cadáveres ressuscitarão, despertarão jubilosos os que jazem no sepulcro! Porque o vosso orvalho é um orvalho de luz, e a terra das sombras dará à luz» (26, 19). Assim, à morte como realidade niveladora de todos os vivos sobrepõe-se a imagem da terra que, como mãe, se prepara para o parto de um novo ser vivo e dá à luz o justo, destinado a viver em Deus. Por isso, embora os justos «aos olhos dos homens sejam atormentados, a sua esperança está cheia de imortalidade» (Sg 3,4).

No segundo Livro dos Macabeus, a esperança da ressurreição é confirmada magnificamente por sete irmãos e pela sua mãe, no momento de padecerem o martírio. Um deles declara: «Do céu recebi estes membros do corpo, mas agora desprezo-os por amor das leis de Deus, e d'Ele espero recebê-los de novo» (7, 11); outro, «prestes a expirar, disse: "É uma felicidade perecer pela mão dos homens, com a esperança de que Deus nos ressuscite"» (7, 14). Heroicamente, a sua mãe encorajava-os a enfrentar a morte com esta esperança (cf. 7, 29).

4. Já na perspectiva do Antigo Testamento, os profetas admoestavam a esperar «o dia do Senhor» com o espírito recto, pois de outra forma este seria «de trevas e não de luz» (cf. Am Am 5,18 Am Am 5,20). Na plena revelação do Novo Testamento salienta-se o facto de que todos serão julgados (cf. 1P 4,5 Rm 14,10). Mas diante disto, os justos não deverão temer, enquanto eleitos destinados a receber a herança prometida; eles colocar-se-ão à direita de Cristo, que os chamará «benditos de meu Pai» (Mt 25,34 cf. Mt 22,14 Mt 24,22 Mt 24,24).

A morte que o fiel experimenta como membro do Corpo místico abre o caminho rumo ao Pai, que de facto nos demonstrou o seu amor na morte de Cristo, «propiciação pelos nossos pecados» (1Jn 4,10 cf. Rm Rm 5,7). Como afirma o Catecismo da Igreja Católica, a morte «para aqueles que morrerem na graça de Cristo é uma participação na morte do Senhor, a fim de poderem participar na sua Ressurreição» (n. 1006).

Jesus «ama-nos e com o seu sangue nos lavou dos nossos pecados... e fez- nos reis e sacerdotes para Deus, seu Pai» (Ap 1,5-6). Sem dúvida, é necessário passar através da morte, mas já com a certeza de que encontraremos o Pai, quando «este corpo mortal se revestir de imortalidade e quando este corpo corruptível se revestir de imortalidade» (1Co 15,53-54). Então, ver-se-á claramente que «a morte foi tragada pela vitória» (Ibid., 54) e poderá ser interpelada com atitude de desafio, sem temor: «Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?» (Ibid., 55).

É precisamente em virtude desta visão da morte que, no Cântico das Criaturas, São Francisco de Assis podia exclamar: «Louvado seja, ó meu Senhor, pela nossa irmã morte corporal» (Fontes Franciscanas, 263). Diante desta consoladora perspectiva, compreende-se a felicidade anunciada pelo Livro do Apocalipse, como que coroação das bem-aventuranças evangélicas: «Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, que repousem dos seus trabalhos, pois as suas obras os acompanham» (14, 13).

Apelo

Continuam a chegar tristes notícias da Colômbia, onde no domingo passado, na igreja da Transfiguração na Cidade de Calí, um grupo armado interrompeu de forma sacrílega a celebração da Santa Missa e raptou numerosas pessoas, entre as quais o sacerdote. Já no passado se verificaram actos análogos em regiões do interior desse País, como em El Piñon (Madalena), e homicídios de pessoas religiosas.

Diante de episódios deste género, renovo o meu urgente apelo à paz, no respeito dos direitos das pessoas e no compromisso em benefício de um diálogo que leve à almejada solução da grave crise. Acompanho estes votos com uma recordação nas minhas orações, a fim de que Deus conceda a paz à Colômbia.

Saudações

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua portuguesa aqui presentes, ou que me escutam pela rádio ou pela televisão. Nesta semana consagrada à verdade de Cristo presente no Santíssimo Sacramento do Altar, o Papa convida todos para que se unam à sua celebração eucarística, a fim de pedir pela paz e pela concórdia entre todos os povos. Minha cordial lembrança vai, de modo especial, aos visitantes brasileiros colaboradores e amigos dos padres Palotinos do Rio de Janeiro e às Filhas de Maria Auxiliadora do Brasil e de Portugal, em peregrinação pelos lugares fundacionais da família salesiana. Desejo muitas felicidades a todos, com a Bênção de Deus Pai de misericórdia.

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua francesa, de modo particular os membros do Movimento cristão dos aposentados de Chantonnay, bem como a Comunidade do Verbo da Vida, provenientes da França e da Bélgica, e também os jovens aqui presentes nesta manhã, de modo especial os alunos do Colégio «Charles de Foucauld», de Lião. Formulo-lhes votos por que encontrem Cristo, manancial da sua esperança e alegria. A todos concedo do íntimo do coração a Bênção Apostólica.

Saúdo-vos, caríssimos jovens aqui presentes. Desejo que vos prepareis na escola do coração de Cristo, para enfrentardes com seriedade e empenho as responsabilidades que vos esperam. Dirijo as minhas afectuosas boas-vindas a vós, caríssimos doentes, e agradeço-vos o exemplo que dais, aceitando cumprir a vontade de Deus, unindo-vos ao sacrifício de amor do Crucificado. Por fim, alegro-me por poder exprimir felicitações e bons votos aos jovens Casais. Caríssimos, desejo-vos muita felicidade na fidelidade quotidiana ao amor de Deus, do qual o vosso amor conjugal deve dar testemunho.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 23 de Junho de 1999


Viagem Apostólica à Polónia




1. Desejaria hoje deter-me ainda sobre a peregrinação que tive a alegria de realizar na Polónia, de 5 a 17 deste mês. Esta minha visita pastoral na Pátria, a sétima e a mais longa, foi realizada vinte anos depois da primeira viagem, ocorrida de 2 a 10 de Junho de 1979. Na vigília do Grande Jubileu do Ano 2000, compartilhei com a Igreja na Polónia as celebrações do milénio de dois eventos, que estão na origem da sua história: a canonização de Santo Adalberto e a instituição no País da primeira Sede metropolitana de Gniezno, com as três Dioceses sufragâneas de Koloborzeg, Cracóvia e Wroclaw. Além disso, pude concluir o Segundo Sínodo Plenário nacional e proclamar uma nova Santa, e também numerosos novos Beatos, testemunhas exemplares do amor de Deus.

«Deus é amor» foi o lema da viagem apostólica, que constituiu como que um grande hino de louvor ao Pai celeste e às admiráveis obras da Sua misericórdia. Por isto não cesso de Lhe dar graças, a Ele, Senhor do mundo e da história, que me concedeu atravessar mais uma vez a terra dos meus pais, como peregrino de fé e de esperança, peregri- no em particular do Seu nome.

Desejo renovar a expressão do meu reconhecimento ao Senhor Presidente da República e às Autoridades do Estado, pelo seu acolhimento e pela partícipe adesão manifestada. Além disso, foi-me de grande conforto o encontro fraterno com os Pastores da amada Igreja na Polónia, aos quais agradeço de coração o grande empenho e zelo apostólico. Estendo o meu agradecimento a todos aqueles que, de qualquer modo, colaboraram para o bom êxito da minha visita: penso, em particular, em quantos oraram e ofereceram os próprios sofrimentos por esta finalidade; penso, também, nos jovens que em grande número participaram em todas as fases desta minha peregrinação.

2. Fio condutor destes dias foi a página evangélica das Bem-aventuranças, que apresenta o amor de Deus nos traços inconfundíveis do rosto de Cristo. Que alegria para mim foi proclamar, na esteira de Santo Adalberto, as oito Bem-aventuranças meditando na história dos meus antepassados! À memória do grande Bispo e Mártir foram dedicadas as etapas de Gdansk (Danzigue), de Pelplin e de Elblag, na região do Báltico, onde Adalberto foi martirizado. A herança de Adalberto foi sempre conservada pelo povo polaco, e produziu frutos estupendos de testemunho durante toda a história da Polónia.

Tive oportunidade, quanto a isto, de visitar cidades que conservam indelével a memória das destruições da segunda guerra mundial, das execuções em massa e das tremendas deportações. Só a fé em Deus, que é amor e misericórdia, tornou possível a sua reconstrução material e moral. Em Bygdoszcz, onde o Cardeal Wyszynski quis construir o templo dedicado aos «Santos Mártires Irmãos Polacos», celebrei a Missa dos Mártires, recordando os «soldados desconhecidos» da causa de Deus e do homem, mortos neste século. Em Torun proclamei beato o sacerdote Wincenty Frelichowski (1913-1945), que no ministério pastoral, e depois no campo de concentração, foi agente de paz e testemunhou até à morte o amor de Deus entre os doentes de tifo do campo de Dachau. Em Varsóvia beatifiquei 108 Mártires, entre os quais bispos, sacerdotes, religiosos e leigos, vítimas dos campos de concentração durante a segunda guerra mundial.

Na Capital, além disso, proclamei beatos Edmund Bojanowski - promotor de obras educativas e caritativas, precursor da lição conciliar sobre o apostolado dos leigos - e a Irmã Regina Protmann - que uniu a vida contemplativa com o cuidado dos doentes e a instrução das crianças e das jovens. Em Stary Slcz proclamei santa a Irmã Kinga, figura eminente do século XIII, modelo de caridade tanto como esposa do Príncipe polaco Boleslau, como, depois da morte dele, como monja clarissa.

Estas heróicas testemunhas da fé demonstram que a «traditio» da Palavra de Deus, escutada e posta em prática, chegou de Adalberto até agora e está com coragem encarnada na sociedade hodierna, que se prepara para cruzar o limiar do terceiro milénio.

3. A fé na Polónia alimentou-se e foi muito sustentada pela devoção ao Sagrado Coração e à Bem-aventurada Virgem Maria. O culto do Coração divino de Jesus teve nesta peregrinação um relevo especial: no contexto de fundo estava a consagração do género humano ao Sagrado Coração, que o meu venerado predecessor Leão XIII realizou pela primeira vez exactamente há cem anos. A humanidade precisa de entrar no novo milénio tendo confiança no amor misericordioso de Deus. Entretanto, isto só é possível ao dirigir-se a Cristo Salvador, fonte inexaurível de vida e de santidade.

E, depois, o que dizer do afecto filial que os meus compatriotas nutrem pela sua Rainha, Maria Santíssima? Em Licheñ benzi o novo grande Santuário a Ela dedicado e nalgumas cidades, inclusivamente naquela em que nasci, coroei veneradas imagens da Virgem. Em Sandomierz celebrei a Eucaristia em honra do Coração Imaculado da Bem-aventurada Virgem Maria.

Quereria recordar, além disso, os meus encontros de oração em Elk, Zamosc, Varsóvia-Praga, Lowicz, Sosnowiec, Gliwice, e na minha cidade natal de Wadowice. E ainda a minha visita ao mosteiro de Wigry.

Antes de retornar, ajoelhei-me diante do ícone venerando da Virgem de Czestochowa em Jasna Góra: foi um momento de alta emoção espiritual. A Ela, «Virgem Santa que defende a clara Czestochowa» (cf. Mickiewicz), renovei a entrega da minha vida e do meu ministério petrino; a Ela consagrei a Igreja que está na Polónia e no mundo inteiro; pedi-Lhe o dom precioso da paz para a humanidade inteira e da solidariedade entre os povos.

4. No decurso do meu itinerário, tive várias vezes ocasião de dar graças a Deus pelas transformações operadas na Polónia nos últimos vinte anos em nome da liberdade e da solidariedade. Fi-lo em Gdansk (Danzigue), cidade-símbolo do movimento Solidarnosc. Fi-lo sobretudo ao falar ao Parlamento da República, onde recordei as lutas pacíficas dos anos 80 e as transformações de 89. Os princípios morais daquelas lutas devem continuar a inspirar a vida política, para que a democracia seja fundada sobre sólidos valores éticos: família, vida humana, trabalho, educação, cuidado dos débeis. Naqueles mesmos dias, nos quais se renovava o Parlamento Europeu, orei pelo «velho» continente, para que possa continuar a ser farol de civilização e de progresso autêntico, redescobrindo as suas raízes espirituais e valorizando plenamente as potencialidades dos povos que o compõem, desde os Urais até ao Atlântico.

Além disso, nos dois encontros com o mundo académico, em Torun e em Varsóvia, foi-me dado pôr em evidência o melhoramento nas relações entre a Igreja e os ambientes científicos, com grandes vantagens recíprocas. Não posso esquecer a oração em Radzymin na memória da guerra de 1920, do «Milagre do Vístula».

Depois, noutras circunstâncias ergui a voz em defesa da pessoa e dos grupos sociais mais fracos: a Igreja, enquanto realiza as obras de misericórdia, promove justiça e solidariedade, seguindo os exemplos dos santos, como a Rainha Edviges e Alberto Chmielowski, modelos de partilha com os mais desafortunados. O progresso não pode acontecer à custa dos pobres, nem das categorias economicamente menos fortes, nem se- quer em prejuízo do ambiente natural.

5. Não faltou a ocasião para reafirmar que a Igreja oferece o seu contributo ao desenvolvimento integral da Nação, antes de tudo com a formação das consciências. A Igreja existe para evangelizar, isto é, para anunciar a todos que «Deus é amor» e fazer com que cada um O possa encontrar. O Segundo Sínodo Plenário renovou este empenho na linha do Concílio Vaticano II e à luz dos sinais dos tempos, chamando todos os crentes à generosa co-responsabilidade.

A evangelização não é crível se, como cristãos, não nos amarmos uns aos outros, segundo o mandamento do Senhor. Em Siedlce e em Varsóvia, na memória dos Beatos Mártires da Podlásia, orei juntamente com os fiéis greco-católicos pela superação das divisões do segundo milénio. Além disso, eu quis encontrar os irmãos de outras Confissões, para fortalecer os vínculos de unidade. Em Drohiczyn, numa participada liturgia ecuménica, esta oração envolveu Ortodoxos, Luteranos e outras Comunidades eclesiais não católicas. A necessidade da unidade da Igreja é sentida por todos: devemos trabalhar pela sua plena realização, prontos a admitir as culpas e a perdoar-nos uns aos outros.

Na manhã do último dia da minha peregrinação foi-me dado celebrar a Eucaristia na Catedral de Wawel. Assim, ao despedir-me da minha dilecta cidade de Cracóvia, pude agradecer a Deus o milénio da Arquidiocese.

6. Caríssimos Irmãos e Irmãs, juntos louvemos o Senhor por estas jornadas de graça. Neste dia, repito convosco: Te Deum laudamus...! Sim, nós Vos louva- mos, ó Deus, pela santa Igreja, fundada sobre Cristo pedra angular, sobre os apóstolos e os mártires, e difundida em todos os cantos da terra. Nós Vos louvamos de modo particular pela Igreja que está na Polónia, rica de fé e de obras de caridade.

Nós Te louvamos, ó Maria, Mãe da Igreja e Rainha da Polónia! Inserida de modo singular no mistério da Encarnação, ajuda o teu Povo a viver com fé o Grande Jubileu, e vem em socorro de quantos, nas suas dificuldades, recorrem a Ti. Ajuda cada um de nós a escolher as realidades que não passam: a fé, a esperança e a caridade. Ajuda-nos, ó Mãe, a viver a caridade, que de todas é a maior, porque «Deus é amor».



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 30 de Junho de 1999


Os Santos Apóstolos Pedro e Paulo

Caríssimos Irmãos e Irmãs!


1. Celebrámos, ontem, a solenidade dos Santos Pedro e Paulo. Estes dois Apóstolos, aos quais a Liturgia chama «Príncipes dos Apóstolos», não obstante as suas diversidades pessoais e culturais, foram associados pelo misterioso desígnio da Providência divina numa singular vicissitude apostólica. E a Igreja une-os numa única memória.

A solenidade de ontem é muito antiga; encontramo-la inserida no Santoral romano muito antes daquela própria do Natal. No século IV era costume, nesse dia, celebrar em Roma três Santas Missas: uma na Basílica de São Pedro no Vaticano, outra na Basílica de São Paulo fora dos Muros e a terceira nas Catacumbas de São Sebastião onde, na época das invasões, segundo a tradição, teriam sido escondidos durante um certo tempo os corpos dos dois Apóstolos.

São Pedro, de pescador de Betsaida, é escolhido por Cristo como pedra fundamental da Igreja. São Paulo, atingido pelo fulgor na estrada de Damasco, de perseguidor dos cristãos torna-se Apóstolo das nações. Ambos concluem a sua existência com o martírio na cidade de Roma. Através deles, o Senhor «deu à Igreja as primícias da fé cristã» (cf. Colecta da Missa em sua honra). O Papa invoca a autoridade destas duas «colunas da Igreja» quando, nos actos oficiais, refere a tradição à sua fonte, que é a Palavra de Deus conservada e transmitida pelos Apóstolos. Na dócil escuta desta Palavra, a comunidade eclesial tornou-se perfeita no amor em união com o Papa, os Bispos e toda a Ordem sacerdotal (cf. Oração eucarística II).

2. Entre os sinais que ontem, segundo uma confirmada tradição, enriqueceram a Liturgia por mim presidida na Basílica Vaticana, há o antigo rito da «imposição do Pálio». O Pálio é uma pequenina faixa circular em forma de estola, marcada com seis cruzes. É feita à mão em lã branca, proveniente da tosquia dos cordeiros benzidos, cada ano, no dia 21 de Janeiro, na festividade de Santa Inês. O Papa entrega o Pálio aos Arcebispos Metropolitanos nomeados recentemente. Ele exprime o poder que, em comunhão com a Igreja de Roma, o Metropolita adquire de direito na própria Província eclesiástica (cf. CIC, cân. 437 § 1).

Testemunhos arqueológicos e iconográficos, além de vários documentos escritos, permitem remontar, no estabelecimento da data deste rito, aos primeiros séculos da era cristã. Encontramo-nos, portanto, diante de uma tradição antiquíssima, que acompanhou praticamente toda a história da Igreja.

Entre os vários significados deste rito, dois parecem-me emergir com maior clareza. Antes de tudo, a especial relação dos Arcebispos Metropolitanos com o Sucessor de Pedro e, por conseguinte, com Pedro mesmo. É do túmulo do Apóstolo, memória permanente da sua profissão de fé no Senhor Jesus, que o Pálio recebe força simbólica: quem o vestir deverá recordar a si mesmo e aos outros este íntimo e profundo vínculo com a pessoa e a missão de Pedro. Isto acontecerá em todas as circunstâncias da vida, desde o ensinamento até à guia pastoral, da celebração dos sacramentos ao diálogo com a comunidade.

Assim eles são chamados a estar entre os principais construtores da unidade da Igreja, que se exprime na profissão da única fé e na caridade fraterna.

3. Há um segundo valor que a imposição do Pálio ressalta de modo claro. O cordeiro, que ofereceu a lã para a sua confecção, é símbolo do Cordeiro de Deus que tomou sobre Si o pecado do mundo e Se ofereceu em resgate pela humanidade. Cordeiro e Pastor, Cristo continua a vigiar sobre o seu rebanho e confia-o aos cuidados daqueles que sacramentalmente O representam. O Pálio, com o candor da sua lã, é apelo à inocência da vida e, com a sequência das seis cruzes, é referência a uma quotidiana fidelidade ao Senhor, até ao martírio, se for necessário. Aqueles que vestem o Pálio deverão, portanto, viver em singular e constante comunhão com o Senhor, caracterizada pela pureza das intenções e das acções e pela generosidade do serviço e do testemunho.

Enquanto com afecto saúdo os Arcebispos Metropolitanos, que ontem receberam o Pálio e os que hoje quiseram estar presentes nesta Audiência, desejaria exortar todos vós, caríssimos Irmãos e Irmãs que os acompanhais, a orar pelos vossos Pastores. Confiamos ao Bom Pastor estes meus venerados Irmãos no Episcopado, para que cresçam todos os dias na fidelidade ao Evangelho e sejam «verdadeiros modelos do rebanho» (cf. 1P 5,3).

Maria, Mãe da Igreja, proteja aqueles que foram chamados a guiar o povo cristão e obtenha para todos os discípu- los de Cristo o precioso dom do amor e da unidade.

Homenagem póstuma ao Patriarca Karekin I

Com grande tristeza recebi a notícia da morte de Sua Santidade Karekin I, Supremo Patriarca e Catholicos de todos os Arménios. Um profundo vínculo de afecto ligava-me a ele. Tendo tido a possibilidade de me aproximar dele pessoalmente nas duas visitas que me fez nestes anos, tive ocasião de admirar a sua estatura espiritual, o seu intenso amor à Igreja e a sua solicitude pela unidade de todos os cristãos no único redil de Cristo. Desejei muito poder fazer-lhe uma visita de amizade fraterna, mas as circunstâncias não me consentiram.

Ontem, durante a solene liturgia para a Festa dos Santos Pedro e Paulo na Basílica Vaticana, orou-se também por ele. Convido agora todos vós a unirdes-vos a mim na súplica ao Senhor pela alma eleita deste insigne Pastor: queira Deus acolhê-lo Consigo na Comunhão dos Santos do Céu. Exprimo, ao mesmo tempo, as minhas mais sinceras condolências à Igreja-Mãe de Etchmiadzin, à Igreja Arménia Apostólica e à Nação arménia pela perda de tão eminente Patriarca.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, saúdo todos os presentes nesta Audiência, especialmente os visitantes brasileiros e quantos vieram para acompanhar os seus Arcebispos na recepção do Pálio. À Virgem Maria confio as vossas vidas, as vossas famílias e dioceses, para todos implorando o precioso dom do amor e da unidade, ao dar-vos a minha Bênção Apostólica.

À solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, celebrada ontem, segue hoje a memória litúrgica dos primeiros Mártires romanos. Caros jovens, imitai o seu heróico testemunho evangélico e sede fiéis a Cristo em qualquer situação da vida, sem jamais ceder a ilusões e compromissos fáceis. Encorajo-vos, queridos doentes, a acolher o exemplo dos Protomártires para transformar o vosso sofrimento num contínuo acto de doação por amor a Deus e aos irmãos. E vós, prezados jovens esposos, contemplando as sólidas bases de santidade sobre as quais se ergue a Igreja, sabei aderir ao projecto que o Criador estabeleceu para a vossa vocação, de maneira a conseguirdes realizar uma união familiar fecunda e duradoura.

De coração abençoo todos vós.



                                                                           Julho de 1999

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 7 de Julho de 1999

Juízo e Misericórdia




Queridos irmãos e irmãs,

1. No Salmo 116 lê-se: «Javé é justo e clemente, o nosso Deus é compasivo» (v. 5). À primeira vista, juízo e misericórdia pareceriam duas realidades irreconciliáveis, ou pelo menos a segunda parece integrar-se com a primeira somente se esta abranda a sua força inexorável. Mas é necessário compreender a lógica da Sagrada Escritura que as une e, antes, as apresenta de maneira que uma não possa existir sem a outra.

No Antigo Testamento o sentido da justiça divina é captado de maneira progressiva, a partir da situação daquele que agiu bem e se sente injustamente ameaçado. Então, ele encontra refúgio e defesa em Deus. Esta experiência é expressa várias vezes nos Salmos que, por exemplo, afirmam: «Sei que Javé faz justiça ao pobre e defende o direito dos indigentes. Os justos louvarão o teu nome e os rectos viverão na tua presença» (140[139], 13-14).

A intervenção em benefício dos oprimidos é concebida pela Escritura sobretudo como justiça, ou seja, fidelidade de Deus às promessas salvíficas feitas a Israel. Por conseguinte, a justiça de Deus deriva da iniciativa gratuita e misericordiosa com que Ele se uniu ao seu povo numa Aliança eterna. Deus é justo porque salva, cumprindo assim as suas promessas, enquanto que o juízo sobre o pecado e os ímpios não é senão a manifestação da sua misericórdia. O pecador sinceramente arrependido pode confiar sempre nesta justiça misericordiosa (cf. Sl Ps 51,6 Sl Ps 51,16).

Diante da dificuldade de encontrar justiça nos homens e nas suas instituições, na Bíblia apresenta-se a perspectiva de que a justiça só se realizará plenamente no porvir, através da obra de um personagem misterioso, que de forma progressiva assumirá conotações «messiânicas» mais específicas: um rei ou filho de rei (cf. Sl Ps 72,1), um rebento que «nascerá do tronco de Jessé» (cf. Is 11,1), um «rebento justo», descenden- te de David (Jr 23,5).

2. Obscurecida em muitos textos dos livros proféticos, a figura do Messias adquire na óptica da salvação as funções do governo e do juízo, para a prosperidade e o crescimento da comunidade e de cada um dos seus componentes.


AUDIÊNCIAS 1999 - AUDIÊNCIA