Discursos João Paulo II 1999 - Sexta-feira, 25 de Julho de 1999

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À CONFERÊNCIA EPISCOPAL DA IRLANDA


EM VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"


: Sábado, 26 de Junho de 1999



Queridos Irmãos Bispos!

1. Com grande alegria recebo-vos, Bispos da Irlanda, por ocasião da vossa visita «ad limina Apostolorum» e, de bom grado, aproveito esta oportunidade para transmitir saudações afectuosas aos sacerdotes, religiosos e leigos do vosso País que recordo com grande afecto. A vossa visita constitui uma oportunidade para renovar e fortalecer os vínculos de fé e de comunhão, que caracterizaram desde o início a relação entre a Irlanda e a Sé de Pedro. A vossa visita é realmente uma peregrinação, durante a qual orais sobre os túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo e meditais sobre a graça e a vossa responsabilidade ao serviço do Evangelho. Os apóstolos continuam a inspirar-nos, a nós seus Sucessores, mediante o seu ensinamento e exemplo, e desafiam-nos a ser «exemplos para o rebanho» (1P 5,3), homens de Deus que alcançaram «a vida eterna à qual» foram chamados «e pela qual» fizeram a «bonita profissão de fé diante de muitas testemunhas» (cf. 1Tm 6,12).

A celebração, por parte da Igreja, do segundo milénio do advento de Cristo como homem é iminente, e este evento constitui um especial kairos no nosso ministério pastoral. O Verbo encarnado é a realização do ardente desejo de Deus, presente em todo o coração humano. Ele é «testemunha fiel» (Ap 1,5) de que o Pai exortou a buscar todos os homens e mulheres e a levá-los a compartilhar da vida íntima da Trindade. Como celebração de suprema manifestação do amor de Deus, o Grande Jubileu obriga os Pastores da Igreja a intensificarem os seus esforços na nova evangelização, necessária para lançar sólidos fundamentos a fim de vivermos de maneira cristã no próximo milénio. «A Igreja, por sua parte, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todos, oferece aos homens pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação... e afirma, além disso que, subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre (cf. Hb He 13,8)» (Gaudium et spes GS 10). Por conseguinte, não devemos temer nem hesitar diante do desempenho das tarefas a nós confiadas, e precisamente devemos ser mestres autênticos da fé (munus docendi), ministros da graça (munus santificandi) e bons Pastores do Povo de Deus (munus regendi) (cf. Christus Dominus CD 2).

2. A sociedade deve redescobrir a autenticidade original do Evangelho e levar de novo ao mundo a mensagem cristã de salvação, verdade, esperança e alegria. Como Bispos, um dos nossos deveres principais consiste em anunciar e ensinar a fé católica e apostólica. Para sermos convincentes, devemos deixar-nos pessoal e continuamente transformar por uma relação profunda e orante com o Mestre divino, de maneira a podermos comunicar aos outros aquilo que tivemos o privilégio de receber. As palavras do meu predecessor, o Papa Paulo VI, são muito adequadas: «O homem contemporâneo escuta de mais boa vontade as testemunhas que os mestres, ou se escuta os mestres é porque eles são testemunhas. Com efeito, ele sente uma instintiva repulsa por tudo o que é mistificação, aparência ou compromisso. Neste contexto, podemos compreender a importância de uma vida que seja verdadeiramente ressonância do Evangelho» (Audiência geral, 2 de Outubro de 1974).

Estais conscientes das exigências que a situação cria no vosso ministério. Nos últimos anos assistimos a muitas mudanças na sociedade irlandesa e, enquanto alguns aspectos dessa transformação tornam mais difícil o anúncio do Evangelho, é também verdade que muitos fiéis são orgulhosos de ter um conhecimento mais esclarecido da fé, de aprofundar a sua relação com Deus na oração, de aprender de que modo seguir Cristo mais de perto na vida quotidiana e ao serviço do bem comum, de ter um sentido mais vivo do seu papel e da própria responsabilidade no âmbito da Igreja. Pode-se constatar isto na difusão dos grupos de oração, na adoração eucarística e nas peregrinações, assim como no maior empenho dos leigos na evangelização, nas obras de caridade, na defesa da vida e na promoção da justiça. É também verdade que o individualismo exagerado, que às vezes acompanha uma maior prosperidade material, levou a um menor sentido da presença de Deus e do significado transcendente da vida humana. O relativismo que então se cria, muitas vezes conduz à rejeição dos fundamentos objectivos da moral e a uma compreensão excessivamente subjectiva da consciência, tema que enfrentastes numa Carta Pastoral conjunta de 1998. Daí resulta uma erosão do conceito de acordo com o qual o cristianismo ensina a verdade, uma verdade que nós mesmos não elaborámos, mas que nos chega como dom. Por sua vez, isto pode levar a desencorajar-se e a crer que a Igreja já não tem nada de importante a dizer aos homens e às mulheres de hoje. Mas, de facto, a experiência cristã no decurso dos séculos e também na nossa época mostra que a fé, quando é posta à prova, pode emergir mais forte, mais livre e mais vigorosa, precisamente como a história da Igreja na Irlanda testemunha de modo eloquente.

3. A nova evangelização, que pode fazer do próximo século uma primavera do Evangelho, dependerá muito da plena consciência por parte dos fiéis leigos da sua vocação baptismal e da sua responsabilidade em relação ao Evangelho de Jesus Cristo. Hoje, muitas vezes são os leigos que estão na primeira linha, ao procurarem aplicar o ensinamento da Igreja às questões éticas, morais e sociais que emergem nas suas comunidades ou a nível nacional. A missão específica dos leigos, homens e mulheres, é a evangelização da família, da cultura e da vida pública e social. Nisto, eles dirigem-se aos Bispos para receber encorajamento e orientação.

A tarefa dos Bispos a respeito disso consiste em promover a santidade de vida e a formação cristã, que permitirão aos leigos, no centro da ordem temporal, «testemunhar como a fé cristã constitui a única resposta plenamente válida... aos problemas e às esperanças que a vida apresenta a todo o homem e à sociedade» (Christifideles laici CL 34). Ao fazerdes o discernimento que pertence ao vosso apostolado, deveis ser como o «pai de família», que tira «coisas novas e velhas do seu tesouro» (Mt 13,52). É neste sentido que a nova evangelização requer uma renovação do governo e das actividades pastorais. Como afirmei muitas vezes, requer esforços que sejam novos no ardor, nos métodos e nas expressões (cf. Veritatis splendor VS 106).

Esta novidade não é um fim em si mesma. De facto, é preciso manter as práticas e os actos de devoção tradicionais, que têm sido uma parte integral da vida católica irlandesa, e reavivá-los se for necessário. A prática sacramental, a piedade popular, as peregrinações e as devoções tradicionais que sustentam a vida da graça e o empenho moral não perderam a sua importância. De igual modo são necessárias novas formas de oração e de apostolado, novas estruturas e programas, que contribuam para criar um maior sentido de pertença à comunidade eclesial, um novo florescimento de associações e movimentos capazes de demonstrar a perene juventude da Igreja e do seu ser fermento autêntico para a sociedade. A vossa proximidade pessoal é necessária para sustentar e guiar associações de fiéis já existentes, muitas das quais têm méritos extraordinários na vida da Igreja na Irlanda, assim como os novos grupos e movimentos que o Espírito Santo gera constantemente na Igreja, em resposta à mudança das necessidades.

4. A nova evangelização é urgente sobretudo em vista das numerosas e complexas motivações que tornam difícil a transmissão da fé de uma geração a outra, com o resultado de que o conhecimento das verdades da fé e da prática religiosa, em particular entre os jovens adultos, está em declínio. Certamente, alguns dos motivos disto são exteriores à Igreja. Contudo, outros se referem àquela vigilância que é parte essencial do ministério dos Pastores. O Bispo é o principal mestre da fé na parte da Igreja confiada à sua solicitude, e ele deve preocupar-se constantemente por garantir que seja ministrado, de maneira eficaz, o conteúdo autêntico da doutrina eclesial. Nada pode substituir a força das verdades mesmas da fé de atrair, convencer e transformar a experiência interior de uma pessoa. Os educadores católicos deveriam recordar aquilo que o Concílio afirmou: «o destino futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações vindouras razões de viver e de esperar» (Gaudium et spes GS 31). Sem a «memória histórica» da tradição e da cultura bimilenária das quais sois herdeiros, os jovens encontram dificuldade em aderir à Igreja e ainda mais em empenhar-se nela de maneira definitiva.

Para os Bispos e os sacerdotes os principais instrumentos de transmissão da fé são a pregação e a catequese. No estudo, na reflexão, no discernimento e na oração, eles devem fazer própria a verdade salvífica de Cristo, para serem capazes de transmitir uma visão firmemente arraigada da fé, importante para as necessidades do nosso tempo. Sois chamados a proclamar a verdade com coragem, ainda que aquilo que ensinais às vezes contraste com as opiniões socialmente aceites, sabendo que a pessoa e o ensinamento de Jesus Cristo não estão à margem das necessidades da cultura de hoje mas, ao contrário, revelam o significado mais profundo de tudo aquilo que é humano.

5. Na nova evangelização, o matrimónio e a família devem ser objecto de intensa atenção pastoral. Os jovens devem ser ajudados a desenvolver com generosidade, dom de si e empenho, tudo o que é requerido pelo matrimónio. A preparação para o matrimónio deveria garantir aos casais compreenderem plenamente a natureza do matrimónio cristão e serem capazes de enfrentar as responsabilidades que ele comporta. As paróquias e as associações católicas podem ser válidos instrumentos para sustentar casais e famílias, organizando catequeses para adultos, retiros espirituais, consultórios e encontros entre famílias a fim de que se encorajarem mutuamente. São necessárias novas ideias e energias para satisfazer as exigências de casais em dificuldade, e em particular para ajudar com eficácia e prontidão as mulheres que são submetidas a pressões para que rejeitem o filho gerado. A nova evangelização implica uma defesa corajosa do direito à vida, o mais fundamental de todos os direitos humanos, ainda mais importante do que o «direito de escolha» por parte dos indivíduos, dos grupos ou do Governo. Ela requer que os fiéis sejam sempre mais conscientes da doutrina social da Igreja, cada vez mais activos na promoção da verdade e da justiça na vida pública e nas relações interpessoais. Exige uma solidariedade concreta com os sectores mais débeis da sociedade e para com todos os que são deixados às margens do desenvolvimento económico.

6. Confiando na força da graça de Deus ligada à ordenação episcopal, o Bispo deve desejar oferecer inspiração e encorajamento a quantos compartilham com ele o peso do seu ministério. Deve ter um íntimo relacionamento com os seus sacerdotes, caracterizado pela caridade pastoral, capacidade de escuta e sincera predilecção pelo seu bem-estar espiritual e humano. Numa época em que os sacerdotes sofrem por causa das pressões exercidas pela cultura que os circunda e devido ao terrível escândalo dado por alguns sacerdotes, é essencial convidá-los a haurir força de uma intuição mais profunda da própria identidade e missão. Tenho estado junto de vós no sofrimento e na oração, confiando ao «Deus de toda a consolação» (2Co 1,3) quantos foram vítimas de abusos sexuais por parte de eclesiásticos ou religiosos. Devemos orar para que todos os que se tornaram culpados disto, compreendam a natureza maligna das suas acções e peçam perdão. Estes escândalos, e um conceito mais sociológico que teológico da Igreja, às vezes levam a evocar modificações na disciplina do celibato. Contudo, não podemos transcurar o facto de que a Igreja reconhece a vontade de Deus através da guia interior do Espírito Santo (cf. Jo Jn 16,13) e que a tradição viva da Igreja constitui uma clara afirmação da consonância do celibato, por profundos motivos teológicos e antropológicos, ao «carácter» sacramental do sacerdócio. As dificuldades implícitas na tutela da castidade não são uma razão suficiente para mudar a lei do celibato. Antes, a Igreja «tem confiança no Espírito que o dom do celibato... será dado liberalmente pelo Pai, desde que aqueles que participam do sacerdócio de Cristo pelo sacramento da Ordem, e toda a Igreja, humilde e insistentemente o peçam» (Presbyterorum ordinis PO 16).

Ao reflectir sobre o quinquagésimo aniversário da minha ordenação, recordei no livro Dom e Mistério que a vocação sacerdotal é um mistério de escolha divina, sugerido só pelo amor de Deus por quem é chamado. É um dom que transcende infinitamente o indivíduo: «Não fostes vós que Me escolhestes, fui Eu que vos escolhi e vos nomeei para irdes e dardes fruto, e o vosso fruto permaneça» (Jn 15,16). Estas palavras são um desafio aos sacerdotes a fim de que reafirmem a bondade e o significado singular da própria chamada, apesar das debilidades e dos fracassos pessoais. Eles não deveriam hesitar em exortar os jovens ao radical dom de si mesmos que o sacerdócio implica: «Chegou o tempo de falar corajosamente da vida sacerdotal como um valor inestimável e como forma esplêndida e privilegiada de vida cristã» (Pastores dabo vobis PDV 39). Profundamente grato a Deus pela santidade, o testemunho e o empenho de tão numerosos sacerdotes irlandeses do passado e do presente, encorajo-vos a reafirmar o ideal da vida sacerdotal e a recordar à inteira comunidade eclesial a extraordinária graça implícita na Ordenação, uma singular configuração sacramental a Cristo por meio da qual o sacerdote se torna Cristo para os outros: um sinal eficaz da presença salvífica de Cristo. A luta pela santidade e maturidade pessoal, o exemplo de virtude e integridade cristãs, a caridade pastoral para com todos, são as condições de um ministério fecundo e fiel, e são aquilo que os fiéis têm o direito de exigir de quantos acolheram o chamamento do Senhor.

7. O valor de uma autêntica e estável experiência de vida consagrada centrada na comunidade é de incomensurável valor para a nova evangelização. Ao aproximar-se o terceiro milénio cristão, a Igreja tem grande necessidade de uma vida religiosa vital e atraente, que testemunhe a soberania de Deus e o valor do «dom total de si na profissão dos conselhos evangélicos» (Vita consecrata VC 16). Visto que muitas Congregações religiosas enfrentam o desafio da diminuição do número e do aumento da idade dos seus membros, os Bispos devem ajudá-las a reafirmar a confiança na própria consagração e missão. Todo o aspecto da presença da Igreja no mundo, inclusivamente todas as formas de vida consagrada, é o resultado e a expressão da encarnação salvífica, da morte redentora e da ressurreição de Cristo. A vida consagrada torna presente de vários modos Cristo casto, pobre e obediente, ou seja, o Santo de Deus. A importância deste testemunho para a vida de cada Igreja local é tal que o Bispo não deve deixar de fazer tudo o que é possível para promover e sustentar esta vocação, que está no centro da Igreja, pois ela manifesta a natureza interior da chamada cristã e o ardente desejo de toda a Igreja, como Esposa, à união com o seu Esposo (cf. Vita consecrata VC 3).

8. Uma revitalização da Igreja na Irlanda só pode derivar de uma renovação autêntica da vida litúrgica e sacramental. Em particular na Eucaristia, fonte e ápice da vida da Igreja, o Espírito leva os fiéis a um encontro profundo e transformador com o Senhor, e dá a graça que lhes permite viver graças ao Evangelho e testemunhá-lo com as próprias acções. A dimensão contemplativa da liturgia e a reverência pela presença real, tão características da vida católica irlandesa, não são talvez particularmente necessárias agora que tantas pessoas na cultura hodierna tendem a permanecer a nível do efémero e do superficial? A respeito disso, muito me alegra observar uma renovação da Adoração do Santíssimo Sacramento em numerosas paróquias da Irlanda, sinal de que os fiéis ainda têm um sentido profundo daquilo que é essencial e fonte de vida na sua fé.

Ao exortar toda a Igreja a uma celebração intensa do ano jubilar, eu quis que o aniversário do nascimento de Cristo fosse um «ano da remissão dos pecados e das penas pelos pecados, ano da reconciliação entre os desavindos, ano de múltiplas conversões e de penitência sacramental e extra-sacramental» (Tertio millennio adveniente, TMA 14). As tendências dominantes na cultura contemporânea enfraquecem o sentido do pecado, em particular por causa de uma menor consciência de Deus, que é Santo e chama o Seu povo à santidade de vida. É pois necessário um grande esforço pastoral para ajudar os fiéis a descobrirem de novo o sentido do pecado em relação a Deus e, por conseguinte, a apreciarem profundamente a beleza e a alegria do Sacramento da Penitência. Isto requer que seja posto em relevo o Sacramento nos programas pastorais diocesanos e nas iniciativas ligadas ao Jubileu, exortando os católicos a fazerem de novo aquela experiência de conversão, que é a confissão e a absolvição individual e integral.

A natureza pessoal do pecado, a conversão, o perdão e a reconciliação são os motivos da necessidade da confissão pessoal do pecado e da absolvição individual (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1484). É também por este motivo que a confissão geral e a absolvição geral só são adaptadas em casos de grave necessidade, claramente previstos pelas normas canónicas e litúrgicas (cf. ibid., n. 1483; Código de Direito Canónico, cânones 961-963).

Já transcorreram vinte anos desde a minha última visita pastoral ao vosso País. Naquela ocasião, constatei que no centro da experiência católica irlandesa está a união da contemplação e missão, dois pilares sobre os quais todo o esforço de evangelização deveria basear-se, caso contrário falharia. Foi esta união que impeliu São Patrício, São Colmcille, São Columbano, Santa Brígida, São Olivério Plunkett, os mártires irlandeses e tantos homens e mulheres santos em tempos mais recentes a deixarem tudo por Cristo, a fim de tornarem conhecido o Evangelho. Que a celebração do Grande Jubileu faça reacender o espírito de oração e de missão, de maneira que a Igreja na Irlanda possa enfrentar com confiança o próximo milénio, revitalizada e renovada!

Ao confiar todos vós, os sacerdotes, os religiosos e os leigos das vossas Dioceses à intercessão de Nossa Senhora Rainha da Irlanda, concedo de coração a minha Bênção Apostólica.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


À DELEGAÇÃO DO PATRIARCADO ECUMÊNICO


DE CONSTANTINOPLA


Quinta-feira, 28 de Junho de 1999

: Queridos Irmãos em Cristo

1. «Com o seu poder divino, Deus concedeu-nos todas as condições necessárias para a vida e a piedade, através do conhecimento de Jesus que nos chamou pela sua própria glória e virtude» (2P 1,3).

Prezados Irmãos que fostes enviados pelo Patriarca Ecuménico, Sua Santidade Bartolomeu I, por ocasião da solenidade dos Santos Pedro e Paulo, esta profissão de fé, da segunda Epístola de Pedro, inspira o nosso encontro hodierno. A vossa presença é para mim e para a Igreja de Roma uma fonte de júbilo, da profunda alegria que deriva da comunhão fraternal. Bem sei que este mesmo sentimento anima Sua Santidade o Patriarca Ecuménico, quando todos os anos ele recebe no Fanar a Delegação da Igreja de Roma para a festividade de Santo André, irmão de São Pedro, o Apóstolo que foi o primeiro a ouvir a chamada do Senhor. Estas duas felizes circunstâncias anuais unem-nos e permitem-nos formar uma assembleia de oração mais ampla, que implora do Senhor e do seu Espírito o dom da unidade.

2. Deus concedeu-nos todas as condições necessárias para a vida e a piedade. Recebemos as dádivas divinas por intermédio dos Apóstolos e, de geração em geração, somos convidados a transmiti-los aos homens. Juntos, queremos dar glória a Deus e desejamos anunciar a sua Palavra e a sua força concreta, capazes de renovar o mundo, de o vivificar e de o alimentar. Juntos, desejamos fazer com que os homens conheçam Aquele que nos chamou, a fim de que recebam as condições necessárias para a vida e a piedade.

Ao longo do caminho rumo à plena unidade, previa-se para a passada Primavera uma sessão plenária da Comissão mista internacional para o diálogo teológico. Contudo, a triste situação dos Balcãs, que nos causou tanto sofrimento, obrigou-nos a adiar este encontro, de comum acordo, para o mês de Junho do próximo ano. Todavia, isto não deveria pesar na continuidade das investigações, ou debilitar o nosso compromisso, e nem sequer impedir as relações fraternas de prosseguirem e de se aprofundarem. Por vezes, a grave herança do passado e as tensões que periodicamente surgem entre os povos envolvem a acção das Igrejas que vivem em contextos históricos e culturais que são obrigadas a ter em consideração. Entretanto, é Deus mesmo que nos convoca para a unidade. É Cristo que implorou ao Pai, a fim de que a unidade dos seus seja um sinal que exorte o mundo à fé, e que ela constitua também as primícias de uma verdadeira renovação e o penhor da paz.

A busca da unidade e da plena comunhão deve ser sustentada pela oração de todos. Oxalá o Senhor ilumine os pastores e os teólogos, a fim de que eles encontrem juntos os caminhos da santificação e da unidade, e saibam propor a todos, com o vigor e a convicção que provêm da certeza de que «acreditar em Cristo significa querer a unidade; [que] querer a unidade significa querer a Igreja; [que] querer a Igreja significa querer a comunhão de graça que corresponde ao desígnio do Pai desde toda a eternidade» (Ut unum sint UUS 9).

3. O terceiro milénio está próximo. Deus concedeu-nos todas as condições necessárias para a vida e a piedade, e o Jubileu oferece-nos a ocasião para fazermos chegar ao Senhor uma doxologia comum e universal, bem como para implorarmos juntos o seu sustento, a fim de sermos capazes de anunciar em uníssono a sua glória e a sua força activa. Este é o desejo da Igreja católica e do Bispo de Roma, a fim de que se eleve de maneira unânime uma grande prece de acção de graças, com o firme propósito de juntos realizarmos a vontade de Deus. Em conformidade com a proposta de Sua Santidade Bartolomeu I, pedi que se introduzisse no calendário das celebrações romanas do ano 2000 a proclamação de uma jornada de oração e de jejum jubilar, na vigília da solenidade da Transfiguração de nosso Senhor Jesus Cristo. Desta forma, eu quis demonstrar a vontade que temos de nos associar às iniciativas dos nossos irmãos na fé, mas também o desejo de os ver participar nas nossas. Por conseguinte, é juntos que devemos dar graças ao Senhor, com sentimentos de fraternidade e de compromisso ecuménico.

4. No encerramento do nosso encontro peço-vos, queridos Irmãos, que assegureis o meu afecto no Senhor a Sua Santidade Bartolomeu I e aos membros do seu Santo Sínodo, expressando-lhe a minha profunda gratidão por ter enviado uma Delegação guiada pelo estimadíssimo Metropolita de Éfeso. Oxalá o Senhor abençoe incessantemente os nossos passos ao longo do caminho da unidade!



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AO NOVO EMBAIXADOR DA REPÚBLICA TCHECA


POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO


DAS CARTAS CREDENCIAIS


Quinta-feira, 28 de Junho de 1999



Senhor Embaixador!

1. É com prazer que dou as boas-vindas a Vossa Excelência, por ocasião da apresentação das Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República Tcheca junto da Santa Sé. Com amável atenção Vossa Excelência quis fazer referência à missão pastoral do Sucessor de Pedro, ressaltando o valor do seu Magistério, também para a vida da comunidade civil. Neste contexto, Vossa Excelência recordou as visitas que fiz à sua Pátria. As suas palavras despertaram em mim tantas recordações, levando-me, com o pensamento, às emoções inesquecíveis daqueles encontros tão ricos de calor humano e de fé cristã.

Estou grato ao Presidente da República Tcheca, o Senhor Václav Havel, pelas cordiais saudações que quis dirigir-me por meio de Vossa Excelência. Peço-lhe que se digne fazer chegar, em troca, os meus deferentes votos pela sua alta missão bem como pela sua saúde, fazendo-se ao mesmo tempo intérprete dos sentimentos de benevolência, que nutro pelos habitantes da Nação tcheca, que me é tão cara. Digne-se o Senhor conceder a todos prosperidade e paz num contexto de justiça e de solidariedade, no qual seja dado a cada um encontrar adequada satisfação das próprias e legítimas expectativas.

2. Vossa Excelência, Senhor Embaixador, além disso recordou as transformações que se verificaram, há dez anos, no continente europeu. A queda da ditadura comunista suscitou numerosas esperanças, dando aos povos novos motivos para olharem com confiança para o futuro.

Por causa da localização no coração do continente, o seu País recebeu uma vocação particular. Ele é chamado a participar activamente na construção da nova Europa, como importante factor de unidade.

O milénio do martírio de Santo Adalberto, que celebrei em Praga e em Hradec Králové, em 1997, foi um momento histórico de grande importância, que fez meditar não só sobre as raízes cristãs da República Tcheca, mas também sobre a herança recebida daquele grande Bispo, como dos outros santos da Boémia, da Morávia e da Silésia, para a fundação de uma Europa unida, livre e crente no Evangelho. Nesta luz, a sua Pátria pôde redescobrir o significado da própria missão, em função de ponte entre o Leste e o Oeste.

Os Países europeus estão a viver nestes anos uma conjuntura política rica de extraordinárias oportunidades. Eles já não podem pensar na sua existência na perspectiva de uma simples justaposição de Estados ou até mesmo de um seu antagonismo, com a consequência de inevitáveis tensões e conflitos, como é confirmado pelas recentes vicissitudes nos Balcãs. É preciso antes, superando eventuais divisões, sempre infelizmente possíveis numa sociedade extremamente ciosa dos próprios direitos e das próprias autonomias, que eles se empenhem na predisposição de estruturas adequadas para a consolidação daquela Europa das Nações, cuja necessidade se sente sempre mais. Compete aos homens de boa vontade favorecer tudo o que é fonte de reconciliação e de aproximação entre as pessoas e os povos, contribuindo assim para a afirmação da paz, em benefício da geração actual e daquelas futuras, tanto a Leste quanto a Oeste. Para além das diferenças de língua e de cultura, as profundas relações historicamente vividas entre os povos europeus e o património cristão da maioria dos seus componentes, constituem um predisposto muito válido sobre o qual construir o entendimento e a colaboração entre as pessoas do continente.

3. Todo o povo tem uma sua fisionomia particular ligada com a sua história e é justo que a conserve na união em vias de realização. Isto torna necessário o empenho de cada europeu na promoção de um clima de respeito mútuo e de solidariedade fraterna. É importante também que os responsáveis da administração pública cuidem de fundar as suas decisões políticas, económicas e sociais, antes de tudo sobre aqueles valores morais que fazem parte da memória comum europeia; em particular, eles deverão ter cuidado de pôr no centro o homem, preocupando-se pela sua promoção integral e o respeito das suas liberdades fundamentais.

Nessa perspectiva, o reconhecimento efectivo da liberdade religiosa apresenta-se como condição indispensável para a construção da nova Europa e para a harmoniosa coexistência das nações que a compõem. Assim como Vossa Excelência ressaltou de maneira oportuna, o cristianismo ao longo da história congregou e uniu entre si os seus vários povos, ajudando-os a libertar-se dos jugos que os oprimiam. O exame sereno do passado demonstra que a fé cristã é um dos pilares, sobre o qual apoia o velho continente. Os valores antropológicos, morais e espirituais, que a ela se apelam, são um tesouro no qual convém, ainda hoje, ir beber para a planificação do futuro. Isto, obviamente, não exclui um igual respeito pelas outras tradições religiosas, que devem ter direito de cidadania. O respeito da liberdade religiosa é a garantia do respeito de todas as outras liberdades individuais e comunitárias.

4. Ao mesmo tempo, é preciso que sejam esclarecidas e consolidadas as relações entre Igreja e Estado. Neste contexto, permito-me sublinhar mais uma vez, como já fiz no início da minha Visita Pastoral de há dois anos, que parece de primordial importância a criação de uma Comissão paritária, que abranja representantes da República Tcheca e da Santa Sé, com a tarefa de estudar as questões ainda não solucionadas em matéria de relações entre Igreja e Estado. Poderá assim ser enfrentada de modo eficaz também a questão da restituição dos bens da Igreja, assim como a de um adequado apoio para as instituições eclesiais, segundo as normas do direito e as exigências da justiça e da democracia.

Sem se empenhar directamente na vida pública, porque essa não é a sua missão, a Igreja tem, entretanto, o desejo de servir os homens e de os ajudar a desempenhar as suas atribuições em proveito dos próprios semelhantes. Isto será tido em consideração também pela Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa, que se celebrará no mês de Outubro, em Roma. É tarefa dos católicos do continente propor válidas perspectivas de civilização, projectando também novos itinerários para trabalharem juntos a favor da sua realização.

5. Senhor Embaixador! Bem sei que, ao desejarem ter o próprio lugar «na transformação da realidade para a tornar de acordo com o projecto de Deus» (Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, TMA 46), os católicos tchecos querem oferecer o seu activo contributo ao bem do País, após as provações sofridas durante o período comunista. Eles querem fazer com que o rico património cultural e espiritual da tradição cristã seja transmitido às jovens gerações, a fim de que possam preparar-se com espírito confiante para assumir as funções às quais serão chamadas. Isto não poderá deixar de ajudar a promoção da evolução democrática do País, favorecendo a consolidação do Estado de direito.

Com efeito, é essencial que aqueles que têm ou terão a responsabilidade da res publica, considerem o seu encargo como um serviço à comunidade nacional. Esse empenho requer que se vivam em grau eminente os valores morais e sociais, tais como a probidade, a justiça, a concórdia, a generosidade, o sentido da legalidade, de maneira a promover sempre mais a confiança do povo em relação aos seus representantes, a todos os níveis da sociedade.

6. Por isso, formulo votos por que a missão, que Vossa Excelência inicia hoje junto da Sé Apostólica, lhe proporcione numerosas ocasiões de conhecer de perto as múltiplas manifestações da vida da Igreja universal, em particular neste período em que nos preparamos para celebrar o Grande Jubileu. Nesse contexto, é-me grato ver que a República Tcheca se sente particularmente envolvida na celebração do evento: ela de facto oferecerá o grande abeto, que se erguerá na Praça de São Pedro no tempo do Natal, no início do Ano Santo, como sinal de união entre o segundo e o terceiro Milénio; e promoverá aqui em Roma iniciativas de singular dimensão cultural, durante o desenvolvimento do mesmo Jubileu.

Os votos são por que o solene evento seja para os fiéis e para inúmeras outras pessoas de boa vontade um tempo de conversão no qual, reconhecendo com humildade as debilidades do passado, todos se voltem com ânimo novo para o futuro, decididos a dar o melhor de si mesmos na vida fraterna. Ao apresentar-lhe as melhores felicitações, posso assegurar-lhe que Vossa Excelência encontrará sempre, da parte dos meus Colaboradores, acolhimento atencioso e compreensão cordial no cumprimento do seu encargo. Sobre Vossa Excelência, as pessoas que lhe são caras e os seus colaboradores na Embaixada, assim como sobre o Presidente da República, as outras Autoridades do seu País e todos os seus compatriotas, invoco a abundância das bênçãos divinas.




Discursos João Paulo II 1999 - Sexta-feira, 25 de Julho de 1999