Discursos João Paulo II 1999 - Sexta-feira, 29 de Outubro de 1999

DISCURSO DO PADRE JOÃO PAULO II


NO ENCONTRO COM AS ESCOLAS


CATÓLICAS ITALIANAS


Sábado, 30 de Outubro de 1999

1. "Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4,4).

Com esta forte frase que o Senhor Jesus tira do Deuteronómio (8, 3), é-me grato dirigir-me a vós, caríssimos amigos da escola católica italiana, reunidos hoje na Praça de São Pedro para concluir, com o Papa, a vossa grande Assembleia Nacional. Esta reunião realiza-se a oito anos do inesquecível Encontro que nos viu de igual modo congregados nesta Praça, no dia 23 de Novembro de 1991. A verdade que vem de Deus é o principal alimento que nos faz crescer como pessoas, estimula a nossa inteligência e robustece a nossa liberdade. Desta convicção haure origem aquela paixão educativa que acompanhou a Igreja através dos séculos e está na base do florescimento das escolas católicas.

Saúdo o Cardeal Presidente e os outros Excelentíssimos membros da Conferência Episcopal Italiana, à qual se dirige toda a minha gratidão por ter promovido esta Assembleia. Saúdo o Cardeal Prefeito da Congregação para a Educação Católica e todos os Bispos aqui presentes. Saúdo os Superiores das Congregações religiosas masculinas e femininas empenhadas na escola católica. Saúdo as Autoridades civis, os expoentes políticos, os representantes das forças sociais, os homens de cultura. Agradeço ao Vice-Presidente do Conselho dos Ministros e ao Senhor Ministro da Educação a sua presença.

Saúdo com especial cordialidade as escolas de Madrid, de Sarajevo e da Palestina, que estão unidas connosco via satélite. Exprimo a cada um de vós - professores, alunos, pais ou a qualquer outro nível amigos e defensores da escola católica - o meu afecto, a minha estima e a mais viva solidariedade pela obra à qual vos dedicais. Desta Assembleia ela deve haurir nova confiança e novo impulso.

2. O tema do vosso encontro - "Por um projecto de escola no limiar do século XX" - indica claramente que sabeis olhar para frente e vos moveis numa perspectiva não só específica da escola católica, mas solícita daqueles interrogativos que concernem hoje a qualquer tipo de instituição escolar. Podeis fazê-lo com todo o direito, porque a experiência das escolas católicas traz consigo um grande património de cultura, de sabedoria pedagógica, de atenção à pessoa da criança, do adolescente e do jovem, de recíproco apoio às famílias, de capacidade de captar antecipadamente, com a intuição que vem do amor, as necessidades e os problemas novos que surgem com a mudança dos tempos. Esse património põe-vos nas melhores condições para determinar respostas eficazes à exigência educativa das jovens gerações, filhas de uma sociedade complexa, atravessada por múltiplas tensões e marcada por contínuas mudanças: pouco capaz, por conseguinte, de oferecer aos seus meninos e aos seus jovens claros e seguros pontos de referência.

Na Europa unida que se está a construir, onde as tradições culturais de cada nação são destinadas a confrontar-se, integrar-se e fecundar-se reciprocamente, é ainda mais amplo o espaço para a escola católica, por sua natureza aberta à universalidade e fundada sobre um projecto educativo, que evidencia as raízes comuns da civilização europeia. Também por esta razão é importante que na Itália a escola católica não se enfraqueça, mas ao contrário encontre novo vigor e energias: com efeito, seria bem estranho que a sua voz se tornasse muito débil precisamente na nação que, pela sua tradição religiosa, cultura e história, tem uma tarefa especial a realizar em prol da presença cristã no continente europeu (cf. Carta aos Bispos italianos, 6 de Janeiro de 1994, n. 4).

3. Caros amigos da escola católica italiana, vós sabeis porém, por experiência directa, como são difíceis e precárias as circunstâncias em que a maior parte de vós se encontra a trabalhar. Penso na diminuição das vocações nas Congregações religiosas, surgidas com o específico carisma do ensino; penso na dificuldade para muitas famílias assumirem o ónus adicional que resulta, na Itália, da escolha de uma escola não estatal; penso com profunda tristeza em Institutos prestigiosos e beneméritos que, ano após ano, são obrigados a fechar.

O principal nó a desatar, para sair de uma situação que se está a tornar sempre menos sustentável, é sem dúvida o do pleno reconhecimento da paridade jurídica e económica entre escolas estatais e não estatais, superando antigas resistências estranhas aos valores fundamentais da tradição cultural europeia. Os passos recentemente dados nesta direcção, embora apreciáveis por alguns aspectos, permanecem infelizmente insuficientes.

De coração uno-me, pois, à vossa exigência de prosseguir com coragem e de vos colocardes numa lógica nova, na qual não só a escola católica, mas as várias iniciativas escolares que podem surgir da sociedade, sejam consideradas um recurso precioso para a formação das novas gerações, com a condição de terem os indispensáveis requisitos de seriedade e de finalidade educativa. É esta uma passagem obrigatória, se quisermos efectuar um processo de reforma que torne deveras mais moderna e mais adequada a configuração global da escola italiana.

4. Enquanto pedimos com vigor aos responsáveis políticos e institucionais que seja respeitado de maneira concreta o direito das famílias e dos jovens a uma plena liberdade de escolha educativa, devemos, não com menor sinceridade e coragem, dirigir o olhar para o nosso interior, para individualizar e pôr em prática todo o oportuno esforço e colaboração, que possam melhorar a qualidade da escola católica e evitar restringir ulteriormente os seus espaços de presença no País.

Fundamentais, sob este aspecto, são a solidariedade e a simpatia de toda a comunidade eclesial, das dioceses às paróquias, dos institutos religiosos às associações e aos movimentos laicais. De facto, a escola católica faz plenamente parte da missão da Igreja, tal como ela está ao serviço do inteiro País. Não devem existir, portanto, zonas de alienação ou de indiferença recíproca, como se uma coisa fossem a vida e a actividade eclesial, e outra a escola católica e os seus problemas.

Estou, portanto, muito contente pelo facto de a Igreja italiana se ter dotado, nestes anos, de organismos como o Conselho Nacional da Escola Católica e o Centro de Estudos para a Escola Católica: eles exprimem quer a solicitude da Igreja pela escola católica, quer a unidade da própria escola católica e o seu empenho de reflexão sobre a planificação.

Muito importante, em concreto, é a realização de eficazes formas de ligação entre as Dioceses, os Institutos religiosos e os Organismos laicais católicos actuantes no âmbito da escola. Em muitos casos parece útil, ou necessário, pôr em comum iniciativas, experiências e recursos, para uma colaboração bem ordenada e clarividente, que evite superposições e inúteis concorrências entre Institutos, mas ao contrário tenha em vista não só assegurar a permanência da escola católica nos lugares onde ela está tradicionalmente presente, mas também consentir as suas novas instalações, quer nas zonas de maior pobreza quer nos sectores nevrálgicos para o desenvolvimento do País.

5. A capacidade educativa de toda a instituição escolar depende, em grandíssima medida, da qualidade das pessoas que nela participam e, em particular, da competência e dedicação dos seus professores. Não foge, com certeza, a esta regra a escola católica, que se caracteriza principalmente como comunidade que educa.

Dirijo-me, por isso, com afecto, gratidão e confiança antes de tudo a vós, professores da escola católica, religiosos e leigos, que muitas vezes trabalhais em condições de dificuldades e, forçosamente, com escassos reconhecimentos económicos. Peço-vos que deis sempre uma alma ao vosso empenho, sustentados pela certeza de que através dele participais de modo especial na missão, que Cristo confiou aos seus discípulos.

Com o mesmo afecto dirijo-me a vós alunos e às vossas famílias, para vos dizer que a escola católica vos pertence, é para vós, é a vossa casa e, portanto, não errais ao escolhê-la, amá-la e sustentá-la.

Caríssimos amigos que estais presentes nesta Praça e todos vós que compartilhais os mesmos intentos, concluamos esta Assembleia Nacional com uma humilde oração ao Senhor e um forte empenho recíproco, para que a escola católica possa corresponder sempre melhor à própria vocação e ver reconhecido o lugar que lhe compete na vida civil da Itália.

Maria Santíssima, Sede da sabedoria e Estrela da evangelização, e todos os Santos e Santas que marcaram o caminho da educação cristã e da escola católica guiem e sustentem o vosso trabalho.



DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II


AOS BISPOS DO CANADÁ,PROVENIENTES


DA REGIÃO NOROESTE EM VISITA


«AD LIMINA APOSTOLORUM»


Sábado, 30 de Outubro de 1999

Prezados Irmãos Bispos

1. No amor de Cristo, através do qual "recebemos a graça de ser Apóstolos" (Rm 1,5), dou-vos as boas-vindas, Bispos provenientes de Alberta, Colúmbia Britânica, Saskatchewan, Territórios do Noroeste, Yukon e do recém-criado Território de Nunavit, que viestes em visita ad limina Apostolorum. O ministério que recebemos acarreta não só grandes alegrias, mas às vezes também onerosas dificuldades e amarguras. Trazeis tudo isto para junto dos túmulos dos Apóstolos, a fim de poderdes aprender de novo do seu testemunho eterno que, independentemente das dificuldades e das tristezas, o ministério apostólico que recebemos é com efeito uma grande alegria para nós e para todo o Povo de Deus, porque não é senão o júbilo de pregar o Evangelho que consiste na "força de Deus para a salvação" (Rm 1,6). Ao experimentardes novamente esta alegria aqui em Roma, reafirmais o vínculo da comunhão hierárquica com o Sucessor de Pedro e o inteiro Colégio episcopal, que constitui o mais certeiro sinal e salvaguarda da unidade da Igreja e da sua perseverança na fé una, santa, católica e apostólica.

2. A proximidade do grande Jubileu e do novo milénio encoraja-nos a meditar sobre o mistério do tempo, que é de importância fundamental na Revelação e na Teologia cristãs (cf. Tertio millennio adveniente, TMA 10), porque foi no tempo que Deus criou o mundo e o seu desígnio de salvação se revelou, atingindo o seu ápice na Encarnação do Filho de Deus. Uma vez que o tempo é o contexto tanto da criação como da redenção e alcança a sua plenitude em Cristo, podemos dizer: "No Verbo encarnado, o tempo torna-se uma dimensão de Deus, que em si mesmo é eterno" (Tertio millennio adveniente, TMA 10). Disto deriva o dever que a Igreja tem de santificar o tempo, missão que ela cumpre especialmente na comemoração litúrgica dos eventos da história da salvação e na sua celebração de especiais ocasiões e aniversários. A santificação do tempo é um reconhecimento da verdade proclamada pela Igreja na Vigília pascal, segundo a qual todo o tempo e cada uma das épocas pertencem a Cristo (cf. Serviço da Luz). "Cristo é o Senhor do tempo; é o seu princípio e o seu cumprimento; cada ano, cada dia e cada momento são abarcados pela sua Encarnação e Ressurreição, encontrando-se assim na "plenitude do tempo"" (Tertio millennio adveniente, TMA 10; cf. Incarnationis mysterium, 1; cf. também Dies Domini, 15). Por conseguinte, santificar o tempo significa reconhecer aquilo que Deus fez do tempo em Jesus e como no Mistério pascal o próprio tempo se transfigura.

Para o mundo não remido, o tempo representa sempre um terror, porque leva inexoravelmente à experiência dos limites da vida e do enigma da morte. Portanto, todas as religiões enfrentam de alguma forma os interrogativos mais elementares: quem é o homem? Qual é a finalidade da vida? O que virá depois desta existência terrestre (cf. Gaudium et spes GS 10)? Na Ressurreição de Jesus Cristo o terror do tempo é destruído de uma vez para sempre, porque assim como a morte perde o seu aguilhão no momento da Páscoa (cf. 1Co 15,55), o mesmo acontece também com o tempo. É a Ressurreição que faz desabar a barreira, aparentemente impenetrável, entre o tempo e a eternidade, abrindo o caminho para a plena experiência do tempo como dádiva e desafio. Neste sentido, São Paulo exorta os sequazes de Cristo a "aproveitarem o tempo presente, porque os dias são maus" (Ep 5,16). A sua exortação é particularmente significativa quando é aplicada às responsabilidades do Bispo perante a vida da comunidade cristã confiada aos seus cuidados.

3. Enfim, é em virtude da Encarnação, e da visão sacramental que essa comporta (cf. Orientale lumen, 11), que a Igreja está tão profundamente imersa no mundo no tempo e, por conseguinte, em todas as coisas humanas. Dado que o Verbo encarnou, o corpo humano é importante, do mesmo modo que o são as condições físicas, sociais e culturais da família humana. Uma vez que o Verbo encarnou no tempo, também a história humana e a vida quotidiana dos homens e das mulheres são importantes. Deste ponto de vista, podemos dizer que a Igreja é "mundana" de maneira muito positiva, da mesma forma que Deus mesmo quis ser deste mundo quando enviou o seu Filho entre nós como homem. Ser mundano desta maneira significa que a Igreja se compromete inteiramente na história e na cultura, a fim de as mudar, de transformar o medo em alegria, mediante a força do Evangelho.

Contudo, a Cristandade é também escatologia. O Novo Testamento não deixa dúvidas quando afirma que estes são os "últimos dias", que o mundo como o conhecemos passa e portanto não é de forma alguma absoluto e muito menos divino. É verdade que também no Novo Testamento observamos sinais da diminuição do primordial fervor escatológico, na medida em que se esvanece a expectativa originária de um iminente advento do Senhor. Todavia, não obstante esta reformulação da expectativa escatológica, a Igreja jamais deixou de esperar o retorno do Senhor, que assinalará o fim do mundo mas também o cumprimento da sua redenção. Assim, a compreensão cristã do Domingo como o "oitavo dia", que se fundamenta no rico simbolismo escatológico do "Sabbah" hebraico em vista de evocar "o tempo que virá" (cf. Dies Domini, 26), recorda-nos não só o início, quando Deus criou todas as coisas, mas indica também o fim, quando Ele há-de recapitular todas as coisas em Cristo (cf. Ef Ep 1,10).

Portanto, a vida cristã abarca elementos tanto da Encarnação como da escatologia; e a nossa principal preocupação como Pastores consiste em assegurarmos que haja um equilíbrio entre eles, a fim de que as Igrejas às quais presidimos em nome de Cristo não sejam muito deste mundo nem demasiado afastadas do mundo, que "permaneçam no mundo mas não sejam do mundo" (cf. Jo Jn 17,11 Jo Jn 17,15-16). Aqui é crucial a questão da relação entre a Igreja e o mundo, que era um tema fundamental do Concílio Vaticano II e continua a ser um elemento central da vida da Igreja na aurora do novo milénio, não em menor medida na vossa terra. A resposta que dermos a este interrogativo determinará a direcção que estabeleceremos para enfrentar uma série de outras problemáticas prementes.

4. Como Pastores, é necessário orientarmos a grei de Cristo ao longo do caminho que deve evitar as tentações de suprimir ou de desenvolver exageradamente a separação entre a Igreja e o mundo, entre a mensagem cristã e a cultura prevalecente no mundo contemporâneo; o Evangelho não ensina a supressão nem a exageração; nenhuma delas é fiel ao ensinamento do Concílio, e muito menos podem constituir o caminho para o futuro que Deus deseja para a Igreja. Temos necessidade de outra senda, e o ensinamento do Papa Paulo VI pode ajudar-nos a encontrá-la. A Encíclica Ecclesiam suam foi justa e frequentemente considerada como a "Encíclica do diálogo", porque coloca em evidência com muitos pormenores aquilo que o Papa Paulo VI descrevia como a "atitude" que a Igreja deveria adoptar neste período da história do mundo (cf. op. cit., cap. III), uma atitude que exige um estilo e ao mesmo tempo um método capazes de alcançar a sociedade moderna. Sem dúvida, as circunstâncias mudaram desde os anos em que a Encíclica Ecclesiam suam foi escrita, mas o seu ensinamento sobre o diálogo da Igreja com o mundo permanece pelo menos tão pertinente quanto era em 1964. Paulo VI utilizou a fórmula colloquium salutis. Assim, este diálogo (colloquium)tem o seu fundamento naquilo que escrevia São João: "Deus amou de tal forma o mundo que entregou o seu Filho unigénito para que, todo o que nele acreditar não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jn 3,16). A Igreja tem para os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares um dom precioso que não pode deixar de lhes transmitir, mesmo quando a sua oferta é mal-entendida ou rejeitada.

5. Uma parte integral deste dom é a verdade sobre a pessoa humana, criada à imagem de Deus, verdade plenamente revelada em Jesus Cristo e confiada à Igreja. Nós, Bispos, jamais devemos perder a confiança na chamada que recebemos de servir humilde e resolutamente esta verdade como mestres e pastores chamados a defender a verdade e a difundi-la num momento crucial da história, quando os novos conhecimentos, as renovadas tecnologias e um bem-estar sem precedentes impelem a entrar num "mundo novo" de responsabilidade e de desenvolvimento humanos. A primeira defesa a efectuar é a da dignidade inalienável e do valor da própria vida. Como sublinhastes nos vossos ensinamentos, para os cristãos o "Evangelho da vida" não é uma simples opinião, mas uma dimensão essencial da nossa obediência a Deus. Cada um tem a séria obrigação de se colocar ao serviço deste Evangelho: "Todos nós estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir incondicionalmente a favor da vida" (Encíclica Evangelium vitae EV 28). Na catequese, na educação, no campo das investigações e da prática médicas, entre os legisladores e os responsáveis da vida pública, bem como nos meios de comunicação, deve-se realizar um grande esforço a fim de apresentar o "Evangelho da vida" com toda a força da sua verdade.

Como Pastores, estamos plenamente conscientes de que hoje em dia se fazem ouvir numerosas verdades acerca dos interrogativos fundamentais do comportamento humano, de tal forma que, em inumeráveis casos, as exortações e o ensinamento da moral cristã se tornam objecto de combates penosos. Muitos de entre vós me disseram como foram ajudados na grande tarefa da formação pelo Catecismo da Igreja Católica. Esta síntese do ensinamento da Igreja pode ser um instrumento muito eficaz para transmitir um profundo e sério conhecimento da fé e das regras da vida cristã nas paróquias, escolas, universidades e seminários. Durante as últimas décadas, houve casos em que os esforços para tornar as verdades da fé mais acessíveis, especialmente na catequese das crianças e dos jovens, levaram a desvirtuar a mensagem cristã da sua essência e poder. Sem dúvida, no nosso ministério pastoral nada é mais urgente, nada nos atribui maior responsabilidade perante o Senhor, do que garantir a transmissão da fé que nos foi comunicada pelos Apóstolos.

6. Propagar a fé e evangelizar significa anunciar ao mundo uma verdade absoluta e universal; contudo, é nosso dever falar de maneira apropriada e significativa, a fim de tornar as pessoas receptivas desta verdade. Reflectindo sobre aquilo que isto exige, Paulo VI especificou quatro qualidades, que definiu como perspicuitas, lenitas, fiducia, prudentia clarividência, humanidade, confiança e prudência (cf. Ecclesiam suam, 81).

Falar com clarividência significa que é preciso explicar de modo compreensível a verdade da Revelação e dos ensinamentos da Igreja. Deve-se não só repetir, mas explicar. Por outras palavras, temos necessidade de uma nova apologética, correspondente às necessidades de hoje, conscientes de que a nossa tarefa não consiste apenas em vencer argumentos, mas em conquistar almas, empenhar-se não unicamente em debates ideológicos, mas em reivindicar e promover o Evangelho. Esta apologética deve encontrar uma comum "gramática", em sintonia com aqueles que vêem as coisas sob diferentes pontos de vista e não compartilham as nossas convicções, se não terminaremos por falar diferentes linguagens, mesmo quando usamos o mesmo idioma.

Esta nova apologética também deverá respirar um espírito de humanidade, aquela humildade misericordiosa que compreende as ansiedades e interrogativos das pessoas e que não se apressa em ver nas mesmas má vontade ou má fé. Ao mesmo tempo, ela não apelará a um sentimental apreço do amor e da compaixão de Cristo separado da verdade mas, pelo contrário, insistirá sobre o facto de que o verdadeiro amor e compaixão podem apresentar reivindicações radicais, precisamente porque são inseparáveis da única verdade que nos liberta (cf. Jo Jn 8,32).

Falar de confiança significa que, embora muitas pessoas possam negar-nos qualquer competência específica ou admoestar-nos pelas falhas dos membros da Igreja, jamais devemos perder de vista o facto de que o Evangelho de Jesus Cristo é a verdade à qual todos os homens aspiram, independentemente de quão distantes, resistentes e hostis possam parecer.

Enfim a prudência, que Paulo VI define como sabedoria prática e bom senso, e que Gregório o Grande considera como a virtude dos corajosos (cf. Moralia, 22, 1). Isto significa que devemos dar uma resposta clarividente às pessoas que nos perguntarem: "O que é que devemos fazer?" (Lc 3,10 Lc 3,12 Lc 3,14). O Papa Paulo VI conclui, afirmando que perspicuitas, lenitas, fiducia e prudentia "tornar-nos-á sábios e mestres" (Ecclesiam suam, 83). Queridos Irmãos, é isto que somos chamados a ser em primeiro lugar: mestres da verdade, que nunca cessem de rezar pela "graça de ver a vida na sua integridade e ter a força de falar eficazmente dela" (Gregório o Grande, Sobre Ezequiel, I, 11, 6).

7. Aquilo que ensinamos não é uma verdade forjada por nós mesmos, mas uma verdade revelada, que nos foi concedida por Cristo como uma dádiva incomparável. Somos enviados para proclamar esta verdade e chamar aqueles que nos ouvem para aquela que o Apóstolo Paulo define como a "obediência da fé" (Rm 1,5). Os Mártires do Canadá, cuja memória estais a celebrar com especial júbilo neste 350° aniversário da sua morte, jamais deixem de ensinar aos seguidores de Cristo no vosso País a verdade desta obediência e desta morte pessoal, a fim de poderem viver para Ele. Eles ensinem à Igreja que está no Canadá o mistério da Cruz, e a semente do seu sacrifício produza ricos frutos no coração dos habitantes da vossa terra! À intercessão da Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos e Rainha dos Mártires, e à protecção de São José seu esposo, confio toda a família de Deus presente no vosso País. A vós, aos sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis leigos das vossas Dioceses concedo do íntimo do coração a minha Bênção apostólica.

              

                                                                          Novembre de 1999

MENSAGEM DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DO ENCONTRO


COM OS BISPOS DAS IGREJAS ORIENTAIS CATÓLICAS




Ao meu venerado Irmão
Cardeal ACHILLE SILVESTRINI
Prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais

Tenho o prazer de saudar, por seu intermédio, os participantes no encontro entre os Bispos e os Superiores religiosos das Igrejas Orientais Católicas na América e na Oceânia e a Congregação para as Igrejas Orientais, que se realizará em Boston, de 7 a 12 de Novembro de 1999. Envio um especial agradecimento ao Cardeal Bernard Law, Arcebispo de Boston que, graças à sua generosa hospitalidade, tornou possível este encontro.

Depois do semelhante encontro dos responsáveis pelas Igrejas Católicas na Europa, que se realizou em Julho de 1997, encorajada pelos numerosos frutos que ele produziu, a sua Congregação sentiu a utilidade de promover esta nova oportunidade para um estudo em conjunto e uma avaliação. Este encontro tem o objectivo de reunir as diversas Igrejas Orientais, para que reflictam e orem juntas a fim de reconhecer, com a Congregação, as singulares características da sua presença na América e na Oceânia e identificar vias de empenho para o futuro.

Trata-se de uma oportunidade de modo particular preciosa para a Congregação, porque é precisamente encontrando os responsáveis pelas Igrejas que ela serve e escutando as suas necessidades que o seu Dicastério se torna maiormente capaz de assistir o Sucessor de Pedro, no seu ministério de serviço. Contudo, trata-se de um momento muito precioso também e sobretudo para as próprias Igrejas Orientais, porque é através do intercâmbio de experiências e de reflexões que elas poderão discernir a voz do Espírito que guia a Igreja ao longo do seu caminho no tempo.

Atentos ao Espírito, os Bispos poderão identificar algumas linhas comuns de acção, para satisfazerem as exigências e expectativas das próprias comunidades e dos homens e mulheres de hoje. Uma estratégia comum é necessária, não só para fazer com que o anúncio do Evangelho seja mais eficaz e relevante, mas também a fim de que constitua um sinal visível da comunhão de toda a Igreja, na rica variedade do seu património teológico, espiritual, litúrgico e canónico, património de que beneficiam todos os seus membros.

No vosso trabalho dos próximos dias, o Bispo de Roma, que preside à Igreja com amor, acompanha-vos com as suas orações. Peço ao Senhor que conceda às Igrejas Orientais Católicas, em fidelidade às suas raízes históricas e com um atento discernimento das realidades sociais em que vivem e governam, a coragem de percorrer o caminho profético que o Espírito indica aos seguidores de Jesus Cristo ao aproximar-se o terceiro milénio cristão.

A esta altura, desejaria recordar alguns critérios, confiando-os à vossa reflexão conjunta, que emergiram da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a América, que se realizou no Vaticano de 16 de Novembro a 12 de Dezembro de 1997. Embora se refiram à situação específica da América, estas observações valem de igual modo para a Igreja na Oceânia.

Na minha Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in America, escrevi: "A imigração na América constitui quase uma constante da sua história, desde o início da evangelização até aos nossos dias. No âmbito deste fenómeno complexo, convém assinalar que, ultimamente, diversas regiões da América acolheram numerosos membros das Igrejas Orientais Católicas que, por várias razões, abandonaram o seu território de origem. Um primeiro movimento migratório provinha sobretudo da Ucrânia ocidental; depois, estendeu-se às nações do Oriente Médio" (n. 17). Esta imigração envolveu todas as Igrejas Orientais, inclusive as de outras regiões, por exemplo a Índia. Por isso, tornou-se "pastoralmente necessária a criação de uma hierarquia católica oriental para estes fiéis imigrados e seus descendentes" (Ibidem).

Esse contexto permite-nos enfrentar uma questão que, na realidade, é o objecto principal deste encontro: "a diáspora". Encorajo todos vós a examiná-la a fundo.

O princípio fundamental que deveis ter sempre em consideração nas vossas reflexões pode-se também encontrar na própria Exortação Apostólica: "As normas, emanadas pelo Concílio Vaticano II e recordadas pelos Padres sinodais, reconhecem que as Igrejas Orientais "têm o direito e o dever de se governarem segundo as próprias disciplinas particulares", cabendo-lhes a missão de dar testemunho de uma antiquíssima tradição doutrinal, litúrgica e monástica. Por outro lado, estas Igrejas devem conservar as próprias disciplinas, porque são "mais conformes aos costumes dos seus fiéis e resultam mais aptas para promover o bem das almas"" (Ibidem). As Igrejas Orientais Católicas, portanto, são chamadas a manter uma dúplice fidelidade. A primeira às tradições que lhes foram transmitidas, a fim de poderem, por sua vez, perpetuá-las de maneira fiel. A respeito disso, são úteis os vínculos que as unem às suas Igrejas-Mães. A segunda, é a fidelidade aos homens e às mulheres de hoje com as suas alegrias e esperanças, os seus sofrimentos e dores, os seus desejos e expectativas, que anelam à verdade e àquela plenitude de vida que só tem origem em Deus. Esta é a fidelidade à procura constante de um significado da vida mais profundo, em particular nas sociedades orientadas para o consumo. Esta dúplice fidelidade a Deus e à sua Revelação resplandece nas numerosas e diversas tradições transmitidas pelos Apóstolos através dos Padres (cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Decreto sobre as Igrejas Orientais Católicas, Orientalium Ecclesiarum OE 1) e é fidelidade ao homem e à sua necessidade de Deus, nos vários modos em que ele se exprime.

No decurso do vosso trabalho conjunto, deveis reflectir sobre a situação que se veio a criar para a presença de católicos orientais em territórios nos quais os católicos são, na maior parte, de tradição latina. Como observei também na minha Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in America: "Se à Comunidade eclesial universal é necessária a sinergia entre as Igrejas particulares do Oriente e do Ocidente, para permitir que respire com os dois pulmões, na esperança de que o faça plenamente através da perfeita comunhão entre a Igreja católica e as Igrejas orientais separadas, só pode ser motivo de alegria a recente implantação na América das Igrejas Orientais ao lado das latinas, ali presentes desde o começo, para que assim se possa manifestar melhor a catolicidade da Igreja do Senhor" (n. 17).

Por esta razão, recordo-vos que é necessário instaurar e promover uma relação sempre mais profunda de comunhão fraterna entre as Igrejas Orientais Católicas e a Igreja Latina. Com efeito, como ressaltei em Ecclesia in America, "não há dúvida de que esta cooperação fraterna, enquanto oferece uma preciosa ajuda às Igrejas Orientais Católicas construídas recentemente na América, permitirá às Igrejas particulares latinas enriquecer-se com o património espiritual das tradições do Oriente cristão" (n. 38).

Espero que todos os responsáveis pelas Igrejas Orientais Católicas se sintam chamados a ser, para os homens e as mulheres dos seus países e das suas culturas, um sinal palpável daquele amor que é o traço característico dos discípulos de Cristo. Peço-vos que lhes transmitais o meu convite a cooperarem para a criação daquela unidade que brota da riqueza e da harmonia da variedade, a fim de poderem mostrar a riqueza abundante da Revelação de Deus e chegar a determinar vias concretas para tornar possível a experiência da comunhão, seguindo as directrizes sugeridas na Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in America (cf. n. 38).

Desse modo, todos nós poderemos gozar dos frutos assim obtidos e, com entusiasmo e autêntica solicitude pelos outros, seremos capazes de prosseguir ao longo do caminho que se abre diante de nós.

Esta obra deve haurir inspiração no mistério central da nossa fé: a Encarnação do Filho de Deus. Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é a expressão mais excelsa da fidelidade a Deus e ao homem. Deve ser Cristo encarnado, objecto da nossa contemplação ao longo da peregrinação rumo ao Ano Santo, o Grande Jubileu do Ano 2000, a guiar os nossos passos e a iluminar o nosso coração. A vossa reunião e a celebração conjunta da Liturgia Divina devem ser ocasião de autêntico encontro com Cristo, pedra angular e fundamento de todos os nossos projectos e planos.

Ao implorar a intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria, que humildemente acolheu Cristo no seu seio e O deu ao mundo inteiro com generosidade, peço ao Pai que derrame os dons do seu Espírito sobre quantos participam neste encontro e sobre as suas respectivas Igrejas, a fim de que resplandeçam como sacramento de Cristo ressuscitado, permitindo às novas gerações da América e da Oceânia conhecerem Jesus Cristo e encontrarem n'Ele "a sua paz e alegria" (Ecclesia in America ).

Com estes sentimentos, de coração concedo-lhe e a todos os participantes neste encontro a minha Bênção Apostólica.

Vaticano, 1 de Novembro de 1999, Solenidade de Todos os Santos.


Discursos João Paulo II 1999 - Sexta-feira, 29 de Outubro de 1999