Discursos João Paulo II 1999 - Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1999

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS FUNCIONÁRIOS DO ARQUIVO SECRETO VATICANO


E DA BIBLIOTECA APOSTÓLICA VATICANA


Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1999



Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. Sinto-me muito feliz por receber hoje todos vós, que prestais o vosso quotidiano serviço no Arquivo Secreto Vaticano e na Biblioteca Apostólica Vaticana e por vos dar as cordiais boas-vindas, que de bom grado faço extensivas também aos vossos familiares. Saúdo em particular D. Jorge María Mejía, Arquivista e Bibliotecário da Santa Igreja Romana, ao qual agradeço as gentis palavras que me dirigiu em vosso nome. Com ele, saúdo os Reverendos Padres Sérgio Pagano, Prefeito do Arquivo Secreto Vaticano, e Raffaele Farina, Prefeito da Biblioteca Apostólica Vaticana.

O título de Bibliotecário, usado já no século IX por Anastásio Bibliotecário (cf. Pl 127-129), é uma válida indicação da qual deduzir quer a venerável antiguidade das Instituições de que fazeis parte, quer os vínculos estreitos entre elas e a Sé Apostólica.

Com efeito, o vosso trabalho não se extingue no empenho, apesar de ser importantíssimo, da conservação dos livros e dos manuscritos, das Actas dos Sumos Pontífices e das Repartições da Cúria Romana, e da sua transmissão através dos séculos, mas tem sobretudo por objectivo pôr à disposição da Santa Sé e dos estudiosos de todo o mundo os mesmos tesouros de cultura e de arte dos quais o Arquivo e a Biblioteca são o escrínio. Precisamente por este motivo faz também parte da vossa tarefa o estudo atento e preciso destes tesouros, muitas vezes com a ajuda de outros peritos, para que possam ser publicados com rigor científico. Testemunhos deste precioso serviço são as várias colecções que a Biblioteca e o Arquivo continuam a publicar e a difundir, encontrando o apreço do mundo dos históricos, dos canonistas, dos estudiosos de peleografia e dos peritos em literatura clássica e em música antiga. Desejaria agradecer-vos por todo este enorme empenho, enquanto vos encorajo de coração a prossegui-lo e a aprofundá-lo com paixão constante.

2. Compreendem-se bem o interesse e a solicitude com que os meus venerados Predecessores, sobretudo desde há alguns séculos, criaram, promoveram e seguiram a Biblioteca Apostólica e depois, como ramo maduro dela, o Arquivo Pontifício. Penso em Nicolau V, Sisto IV, Sisto V, Paulo V e em muitos outros Pontífices, até chegar a Leão XIII, o qual decidiu abrir o Arquivo à investigação científica, e a Pio XI, ele mesmo pessoalmente empenhado, como Prefeito da Biblioteca Apostólica, neste nobre género de interesse.

Os pontífices viram na Biblioteca e no Arquivo, além de instrumentos preciosos de serviço à cultura e à arte, outras duas qualidades de relevo, que desejo evidenciar, porque são sempre válidas e necessárias, talvez mais hoje do que no passado.

A primeira é a relação entre os textos conservados e o exercício do governo e do ministério da Sé Apostólica, de maneira particular do Magistério Pontifício. Estes textos veneráveis contêm e transmitem dum certo modo a própria memória da Igreja e, por conseguinte, a continuidade do seu serviço apostólico através dos séculos, com as suas luzes e sombras, ambas a serem conhecidas sem receio, ao contrário, com sincera gratidão ao Senhor que continuamente guia a sua Igreja no meio das vicissitudes do mundo.

Eis quanto tinha em grande consideração o Papa Leão XIII, quando quis que o Arquivo se tornasse acessível aos estudiosos, já no longínquo ano de 1880. Além disso, a maravilhosa decoração do Salão Sistino, querida por Sisto V, põe em relevo a relação existente entre a Biblioteca e o exercício do Magistério nas duas séries de afrescos, onde de um lado se vê a história das mais célebres bibliotecas, e do outro a representação dos Concílios ecuménicos.

3. Deve ser depois evidenciada uma segunda qualidade da Biblioteca e do Arquivo, e por conseguinte do vosso trabalho nessas duas instituições, seja qual for o nível em que é desempenhado. Trata-se do serviço que prestais à evangelização da cultura, aliás, à nova evangelização da cultura. Bem sabeis que este é um empenho central e vital da Igreja no mundo contemporâneo, ao qual já se referia com palavras iluminantes o Servo de Deus Paulo VI, na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi (cf. n. 19-20) e que eu mencionei várias vezes. É preciso encontrar o modo para fazer chegar aos homens e às mulheres de cultura, mas talvez ainda antes aos ambientes e aos cenáculos onde a cultura actual é elaborada e transmitida, os valores que o Evangelho nos comunicou, juntamente com os que surgem dum verdadeiro humanismo, ambos na realidade estreitamente relacionados entre si.

Com efeito, se o Evangelho nos ensina a primazia absoluta de Deus e a única salvação em Cristo Senhor, esta é também a única via para apreciar, respeitar e amar deveras a criatura humana, feita à imagem e semelhança de Deus e chamada a estar inscrita no mistério do Filho de Deus feito homem. Agora, os preciosos vestígios conservados, estudados e tornados acessíveis na Biblioteca e no Arquivo, constituem como que o testemunho vivo da constante proclamação, por parte da Igreja, dos valores evangélicos, fautores do verdadeiro humanismo.

4. Queridos Irmãos e Irmãs, estão aqui delineadas de maneira muito clara a grandeza e a dignidade do vosso serviço, mesmo na humildade aparente das tarefas que por vezes sois chamados a desempenhar. Estais conscientes de que, no seu cumprimento, prestais um importante serviço à Sé Apostólica e duma forma particular ao Sucessor de Pedro. Contribuís de maneira significativa para estabelecer as condições a fim de que os homens e as mulheres empenhados no âmbito cultural possam encontrar o caminho que os conduz ao seu Criador e Salvador, e desta forma também à verdadeira e total realização da sua específica vocação, neste tempo de transição do segundo para o terceiro Milénio.

Encontramo-nos na vigília do Grande Jubileu e, por conseguinte, é oportuno considerar os vossos diversos empenhos, também nas Exposições que organizais ou às quais prestais a vossa colaboração OE entre elas sobressai a que está a decorrer actualmente no Salão Sistino sob o título «Tornar-se Santo» OE como ocasiões para viver a renovação espiritual à qual todos somos chamados. Ajudai quem vai à Biblioteca ou ao Arquivo, quem visita as Exposições, ou quem consulta o material didáctico por vós conservado, a receber a mensagem que emana do conjunto de tais testemunhos: é uma mensagem que remete para a iniciativa salvífica de um Deus misericordioso, que é Verdade suprema e Bem infinito.

5. Por fim, sinto o dever de dirigir um premente apelo a todos vós: amai, respeitai e defendei este grande património constituído ao longo dos séculos pelos Romanos Pontífices. Trata-se de bens preciosos e inalienáveis da Santa Sé, que devem ser ciosamente conservados. Deles só pode dispor, como é óbvio, o Sumo Pontífice. Por conseguinte, cada qual sinta o dever de administrar com cuidado extremo tais bens da Sé Apostólica, conscientes de prestar um serviço à Igreja e ao mundo.

Com estes votos, abençoo de coração cada um de vós e o vosso trabalho quotidiano.



DISCURSO DO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO PONTIFÍCIO SEMINÁRIO REGIONAL DA APÚLIA


POR OCASIÃO DO 90° ANIVERSÁRIO DE FUNDAÇÃO


Sábado, 16 de Janeiro de 1999



Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Caríssimos jovens!

1. Bem-vindos! É com grande alegria que vos acolho hoje para esta grata visita. A todos a minha mais cordial saudação.

Com ânimo repleto de gratidão, saúdo o vosso Reitor e acolho as palavras que, em nome de cada um de vós, quis dirigir-me: elas são a expressão de uma relação que, na fé, encontra o seu valor mais autêntico e o seu desenvolvimento mais completo.

Esta vossa visita coincide com uma data para nós particularmente significativa: há pouco mais de um mês, com efeito, celebrava-se o nonagésimo aniversário de fundação do vosso Seminário, onde, nestas nove décadas, se formaram numerosos sacerdotes. Demos graças ao Senhor por este feliz aniversário e pelos objectivos alcançados neste período.

2. A data que comemorais é rica de memórias: a vossa «casa» atravessou este século, acolhendo e formando gerações de ministros sagrados que, nos vários âmbitos da comunidade eclesial, prestaram e continuam a prestar o seu serviço como Diáconos, Presbíteros, Bispos e Cardeais. Também muitos jovens, que não prosseguiram o caminho rumo ao Sacerdócio, encontraram nela, num período significativo da sua vida, a «feição» e as atenções de um lugar amigo e familiar.

A data que comemorais é, ao mesmo tempo, rica de futuro: o vosso Seminário é também hoje ardente de entusiasmo e continua a acolher jovens que desejam reflectir sobre um projecto vocacional na Igreja e para o mundo. A eles é proposta uma experiência educativa, capaz de transformar o seu projecto em fecunda realidade apostólica.

Todo o seminário nasce com uma finalidade bem precisa: preparar num clima de oração, de estudo e de fraternidade os futuros ministros da Igreja. «Pastores dabo vobis»: o Senhor promete ao Seu rebanho pastores «segundo o Seu coração» (Jr 3,15). O período que se passa no seminário está totalmente orientado para esta meta: fazer com que nos jovens que se encaminham para o sacerdócio, se efectue esta «transformação do coração», que os impelirá a amar e servir a comunidade eclesial com os mesmos sentimentos de Cristo.

Um seminário regional acentua, depois, o carácter de radicação desta comunidade e dos seus ministros no interior de um território específico, reconhecível por peculiares traços geográficos, comuns vicissitudes históricas e originais expressões de vida e de cultura, que, interagindo com outras realidades territoriais, configuram mentalidades e costumes. O seminário torna-se, então, um instrumento privilegiado das Igrejas particulares, chamadas a realizar «aqui e agora» o mistério da comunhão eclesial. Ele deve ser uma «comunidade eclesial educativa..., empenhada na formação humana, espiritual, intelectual e pastoral dos futuros presbíteros» (Pastores dabo vobis PDV 61). Por este motivo, a formação que é ministrada na vossa «casa» não pode prescindir de um olhar amoroso e inteligente para as dinâmicas que caracterizam o ambiente em que vivem e actuam as Comunidades cristãs da Apúlia.

3. Desde a antiga adesão à fé até às modernas inquietudes da secularização, da religiosidade popular às tentativas de nova evangelização, da antepassada emigração às actuais formas de acolhimento de prófugos e imigrados, do tradicional posicionamento agrícola, pastoral e marítimo às profundas transformações económicas e culturais do presente, as características da região devem ser objecto das vossas reflexões e ponto de referência constante para a vossa preparação.

Nesta perspectiva, parece-me que, de uma data rica de projectos, como é precisamente a comemoração do nonagésimo aniversário de fundação do Seminário, emergem duas indicações particularmente significativas: a oportunidade, antes de tudo, da decisão, tomada a seu tempo, de instituir uma estrutura educativa filosófico-teológica na Região da Apúlia. Isto ajudou inteiras gerações de jovens a aprofundar a relação, problemática mas iniludível, entre «fides et ratio». A colaboração entre fé e razão produziu, neste nosso século, grandes projectos; a sua separação determinou terríveis tragédias.

É possível deduzir a segunda indicação do ensinamento, e mais ainda da vida dos Pontífices que mais uniram o seu nome ao vosso Seminário: São Pio X fundou-o e instituiu a sua sede em Lecce, e Pio XI depois incrementou-o e transferiu-o para Molfetta. As vicissitudes destes meus dois venerados Predecessores podem iluminar-vos sobre os desafios relevantes que vos esperam. Não obstante as dificuldades que os dois Pontífices tiveram de enfrentar, tanto no seio da Igreja como nas relações com o mundo laico, eles permanecem insignes exemplos de fidelidade a Cristo e de ardente zelo pela causa do Evangelho. O seu testemunho é convite à solidez doutrinal e também à corajosa abertura; é, além disso, estímulo à santidade de vida e à audácia apostólica diante das instâncias do mundo contemporâneo.

De coração faço votos por que o Pontifício Seminário Regional da Apúlia seja «escola de apóstolos», tal como o quiseram os meus Predecessores: apóstolos dispostos a servir o povo de Deus, com todas as suas energias. Possa o vosso Seminário formar presbíteros que sejam para os fiéis guias seguras, seguindo os passos de Jesus Bom Pastor.

A Virgem Maria, venerada por vós como «Reginae Apuliae», acompanhe com o seu exemplo e a sua intercessão os vossos passos, reavive as vossas esperanças, vos sustente nos momentos difíceis, a fim de que se realize em plenitude o projecto vocacional que Deus tem para cada um de vós.

Ao assegurar-vos, da minha parte, uma constante lembrança na oração, a todos concedo de coração a Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À JUNTA E AO CONSELHO REGIONAL


DA REGIÃO DO LÁCIO


Sábado, 16 de Janeiro de 1999



Senhor Presidente da Junta Regional
Senhor Presidente do Conselho Regional
Ilustres Membros da Junta e do Conselho
Gentis Senhoras e Senhores!

1. É com grande prazer que hoje dirijo as minhas boas-vindas a cada um de vós que, prosseguindo uma consolidada e feliz tradição, me quisestes encontrar no início do novo ano. Agradeço a vossa presença e formulo ardentes votos de prosperidade e de paz para a Região do Lácio, para vós e os vossos familiares.

Saúdo em particular o Presidente do Conselho Regional, Deputado Luca Borgomeo. É-me grato, de igual modo, manifestar profundo reconhecimento ao Deputado Piero Badaloni, Presidente da Junta Regional, pelas gentis expressões que me dirigiu em nome quer vosso quer de quantos representais.

A vossa Região, com as suas beneméritas instituições, o seu singular património humano e cristão, as luzes e as sombras da realidade quotidiana, será chamada em breve - o Presidente ressaltou-o - a medir-se com o extraordinário acontecimento do Grande Jubileu do Ano 2000. Conheço o empenho com que, há alguns anos, a Administração Regional se está a preparar para esta data. Faço votos por que as iniciativas propostas sirvam para oferecer aos peregrinos um acolhimento digno da vocação universal da Região e dos sinais de fé que nela se encontram.

2. O Jubileu é um evento espiritual, que diz respeito em primeiro lugar à vida dos crentes. Contudo, não passa despercebido a ninguém que a relevância do nascimento de Cristo para a humanidade inteira, a presença viva e operante dos cristãos no mundo e as instâncias de renovação profunda que as celebrações jubilares apresentam à comunidade dos crentes, fazem com que o influxo do Jubileu supere os confins da Igreja, interessando dalguma forma também a sociedade e as instituições civis.

Convidando a fixar o olhar no Verbo Encarnado, no qual «o mistério do homem... se esclarece verdadeiramente» (Gaudium et spes GS 22), o Jubileu solicita crentes e não crentes a medir-se com o desígnio de salvação conservado nos livros da Bíblia, para dele obter preciosas indicações acerca da grandeza da pessoa humana, que em Cristo encontra a sua máxima exaltação. Esta perspectiva solicita os administradores a reconsiderar a qualidade do seu serviço aos cidadãos, a voltar a compreender as suas motivações profundas, a purificar cada vez mais as suas intenções e a melhorar as suas realizações.

3. A tradição bíblica, recebida e desenvolvida pela Doutrina Social da Igreja, apresenta o Jubileu como tempo do restabelecimento da justiça de Deus entre os homens. Este é um aspecto do evento jubilar ao qual o administrador público não pode permanecer insensível. Com efeito, compete-lhe prover à realização das expectativas de justiça e de solidariedade dos cidadãos, perguntando-se sempre se foram feitos todos os esforços para oferecer oportunidades idênticas a todos, sobretudo no que se refere ao acesso ao trabalho, que o Presidente mencionou explicitamente.

Os administradores públicos são estimulados, pela reflexão acerca do significado profundo do Jubileu, à colaboração construtiva com todas as forças sociais e empresariais, à busca de uma paz que nasce da recusa de privilégios e do respeito dos direitos de todos, sobretudo dos débeis e dos marginalizados. Eles são de igual modo estimulados a tornarem-se promotores do diálogo entre cidadãos de diversas culturas e religiões presentes no território, a combater qualquer forma de racismo e de intolerância, a ir com todos os meios ao encontro de quantos até agora foram penalizados nas suas autênticas expectativas.

4. Ilustres Senhores e Senhoras, quis falar sobre algumas exigências que o Jubileu apresenta à responsável atenção de cada administrador. Faço votos por que a extraordinária data, que nos preparamos para celebrar, encontre a instituição que representais preparada para as acolher e realizar.

Formulo votos por que a Região do Lácio possa haurir da sua história, das riquezas religiosas, culturais e morais das suas populações e da vontade de trabalhar dos seus Administradores, a energia e a coragem necessárias para fazer do Jubileu um tempo de justiça e de paz para todos.

Renovo a cada um de vós os votos de um ano Novo sereno e fecundo de bens e sinto-me feliz por oferecer também a vós a recente carta que dirigi ao mundo do trabalho de Roma no âmbito da Missão da Cidade. Ao garantir a minha recordação na oração pela vossa empenhativa tarefa, invoco de coração sobre vós, as vossas famílias e as queridas populações do Lácio a bênção de Deus.



DISCURSO DO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO NOVO ARCEBISPO EVANGÉLICO LUTERANO


DE TURKU E FINLÂNDIA


Segunda-feira, 18 de Janeiro de 1999



Caro Arcebispo
S. Ex.cia Rev.ma Jukka Paarma

É para mim uma grande alegria dar-lhe as boas-vindas ao Vaticano, logo após a sua nomeação para Arcebispo de Turku e Finlândia. A recordação da visita que fiz em 1989 à Catedral de Turku e à casa do seu predecessor, o Arcebispo John Vikström, ainda é viva na minha mente. Aquele evento fortaleceu de maneira determinante as relações entre a Igreja Luterana na Finlândia e a Igreja Católica.

A sua presença aqui hoje é um sinal positivo de que essas relações se tornarão sempre mais intensas, uma vez que nos empenhamos em caminhar para uma busca conjunta do restabelecimento daquela unidade que Jesus Cristo deseja para os Seus seguidores. Ao aproximar-se o Terceiro Milénio cristão, estamos conscientes da necessidade de nos empenharmos de maneira ainda mais firme e irrevogável no nobre objectivo da unidade cristã, e estamos conscientes dos efeitos benéficos que essa unidade terá na nova evangelização da Europa e do mundo.

Sobre Vossa Excelência e sobre quantos estão confiados à sua solicitude pastoral invoco as abundantes bênçãos de Deus Omnipotente.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À COMUNIDADE DO ALMO


COLÉGIO CAPRÂNICA DE ROMA


Terça-feira, 19 de Janeiro de 1999



Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Caríssimos Alunos
do Almo Colégio Caprânica!

1. É com alegria que vos recebo neste dia, por ocasião da festa da vossa Padroeira, a Santa virgem e mártir Inês. De coração saúdo cada um de vós, que provindes de diversas Nações e, em particular, o Reitor, Mons. Michele Pennisi, a quem agradeço as palavras que me dirigiu não só em vosso nome, mas também em nome do Cardeal Camillo Ruini e dos membros da Comissão especial que segue o vosso Almo Colégio. Obrigado a todos de coração!

Apreciei muito a meta pedagógica que vos prefixastes neste ano comunitário. Ela, em sintonia com a preparação para o Grande Jubileu, exprime-se no tema: «Caridade e missão: como filhos do único Pai vivamos a fraternidade na gratuidade do serviço e no acolhimento do próximo». Trata-se de um itinerário formativo que vos leva a manter com Jesus um diálogo sempre mais intenso e profundo, para depois poderdes testemunhar aos irmãos o Seu amor salvífico.

2. Na origem de qualquer missão na Igreja há uma chamada ao amor. «Jesus fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele»: com estas palavras o evangelista Marcos narra o episódio do encontro de Jesus com o «jovem que tinha grande fortuna» (10, 22). Às tantas coisas que alguém pode possuir, o Senhor propõe, como alternativa, a única essencial: deixar tudo por amor e segui-l'O: «Vem e segue-Me» (ibid., 10, 21).

A virgem e mártir Inês, à proposta que lhe fora feita por Cristo, respondeu com generosidade total e com coração indiviso; transformou a sua existência num «exemplo eloquente e fascinante de uma vida totalmente transfigurada pelo esplendor da verdade» (cf. Veritatis splendor VS 93), e por isso tornou-se ela mesma, capaz de iluminar «todas as épocas da história, revelando-lhe o sentido moral» (ibid.). O seu exemplo encorajou tantos crentes, ao longo dos séculos, a seguirem os seus passos. O vosso Colégio muito oportunamente escolheu-a como padroeira e também vós olhais hoje para ela como modelo a imitar.

Ao lado do seu testemunho, tendes diante de vós o de alguns ex-alunos do vosso Seminário, dos quais está a decorrer o processo de beatificação. Recordou-os há pouco o vosso Reitor: possa a vida deles ser para cada um de vós estímulo a uma fidelidade crescente em seguir quanto o Senhor vos pedir que façais. Tudo na vossa existência seja para a Sua maior glória e para a salvação das almas.

3. Este nosso encontro realiza-se no ano dedicado ao Pai, enquanto nos encaminhamos, já a grandes passos, para o Grande Jubileu do Ano 2000. Desejaria convidar-vos a dirigir o olhar para a Porta Santa, através da qual entraremos no ano jubilar com espírito de íntima conversão. Com efeito, é preciso chegar àquele evento com o coração renovado. E compete aos sacerdotes, em primeiro lugar, serem testemunhas e apóstolos de uma autêntica renovação pessoal e comunitária. Como não considerar, depois, na perspectiva da festividade de Santa Inês, a eventualidade de uma fidelidade heróica que chegue, se for necessário, até ao martírio?

Quereria, hoje, repetir-vos o que tive ocasião de proclamar à Igreja inteira: «O crente que tenha tomado em séria consideração a própria vocação cristã, para a qual o martírio é uma possibilidade anunciada já na Revelação, não pode excluir esta perspectiva do próprio horizonte de vida» (Incarnationis mysterium, 13).

Digo estas palavras, que podem parecer fortes e exigentes, «a vós jovens, que sois fortes», para usar a expressão com que vos qualifica o apóstolo João (1Jn 2,15). Daqueles que o Senhor chama ao Seu mais estreito serviço, o mundo espera dedicação total e santidade de vida. Seja esta a vossa primeira preocupação. Abri o coração à acção do Espírito Santo e entregai-vos com confiança ao Pai celeste, especialmente neste ano.

Guiem-vos Maria, a Virgem fiel, Santa Inês e os outros vossos santos Padroeiros. Da minha parte, enquanto vos asseguro uma especial lembrança na oração, concedo a minha afectuosa Bênção a todos vós e às pessoas que vos são queridas.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS OFICIAIS E ADVOGADOS


DO TRIBUNAL DA ROTA ROMANA


POR OCASIÃO DO INÍCIO DO ANO JUDICIÁRIO


Quinta-feira, 21 de Janeiro de 1999



1. A solene inauguração da actividade judiciária do Tribunal da Rota Romana oferece-me a alegria de receber os seus componentes, para lhes exprimir a consideração e a gratidão com que a Santa Sé segue e encoraja o seu trabalho.

Saúdo e agradeço ao Excelentíssimo Monsenhor Decano, que de maneira digna interpretou os sentimentos de todos vós aqui presentes, dando expressão apaixonada e profunda aos objectivos pastorais que inspiram o vosso trabalho quotidiano.

Saúdo o Colégio dos Prelados Auditores em serviço e eméritos, os Oficiais maiores e menores do Tribunal, os Advogados da Rota e os Alunos do Estudo da Rota, com os respectivos familiares. A todos uma felicitação cordial para o ano há pouco iniciado.

2. O Excelentíssimo Monsenhor Decano deteve-se no significado pastoral do vosso trabalho, mostrando a sua grande relevância na vida quotidiana da Igreja. Compartilho uma semelhante visão e encorajo-vos a cultivar em todas as vossas intervenções esta perspectiva, que vos põe em plena sintonia com a finalidade suprema da actividade da Igreja (cf. C.I.C. cân. 1742). Já noutra vez tive ocasião de acenar a este aspecto da vossa função jurídica, com particular referência a questões processuais (cf. Discurso à Rota de 22 de Janeiro de 1996, em: AAS 88 [1996], 775). Também hoje vos exorto a dar prevalência, na solução dos casos, à busca da verdade, fazendo uso das formalidades jurídicas somente como meio para esse fim. O argumento sobre o qual desejo deter-me no encontro deste dia, é a análise da natureza do matrimónio e das suas essenciais conotações, à luz da lei natural.

Todos estão ao corrente do contributo que a jurisprudência do vosso Tribunal deu ao conhecimento da instituição matrimonial, oferecendo um validíssimo ponto de referência doutrinal aos outros Tribunais eclesiásticos (cf. Discurso à Rota, em: AAS 73 [1981], 232; Discurso à Rota, em: AAS 76 [1984], 647 s.; Const. Apost. Pastor Bonus, art. 126). Isto consentiu focalizar sempre melhor o conteúdo essencial da união, com base num mais adequado conhecimento do homem.

No horizonte do mundo contemporâneo, contudo, aparece uma difundida deterioração do sentido natural e religioso das núpcias, com reflexos preocupantes na esfera tanto pessoal como pública. Como todos sabem, hoje põem-se em discussão não só as propriedades e as finalidades do matrimónio, mas também o valor e a utilidade mesma dessa instituição. Embora se exclua indevidas generalizações, não é possível ignorar, quanto a isto, o fenómeno crescente das simples uniões de facto (cf. Exort. Apost. Familiaris consortio FC 81, em: AAS 74 [1982], 181 s.), e as insistentes campanhas de opinião com a finalidade de obter dignidade conjugal também para uniões entre pessoas pertencentes ao mesmo sexo.

Não é minha intenção numa sede como esta, onde é prevalecente o projecto correctivo e redentor de situações dolorosas e muitas vezes dramáticas, insistir na deploração e condenação. Antes, desejo recordar, não só àqueles que fazem parte da Igreja de Cristo Senhor, mas também a todas as pessoas solícitas do verdadeiro progresso humano, a gravidade e o carácter insubstituível de alguns princípios, que são basilares para a convivência humana, e ainda antes para a salvaguarda da dignidade de toda a pessoa.

3. Núcleo central e elemento básico desses princípios é o autêntico conceito de amor conjugal entre duas pessoas de igual dignidade, mas distintas e complementares na sua sexualidade.

Não há dúvida de que a afirmação deve ser entendida de modo correcto, sem cair no fácil equívoco, pelo qual às vezes se confunde um vago sentimento, ou mesmo uma forte atracção psicofísica, com o amor efectivo do outro, que tem como substância o sincero desejo do seu bem, que se traduz em empenho concreto por realizá-lo. Esta é a clara doutrina expressa pelo Concílio Vaticano II (cf. Gaudium et spes GS 49), mas é também uma das razões por que precisamente os dois Códigos de Direito Canónico, latino e oriental, por mim promulgados, declararam e puseram como natural finalidade do conúbio também o bonum coniugum (cf. C.I.C., cân. 1055 §1 ; C.C.I.O., cân. 776 §1). O simples sentimento está ligado à mutabilidade do espírito humano; só a atracção recíproca, depois, muitas vezes derivante sobretudo de impulsos irracionais e às vezes aberrantes, não pode ter estabilidade e, portanto, está facilmente, se não de maneira fatal, exposta a extinguir-se.

O amor coniugalis, portanto, não é só nem sobretudo sentimento; é, ao contrário, essencialmente um empenho para com a outra pessoa, empenho que se assume com um preciso acto de vontade. Precisamente isto qualifica esse amor, tornando-o coniugalis. Uma vez dado e aceite o empenho por meio do consentimento, o amor torna-se conjugal, e nunca perde este carácter. Aqui entra em jogo a fidelidade do amor, que tem a sua raiz na obrigação assumida de maneira livre. O meu Predecessor, o Papa Paulo VI, num seu encontro com a Rota, sinteticamente afirmava: «Ex ultroneo affectus sensu, amor fit officium devinciens» (AAS 68 [1976], 207).

Já diante da cultura jurídica da antiga Roma os autores cristãos sentiram-se impelidos pelo axioma evangélico a superar o conhecido princípio, pelo qual tanto se sustém o vínculo conjugal quanto perdura a affectio maritalis.A este conceito, que continha em si o germe do divórcio, eles contrapuseram a visão cristã, que remetia o matrimónio às suas origens de unidade e indissolubilidade.

4. Surge aqui às vezes o equívoco, segundo o qual o matrimónio é identificado ou, em todo o caso, confundido com o rito formal e externo que o acompanha. Com certeza, a forma jurídica do matrimónio representa uma conquista de civilização, pois confere-lhe relevância e também eficácia diante da sociedade, que por conseguinte assume a sua tutela. Mas a vós, juristas, não passa despercebido o princípio pelo qual o matrimónio consiste de modo essencial, necessário e único no consentimento mútuo expresso pelos nubentes. Esse consentimento não é senão a aceitação consciente e responsável de um empenho, mediante um acto jurídico com o qual, na doação recíproca, os esposos prometem um ao outro amor total e definitivo. Eles são livres de celebrar o matrimónio, depois de se terem escolhido reciprocamente de modo também livre, mas, no momento em que realizam este acto, instauram um estado pessoal, em que o amor se torna algo devido, com carácter também jurídico.

A vossa experiência judiciária faz com que vos certifiqueis de como esses princípios estão arraigados na realidade existencial da pessoa humana. Em conclusão, a simulação do consentimento, para dar um exemplo, mais não significa que dar ao rito matrimonial um valor puramente exterior, sem que a ele corresponda a vontade de uma doação recíproca de amor, exclusivo, indissolúvel ou fecundo. Como admirar-se pelo facto de que um semelhante matrimónio esteja destinado ao naufrágio? Quando acaba o sentimento ou a atracção, ele resulta privado de qualquer elemento de coesão interna. Falta, de facto, aquele recíproco empenho oblativo, o único que poderia assegurar a sua duração.

Algo semelhante vale também para os casos em que, de maneira dolosa, alguém foi induzido ao matrimónio, ou quando uma coacção externa grave tirou a liberdade, que é o pressuposto de toda a dedicação amorosa voluntária.

5. À luz destes princípios, pode ser estabelecida e compreendida a diferença essencial que existe entre uma mera união de facto - que embora se pretenda originada no amor - e o matrimónio, no qual o amor se traduz num empenho não só moral mas rigorosamente jurídico. O vínculo, que se assume de modo recíproco, desenvolve em resposta uma eficácia corroborante em relação ao amor do qual nasce, favorecendo a sua duração em vantagem da comparte, da prole e da própria sociedade.

É à luz dos mencionados princípios que se revela também como é incongruente a pretensão de atribuir uma realidade «conjugal» à união entre pessoas do mesmo sexo. A ela opõe-se, antes de tudo, a impossibilidade objectiva de fazer frutificar o conúbio mediante a transmissão da vida, segundo o projecto inscrito por Deus na própria estrutura do ser humano. Serve de obstáculo, além disso, a ausência dos pressupostos para aquela complementaridade interpessoal que o Criador quis, tanto no plano físico-biológico quanto no eminentemente psicológico, entre o homem e a mulher. É só na união entre duas pessoas sexualmente diferentes que se pode realizar o aperfeiçoamento do indivíduo, numa síntese de unidade e de mútua complementação psicofísica.

Nesta perspectiva, o amor não é fim em si mesmo, nem se reduz ao encontro corporal entre dois seres, mas é uma relação interpessoal profunda, que alcança o seu coroamento na plena doação recíproca e na cooperação com Deus Criador, fonte última de cada nova existência humana.

6. Como se sabe, estes desvios da lei natural, inscrita por Deus na natureza da pessoa, desejariam encontrar a sua justificação na liberdade, que é prerrogativa do ser humano. Na realidade, trata-se de justificação imaginária. Todo o crente sabe que a liberdade é - como diz Dante - «o maior dom que Deus, por sua magnanimidade, fez ao criar, e o mais de acordo com a Sua bondade» (Par.5, 19-21), mas é dom que deve ser bem entendido para não se transformar em ocasião de obstáculo para a dignidade humana. Conceber a liberdade como liceidade moral ou mesmo jurídica de infringir a lei, significa corromper a sua verdadeira natureza. Esta, de facto, consiste na possibilidade que o ser humano tem de se conformar de maneira responsável, isto é, com opção pessoal, à vontade divina expressa na lei, para se tornar assim sempre mais semelhante ao seu Criador (cf. Gn Gn 1,26).

Eu escrevia já na Encíclica Veritatis splendor: «O homem é certamente livre, uma vez que pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade bastante ampla, já que pode comer i.de todas as árvores do jardimle. Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da "árvore da ciência do bem e do mal", chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade, a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização precisamente nesta aceitação. Deus, que "só é bom", conhece perfeitamente o que é bom para o homem, e, devido ao Seu mesmo amor, propõe-lo nos mandamentos» (n. 35).

A crónica quotidiana traz, infelizmente, amplas confirmações acerca dos miseráveis frutos que essas aberrações da norma divino-natural acabam por produzir. Parece quase que se repete nos nossos dias a situação de que Paulo Apóstolo fala na carta aos Romanos: «Sicut non probaverunt Deum habere in notitia, tradidit eos Deus in reprobum sensum, ut faciant quae non conveniunt» (1, 28).

7. A referência imperiosa aos problemas da hora presente não deve induzir ao desânimo nem à resignação. Deve antes estimular a um empenho mais decisivo e mais concreto. A Igreja e, por conseguinte, a lei canónica reconhecem a todo o homem a faculdade de contrair matrimónio (cf. C.I.C., cân. 1058 ; C.C.I.O., cân. 778); uma faculdade, entretanto, que só pode ser exercida por aqueles «qui iure non prohibentur» (ibid.). Tais são, em primeiro lugar, aqueles que têm uma suficiente maturidade psíquica na dúplice componente intelectiva e volitiva, juntamente com a capacidade de cumprir os ônus essenciais da instituição matrimonial (cf. C.I.C., cân. 1095; C.C.I.O., cân. 818). A respeito disso, não posso deixar de evocar mais uma vez quanto eu disse, precisamente diante deste Tribunal, nos discursos dos anos de 1987 e 1988 (cf. AAS 79 [1987], 1453 ss.; AAS 80 [1988], 1178 ss.): uma indevida dilatação das chamadas exigências pessoais, reconhecidas pela lei da Igreja, acabaria por infligir um gravíssimo vulnus àquele direito ao matrimónio, que é inalienável e subtraído a qualquer poder humano.

Não me detenho aqui noutras condições postas pela normativa canónica para um válido consentimento matrimonial. Limito-me a sublinhar a grave responsabilidade que incumbe aos Pastores da Igreja de Deus, de cuidarem de uma adequada e séria preparação dos nubentes para o matrimónio: só assim, de facto, se podem suscitar no ânimo daqueles que se preparam para celebrar as núpcias, as condições intelectuais, morais e espirituais, necessárias para se efectivar a realidade natural e sacramental do matrimónio.

Confio estas reflexões, caríssimos Prelados e Oficiais, às vossas mentes e aos vossos corações, conhecendo bem o espírito de fidelidade que anima o vosso trabalho, mediante o qual quereis dar actuação plena às normas da Igreja, na busca do verdadeiro bem do Povo de Deus.

Para conforto da vossa fadiga, com afecto concedo a Bênção Apostólica a todos vós aqui presentes, e a quantos estão de algum modo ligados ao Tribunal da Rota Romana.



Discursos João Paulo II 1999 - Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1999