AUDIÊNCIAS 1999 - AUDIÊNCIA

A função judiciária exercer-se-á sobre os bons e os maus que se apresentarão juntos no juízo, onde o triunfo dos justos se transformará em temor e assombro para os ímpios (cf. Sb Sg 4, 20-5, 23; cf. também Da 12,1-3). O juízo confiado ao «Filho do homem», na perspectiva apocalíptica do livro de Daniel, terá como efeito o triunfo do povo dos santos do Altíssimo sobre a ruína dos reinos da terra (cf. cap.7, especialmente vv. 18 e 27).

Por outro lado, também aquele que pode esperar um juízo benévolo está consciente dos próprios limites. Assim, emerge a consciência de que é impossível ser justo sem a graça divina, como o Salmista recorda: «Javé... Tu és justo, responde-me! Não entres em julgamento contra o teu servo, pois diante de Ti nenhum vivente é justo» (Sl 143[142], 1-2).

3. A mesma lógica basilar se encontra no Novo Testamento, onde o juízo divino está vinculado à obra salvífica de Cristo.

Jesus é o Filho do homem ao qual o Pai transmitiu o poder de julgar. Ele exercerá o juízo sobre quantos sairão dos túmulos, separando todos os que são destinados a uma ressurreição de vida daqueles que experimentarão uma ressurreição de condenação (cf. Jo Jn 5,26-30). Todavia, como salienta o evangelista João, «Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, para que o mundo seja salvo por meio d'Ele» (3, 17). Somente quem tiver rejeitado a salvação, oferecida por Deus com uma misericórdia ilimitada, será condenado, porque se terá autocondenado.

4. São Paulo aprofunda no sentido salvífico o conceito de «justiça de Deus», que se realiza «através da fé em Jesus Cristo, para todos aqueles que acreditam» (Rm 3,22). A justiça de Deus está intimamente ligada à dádiva da reconciliação: se através de Cristo nos deixamos reconciliar com o Pai, também nós podemos tornar-nos, por meio d'Ele, justiça de Deus (cf. 2Co 5,18-21).

Assim, juízo e misericórdia são entendidos como duas dimensões do mesmo mistério de amor: «Deus encerrou a todos na desobediência, para ser misericordioso com todos» (Rm 11,32). O amor, que está na base da atitude divina e deve tornar-se uma virtude fundamental do fiel, impele-nos portanto a ter confiança, excluindo todo o temor (cf. 1Jn 4,18). À imitação deste juízo divino, também o juízo humano deve ser exercido em conformidade com uma lei da liberdade, na qual deve prevalecer precisamente a misericórdia: «Falai e procedei como pessoas que vão ser julgadas pela lei da liberdade, porque o julgamento será sem misericórdia para quem não tiver agido com misericórdia. Os misericordiosos não têm motivo de temer o julgamento» (Jc 2,12-13).

5. Deus é Pai de misericórdia e de toda a consolação. Por isso, na quinta súplica da oração por excelência, o «Pai Nosso», «a nossa petição começa com uma "confissão" em que, ao mesmo tempo, confessamos a nossa miséria e a sua misericórdia» (Catecismo da Igreja Católica CEC 2839). Revelando-nos a plenitude da misericórdia do Pai, Jesus ensinou-nos também que a este Pai tão justo e misericordioso só se tem acesso através da experiência da misericórdia, que deve distinguir os nossos relacionamentos com o próximo: «Esta onda de misericórdia não pode penetrar os nossos corações enquanto não tivermos perdoado àqueles que nos ofenderam... Na recusa de perdoarmos aos nossos irmãos ou irmãs, o nosso coração fecha-se mais e a sua dureza torna-o impermeável ao amor misericordioso do Pai» (Catecismo da Igreja Católica CEC 2840).



Saudações especiais

Queridos Irmãos e Irmãs! Saúdo cordialmente os grupos vindos de José Bonifácio - São Paulo - e de Portugal, e os restantes peregrinos de língua portuguesa, com votos de que possais regressar, desta romagem ao coração da Igreja, com uma renovada alegria de viver e uma maior fome e sede de Deus. Afectuosamente abençoo-vos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Caros Irmãos e Irmãs, a próxima celebração do Grande Jubileu oferece uma ocasião muito particular para acolher a constante solicitude de Deus pelo homem e a sua proximidade, repleta de amor e rica de misericórdia. Esse evento representa ao mesmo tempo um convite especial a reconhecer a soberania de Cristo sobre a história humana, na qual Deus pôs o seu Reino. Saúdo todos os peregrinos croatas aqui presentes e abençoo-os com muito afecto. Louvados sejam Jesus e Maria!

Saúdo cordialmente os peregrinos eslovacos de Zvolen e os professores e estudantes de Ružomberok, Banská Bystrica e Malacky.

Caríssimos Irmãos e Irmãs, na segunda-feira passada festejastes na Eslováquia os Santos Cirilo e Metódio, vossos evangelizadores.

Orai por vós mesmos e pela vossa nação, a fim de que ela permaneça sempre fiel à herança cristã dos vossos antepassados.

Concedo com alegria a minha Bênção Apostólica a vós e à inteira Eslováquia. Louvado seja Jesus Cristo!

Dirijo uma cordial saudação aos peregrinos de língua italiana. É-me grato acolher os participantes no Encontro de Missiologia do Centro Internacional de Animação Missionária, em Roma, e exorto-os a ver sempre o mundo com os olhos de Deus Pai, nascente da missão de Cristo e da Igreja.

Saúdo, além disso, os Alunos Oficiais da Guarda Fiscal e os Estudantes da Escola de Saúde e Veterinária Militar. Abençoo com afecto os meninos do coro que, neste período, assistem os sacerdotes na Basílica de São Pedro, assim como as crianças internadas no Hospital «Bambino Gesù», com os seus pais.

Um especial pensamento dirige-se, enfim, aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais.

Celebrámos ontem a memória litúrgica de Santa Maria Goretti, a jovem dos nossos tempos que testemunhou o seu amor a Cristo até ao martírio. Caros jovens, também vós deixai-vos seduzir pela proposta de vida de Jesus, para O seguirdes com entusiasmo e generosidade nas grandes e pequenas opções que sois chamados a fazer. A vós, queridos doentes, peço que persevereis na oração confiante para compreenderdes o valor redentor do vosso sofrimento, unido ao de Cristo.

Exorto-vos, prezados jovens esposos, a pedir ao Senhor a graça de viver a vossa vocação conjugal na plena fidelidade ao seu projecto.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 21 de Julho de 1999


O «céu» como plenitude de intimidade com Deus




Queridos irmãos e irmãs,

1. Quando tiver passado a figura deste mundo, aqueles que acolheram Deus na sua vida e se abriram com sinceridade ao seu amor pelo menos no momento da morte, poderão gozar daquela plenitude de comunhão com Deus, que constitui a meta da existência humana. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica, «esta vida perfeita, esta comunhão de vida e de amor com a Santíssima Trindade, com a Virgem Maria, com os anjos e todos os bem-aventurados chama-se "Céu". O Céu é o fim último e a realização das aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva» (n. 1024).

Queremos hoje procurar captar o sentido bíblico do «céu», para podermos compreender melhor a realidade a que esta expressão remete.

2. Na linguagem bíblica o «céu», quando está unido à «terra», indica uma parte do universo. A respeito da criação, a Escritura diz: «No princípio, Deus criou os céus e a terra» (Gn 1,1).

No plano metafórico o céu é entendido como habitação de Deus, que nisto se distingue dos homens (cf. Sl Ps 104,2 s.; 115, 16; Is 66,1). Do alto dos céus Ele vê e julga (cf. Sl Ps 113,4-9), e desce quando é invocado por nós (cf. Sl Ps 18,7 Sl Ps 18,10 Ps 144,5). Contudo, a metáfora bíblica faz bem entender que Deus nem Se identifica com o céu nem pode estar encerrado no céu (cf. 1R 8,27); e isto é verdadeiro, apesar de nalgumas passa- gens do primeiro livro dos Macabeus «o Céu» ser simplesmente um nome de Deus (1M 3,18-19).

À representação do céu, como habitação transcendente de Deus vivo, acrescenta-se a dum lugar ao qual também os crentes podem chegar por graça, como no Antigo Testamento emerge das vicissitudes de Henoc (cf. Gn Gn 5,24) e de Elias (cf. 2R 2,11). Assim, o céu torna-se figura da vida em Deus. Neste sentido, Jesus fala de «recompensa nos céus» (Mt 5,12) e exorta a «acumular tesouros no céu» (Ibid.,6,20;cf. 19, 21).

3. O Novo Testamento aprofunda a ideia do céu também em relação ao mistério de Cristo. Para indicar que o sacrifício do Redentor adquire um valor perfeito e definitivo, a Carta aos Hebreus afirma que Jesus «atravessou os céus» (He 4,14) e «não entrou num santuário feito por mão de homem, figura do verdadeiro, mas no próprio Céu» (Ibid., 9, 24). Os crentes, depois, enquanto são amados de modo especial por parte do Pai, ressuscitam com Cristo e tornam-se cidadãos do céu. Vale a pena escutar quanto o apóstolo Paulo nos comunica a respeito disso num texto de grande intensidade: «Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, estando nós mortos pelos nossos delitos, deu-nos a vida juntamente com Cristo. É pela graça que fostes salvos. Com Ele nos ressuscitou e nos fez sentar lá nos Céus, em Cristo Jesus, para mostrar aos séculos futuros a extraordinária riqueza da sua graça, pela bondade que teve para connosco em Cristo Jesus» (Ep 2,4-7). A paternidade de Deus, rico em misericórdia, é experimentada pelas criaturas através do amor do Filho de Deus crucificado e ressuscitado, o qual como Senhor está sentado nos céus à direita do Pai.

4. A participação na completa intimidade com o Pai, depois do percurso da nossa vida terrena, passa portanto através da inserção no mistério pascal de Cristo. São Paulo ressalta com viva imagem espacial este nosso caminhar rumo a Cristo nos céus, no fim dos tempos: «Depois nós, os vivos que ficamos, seremos arrebatados juntamente com eles sobre nuvens; iremos ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor. Consolai-vos, portanto, uns aos outros, com estas palavras» (1Th 4,17-18).

No contexto da Revelação sabemos que o «céu», ou a «bem-aventurança» na qual nos encontraremos, não é uma ideia abstracta, nem sequer um lugar físico entre as nuvens, mas uma relação viva e pessoal com a Santíssima Trindade. É o encontro com o Pai que se realiza em Cristo ressuscitado, graças à comunhão do Espírito Santo.

Deve-se manter perenemente uma certa sobriedade ao descrever estas «realidades últimas», dado que a sua representação permanece sempre inadequada. Hoje, a linguagem personalista consegue dizer de maneira menos imprópria a situação de felicidade e de paz em que nos estabelecerá a comunhão definitiva com Deus.

O Catecismo da Igreja Católica sintetiza o ensinamento eclesial acerca desta verdade, afirmando que «pela sua morte e ressurreição, Jesus Cristo "nos abriu" o céu. A vida dos bem-aventurados consiste na posse, em plenitude, dos frutos da redenção operada por Cristo, que associa à sua glorificação celeste aqueles que n'Ele acreditaram e permaneceram fiéis à sua vontade. O Céu é a comunidade bem-aventurada de todos os que estão perfeitamente incorporados n'Ele» (n. 1026).

5. Esta situação final pode, entretanto, ser antecipada de algum modo hoje, quer na vida sacramental, cujo centro é a Eucaristia, quer no dom de si mediante a caridade fraterna. Se soubermos gozar de maneira ordenada dos bens que o Senhor nos concede cada dia, já experimentaremos aquela alegria e paz de que um dia haveremos de fruir plenamente. Sabemos que nesta fase terrena tudo está sob o sinal do limite, contudo o pensamento das realidades «últimas» ajuda-nos a viver bem as realidades «penúltimas». Estamos conscientes de que enquanto caminhamos neste mundo somos chamados a buscar «as coisas lá do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus» (CL 3,1), para estarmos com Ele na realização escatológica, quando no Espírito Ele reconciliar totalmente com o Pai todas as coisas, «tanto as da terra como as do céu» (Ibid., 1, 20).

Saudações

Queridos Irmãos e Irmãs!

Saúdo todas as pessoas presentes de língua portuguesa, especialmente os vários grupos do Brasil e de Portugal - da diocese de Beja - desejando que esta peregrinação a Roma seja frutuosa para a vossa vida pessoal, familiar e social, encaminhando-a rectamente pelas sendas do Céu, onde esperamos encontrar-nos de novo. De coração, dou-vos a Bênção Apostólica.

Apresento especiais boas-vindas aos jovens que participam no Fórum da Juventude do Parlamento Europeu, assim como ao Coro São Vicente Ferrer, de Kaohsiung (Taiwan), e ao Grupo folclórico nativo de Taiwan, acompanhado do Cardeal Shan. Sobre todos os visitantes e peregrinos de língua inglesa, de modo especial da Inglaterra, Escócia, Coreia, Taiwan, Canadá e Estados Unidos da América, invoco a graça e a paz de nosso Senhor Jesus Cristo. Oxalá tenhais um Verão feliz e abençoado!

Dirijo uma cordial saudação aos peregrinos de língua espanhola, em particular às Religiosas Missionárias do Divino Mestre que celebram o aniversário da sua Profissão, assim como ao grupo das jovens de quinze anos de idade e aos outros grupos vindos do México, Argentina, Colômbia, de outros países da América Latina e da Espanha. Convido-vos a pedir à Virgem, nossa Mãe celes- te, que vos guie à plena participação na glória de Cristo.

Dou cordiais boas-vindas a todos os peregrinos de língua italiana, em particular às Irmãs Oblatas do Sagrado Coração de Jesus, que nestes dias estão a participar no Capítulo Geral. Faço votos por que, a exemplo da Fundadora, Madre Maria Teresa Casini, se empenhem com renovado impulso caritativo e missionário na obra da nova evangelização, no limiar do terceiro milénio.

Saúdo também os participantes no Congresso Internacional de Leigos que pertencem aos Movimentos e às Fraternidades laicais da Ordem agostiniana. Caríssimos Irmãos e Irmãs, faço votos por que este encontro, que reúne participantes provenientes dos cinco continentes, faça aumentar a comunhão fraterna entre vós e estimule o vosso generoso empenho de testemunho cristão, segundo o carisma agostiniano.

Cumprimento com afecto as crianças bielo-russas, hóspedes da Paróquia de Santa Cruz, em Macerata. O Senhor vos proteja, queridas crianças, e a quantos vos acolheram.

Por fim, dirijo um especial pensamento aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais.

Celebra-se amanhã a memória litúrgica de Santa Maria Madalena, discípula do Senhor Jesus e primeira testemunha da sua ressurreição.

A vós, caros jovens, faço votos por que experimenteis pessoalmente a força libertadora do amor de Cristo, que renova em profundidade a vida do homem. Exorto-vos, queridos doentes, a oferecer os vossos sofrimentos pela conversão de quem é prisioneiro do mal. E encorajo-vos, prezados jovens esposos, a ser sinal da fidelidade de Deus também com o perdão recíproco, motivado pelo amor.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 28 de Julho de 1999


O inferno como rejeição definitiva de Deus

1. Deus é Pai infinitamente bom e misericordioso. Mas o homem, chamado a responder-Lhe na liberdade, pode infelizmente optar por rejeitar de maneira definitiva o Seu amor e o Seu perdão, subtraindo-se assim, para sempre, à alegre comunhão com Ele. Precisamente esta trágica situação é apontada pela doutrina cristã, quando fala de perdição ou inferno. Não se trata de um castigo de Deus infligido a partir do exterior, mas do desenvolvimento de premissas já postas pelo homem nesta vida. A própria dimensão de infelicidade que esta obscura condição traz consigo, pode ser de algum modo intuída à luz de algumas das nossas terríveis experiências, que tornam a vida, como se costuma dizer, um «inferno».


Em sentido teológico, contudo, o inferno é outra coisa: é a última consequência do próprio pecado, que se vira contra quem o cometeu. É a situação em que definitivamente se coloca quem rejeita a misericórdia do Pai, também no último instante da sua vida.

2. Para descrever esta realidade, a Sagrada Escritura serve-se de uma linguagem simbólica, que aos poucos assumirá aspectos bem definidos. No Antigo Testamento, a condição dos mortos ainda não estava plenamente iluminada pela Revelação. Com efeito, pensava-se em geral que os mortos estivessem recolhidos no sheol, um lugar de trevas (cf. Ez Ez 28,8 Ez 31,14 Jb 10,21 s.; Jb 38,17 Ps 30,10 Ps 88,7 Ps 88,13), uma fossa da qual não se sobe (cf. Jb Jb 7,9), um lugar onde não é possível louvar a Deus (cf. Is Is 38,18 Ps 6,6).

O Novo Testamento projecta nova luz sobre a condição dos mortos, sobretudo anunciando que Cristo, com a Sua ressurreição, venceu a morte e estendeu o Seu poder libertador também ao reino dos mortos.

A redenção, contudo, continua uma oferta de salvação que compete ao homem acolher em liberdade. Por isto cada um será julgado «segundo as suas obras» (Ap 20,13). Recorrendo a imagens, o Novo Testamento apresenta o lugar destinado aos operadores de iniquidade como uma fornalha ardente, onde há «choro e ranger de dentes» (Mt 13,42 cf. Mt 25,30 Mt 25,41), ou como a Geena de «fogo inextinguível» (Mc 9,43). Tudo isto é expresso de modo narrativo na parábola do rico avarento, na qual se precisa que o inferno é o lugar de pena definitiva, sem possibilidade de retorno ou de mitigação do sofrimento (cf. Lc Lc 16,19-31).

Também o Apocalipse representa de maneira simbólica, num «lago de fogo», aqueles que não estão inscritos no livro da vida, indo assim ao encontro da «segunda morte» (Ap 20,13 s.). Quem, portanto, se obstina a não abrir-se ao Evangelho predispõe-se a «uma ruína eterna, longe da face do Senhor e da glória do seu poder» (2Th 1,9).

3. As imagens com que a Sagrada Escritura nos apresenta o inferno devem ser interpretadas de maneira correcta. Elas indicam a completa frustração e vazio de uma vida sem Deus. O inferno está a indicar, mais do que um lugar, a situação em que se vai encontrar quem de maneira livre e definitiva se afasta de Deus, fonte de vida e de alegria. Assim resume os dados da fé sobre este tema o Catecismo da Igreja Católica: «Morrer em pecado mortal sem arrependimento e sem dar acolhimento ao amor misericordioso de Deus é a mesma coisa que morrer separado d'Ele para sempre, por livre escolha própria. E é este estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa pela palavra "Inferno"» (n. 1033).

A «perdição» não deve, por isso, ser atribuída à iniciativa de Deus, pois no Seu amor misericordioso Ele não pode querer senão a salvação dos seres por Ele criados. Na realidade, é a criatura que se fecha ao Seu amor. A «perdição» consiste precisamente no definitivo afastamento de Deus, livremente escolhido pelo homem e confirmado com a morte que sela para sempre aquela opção. A sentença de Deus ratifica este estado.

4. A fé cristã ensina que, no delineamento do «sim» e do «não», que caracteriza a liberdade da criatura, alguém já disse não. Trata-se das criaturas espirituais que se rebelaram contra o amor de Deus e são chamadas demónios (cf. Concílio Lateranense IV: DS 800-801). Para nós, seres humanos, esta sua vicissitude soa como advertência: é apelo contínuo a evitar a tragédia a que o pecado leva e a modelar a nossa existência segundo a de Jesus, que se desenvolveu no sinal do «sim» a Deus.

A perdição continua uma real possibilidade, mas não nos é dado conhecer, sem especial revelação divina, quais os seres humanos que nela estão efectivamente envolvidos. O pensamento do inferno - e menos ainda a utilização imprópria das imagens bíblicas - não deve criar psicoses ou angústia, mas representa uma necessária e salutar advertência à liberdade, no interior do anúncio de que Jesus Ressuscitado venceu Satanás, dando-nos o Espírito de Deus, que nos faz invocar «Abbá, Pai» (Rm 8,15 Ga 4,6).

Esta perspectiva rica de esperança prevalece no anúncio cristão. Ela está reflectida de maneira eficaz na tradição litúrgica da Igreja, como testemunham por exemplo as palavras do Cânone Romano: «Aceitai com benevolência, ó Senhor, a oferta que nós, vossos ministros e a vossa família inteira, Vos apresenta- mos... salvai-nos da perdição eterna, e acolhei-nos no rebanho dos eleitos».

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Saúdo os peregrinos de língua portuguesa aqui presentes, com votos de paz e de prosperidade na graça de Deus-Pai. De modo especial, saúdo os visitantes provindos do Brasil e os grupos anunciados de Portugal da Paróquia de Azambuja e de Ermesinde e das viúvas do Movimento «Esperança e Vida» de Leiria. Penhor daquela juventude de alma e coração que brota do Espírito Santo em acção na Igreja e no mundo, seja para vós e vossos familiares a minha Bênção Apostólica.

Saúdo com afecto os peregrinos de língua espanhola, em especial os dois grupos de formadores de seminários que participam em cursos de actualização em Roma, assim como aos fiéis vindos de Espanha, México, Chile, Colômbia e demais Países da América Latina. Muito obrigado pela vossa presença e atenção.

Agora desejo saudar os peregrinos belgas e holandeses. Encontrais-vos numa cidade, onde os Apóstolos Pedro e Paulo proclamaram a fé e na qual numerosos santos viveram e oraram. Faço votos por que cada um de vós experimente a riqueza da graça de Deus, a fim de poderdes testemunhar o seu amor no vosso país. De coração concedo a Bênção Apostólica. Louvado seja Jesus Cristo!

Sinto-me muito feliz por saudar o grupo dos peregrinos vindos da Lituânia. Caros Irmãos e Irmãs, faço votos por que a vossa peregrinação vos infunda a força e a coragem de fazer todo o possível para serdes firmes em abraçar os ideais cristãos e permanecerdes fiéis à Igreja, respondendo aos seus apelos à paz, à unidade e ao amor fraterno. Deus vos abençoe, a vós, aos vossos entes queridos e à inteira Lituânia. Louvado seja Jesus Cristo!

Saúdo agora os peregrinos provenientes da Hungria. Desejo que esta visita ao túmulo de São Pedro aprofunde a vossa fé e enriqueça as vossas comunidades paroquiais. De coração vos concedo a Bênção Apostólica. Louvado seja Jesus Cristo!

Cordiais boas-vindas aos «Amigos do Movimento Salesiano de Dom Bosco» na República Tcheca. A todos vós desejo que as férias ajudem a saúde não só do corpo, mas também da alma. Com estes votos, de bom grado vos abençoo. Louvado seja Jesus Cristo!

Dirijo-me agora com muita cordialidade aos peregrinos de língua italiana. Em particular, saúdo os participantes no Curso de actualização promovido pelo Centro Interdisciplinar de formação permanente da Pontifícia Universidade Lateranense, e os dirigentes dos Conselhos diocesanos que participam no Congresso Nacional do Movimento de Empenho Educativo da Acção Católica.

Caríssimos, agradeço a vossa presença, e faço votos por que os vossos encontros vos sirvam de estímulo para vos empenhardes, com renovado impulso educativo e missionário, na obra da nova evangelização.

Dirijo um especial pensamento aos dois grupos de Religiosas, que estão a realizar o Capítulo Geral dos respectivos Institutos: as Irmãs Sacramentinas de Bérgamo e as Franciscanas Missionárias do Coração Imaculado de Maria. Caríssimas Irmãs, é-me grato encontrar-vos e invocar a abundância dos dons do Espírito Santo sobre os trabalhos capitulares destes dias, a fim de que suscitem nas vossas Famílias religiosas um renovado fervor espiritual e apostólico, para viverdes com fidelidade também hoje o caris- ma que Deus confiou às vossas Fundadoras: a Beata Gertrudes Comensoli e a Beata Maria Catarina Troiani.

Como de costume, saúdo, por fim, os Jovens, os Doentes e os jovens Casais.

Celebra-se amanhã a memória litúrgica de Santa Marta, que o Evangelho recorda pela amorosa hospitalidade oferecida a Jesus na sua casa de Betânia.

O exemplo desta santa mulher laboriosa e solícita vos ajude, caros jovens, a seguir com generosidade Cristo como testemunhas do seu amor aberto a todos; vos sustente, queridos doentes, a procurar Jesus no momento da tribulação, e vos guie, prezados jovens esposos, a fazer da vossa casa um lugar de caloroso acolhimento do próximo.

A todos a minha Bênção.



                                                                      Agosto de 1999

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 4 de Agosto de 1999

O purgatório: necessária purificação para o encontro com Deus




1. Como vimos nas duas catequeses precedentes, com base na opção definitiva a favor de Deus ou contra Ele, o homem encontra-se diante de uma das alternativas: ou vive com o Senhor na bem-aventurança eterna, ou permanece longe da sua presença.

Para quantos se encontram em condição de abertura a Deus, mas de modo imperfeito, o caminho rumo à plena bem-aventurança requer uma purificação, que a fé da Igreja ilustra através da doutrina do «purgatório» (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1030-1032).

2. Na Sagrada Escritura podem-se captar alguns elementos que ajudam a compreender o sentido desta doutrina, embora ela não seja enunciada de modo formal. Eles exprimem a convicção de que não se pode aceder a Deus sem passar através de alguma purificação.

Segundo a legislação religiosa do Antigo Testamento, aquilo que é destinado a Deus deve ser perfeito. Por conseguinte, a integridade também física é particularmente necessária para as realidades que entram em contacto com Deus no plano sacrifical, como por exemplo os animais a serem imolados (cf. Lv Lv 22,22), ou institucional, como no caso dos sacerdotes, ministros do culto (cf. Lv Lv 21,17-23). A esta integridade física deve corresponder uma dedicação total, dos indivíduos e da colectividade (cf. 1R 8,61) ao Deus da aliança, segundo os grandes ensinamentos do Deuteronómio (cf. 6, 5). Trata-se de amar a Deus com todo o próprio ser, com pureza de coração e testemunho de obras (cf. ibid., 10, 12 s.).

A exigência de integridade impõe-se evidentemente depois da morte, para o ingresso na comunhão perfeita e definitiva com Deus. Quem não tem esta integridade deve passar pela purificação. É um texto de São Paulo que o sugere. O Apóstolo fala do valor da obra de cada um, que será revelada no dia do juízo, e diz: «Se a obra construída subsistir, o construtor receberá a paga. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá a perda. Ele, porém, será salvo, como que através do fogo» (1Co 3,14-15).

3. Para alcançar um estado de perfeita integridade, às vezes é necessária a intercessão ou a mediação de uma pessoa. Por exemplo, Moisés obtém o perdão do povo com uma oração, na qual evoca a obra salvífica realizada por Deus no passado e invoca a sua fidelidade ao juramento feito aos antepassados (cf. Êx vv. 11-13). A figura do Servo do Senhor, delineada pelo Livro de Isaías, caracteriza-se também pela função de interceder e de expiar a favor de muitos; no final dos seus sofrimentos ele «verá a luz» e «justificará muitos», tomando sobre si as suas iniquidades (cf. Is Is 52, 13-53, v. 12, especialmente 53, 11).

Segundo a perspectiva do Antigo Testamento, o Salmo 51 pode ser considerado uma síntese do processo de reintegração: o pecador confessa e reconhece a própria culpa (cf. v. 6), pede insistentemente que seja purificado ou «lavado» (cf. vv.4.9.12 e 16) para poder proclamar o louvor divino (cf. v. 17).

4. No Novo Testamento Cristo é apresentado como o intercessor, que assume as funções do sumo sacerdote no dia da expiação (cf. Hb He 5,7 He 7,25). Mas n'Ele o sacerdócio apresenta uma configuração nova e definitiva. Ele entra uma só vez no santuário celeste, com a finalidade de interceder diante de Deus em nosso favor (cf. Hb He 9, 23-26, especialmente v. 24). Ele é Sacerdote e ao mesmo tempo «vítima de expiação» pelos pecados de todo o mundo (cf. 1Jn 2,2).

Jesus, como o grande intercessor que nos expia, revelar-Se-à plenamente no final da nossa vida, quando Se expressar com a oferta da misericórdia mas também com o inevitável juízo sobre aquele que rejeita o amor e o perdão do Pai.

A oferta da misericórdia não exclui o dever de nos apresentarmos puros e íntegros diante de Deus, ricos daquela caridade, que por Paulo é chamada «vínculo de perfeição» (CL 3,14).

5. Durante a nossa vida terrena, seguindo a exortação evangélica a sermos perfeitos como o Pai celeste (cf. Mt Mt 5,48), somos chamados a crescer no amor para nos encontrarmos firmes e irrepreensíveis diante de Deus Pai, «por ocasião da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, com todos os seus santos» (1Th 3,12 s.). Por outro lado, somos convidados a «purificar-nos de toda a imundície da carne e do espírito» (2Co 7,1 cf. 1Jn 3,3), porque o encontro com Deus requer uma pureza absoluta.

Todo o vestígio de apego ao mal deve ser eliminado; toda a deformidade da alma há-de ser corrigida. A purificação deve ser completa, e é precisamente assim que a doutrina da Igreja entende o purgatório. Este termo não indica um lugar, mas uma condição de vida. Aqueles que depois da morte vivem num estado de purificação já estão no amor de Cristo, o qual os alivia dos resíduos da imperfeição (cf. Conc. Ecum. de Florença, Decretum pro Graecis: DS 1304 Conc. Ecum. de Trento, Decretum de iustificatione: DS 1580 Decretum de purgatorio: DS 1820).

Deve-se esclarecer que o estado de purificação não é um prolongamento da situação terrena, como se depois da morte se desse uma ulterior possibilidade de mudar o próprio destino. O ensinamento da Igreja a respeito disto é inequívoco e foi reafirmado pelo Concílio Vaticano II, que assim ensina: «Como não sabemos o dia nem a hora, é preciso que, seguindo a recomendação do Senhor, vigiemos continuamente, a fim de que no termo da nossa vida sobre a terra, que é só uma (cf. Hb He 9,27), mereçamos entrar com Ele para o banquete de núpcias e ser contados entre os eleitos (cf. Mt Mt 25,31-46), e não sejamos lançados, como servos maus e preguiçosos (cf. Mt Mt 25,26), no fogo eterno (cf. Mt Mt 25,41), nas trevas exteriores, onde "haverá choro e ranger de dentes" ( 25, 30)» (Lumen gentium LG 48).

6. O último aspecto importante, que a tradição da Igreja sempre evidenciou, deve ser hoje reproposto: é o da dimensão comunitária. Com efeito, aqueles que se encontram na condição de purificação estão ligados tanto aos bem-aventurados, que já gozam plenamente a vida eterna, como a nós que caminhamos neste mundo rumo à casa do Pai (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1032).

Assim como na vida terrena os crentes estão unidos entre si no único Corpo místico, assim também após a morte aqueles que vivem no estado de purificação experimentam a mesma solidariedade eclesial que opera na oração, nos sufrágios e na caridade dos outros irmãos na fé. A purificação é vivida no vínculo essencial que se cria entre aqueles que vivem a vida do século presente e os que já gozam a bem-aventurança eterna.

Saudações

Saúdo os peregrinos de língua portuguesa, desejando-lhes todo o bem. Seja bem-vindos os visitantes do Brasil, bem como os que provêm de Portugal: os grupos paroquiais de Nossa Senhora de Fátima de Viana do Castelo e alguns peregrinos de Coimbra. E que, da visita a Roma, leveis avivada a própria fé e consciência de serdes Igreja missionária, a fim de contribuir para a unidade de todos os homens, na verdade e no amor! Com a minha bênção, extensiva aos vossos familiares.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 11 de Agosto de 1999


A vida cristã como caminho rumo à plena comunhão com Deus




Caríssimos Irmãos e Irmãs:

1. Depois de termos meditado sobre a meta escatológica da nossa existência, isto é, sobre a vida eterna, queremos agora reflectir sobre o caminho que a ela conduz. Desenvolvemos, por isso, a perspectiva apresentada na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente: «Toda a vida cristã é como uma grande peregrinação para a casa do Pai, de Quem se descobre todos os dias o amor incondicional por cada criatura humana e, em particular, pelo "filho perdido" (cf. Lc Lc 15,11 Lc Lc 15,32). Tal peregrinação parte do íntimo da pessoa, alargando-se depois à comunidade crente até alcançar a humanidade inteira» (n. 49).

Na realidade, aquilo que o cristão um dia viverá em plenitude, já está, de algum modo, antecipado hoje. Com efeito, a Páscoa do Senhor é inauguração da vida do mundo que há-de vir.

2. O Antigo Testamento prepara o anúncio desta verdade através da complexa temática do Êxodo. O caminho do povo eleito para a terra prometida (cf. Êx Ex 6,6) é como um magnífico ícone do cristão rumo à casa do Pai. Obviamente, a diferença é fundamental: enquanto no antigo Êxodo a libertação estava orientada para a posse da terra, dom provisório como todas as realidades humanas, o novo «Êxodo» consiste no itinerário rumo à casa do Pai, em perspectiva de algo definitivo e eterno, que transcende a história humana e cósmica. A terra prometida do Antigo Testamento foi, de facto, perdida com a queda dos dois reinos e com o exílio babilónico, depois do qual se desenvolveu a ideia de um retorno como um novo Êxodo. Todavia, este caminho não se resolveu unicamente noutro estabelecimento de tipo geográfico ou político, mas abriu-se a uma visão «escatológica» que já prenunciava a plena revelação em Cristo. Precisamente nesta direcção se movem as imagens universalistas, que no Livro de Isaías descrevem o caminho dos povos e da história rumo a uma nova Jerusalém, centro do mundo (cf. Is Is 56-66).

3. O Novo Testamento anuncia o cumprimento desta grande expectativa, indicando em Cristo o Salvador do mundo: «Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que se encontravam sob o jugo da Lei e para que recebêssemos a adopção de filhos» (Ga 4,4-5). À luz deste anúncio, a vida presente já está sob o sinal da salvação. Esta realiza-se no evento de Jesus de Nazaré que culmina na Páscoa, mas terá a sua plena realização na «parusia», na última vinda de Cristo.

Segundo o apóstolo Paulo este itinerário de salvação, que une o passado ao presente projectando-o no futuro, é fruto de um desígnio de Deus, todo centrado no mistério de Cristo. Trata-se do «mistério da Sua vontade, segundo o beneplácito que n'Ele de antemão estabelecera, para ser realizado ao completarem-se os tempos: reunir sob a chefia de Cristo todas as coisas que há no Céu e na Terra» (Ep 1,9-10 cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1042 s. ).


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