Homilias JOÃO PAULO II 209

209 A sua existência foi feita de oração contínua que lhe alimentava a vida interior e lhe informava todas as obras. Na escola da grande Santa de Ávila aprende que a oração, esse «trato de amizade» com Deus, é meio necessário para uma pessoa conhecer e viver de verdade, para crescer na consciência de ser filha de Deus, para crescer no amor. E é, além disso, meio eficaz para transformar o mundo. Por esse motivo, será ele também apóstolo e pedagogo da oração. A quantas almas ensinou a orar com a sua obra o Quarto de hora de oração!

Este foi o segredo da sua profunda vida sacerdotal, aquilo que lhe deu alegria, equilíbrio e fortaleza; o que fez que ele — sacerdote, servidor e ministro de todos, sofrendo com todos, amando e respeitando a todos — se sentisse feliz por ser o que era, consciente de ter nas mãos dons recebidos do Senhor para a redenção do mundo, dons que ele, embora sentindo-se pequeno e indigno, oferecia, inspirado na infinita superioridade do mistério de Cristo, dons que enchiam a sua alma de gozo inefável. Testemunho e lição de vida eclesial plenamente válido para o sacerdote de hoje que — no exemplo dos Santos e nos ensinamentos ou normas da Igreja, não em sugestões ou teorias estranhas — pode encontrar orientação segura para conservar a sua identidade, para se realizar com plenitude.

Uma vez mais quero exortar, nesta esplêndida ocasião, os meus amados irmãos sacerdotes, à entrega total a Cristo, alegremente vivida no celibato pelo Reino dos Céus e no serviço generoso aos irmãos sobretudo aos mais pobres, por meio duma vida centrada no próprio ministério pastoral, isto é, na missão específica da Igreja, vida caracterizada por esse estilo evangélico que expus na minha carta de Quinta-Feira Santa e do qual falei novamente nos meus agradabilíssimos encontros com os presbíteros durante a minha recente viagem apostólica.

3. Se quiséssemos assinalar agora um dos rasgos mais característicos da fisionomia apostólica do novo Beato, poderíamos dizer que foi um dos maiores catequistas do século XIX, o que o torna muito actual neste momento em que toda a Igreja reflecte — como o fez também na última sessão do Sínodo dos Bispos — sobre o dever de catequizar que impende a todos os seus filhos.

Como catequista genial, distinguiu-se pelos escritos e pelo labor prático; atento em dar a conhecer, adequadamente e em sintonia com o magistério da Igreja, o conteúdo da fé, e em ajudar a vivê-lo. Os seus métodos activos fizeram que se antecipasse às conquistas pedagógicas posteriores. Mas o objectivo que se propôs foi sobretudo dar a conhecer e despertar o amor a Deus, a Cristo e à Igreja, amor que é o centro da missão do verdadeiro catequista.

Nesta missão, percorreu todos os campos: o da infância, com as suas inesquecíveis catequeses em Tortosa («pelas crianças ao coração dos homens»); o do mundo juvenil, com as Associações de jovens que chegaram a ter amplíssima difusão; o da família, com os seus escritos de propaganda religiosa, particularmente a Revista Teresiana; o dos operários, procurando dar a conhecer a doutrina social da Igreja; o da instrução e da cultura em que, atendendo à mentalidade da época, lutou para assegurar a presença do ideal católico na escola, a todos os níveis, incluído o universitário. Dedicou-se incansavelmente ao ministério da palavra falada, através da pregação, e da palavra escrita, através da imprensa como meio de apostolado.

4. Mas no seu afã de catequista, formou a sua obra predilecta — que lhe consumiu a maior parte das energias —, a fundação da Companhia de Santa Teresa de Jesus.

Para estender o raio da acção dela no tempo e no espaço; para penetrar no coração da família; para servir a sociedade numa época em que a formação cultural começava a ser indispensável: chamou a si mulheres que podiam ajudá-lo em tal missão e entregou-se à tarefa de formá-las com esmero. Com elas deu começo ao novo Instituto, que se iria distinguir por estas características: como filhas do seu tempo, a estima dos valores da cultura; como consagradas a Deus, a entrega total ao serviço da Igreja; e como estilo próprio de espiritualidade, a assimilação da doutrina e dos exemplos de Santa Teresa de Jesus.

Poderíamos dizer que a Companhia de Santa Teresa de Jesus foi e é como que a grande catequese, organizada pelo Beato Osso para chegar à mulher, e por meio dela infundir nova vitalidade na sociedade e na Igreja.

Filhas da Companhia de Santa Teresa: deixai-me dizer que me dá gosto ver que vos mantendes fiéis ao vosso carisma, dentro da renovação exigida pelo momento actual, seguindo a luz das orientações do Concílio Vaticano II e da exortação Apostólica «Evangelica Testificatio» do meu predecessor Paulo VI. De acordo com o legado do vosso Fundador e com o espírito da grande Santa de Ávila, sede generosas na vossa doação total a Cristo, para dardes muito fruto nos Países de missão. Reflicta o vosso proceder toda a riqueza duma vida interior em que a renúncia é amor; o sacrifício, eficácia apostólica; a fidelidade, aceitação do mistério que viveis; a obediência, elevação sobrenatural; e a virgindade, doação alegre aos outros pelo reino dos céus. Sede diante do mundo, mesmo com os sinais externos, um testemunho vivo de ideais grandes, tornados realidade — catequizando, evangelizando sempre, com a palavra e com a acção apostólica; sede uma prova digna de fé de que, hoje como ontem, vale a pena não cortar as asas do próprio espírito para dar ao mundo actual — que tanto o necessita e busca, às vezes mesmo inconscientemente — a serenidade na fé, a alegria na esperança e a felicidade no verdadeiro amor. Vale a pena, sim, viver para isso, viver assim a própria vocação de mulher e de religiosa. A imitação da Virgem Maria, a quem o vosso Fundador professou tão terna devoção.

5. Ao cristão de hoje, absorto num ambiente de busca precipitada dum ideal novo de homem, o Beato Henrique de Ossó, educador cristão, deixa também um legado. Esse homem novo, que se busca, não poderá conseguir-se autenticamente sem Cristo, o Redentor do homem. Será necessário cultivá-lo, educá-lo, dignificá-lo cada vez mais nas suas polivalentes facetas humanas, mas é necessário catequizá-lo, abri-lo a horizontes espirituais e religiosos onde encontre a sua projecção de eternidade, como filho de Deus e cidadão dum mundo que rebaixa o mundo presente.

210 Que vasto campo se abre à dedicação generosa dos pais e mães de família! Aos responsáveis e professores em colégios e instituições de ensino, sobretudo da Igreja, que deverão continuar a ser, com o devido respeito a todos, centros de educação cristã! A muitas de vós, antigas alunas de colégios da Companhia de Santa Teresa que estais ao lado das vossas mestras de tempos passados! A tantas outras almas que, desempenhando outros lugares privados ou públicos, podem contribuir para a elevação cultural e humana dos demais e para a sua formação na fé! Tende consciência da vossa responsabilidade e das possibilidades de praticar o bem.

6. Termino estas reflexões, dedicando uma saudação cordial aos Membros da Missão especial, enviada a este acto pelo Governo espanhol. Peço a Deus que a tradição católica da Nação espanhola, tradição de que tanto falou e escreveu o novo Beato, constitua estímulo na actual fase da sua história e possa alargar-se no sentido de metas mais altas, olhando decididamente para o futuro, mas sem esquecer, pelo contrário procurando conservar e revigorar, as essências cristãs do passado, para que assim o presente seja época de paz, de prosperidade material e espiritual, e de esperança em Cristo Salvador.





INAUGURAÇÃO DO ANO ACADÉMICO 1979-1980 NAS UNIVERSIDADES PONTIFÍCIAS E COLÉGIOS ECLESIÁSTICOS DE ROMA


Segunda-feira, 15 de Outubro de 1979




1. É para mim motivo de sincera alegria encontrar-me hoje aqui, a presidir esta solene Liturgia eucarística, que vê reunidos à volta do altar de Cristo, juntamente com o Senhor Cardeal Prefeito da Sagrada Congregação para a Educação Católica e com os Reitores das Pontifícias Universidades e Ateneus romanos, os Professores, os alunos e o pessoal auxiliar destes Centros de estudo.

Estamos aqui reunidos, caríssimos filhos, por uma circunstância particularmente significativa: pretendemos inaugurar oficialmente, com esta Concelebração, o Ano Académico 1979-1980. Queremos inaugurá-lo sob os olhos de Deus. Sentimos que é justo fazê-lo. Que é, de facto, um novo ano de estudo senão a retomada de uma ascensão ideal que, por sendas não raro íngremes e tortuosas, leva o investigador cada vez mais para o alto, ao longo das vertentes daquela misteriosa e fascinadora montanha que é a verdade? A fadiga do caminho é abundamentemente recompensada com a beleza dos panoramas cada vez mais sugestivos, que se abrem perante o olhar extasiado.

A subida não é, porém, isenta de riscos: há passagens difíceis e apoios traiçoeiros, há o perigo de improvisas escuridões, há a possibilidade de perspectivas ilusórias e de obstáculos imprevistos. A metáfora é transparente: a conquista da verdade é empresa árdua, não sem incógnitas e riscos. A pessoa responsável, que se aventura a ela, não pode deixar de sentir a necessidade de invocar sobre a sua fadiga a benevolência de Deus, o socorro da sua luz e a intervenção corroborante da sua graça.

Se isto vale para toda a forma de investigação científica, mais verdadeiro se mostra para a investigação teológica, que se enfrenta com o infinito mistério de Deus, a nós comunicado mediante a palavra e a obra da Redenção; e mostra-se verdadeiro também para os outros ramos dos estudos eclesiásticos, que, ao orientarem-se para os vários campos da investigação bíblica, da ciência filosófica, da história, etc., regressam a este factor que todos unifica, e faz de vós «os especialistas» de Deus e do seu mistério de salvação, manifestado ao homem. Por conseguinte, o estudante das Faculdades eclesiásticas não se mede com uma verdade impessoal e fria, mas com o Eu mesmo de Deus, que na Revelação se fez «Tu» para o homem e abriu com ele um diálogo, em que lhe manifesta alguns aspectos da insondável riqueza do seu próprio ser.

2. Qual será, então, a justa atitude do homem, chamado pelo amor proveniente de Deus a uma inimaginável confiança? Não é difícil responder. Não poderá deixar de ser uma atitude de profunda gratidão, unida a sincera humildade. É tão fraca a nossa inteligência, tão limitada a experiência e tão breve a vida, que tudo o que se consegue dizer de Deus tem mais a aparência de um balbuciar infantil do que a dignidade de um assunto exauriente e conclusivo. São conhecidas as palavras com que Agostinho confessava a sua hesitação ao apresentar-se a falar dos mistérios divinos: suscepi enim tractanda divina homo, spiritualia carnalis, aeterna mortalis; «assumi o compromisso de tratar coisas divinas, eu que sou um simples homem; coisas espirituais, eu que sou um ser de carne; coisas eternas, eu mortal» (Santo Agostinho, In Io. Ev. Tr. 18, n. 1).

Esta é a convicção de base, com que o teólogo deve meter mãos ao trabalho: deve recordar-se sempre de que, por mais que possa dizer sobre Deus, tratar-se-á sempre de palavras de um homem, e portanto de um pequeno ser finito, que se aventurou na exploração do mistério insondável do Deus infinito.

Nada de surpreendente, portanto, se os resultados a que chegaram os máximos génios do Cristianismo, lhes pareceram absolutamente inadequados em relação ao Termo transcendente da sua investigação. Confessava Agostinho: Deus ineffabilis est; facilius dicimus quid non sit, quam quid sit (Id., Enarr. In Ps 85,12); e explicava: «Quando deste abismo nos elevamos a respirar naquelas alturas, não é conhecimento de pouca importância saber que coisa Deus não é, antes de saber que coisa Ele é» (Id., De Trin. 8, 2, 3). E como deixar de recordar, a este propósito, a resposta de São Tomás ao seu fiel secretário, Frei Reginaldo de Piperno, que o exortava a prosseguir a composição da Summa, interrompida após uma experiência mística particularmente perturbadora. Referem os biógrafos que às insistências do amigo ele opôs apenas laconicamente: «Irmãos, já não posso mais; tudo aquilo que escrevi parece-me palha». E a Summa ficou incompleta.

E a humildade, de que dão exemplo tão esplêndido os maiores mestres de teologia, anda a par e passo com uma profunda gratidão. Como não havemos de ser gratos quando Deus infinito se abaixou a falar ao homem na sua mesma língua humana? Ele de facto tendo falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitas maneiras, pelos Profetas, agora falou-nos, nestes últimos tempos, pelo Filho (He 1,1-2). Como deixaremos de nos mostrar agradecidos uma vez que, deste modo, a língua humana e o pensamento humano foram visitados pela Palavra de Deus e pela Verdade Divina e foram chamados a participar nela, a prestar testemunho dela, a anunciá-la e também a explicá-la e aprofundá-la de modo correspondente às possibilidades e exigências do conhecimento humano? Precisamente isto é a teologia. Precisamente isto é a vocação do teólogo. Em nome desta vocação reunimo-nos hoje aqui para começar um novo Ano Académico, que decorrerá em todas aquelas oficinas do trabalho científico e didáctico que são os Ateneus de Roma.

211 3. A humildade é um sinal de todo o cientista que tem uma relação honesta com a verdade cognoscitiva. Ela, acima de tudo, abrirá o caminho para que se radique na sua alma a disposição fundamental, necessária para toda a investigação teológica, merecedora deste nome. Esta disposição fundamental é a fé.

Reflictamos: a Revelação consiste na iniciativa de Deus, que se dirigiu pessoalmente ao homem, para encetar com ele um diálogo de salvação. É Deus a iniciar a conversa, e é Deus a continuá-la. O homem escuta e responde. A resposta, porém, que Deus espera do homem, não se limita a uma fria avaliação intelectual de um conteúdo abstracto de ideias. Deus dirige-se ao homem e fala-lhe, porque o ama e quer salvá-lo. A resposta do homem, por conseguinte, deve ser, antes de tudo, aceitação reconhecida da iniciativa divina, e confiante abandono à força preveniente do seu amor.

Entrar em diálogo com Deus significa deixar-se alguém enlevar e conquistar pela figura luminosa (doxa) de Jesus revelador e pelo amor (agape)d'Aquele que O mandou. E nisto, precisamente, consiste a fé. Nela o homem, interiormente iluminado e atraído por Deus, transcende os limites do conhecimento puramente natural e faz uma experiência d'Ele, que de outro modo lhe seria impedida. Jesus disse: Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou, o não atrair (
Jn 6,44). «Ninguém», portanto nem sequer o teólogo.

O homem — observa São Tomás —, enquanto está in statu viae, pode adquirir certa inteligência dos mistérios sobrenaturais, graças ao uso da sua razão, mas só naquilo em que ela se apoia sobre o fundamento inabalável da fé, que é participação no conhecimento mesmo de Deus e dos bem-aventurados compreensores: Fides est in nobis ut perveniamus ad intelligendum quae credimus (São Tomás, In Boeth. de Trin., q. 2, a. 2, ad 7). É o pensamento de toda a tradição teológica, e é em particular a posição do grande Agostinho: «crendo tornas-te capaz de compreender; se não crês, não conseguirás nunca compreender... A fé te purifique, pois, a fim de te ser concedido chegar à plena inteligência (Santo Agostinho, In Io. Evang. Tr. 36, n. 7). Noutro lado observa a este propósito: Habet namque fides oculos suas, quibus quodammodo videt verum esse quod nondum videt (Id. Ep. Consentium, nn. 2, 9), e é por isto que intellectui fides aditum aperit, in fidelitas claudit (Id. Ep. Volusianum, nn. 4, 15).

A conclusão, a que chega o Bispo de Hipona, tornar-se-á clássica: «A inteligência é o fruto da fé. Não procures pois compreender para crer, mas crê para compreender» (Id., In Io. Evan. Tr. 29, n. 6). É uma advertência sobre a qual deve reflectir todo aquele que «faz Teologia»: existe de facto também hoje o risco de pertencer ao grupo dos garruli ratiocinatores (Id. De Trin. 1, 2, 4), que Agostinho convidava a cogitationes suas carnales non dogmatizara (Id. , Ep. Dardanum, nn. 8, 29). Só a «obediência da fé» (Cfr. Rom Rm 16,26), com a qual o homem se abandona inteiramente a Deus em plena liberdade, pode introduzir na compreensão profunda e saborosa das verdades divinas.

4. Há uma segunda vantagem que deriva para o teólogo da humildade: ela constitui o húmus no qual se enraíza e germina a flor da oração. Como poderia, efectivamente, rezar com sentimentos sinceros um espírito soberbo? E a oração é indispensável para o crescimento na fé. Recordou-o o Concílio Vaticano II quando na Constituição Dei Verbum salientou que, para dar o assentimento de fé à divina Revelação «é necessária a graça de Deus que previne e ajuda», é necessário o auxílio do Espírito Santo, «que mova e converta para Deus os corações, abra os olhos da alma, e dê 'a todos a suavidade no aderir e dar crédito à verdade'» (Dei Verbum DV 5).

Elemento essencial do esforço teológico deve, por conseguinte, reconhecer-se na dedicação à oração: só uma oração humilde e assídua pode impetrar a efusão daquelas luzes interiores que guiam a mente para a busca da verdade. Deus semper idem, noverim me noverim te, suplicava Agostinho nos Solilóquios (Santo Agostinho, Solilóquios, 2, 1, 1), e nas exposições catequéticas não se cansava de convidar os seus ouvintes a rezarem para obter a luz, e luz invocava ele próprio nos momentos de obscuridade: «Deus Pai nosso, que nos exortas a pedir-te e nos dás aquilo que te pedimos (...), ouve-me a mim que sinto calafrios nestas trevas e oferece-me a tua direita. Deixa-me ver a tua luz, repreende-me dos erros e faz que, seguindo a tua orientação, reentre em mim e em ti. Ámen» (Id. Ibid., 2, 6, 9; cfr. 1, 1, 2-6).

E como deixar de mencionar aquela famosa oração que Santo Anselmo eleva no início do seu Proslógio? É uma oração tão simples e bela que pode constituir modelo de invocação para quem quer que se dispõe para «estudar Deus»: «Deus, ensina-me a procurar-te e mostra-te a mim que te procuro, dado que eu não posso nem procurar-te nem encontrar-te, se tu próprio não te mostras» (Santo Anselmo, Proslog., 1).

Um autêntico esforço teológico — digamo-lo com franqueza — não pode começar nem terminar senão de joelhos, pelo menos no segredo da cela interior, onde é possível «adorar o Pai em espírito e verdade» (Cfr. Jo Jn 4,23).

5. A humildade sugere, por fim, ao teólogo o justo comportamento em relação à Igreja. Sabe que a ela foi confiada a «Palavra», a fim de a anunciar ao mundo, aplicando-a a todas as épocas e tornando-a assim realmente actual. Sabe-o e alegra-se com isso.

Por este motivo não hesita em repetir com Orígenes: «Por meu lado, a minha aspiração consiste em ser verdadeiramente eclesiástico» (Orígenes, In Lucam, hom. 16), isto é, em estar em plena comunhão de pensamento, de sentimento e de vida com a Igreja, na qual Cristo se torna contemporâneo de cada geração humana. Verdadeiramente homo ecclesiasticus, ele ama, por isso, o passado da Igreja, medita a sua história, venera e explora a sua Tradição. Não se deixa, porém, prender a um culto saudosista das suas particulares e contingentes expressões históricas, porque bem sabe que a Igreja é um mistério vivo e a caminho, sob a guia do Espírito. De igual modo, recusa propostas de rupturas radicais com o que foi, pelo mito fascinador de um novo início: acredita estar Cristo sempre presente na sua Igreja, hoje como ontem, para continuar a sua vida, não para a recomeçar.

212 O sensus Ecclesiae, além disso, que nele é tornado vivo e vigilante pela humildade, mantém-no em constante atitude de audição, perante a voz do Magistério, que ele aceita de bom grado como garantia, por vontade de Cristo, da verdade salvífica. E em audição continua também perante as vozes que lhe chegam do Povo de Deus inteiro, sempre pronto a receber, na palavra douta do estudioso como também na palavra simples mas talvez esta não menos profunda, do fiel comum, um eco iluminante do Verbo eterno que se fez carne e veio habitar no meio de nós (Jn 1,14).

6. Eis, irmãos e filhos caríssimos, alguns pontos de reflexão para este início de ano escolar e académico. Vejo-vos aqui reunidos em redor das relíquias de São Pedro a quem Cristo disse: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja (Mt 16,18). Como vosso Bispo, Bispo de Roma e ao mesmo tempo sucessor de Pedro, desejo dirigir a todos Vós um ardente apelo a que participeis nesta construção da Igreja que tem início no próprio Cristo. Este apelo dirijo-o tanto aos Professores e aos Mestres, quanto a todos os Estudantes de cada Ateneu Romano. O trabalho que empreendeis juntos assemelha-se a um grande estaleiro da missão da Igreja na nossa época. Este trabalho deve dar frutos não só hoje mas também no futuro. Muito depende dos resultados que obtiverdes aqui. Devem tornar-se o fermento da fé e da vida cristã de tantos homens nos vários lugares da terra. De facto, viestes aqui a esta Cátedra, bem sabendo que é seu particular dever unir os filhos de Deus sobre a terra, na Verdade e no Amor, vindo eles dos diversos lugares, nações, países e continentes.

O vosso encontro com a Verdade e o Amor divino, recomendo-o à Padroeira deste dia, àquela «grande» Teresa de Jesus, a primeira entre as mulheres que mereceu o título de Doutora da Igreja. Sobretudo, invoco sobre Vós a assídua protecção d'Aquela que a Igreja saúda como Sedes Sapientiae. A sua maternal solicitude acompanhe os vossos passos e, guiando-vos para descobrirdes novos aspectos do mistério apaixonante de Cristo, vos ajude a crescer no amor por Ele. Si cognovimus, amenus, porque não o devemos esquecer — cognitio sine caritate non salvos facit, «um conhecimento sem amor não nos salva» (Santo Agostinho, In 1 Ep. Io. Tr. 2, n. 8).



DIA MUNDIAL DAS MISSÕES




Sábado, 20 de Outubro de 1979




Caríssimos irmãos e irmãs no Senhor!
Caríssimos jovens!

E com grande e profunda alegria que presido à Liturgia Eucarística, nesta vigília do «Dia Mundial das Missões», para me encontrar com todos vós fiéis da Diocese de Roma; sinto-me, assim, mais intimamente ligado, não só a todas as dioceses do mundo, nesta ocasião tão importante e significativa, mas sobretudo aos missionários e missionárias que, espalhados pelas diversas partes do mundo, anunciam aos homens, com alegria e canseira, o Evangelho da salvação.

Sim, caríssimos, é esta uma ocasião muito importante para a vossa vida espiritual e para a nossa Diocese: aqui, no centro da cristandade, nesta Basílica Vaticana, escutamos os ecos da Igreja universal, apercebemo-nos das necessidades de todos os povos, participamos nos anseios de todos aqueles que, com ardor incansável, caminham em nome de Cristo, testemunham, anunciam, convertem, baptizam, fundam novas comunidades cristãs.

Meditemos brevemente, e procuremos juntos, seguindo as leituras da Liturgia, a motivação, a condição e a estratégia da actividade missionária da Igreja.

1. Qual é a primeira e última motivação desta obra?

Eis a primeira pergunta. E a resposta é simples e peremptória: a Igreja é missionária por expressa vontade de Deus.

213 Jesus fala muitas vezes aos Apóstolos do seu encargo, da sua missão, do motivo da sua escolha: Não fostes vós que me escolhestes a mim; fui eu que vos escolhi a vós e vos constituí, para que vades e produzais fruto, e para que o vosso fruto seja duradouro (Jn 15,16).

Antes de subir ao Céu, Jesus dá aos Apóstolos e, por meio deles, a toda a Igreja, de modo oficial e determinante, a missão de evangelizar: Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura (Mc 16,15). E o evangelista anota: Então eles partiram a pregar por toda a parte (Mc 16,20).

A partir de então começaram os apóstolos e os discípulos de Cristo a percorrer as estradas da terra, a superar dificuldades e cansaços, a encontrar-se com gentes e tribos, povos e nações, a sofrer até darem a vida, para anunciar o Evangelho, porque é a vontade de Deus e, em relação a Deus, não há outra decisão que não seja a da obediência e do amor.

São Paulo escrevia ao seu discípulo Timóteo: Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4).

E a única verdade que salva é Jesus Cristo, o Redentor, o Mediador entre Deus e os homens, o Revelador único e definitivo do destino sobrenatural do homem. Jesus deu à Igreja a missão de anunciar o Evangelho; nesta missão participa todo o cristão. Todo o cristão é, por sua natureza, missionário. Paulo VI, de venerada memória, escrevia na Exortação Apostólica «Evangelii Nuntiandi»: «A apresentação da mensagem evangélica não é para a Igreja uma contribuição facultativa: é um dever que lhe incumbe por mandato do Senhor Jesus, a fim de que os homens possam acreditar e ser salvos. Sim, esta mensagem é necessária. Ela é única e não poderia ser substituída. Assim ela não admite indiferença, nem sincretismo, nem acomodação. É a salvação dos homens que está em causa; a beleza da Revelação que ela representa. Depois, ela comporta uma sabedoria que não é deste mundo. Ela é capaz, por si mesma, de suscitar a fé, uma fé que se apoia na potência de Deus. Enfim, ela é a Verdade. Por isso bem merece que o apóstolo lhe consagre todo o seu tempo, todas as suas energias e lhe sacrifique, se for necessário, a sua própria vida» Evangelii Nuntiandi, 5. «Evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar» Ibid.14.

Alguns afirmam, por vezes, que se não pode impor o Evangelho, não se pode violentar a liberdade religiosa, que, pelo contrário, é inútil e ilusório anunciar o Evangelho àqueles que já pertencem a Cristo de modo anónimo pela rectidão do seu coração. João Paulo VI respondia assim de modo explícito: «É claro que seria certamente um erro impor qualquer coisa à consciência dos nossos irmãos. Mas propor a essa consciência a verdade evangélica e a salvação em Jesus Cristo, com absoluta clareza e com todo o respeito pelas opções livres que essa consciência fará, longe de ser um atentado à liberdade religiosa, é uma homenagem a essa liberdade, à qual é proporcionado o escolher uma via que mesmo os não-crentes reputam nobre e exaltante ... Esta maneira respeitosa de propor Cristo, é um dever do evangelizador. E é também um direito dos homens seus irmãos o receber dele o anúncio da Boa Nova da salvação» (Ibid.80).

São palavras muito sérias, mas sobretudo iluminadoras e encorajantes, que precisam uma vez mais qual é a positiva vontade de Deus e a nossa responsabilidade de cristãos.

2. Mas ponhamo-nos uma segunda pergunta: qual é a condição essencial para a obra missionária? É a unidade na doutrina.

Antes de deixar este mundo, Jesus rezou assim: Não rogo só por eles, mas também por aqueles que vão crer em mim, por meio da sua palavra, para que todos sejam uma coisa só, assim como tu, ó Pai, estás em mim, também eles sejam um em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste (Jn 17,20-21).

E São Paulo escrevia com ansiedade ao discípulo Timóteo: Não há senão um só Deus, um só é também o mediador entre Deus e os homens. o homem Cristo Jesus que se entregou a si próprio por todos (1Tm 2,5-6).

De facto, se falta a unidade na fé, quem e que coisa se anuncia? Como podemos ser acreditados, tanto mais quando a doutrina é tão misteriosa e a moral tão exigente? As diferenças e os contrastes doutrinais apenas criam a confusão e, no fim, a desilusão. Numa matéria tão essencial e delicada como é o conteúdo do Evangelho, não se pode ser estouvado, nem superficial, nem oportunista, inventando teorias e apresentando hipóteses. A evangelização deve ter como característica a unidade na fé e na disciplina e, por isso, o amor à verdade.

214 Meditemos as palavras profundas e equilibradas de Paulo VI: «Espera-se de todo o evangelizador que ele tenha o culto da verdade, tanto mais que a verdade, que ele aprofunda e comunica, outra coisa não é senão a verdade revelada e, por isso mesmo, mais do que qualquer outra, parcela daquela verdade primária que é o próprio Deus. O pregador do Evangelho terá de ser, portanto, alguém que, mesmo à custa da renúncia pessoal e do sofrimento, procura sempre a verdade que há-de transmitir aos outros. Ele jamais poderá trair ou dissimular a verdade, nem com a preocupação de agradar aos homens, de arrebatar ou de chocar, nem por originalidade ou desejo de dar nas vistas. Ele não há-de deixar que ela se obscureça pela preguiça de a procurar, por comodidade ou por medo; não negligenciará nunca o estudo da verdade. Mas há-de servi-la generosamente, sem a escravizar» (Evangelii Nuntiandi EN 78).

Agradeçamos a Paulo VI estas indicações tão claras e, ao mesmo tempo, rezemos intensamente para que todos estudem, conheçam e anunciem a verdade e só a verdade, dóceis ao Magistério autêntico da Igreja, porque a certeza e a clareza são as qualidades indispensáveis da Evangelização.

3. E, finalmente, eis a última pergunta: qual é a estratégia da obra missionária? Também para esta interrogação a resposta é simples: o amor!

A estratégia única e indispensável para a obra missionária é exclusivamente o amor interior, pessoal, convicto e ardente a Jesus Cristo!

Recordemos a exclamação jubilosa de Santa Teresa de Lisieux: «A minha vocação é o amor!... No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o amor ... Assim serei tudo!» (Man. B).

Deve ser assim também para nós!

— O amor é intrépido e corajoso: Jesus é ainda desconhecido por três quartos da humanidade! A Igreja tem, por isso, necessidade de muitos e dedicados missionários e missionárias para anunciar o Evangelho! Vós, jovens e meninas, estai atentos à voz de Deus que chama!

Estupendos ideais de caridade, de generosidade e de entrega estão à vossa frente e vos convidam! A vida só é grande e bela enquanto se doa! Sede intrépidos! A alegria suprema está no amor sem pretensões, numa pura doação de caridade aos irmãos!

— O amor é dócil e confiante na acção da «graça». É o Espírito Santo que penetra nas almas e transforma os povos. As dificuldades são sempre imensas e, particularmente hoje, os próprios fiéis, envolvidos na história actual. são tentados pelo ateísmo, pelo secularismo, pela autonomia moral. É necessária, por conseguinte, uma confiança absoluta na obra do Espírito Santo (Evangelii Nuntiandi EN 75). Por isso o cristão, na sua obra missionária, é paciente e alegre, mesmo se tiver de semear em lágrimas, aceitando a cruz e mantendo o espírito das Bem-aventuranças.

— Por fim, o amor é engenhoso e constante, exercendo-se nos diversos tipos de apostolado missionário: apostolado do exemplo, da oração, do sofrimento, da caridade. usufruindo de todas as iniciativas e dos meios propostos pelas Obras Missionárias Pontifícias, tão beneméritas e tão activas em Roma e em todas as Dioceses.

4. Não posso esquecer, por outro lado, algumas situações de facto, que tornam, hoje, mais urgente o dever missionário de toda a Igreja, e de todos nós que a formamos. Estão activas várias formas de anti-evangelização que procuram contrapor-se radicalmente à mensagem de Cristo: a eliminação de toda a transcendência e de toda a responsabilidade ultraterrena; a autonomia ética desvinculada de qualquer lei natural e revelada; o hedonismo tido como único e satisfatório sistema de vida; e, em muitos cristãos, um enfraquecimento do fervor espiritual, uma cedência à mentalidade mundana, uma aceitação progressiva das erradas opiniões do laicismo e do imanentismo social e político.

215 Tenhamos sempre presente o brado de São Paulo: Caritas Christi urget nos! — Impele-nos o amor de Cristo (2Co 5,14).

A ardente exclamação do Apóstolo adquire uma singular eloquência e determina uma particular solicitude nos nossos tempos. É o imperativo missionário que deve movimentar todos os cristãos, as Dioceses, as paróquias, as várias comunidades: o amor de Cristo impele-nos a testemunhar, a anunciar, a proclamar a Boa Nova, a todos e apesar de tudo!

Precisamente nestes tempos deveis ser testemunhas e missionários da verdade: sem medo! O amor de Cristo deve impelir-vos a serdes fortes e decididos, porque se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rm 8,31). De facto, ninguém nos pode separar do amor de Cristo (Rm 8,35).

Mas devemos incidir a nossa atenção também sobre aqueles territórios e aquelas nações do mundo, onde infelizmente, o Evangelho não pode ser pregado, onde é proibida a actividade missionária da Igreja. A Igreja quer apenas anunciar a alegria da paternidade divina, a consolação da redenção obtida por Cristo, a fraternidade de todos os homens! Os missionários querem apenas anunciar a justa e verdadeira paz, a do amor de Cristo e em Cristo. nosso irmão e salvador. Povos inteiros esperam a água viva da verdade e da graça, e estão sequiosos dela! Rezemos para que a Palavra de Deus possa correr livre e velozmente (Ps 147,15) a todos os povos da terra.

5. Por isso, a Igreja missionária tem necessidade antes de mais, de almas missionárias na oração: estejamos perto dos evangelizadores com a nossa oração! Devemos rezar, sempre, especialmente pelas missões, sem nos cansarmos. Rezemos, antes de mais, na Santa Missa, unindo-nos ao sacrifício de Cristo pela salvação de todos os homens: que a Eucaristia mantenha firme e fervorosa a fé dos cristãos!

Mas rezemos também com confiança e constância a Maria Santíssima. a Rainha das Missões, para que faça sentir cada vez mais nos fiéis o desejo da evangelização e a responsabilidade do anúncio do Evangelho. Peçamos-lhe em particular com a recitação do Santo Rosário, para atingirmos assim e ajudarmos os que labutam entre dificuldades e trabalhos para fazerem conhecer e amar Jesus!

Maria, que se encontrava no dia do Pentecostes, no início da vida da Igreja, com os Apóstolos, os discípulos e as santas mulheres, continua sempre presente na Igreja, Ela, a primeira missionária, Mãe e auxílio de todos os que anunciam o Evangelho!



Homilias JOÃO PAULO II 209