AUDIÊNCIAS 1999 - AUDIÊNCIA GERAL


JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 13 de Outubro de 1999

A virtude teologal da caridade: amor a Deus




Caríssimos Irmãos e Irmãs

1. No antigo Israel o mandamento fundamental do amor para com Deus estava inserido na oração recitada quotidianamente: «O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos que hoje te imponho serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ão aos teus filhos e meditá-los-ão quer em tua casa, quer em viagem, quer ao deitar-se ou ao levantar- se» (Dt 6,4-7).

Na base desta exigência de amar a Deus de modo total está o amor que o próprio Deus traz ao homem. Ele espera uma verdadeira e própria resposta de amor da parte do povo que Ele ama com um amor de predilecção. É um Deus cioso (cf. Êx Ex 20,5), que não pode tolerar a idolatria, pela qual o seu povo é continuamente tentado. Daqui o mandamento: «Não terás outro deus além de Mim» (ibid., v. 3).

Progressivamente Israel compreende que, para além desta relação de profundo respeito e de exclusiva adoração, deve exprimir ao Senhor uma atitude de filiação e até mesmo nupcial. Nesse sentido, será entendido e lido o Cântico dos Cânticos, transfigurando a beleza do amor humano no diálogo esponsal entre Deus e o seu povo.

Deste amor, o livro do Deuteronómio recorda duas características essenciais. A primeira é que o homem jamais seria capaz dele, se Deus não lhe desse a força através da «circuncisão do coração» (cf. v. 30, 6), que elimina do coração todo o apego ao pecado. A outra é que este amor, longe de se reduzir ao sentimento, se concretiza no «caminhar pelas vias» de Deus, na observância dos «seus mandamentos, das suas leis e das suas normas» (ibid, v. 16). É esta a condição para «ter a vida e o bem», enquanto que voltar o coração a outros deuses conduz a encontrar «a morte e o mal» (ibid., v. 15).

2. O preceito do Deuteronómio retorna inalterado no ensinamento de Jesus, que o define «o maior e o primeiro dos mandamentos», unindo a ele de maneira estreita o do amor ao próximo (cf. Mt Mt 22,34-40). Ao repropor o preceito nos mesmos termos do Antigo Testamento, Jesus mostra que sob este ponto a Revelação já atingiu o seu ápice.

Ao mesmo tempo, precisamente na pessoa de Jesus o sentido deste mandamento assume a sua plenitude. De facto, n'Ele se realiza a máxima intimidade do amor do homem por Deus. De agora em diante, amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças, significa amar aquele Deus que se revelou em Cristo e amá-l'O par- ticipando no próprio amor de Cristo, derramado em nós «pelo Espírito Santo» (Rm 5,5).

3. A caridade constitui a essência do «mandamento» novo ensinado por Jesus. Com efeito, ela é a alma de todos os mandamentos, cuja observância é ulteriormente reafirmada, ou melhor, se torna a demonstração evidente do amor para com Deus: «Porque este é o grande amor de Deus: que guardemos os Seus mandamentos» (1Jn 5,3). Este amor, que é ao mesmo tempo amor por Jesus, representa a condição para sermos amados pelo Pai: «Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é que Me ama, e aquele que Me ama será amado por Meu Pai, e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele» (Jn 14,21).

O amor para com Deus, que se tor- nou possível pelo dom do Espírito, funda-se, portanto, na mediação de Jesus, como Ele mesmo afirma na oração sacerdotal: «Dei-lhes a conhecer o Teu nome e dá-lo-ei a conhecer, para que o amor com que Me amaste esteja neles e Eu esteja neles também» (Jn 17,26). Esta mediação concretiza-se sobretudo no dom que Ele fez da sua vida, dom que por um lado testemunha o maior amor, por outro, exige a observância daquilo que Jesus manda: «Ninguém •tem maior amor do que aquele que dá a vi- da pelos seus amigos. Vós sereis Meus amigos se fizerdes o que Eu vos mando» (Jn 15,13-14).

A caridade cristã bebe nesta fonte de amor, que é Jesus, o Filho de Deus que se ofereceu por nós. A capacidade de amar como Deus ama, é oferecida a todo o cristão como fruto do mistério pascal de morte e ressurreição.

4. A Igreja expressou esta sublime realidade ao ensinar que a caridade é uma virtude teologal, isto é, uma virtu- de que se refere directamente a Deus e faz com que as criaturas humanas entrem no círculo do amor trinitário. Com efeito, Deus Pai ama-nos como ama a Cristo, vendo em nós a sua imagem. Ela é figurada, por assim dizer, em nós pelo Espírito que, como um «iconógrafo», a realiza no tempo.

É sempre o Espírito Santo que traça também no íntimo da nossa pessoa as linhas fundamentais da resposta cristã. O dinamismo do amor para com Deus brota assim de uma espécie de «conaturalidade» realizada pelo Espírito Santo que nos «diviniza», segundo a linguagem da tradição oriental.

Na força do Espírito Santo, a caridade anima o agir moral do cristão, orienta e revigora todas as outras virtudes, que edificam em nós a estrutura do homem novo. Como diz o Catecismo da Igreja Católica, «o exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade. Esta é o "vínculo da perfeição" (CL 3,14) e a forma das virtudes: articula-as e ordena-as entre si; é o princípio e o fim da sua prática cristã. A caridade assegura e purifica o nosso poder humano de amar e eleva-o à perfeição sobrenatural do amor divino» (n. 1827). Como cristãos, somos sempre chamados ao amor.

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Minha saudação afectuosa a todos os peregrinos de língua portuguesa que aqui se encontram, especialmente os portugueses da Paróquia de São Francisco de Paula, de Lisboa, e os visitantes brasileiros. Faço votos por que esta vossa visita a Roma vos encoraje a participar activamente na vida da Igreja, hoje, rezando pelos bons frutos do Sínodo da Europa. Peço a Deus que se digne enviar abundantes graças celestiais para as vossas famílias e os vossos filhos, com a minha Bênção Apostólica.

Saúdo de todo o coração os peregrinos de língua francesa, sobretudo a peregrinação da diocese de Namur. Possa a vossa permanência em Roma consolidar a fé e o amor à Igreja! Com a minha Bênção Apostólica.

Tenho o prazer de saudar o grupo de Directores da Conferência Católica Estatal dos Estados Unidos, por ocasião do seu encontro em Roma. Dou também boas-vindas aos estudantes e professores da Faculdade de Teologia da Universidade de Copenhaga. Sobre todos os peregrinos e visitantes de língua inglesa, de modo especial os da Inglaterra, Noruega, Dinamarca, Indonésia, Japão e Estados Unidos invoco cordialmente as abundantes bênçãos de Deus.

Saúdo com afecto os fiéis de língua espanhola, em especial os Superiores e alunos do Pontifício Colégio Mexicano. Saúdo também a Associação de Vizi- nhos «Tesorillo», de Melilla, assim como os peregrinos vindos da Espanha, Méxi- co, Uruguai, Peru, Chile e Argentina. Desejo que sempre experimenteis o amor de Deus e vivais a chamada ao amor.

Desejaria agora dar as boas-vindas a todos os peregrinos holandeses e belgas. Caríssimos Irmãos e Irmãs em Cristo! Maria Santíssima, Mãe do Senhor e Mãe da Igreja, seja a vossa guia nesta vida e acompanhe continuamente o vos- so caminho de fé e de caridade, pelo seu exemplo e pela sua intercessão. De coração concedo a Bênção Apostólica. Louvado seja Jesus Cristo!

Caros peregrinos lituanos! Saúdo-vos de coração e formulo votos por que a vossa visita ao centro da Cristandade e o hodierno encontro com o Sucessor de São Pedro vos aproximem ainda mais da Igreja universal de Cristo, mensageira de esperança para o mundo de hoje. De bom grado concedo a Bênção Apostólica a vós, aos vossos entes queridos e à vossa Pátria inteira, a Lituânia. Louvado seja Jesus Cristo!

Ao saudar os peregrinos de língua italiana, dirijo em primeiro lugar o meu pensamento aos fiéis da Paróquia «Imaculada», de Modugno (Bari), que me pediram que benzesse a primeira pedra da futura igreja paroquial. Saúdo, depois, o Comité das manifestações para a «Festa del Covo», em Cândia de Ancona. Saúdo os Dirigentes e o Pessoal do Hospital Civil de Sapri e, de bom grado, benzo as estátuas da Imaculada e de São José, que serão colocadas na capela há pouco construída. A Sagrada Família de Nazaré proteja esta estrutura hospitalar ao serviço das pessoas sofredoras e necessi- tadas de cuidados médicos.

Dirijo-me, agora, com muito afecto aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais.

O meu pensamento dirige-se a Nossa Senhora de Fátima, da qual precisamente hoje recordamos a última aparição. À celeste Mãe de Deus confio-vos, caros jovens, para que possais com generosidade responder ao chamado do Senhor. Maria seja para vós, queridos doentes, conforto nos vossos sofrimentos, e vos acompanhe, prezados jovens esposos, no vosso incipiente caminho familiar.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 20 de Outubro de 1999


A virtude teologal da caridade: amor para com o próximo




Queridos irmãos e irmãs,

1. «Se alguém disser: "Eu amo a Deus", mas odiar a seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama a seu irmão, ao qual vê, como pode amar a Deus, que não vê? D'Ele temos este mandamento: Quem ama a Deus, ame também a seu irmão» (1Jn 4,20-21).

A virtude teologal da caridade, a respeito da qual falámos na catequese passada, exprime-se na dúplice direcção: para Deus e para o próximo. Num e noutro aspecto, ela é fruto do próprio dinamismo da vida da Trindade dentro de nós.

Com efeito, a caridade tem no Pai a sua fonte, revela-se plenamente na Páscoa do Filho crucificado e ressuscitado, é infundida em nós pelo Espírito Santo. Nela Deus nos torna partícipes do seu próprio amor.

Se se ama de verdade com o amor de Deus, amar-se-á também o irmão como Ele o ama. Aqui está a grande novidade do cristianismo: não se pode amar a Deus, se não se amam os irmãos crian- do com eles uma íntima e perseverante comunhão de amor.

2. O ensinamento da Sagrada Escritura a respeito disso é inequivocável. O amor dos próprios semelhantes já é recomendado aos Israelitas: «Não te vingarás nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18). Se este preceito, num primeiro momento, parece restrito só aos Israelitas, ele entretanto é entendido pouco a pouco em sentido sempre mais amplo, incluindo também os estrangeiros que habitam no meio deles, na recordação de que o próprio Israel foi estrangeiro na terra do Egipto (cf. Lv Lv 19,34 Dt 10,19).

No Novo Testamento este amor é mandado num sentido claramente uni- versal: supõe um conceito de próximo que não tem fronteiras (cf. Lc Lc 10,29-37) e estendido também aos inimigos (cf. Mt Mt 5,43-47). É importante notar que o amor do próximo é visto como imitação e prolongamento da bondade misericordiosa do Pai celeste, que provê às necessidades de todos e não faz distinções de pessoas (cf. ibid., v. 45). Em todo o caso, ele continua ligado ao amor para com Deus: os dois mandamentos do amor representam de facto a síntese e o vértice da Lei e dos Profetas (cf. Mt Mt 22,40). Só quem prática ambos os mandamentos não está longe do Reino de Deus, como Jesus mesmo ressalta, respondendo a um escriba que O interrogara (cf. Mc Mc 12,28-34).

3. Seguindo este itinerário, que une o amor do próximo ao de Deus e ambos à vida de Deus em nós, é fácil compreender como o amor é apresentado no Novo Testamento como um fruto do Espírito, antes, como o primeiro entre os muitos dons enumerados por São Paulo na Carta aos Gálatas: «Mas o fruto do Espírito é: Caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança» (Ga 5,22).

Na tradição teológica são distinguidos, embora estejam postos em correlação, as virtudes teologais, os dons e os frutos do Espírito Santo (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1830-1832). Enquanto as virtudes são qualidades permanentes, conferidas à criatura em vista das obras sobrenaturais que ela deve realizar e os dons aperfeiçoam as virtudes tanto teologais como morais, os frutos do Espírito são actos virtuosos que a pessoa realiza com facilidade, de modo habitual e com gosto (cf. S. Tomás, Summa theologiae, I-.II, q. 70 a. 1, ad 2). Estas distinções não se opõem àquilo que Paulo afirma ao falar, no singular, de fruto do Espírito. Com efeito, o Apóstolo quer indicar que o fruto por excelência é a própria caridade divina que é a alma de todo o acto virtuoso. Assim como a luz do sol se exprime numa gama infinita de cores, assim também a caridade se manifesta em múltiplos frutos do Espírito.

4. Neste sentido, na Carta aos Colossenses diz-se: «Acima de tudo, revesti- vos da caridade que é o vínculo da perfeição» (3, 14). O hino à caridade contido na primeira Carta aos Coríntios (cf. 1Co 13) celebra este primado da caridade sobre todos os outros dons (cf. vv. 1-3), e até mesmo sobre a fé e a esperança (cf. v. 13). A respeito dela o apóstolo Paulo afirma: «A caridade nunca acabará» (v. 8).

O amor para com o próximo tem uma conotação cristológica, pois deve adequar-se ao dom que Cristo fez da própria vida: «Nisto conhecemos a caridade: Ele (Jesus) deu a Sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1Jn 3,16). Enquanto medido segundo o amor de Cristo, ele pode chamar-se «mandamento novo», que permite reconhecer os verdadeiros discípulos: «Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros. É por isto que todos saberão que sois Meus discípulos: Se vos amardes uns aos outros» (Jn 13,34-35). O significado cristológico do amor do próximo resplandecerá na segunda vinda de Cristo. Precisamente então, com efeito, se constatará que o metro de juízo da adesão a Cristo, é justamente o exercício quotidiano e visível da caridade para com os irmãos mais necessitados: «Eu estava com fome e Me destes de comer...» (cf. Mt Mt 25,31-46).

Só quem se deixa envolver pelo próximo e pelas suas indigências, mostra de maneira concreta o seu amor por Jesus. O fechamento e a indiferença para com o «outro» significam fechar-se ao Espírito Santo, esquecer-se de Cristo e negar o amor universal do Pai.

Saudações

Amados peregrinos vindos do Brasil e de outros países de língua portuguesa, dou-vos as minhas boas-vindas, com um obrigado por todas as vezes que lembrastes junto de Deus as intenções do meu ministério de Sucessor de Pedro, que há vinte e um anos me foi entregue. Deus vos pague, derramando sobre vós e as vossas famílias a abundância das bênçãos do Céu!

Dirijo agora uma saudação cordial aos peregrinos de língua italiana. Em particular, saúdo os participantes no centésimo Congresso da Sociedade Italiana de Medicina Interna. Caríssimos, agradeço a vossa visita e a qualificada acção no campo da Medicina clínica nacional e internacional. De coração formulo votos por que o vosso importante trabalho ao serviço do homem produza frutos copiosos, fortalecendo nos cidadãos a consciência do valor sagrado da vida e empenhando-os na defesa do direito de cada ser humano ver sumamente respeitado este bem primordial. Saúdo as vossas famílias e quantos se unem a vós para celebrar esta significativa comemoração. Deus abençoe as vossas pessoas e vos ajude na vossa actividade.

Enfim, dirijo o meu pensamento aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais.

Caríssimos, o mês de Outubro convida-nos a renovar a nossa activa cooperação na missão da Igreja. Com as viçosas energias da juventude, a força da oração e do sacrifício, e o vigor da vida conjugal, sabei ser missionários do Evangelho, oferecendo o vosso apoio concreto a quantos se dedicam a transmiti-lo a quem ainda não o conhece.



JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 27 de Outubro de 1999


Amor preferencial pelos pobres

1. O Concílio Vaticano II sublinha uma específica dimensão da caridade que, a exemplo de Cristo, nos leva a ir ao encontro sobretudo dos mais pobres: «Assim como Cristo... foi enviado pelo Pai a "evangelizar os pobres... a sarar os contritos de coração" (Lc 4,18), "a procurar e salvar o que perecera" (Lc 19,10), de igual modo a Igreja abraça com amor todos os afligidos pela enfermidade humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades e intenta servir neles a Cristo» (Lumen gentium LG 8).


Queremos hoje aprofundar o ensinamento da Sagrada Escritura sobre as motivações do amor preferencial pelos pobres.

2. Antes de mais deve-se observar que, desde o Antigo ao Novo Testamento, há um progresso ao avaliar o pobre e a sua situação. No Antigo Testamento emerge muitas vezes a comum convicção humana, segundo a qual a riqueza é melhor do que a pobreza e representa a justa recompensa reservada ao homem recto e temente a Deus: «Feliz o homem que teme o Senhor, que todo se compraz nos Seus mandamentos... Abundância e riqueza haverá na sua casa» (Ps 112,1-3). A pobreza é entendida como punição para quem rejeita a instrução sapiencial (cf. Pr Pr 13,18).

Mas sob outra perspectiva, o pobre torna-se objecto de atenção particular enquanto vítima de uma injustiça perversa. São famosas as invectivas dos profetas contra a exploração dos pobres. O profeta Amós (cf. 2, 6) põe a opressão do pobre entre os pontos de acusação contra Israel: «Vendem o justo por dinheiro, e o pobre por um par de sandálias, esmagam sobre o pó da terra a cabeça do pobre e confundem os pequenos» (ibid., vv. 6-7). A ligação da pobreza com a injustiça é ressaltada também em Isaías: «Ai dos que decretam leis injustas, e dos escribas que redigem prescrições tirânicas, dos que afastam os pobres do tribunal e tripudiam os direitos dos fracos do meu povo, que fazem das viúvas a sua presa e roubam os bens dos órfãos» (10, 1-2).

Esta conexão explica também a razão por que abandonam as normas em defesa dos pobres e daqueles que são socialmente mais débeis: «Não fareis mal algum à viúva e ao órfão. Se lhes fizerdes algum mal, clamarão por mim e Eu escutá-los-ei» (Ex 22,21-22 cf. Pr Pr 22,22-23 Si 4,1-10). Defender o pobre é honrar a Deus, Pai dos pobres. Portanto, é justificada e recomendada a generosidade para com eles (cf. Dt Dt 15,1-11 Dt 24,10-15 Pr 14,21 Pr 17,5).

No progressivo aprofundamento do tema da pobreza, ela está a assumir um valor religioso. Deus fala dos «seus» pobres (cf. Is Is 49,13) que são identificados com o «resto de Israel», povo humilde e pobre, segundo uma expressão do profeta Sofonias (cf. 3, 12). Também do futuro Messias se diz que tomará a peito os pobres e os oprimidos, como se exprime Isaías no conhecido texto referente ao rebento que surgirá do tronco de Jessé: «Julgará os pobres com justiça, e com equidade os humildes da terra» (11, 4).

3. Por isto, no Novo Testamento aos pobres é anunciada a alegre mensagem da libertação, como Jesus mesmo sublinha, aplicando a Si a profecia do livro de Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a man- dar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça do Senhor» (Lc 4,18 cf. Is Is 61,1-2).

É preciso assumir a atitude interior do pobre para ser partícipe no «reino dos céus» (cf. Mt Mt 5,3 Lc 6,20). Na parábola da grande ceia os pobres juntamente com os estropiados, os cegos e os coxos, numa palavra, com as categorias sociais mais sofredoras e marginalizadas, são convidados ao banquete (cf. Lc Lc 14,21). São Tiago dirá que Deus «escolheu os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino, que prometeu aos que O amam» (2, 5).

4. A pobreza «evangélica» implica sempre um grande amor pelos mais pobres deste mundo. Neste terceiro ano de preparação para o Grande Jubileu é preciso redescobrir Deus como Pai providente, que Se inclina sobre os sofrimentos humanos para erguer quantos por eles estão afligidos. Também a nossa caridade deve traduzir-se em partilha e promoção humana, entendida como crescimento integral de toda a pessoa.

Ao longo da história, a radicalidade evangélica impeliu tantos discípulos de Jesus a buscarem a pobreza até ao ponto de vender os próprios bens e os dar em esmola. Nesta perspectiva, a pobreza torna-se uma virtude que, além de aliviar a sorte do pobre, se transforma em caminho espiritual graças ao qual ele pode proporcionar a si mesmo a verdadeira riqueza, ou seja, um tesouro inexaurível nos céus (cf. Lc Lc 12,32-34). A pobreza material nunca é fim em si mesma, mas um meio para seguir Cristo, o Qual, como recorda Paulo aos Coríntios, «sendo rico Se fez pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza» (2Co 8,9).

5. Nesta altura, não posso deixar de fazer notar, mais uma vez, que os pobres constituem o desafio hodierno, sobretudo para os povos abastados do nosso planeta, onde milhões de pessoas vivem em condições desumanas e muitas morrem literalmente de fome. Anunciar Deus Pai a estes irmãos não é possível sem o empenho em colaborar, em nome de Cristo, para a construção de uma sociedade mais justa. Desde sempre, e de modo particular com o seu magistério social, desde a Rerum novarum à Centesimus annus, a Igreja esforçou-se por enfrentar o tema dos mais pobres. O Grande Jubileu do Ano 2000 deve ser visto como mais uma ocasião de forte conversão dos corações, para que o Espírito suscite nesta direcção novas testemunhas. Os cristãos, juntamente com todos os homens de boa vontade, deverão contribuir, através de adequados programas económicos e políticos, para aquelas mudanças estruturais tão necessárias a fim de que a humanidade seja reerguida da chaga da pobreza (cf. CA CA 57).

Saudações

Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua portuguesa, hoje representados especialmente pelo Senhor Comandante, Oficiais e Suboficiais, Cadetes do Navio-Escola «Brasil». Desejo a todos felicidades, e que crescendo na fé e na consciência da vocação cristã, honrem sempre a dignidade a que os elevou o Baptismo. Aos Oficiais e Cadetes da Marinha do Brasil, convido a servirem sempre a Pátria com espírito de lealdade e solidariedade, demonstrando, com seu exemplo, que serão sempre construtores de fraternidade e defensores da paz. Com estes votos vos abençoo, assim como as vossas famílias.

Acolho com alegria os peregrinos de expressão francesa, sobretudo D. Herriot, Bispo de Soissons, e os seus diocesanos. Que a sua peregrinação, seguindo os passos de Pedro e Paulo, lhes reavive a fé em Cristo! A todos, concedo a minha Bênção Apostólica.

Saúdo com muito afecto as Irmãs Missionárias do Preciosíssimo Sangue. Apresento especiais boas-vindas aos membros do Grémio Católico de Polícia e ao grupo de Vigários Judiciais da Grã- Bretanha. Sobre todos os peregrinos e visitantes de língua inglesa, em especial os da Grã-Bretanha, Irlanda, Filipinas, Japão e Estados Unidos da América. invoco as abundantes bênçãos de Deus omnipotente.

Dou as boas-vindas a todos os pere- grinos de língua espanhola. De modo especial saúdo os grupos paroquiais procedentes da Espanha, Panamá, Chile e de outros países da América Latina. Ao invocar sobre todos a misericórdia de Deus Pai, abençoo-vos de coração.

Saúdo com afecto os peregrinos húngaros de Kiskunfélegyháza e os colaboradores do programa húngaro da Rádio Vaticano que festejaram ontem o 50° aniversário das suas transmissões. De coração invoco a minha Bênção Apostólica sobre eles e sobre todos os ouvintes húngaros. Louvado seja Jesus Cristo! Queridos peregrinos provenientes da República Tcheca! Os Santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu, cuja festa celebraremos amanhã, são chamados também Simão, o «Zeloso», e Judas «magnânimo». Faço votos por que também vós, com «zelo», deis testemunho da fé e abrais sempre com «magnanimidade» os vossos corações a Deus. De bom grado vos abençoo! Louvado seja Jesus Cristo!

Caros Irmãos e Irmãs croatas, dos baptizados espera-se que do seu modo de viver e de agir transpareça o seu ser cristão. Esta linguagem deve ser de amor por todos, inclusive os inimigos, grande no perdão e que estende a mão em sinal de reconciliação. Com efeito, o amor autêntico compreende em si perdão e reconciliação. Saúdo cordialmente o Coro misto «Lira» de Vodice, os membros da Associação croata das Enfermeiras e os Dirigentes das Casas das Estudantes de Zagrábia. A todos concedo a Bênção Apostólica. Louvados sejam Jesus e Maria!

Tenho a alegria de acolher um grupo de peregrinos provenientes do Patriarcado de Moscovo, hóspedes do Círculo de São Pedro em Roma. A vossa visita aos comuns lugares de fé que remontam aos primeiros séculos, sirva para o mútuo enriquecimento. Dirijo uma saudação cordial aos Religiosos Mercedários e desejo-lhes todo o bem para o seu curso de formação.

Saúdo os peregrinos italianos, em particular os participantes no quinto Congresso nacional da Associação Católica dos Dirigentes de sala de cinema, por ocasião do quinquagésimo aniversário de constituição. Caríssimos, as salas cinematográficas das comunidades eclesiais são expressão concreta do Projecto cultural da Igreja italiana. Penso com gratidão nos sacerdotes e leigos que nestes 50 anos animaram esse serviço e encorajo-vos a prossegui-lo de modo sempre qualificado, para um profícuo diálogo entre a Igreja e a sociedade.

Dirijo depois um pensamento à Obra Diocesana de Assistência de Roma, que completou, também ela, os 50 anos, e aos participantes na Assembleia Geral do Serviço de Animação Comunitária, aos quais agradeço o empenho com que se esforçam por traduzir em projectos pastorais a doutrina do Concílio Vaticano II.

Além disso, saúdo os agentes da pastoral da saúde, reunidos para o primeiro Congresso nacional de Oncologia Médica, e os Dirigentes da Sociedade «Adecco»; os Alunos Agentes da Polícia do Estado, de Caserta, e a representação do Arsenal da Marinha Militar de Tarento; os sócios da Confederação de Cooperativas de Milão e os jovens «Alferes do Trabalho».

Por fim, dirijo-me aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais.

Caríssimos, celebraremos amanhã a festa dos Santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu. O seu glorioso testemunho sustente todos vós para responderdes com generosidade à chamada do Senhor.



                                                                     Novembro de 1999

JOÃO PAULO II

AUDIÊNCIA

Quarta-feira 3 de Novembro de 1999

Empenho pela redução da dívida internacional dos países pobres




1. «Vinde, benditos de Meu Pai, recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber...» (Mt 25,34-35).

Estas palavras evangélicas ajudam-nos a dar consistência à nossa reflexão sobre a caridade, estimulando-nos, segundo as indicações da Tertio millennio adveniente (cf. n. 51), a focalizar algumas linhas de empenho particularmente de acordo com o espírito do grande Jubileu, para cuja celebração nos preparamos.

Para isto, é oportuna uma evocação do jubileu bíblico. Descrito no livro do Levítico, cap. 25, por certos aspectos ele reproduz e exprime de modo mais completo a função do ano sabático (cf. vv. 2-7.18-22), em que nos devemos abster do cultivo da terra. O ano jubilar ocorre depois de um período de 49 anos. Também ele é caracterizado pela abstenção de cultivar o solo (cf. vv.8-12), mas comporta duas normas em benefício dos israelitas. A primeira diz respeito às propriedades da terra e às construções (cf. vv.13-17.23-34); a segunda concerne à libertação do escravo israelita que foi vendido por dívida a um próprio compatriota (cf. vv. 39-55).

2. O jubileu cristão, como se iniciou a celebrar a partir de Bonifácio VIII em 1300, tem uma sua configuração específica, mas não lhe faltam conteúdos que remetem ao jubileu bíblico.

No que se refere à posse dos bens imóveis, a norma do jubileu bíblico baseava-se no princípio segundo o qual a «terra é de Deus» e, por isso, dada em benefício da inteira comunidade. Por este motivo, se um israelita tivesse alienado o seu terreno, o ano jubilar consentia-lhe reavê-lo em posse. «Nenhuma terra será vendida definitivamente porque a terra Me pertence, e vós sois apenas estrangeiros e hóspedes na Minha casa. Portanto, concedereis o direito de resgate da terra em todo o país que possuirdes» (Lv 25,23-24).

O jubileu cristão remete-nos com sempre maior consciência aos valores sociais do jubileu bíblico, que quer interpretar e repropor no contexto contemporâneo, reflectindo sobre as exigências do bem comum e sobre a destinação universal dos bens da terra. Precisamente nesta perspectiva, na Tertio millennio adveniente propus que o Jubileu seja vivido como «um tempo oportuno para pensar, além do mais, numa consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas Nações» (n. 51).

3. Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio, a propósito deste problema, típico de muitos países economicamente pobres, afirmou que é preciso um diálogo entre aqueles que fornecem os meios e aqueles a quem são destinados, de maneira a «avaliar os subsídios, não só quanto à generosidade e disponibilidade de uns, mas também em função dos bens reais e das possibilidades de emprego de outros. Então, os países em vias de desenvolvimento já não correrão o risco de ficarem sobrecarregados de dívidas, cuja amortização e juros absorvem o melhor dos seus lucros» (n. 54). Na Encíclica Sollicitudo rei socialis observei que, infelizmente, as mudadas circunstâncias, tanto nos países endivi- dados como no mercado internacional financiador, fizeram com que o próprio financiamento se tornasse um «mecanismo contraproducente», e isto, «quer porque os países devedores, para satisfazerem os compromissos da dívida, se vêem obrigados a exportar os capitais que seriam necessários para aumentar ou, pelo menos, para manter o seu nível de vida, quer porque, pela mesma razão, eles não podem obter novos financiamentos igualmente indispensáveis» (n. 19).

4. O problema é complexo e de não fácil solução. Entretanto, deve ser claro que ele não é apenas de carácter económico, mas investe os princípios éticos fundamentais e deve encontrar espaço no direito internacional, para ser enfrentado e resolvido de maneira adequada, segundo perspectivas a médio e longo prazo. É necessário aplicar uma «ética da sobrevivência» que regule as relações entre credores e devedores, de modo que o devedor em dificuldade não seja pressionado por um peso insuportável. Trata-se de evitar especulações abusivas, de chegar a soluções concordes através das quais aqueles que emprestam estejam mais tranquilos e os que recebem se sintam empenhados em efectivas reformas globais no que se refere aos aspectos político, burocrático, financeiro e social dos seus países (cf. Pontifícia Comissão «Justiça e Paz», Ao serviço da comunidade humana. Uma abordagem ética da dívida internacional, II).

Hoje, no contexto da economia «globalizada», o problema da dívida internacional torna-se ainda mais difícil, mas a própria «globalização» exige que se percorra a estrada da solidariedade, se não se quiser ir ao encontro de uma catástrofe geral.

5. Precisamente no contexto destas considerações acolhemos a instância quase universal que nos chega dos Sínodos recentes, de muitas Conferências Episcopais ou individualmente dos Coirmãos Bispos, assim como de amplas representações de religiosos, sacerdotes e leigos, que dirigem um premente apelo para que sejam perdoadas, parcial ou até mesmo totalmente, as dívidas contraídas a nível internacional. De modo especial, pedir pagamentos com juros exorbitantes obrigaria a opções políticas que reduziriam à fome e à miséria inteiras populações.

Esta perspectiva de solidariedade, que tive ocasião de indicar na Centesimus annus (cf. n. 35), tornou-se ainda mais urgente na situação mundial dos últimos anos. O Jubileu pode constituir uma ocasião propícia para gestos de boa vontade: os países mais ricos dêem sinais de confiança em relação ao saneamento económico das nações mais pobres; os operadores do mercado saibam que no vertiginoso processo de globalização económica não é possível salvar-se sozinho. O gesto de boa vontade de perdoar as dívidas ou, pelo menos, de as reduzir, seja o sinal de um modo novo de considerar a riqueza em função do bem comum.

Apelo

Notícias de tensões étnicas chegaram nestes dias do Burundi, onde a população, já extenuada por longos anos de precariedade política e económica, vê agravar-se as próprias condições de vida.

Mais uma vez, quereria insistir sobre a urgente necessidade de favorecer o retorno das famílias às suas terras, o acesso livre e seguro das Organizações humanitárias a todos as zonas e a justa distribuição dos auxílios.

Não é com o deslocamento forçado das populações, nem com a prepotência e a luta armada que se prepara o futuro de um país! Fazendo assim, não se pode esperar, depois, na ajuda da Comunidade internacional.

Por sua parte, a Igreja católica, tão presente naquela Nação, não deixará de continuar a dar o seu contributo precioso à formação das consciências e à pacificação dos espíritos, em vista dum futuro melhor.

Saudações

Queridos Irmãos e Irmãs!

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua portuguesa, desejando que a visita ao Túmulo de São Pedro dê nova força à vossa fé no Senhor Jesus e consolide com o amor divino os vínculos de cada um dentro da família, da comunidade paroquial e do trabalho diário. Estes são os meus votos, acompanhados da minha Bênção.

Por fim, dirijo a minha saudação aos Jovens, aos Doentes e aos jovens Casais, aqui presentes. A Solenidade de Todos os Santos e a comemoração dos Fiéis Defuntos, que acabámos de celebrar, assim como a próxima memória de São Carlos Borromeu, a mim particularmente grata, oferecem-nos a oportunidade para reflectir, mais uma vez, sobre o autêntico significado da existência terrena e sobre o seu valor para a eternidade.

Estes dias de reflexão e de oração constituem para vós, caros jovens, um convite a imitar o heroísmo dos Santos, que despenderam a vida ao serviço de Deus e do próximo. Sejam de grande conforto especialmente para vós, queridos doentes, associados de maneira profunda ao mistério da paixão de Cristo.

Por fim, se tornem uma ocasião propícia para vós, prezados jovens esposos, para compreenderdes sempre melhor que sois chamados a testemunhar, com a vossa fidelidade recíproca, o amor infinito com que Deus circunda todo o homem.



AUDIÊNCIAS 1999 - AUDIÊNCIA GERAL