Homilias JOÃO PAULO II 52


VISITA PASTORAL À PARÓQUIA ROMANA DE SANTA CRUZ EM JERUSALÉM


Domingo, 25 de Março de 1979




1. Hoje o Papa vem visitar a paróquia, cuja igreja tem o título de Santa Cruz em Jerusalém e é uma das estações quaresmais. Graças a este facto, podemos referir-nos às tradições quaresmais de Roma. Essas tradições, em que indirectamente participava toda a Igreja católica, estavam ligadas a cada santuário da Roma antiga, nos quais, cada dia da Quaresma, se reuniam fiéis, clero e Bispos. Em espírito de penitência, visitavam os locais santificados pelo sangue dos mártires e pela memória orante do Povo de Deus. Exactamente no quarto domingo da Quaresma, celebrava-se a Estação quaresmal neste santuário em que nos encontramos agora. As circunstâncias porém da vida contemporânea e o grande desenvolvimento territorial de Roma exigem que durante a Quaresma se visitem preferentemente as paróquias situadas nos bairros novos da cidade. Hoje a liturgia dominical começa com a palavra "Laetare, Alegra-te", isto é, começa pelo convite à alegria espiritual. Alegro-me eu porque, também neste domingo, me é dado encontrar-me num lugar santificado pela tradição de tantas gerações: no santuário da Santa Cruz, que hoje é Estação quaresmal e, ao mesmo tempo, é a vossa igreja paroquial.

2. Estou aqui para adorar em espírito, juntamente convosco, o mistério da Cruz do Senhor. Para este mistério nos orienta a conversa de Cristo com Nicodemos, que de novo lemos hoje no Evangelho. Jesus tem diante de si um escriba, doutor na Sagrada Escritura, membro do Sinédrio e, ao mesmo tempo, homem de boa vontade. Por isso decide encaminhá-lo para o mistério da Cruz. Começa portanto por recordar que Moisés levantou no deserto a serpente de bronze, durante a caminhada de 40 anos de Israel, desde o Egipto à Terra Prometida. Quando alguém, depois de ser mordido pela serpente do deserto, levantava os olhos para aquele sinal, continuava a viver (Cfr. Nb 21,4-9). Este sinal, que era a serpente de bronze, anunciava outra Elevação: Tem de ser levantado o Filho do homem assim mesmo diz Jesus e aqui fala da elevação na Cruz — a fim de que todo aquele que nele crer tenha a vida eterna (Jn 3,14-15). A Cruz: já não é só figura que prenuncia, é a Realidade mesma da salvação.

Ao seu interlocutor — assombrado mas ao mesmo tempo pronto para ouvir e continuar a conversa — explica Cristo, até ao fundo o significado da Cruz:

Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o Seu Filho único, para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna (Jn 3,16). A Cruz é nova revelação de Deus. É a revelação definitiva. No caminho do pensamento humano até Deus, no caminho de entender a Deus, realiza-se uma reviravolta radical. Nicodemos, homem nobre e honesto, e ao mesmo tempo discípulo e conhecedor do Antigo Testamento, deve ter sentido um abalo interior. Para Israel inteiro, Deus era sobretudo Majestade e Justiça. Consideravam-n'O como juiz, que premeia e castiga. Mas Deus, de quem fala Jesus, é Deus que manda o próprio Filho não a condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele (Jn 3,17). E Deus do amor, o Pai que não retrocede diante do sacrifício do Filho para salvar o mundo.

3. São Paulo, com o olhar fixo na mesma revelação de Deus, repete hoje por duas vezes na carta aos Efésios: E pela graça que fostes salvos (Ep 2,5); E pela graça que fostes salvos mediante a fé (Ep 2,8). Mas este Paulo, assim como Nicodemos, até que se converteu foi homem da Lei Antiga. No caminho de Damasco revelou-se-lhe Cristo e desde esse momento Paulo compreendeu, sobre Deus, aquilo que hoje proclama: Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, estando nós mortos pelos nossos delitos, deu-nos a vida juntamente com Cristo. E pela graça que fostes salvos (Ep 2,4-5).

Que vem a ser a Graça? "É um dom de Deus". O dom que se explica com o seu amor. O dom está onde está o amor. E o Amor revela-se mediante a Cruz. Assim disse Jesus a Nicodemos. O Amor, que se revela mediante a Cruz, é precisamente a Graça. Nela se desvenda, até ao mais profundo, o Rosto de Deus. Ele não é só juiz. E Deus de infinita majestade e de extrema justiça. Mas é Pai, que deseja que o mundo se salve; que entenda o significado da Cruz. Esta é a eloquência mais vigorosa do significado da Lei e da pena. E a palavra que fala de modo diverso às consciências humanas. E a palavra que obriga de modo diverso do usado pelas palavras da Lei e pela ameaça da pena. Para se compreender esta palavra, é necessário ser-se homem transformado, homem da Graça e da Verdade. A Graça é dom comprometedor. O Dom de Deus Vivo compromete ou obriga o homem para a vida nova. Nisto consiste precisamente aquele juízo ou julgamento, de que também fala Cristo a Nicodemos: a Cruz salva e, ao mesmo tempo, julga. Julga diversamente. Julga mais profundamente. Porque todo aquele que faz o mal, odeia a luz... — exactamente esta luz estupenda que vem da Cruz... Mas quem pratica a verdade, aproxima-se da luz (Jn 3,20-21). Aproxima-se da Cruz. Submete-se às exigências da Graça. Quer ver-se comprometido por aquele indizível Dom de Deus. Quer que ele informe toda a sua vida. Este homem sente na Cruz a voz de Deus, que dirige a palavra aos filhos desta nossa terra, do mes mo modo como falou outrora aos exilados de Israel por meio de Ciro, rei da Pérsia, com a invocação de esperança. A Cruz é invocação de esperança.

4. É necessário que nós, recolhidos nesta Estação quaresmal da Cruz de Cristo, façamos a nós mesmos estas perguntas fundamentais, que da Cruz descem até nós: Que fizemos e que fazemos para conhecer melhor a Deus? Este Deus, que nos revelou Cristo. Quem é Ele para nós? Que lugar ocupa na nossa consciência, na nossa vida?

Perguntemo-nos, deste lugar, porque é que tantos factores e tantas circunstâncias tiram a Deus o lugar que devia ter em nós. Deus para nós não se tornou já apenas um marginalizado? O seu nome não foi coberto na nossa alma com um montão doutras palavras? Não foi sufocado, como aquela semente à beira do caminho (Mc 4,4)? Não renunciámos interiormente à redenção por meio da Cruz de Cristo, pondo em seu lugar outros programas puramente temporais, parciais, superficiais?

5. O Santuário da Santa Cruz é local em que devemos fazer-nos estas perguntas fundamentais. A Paróquia é uma comunidade, reanimada pela Cruz de Cristo.

53 Que dizer da vossa Comunidade paroquial?

Faço votos por que ela, viva ;e operosa desde 1910, pulse sempre de vida cristã, fecundada pela fervorosa e assídua frequência dos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação; por que seja iluminada pela catequese continua a todos os níveis, para o aprofundamento da Palavra de Deus e para o conhecimento de Jesus Cristo; e por que se exprima numa dedicação efectiva e generosa para com os irmãos que dalgum modo necessitam da nossa actividade e do nosso afecto.

Aproveitando a ocasião desta visita de hoje, que é ao mesmo tempo peregrinação ao Santuário da Cruz de Cristo, uno-me a todos vós aqui presentes.

Desejo unir-me ao Pároco, a cujo zelo e a cuja responsabilidade está entregue esta porção do Povo de Deus; aos Sacerdotes que colaboram com ele na pastoral paroquial; à Comunidade Monástica dos Cistercienses, que fazem reviver na oração e no sacrifício o espírito de São Bernardo; uno-me aos pais e às mães, que se dedicam com exemplar abnegação ao bem dos seus filhos; uno-me: aos jovens e às jovens, que desejam oferecer o seu contributo de ideias e actividade para o crescimento duma sociedade melhor; uno-me aos rapazes e aos meninos, que tornam alegre este mundo com a .sua natural inocência; uno-me às Religiosas, que exercem o seu apostolado no âmbito da paróquia: as Apóstolas do Sagrado Coração, as Filhas de Nossa Senhora do Monte Calvário, as Irmãs do Apostolado Católico, as Irmãs Carmelitas, as Filhas de Nossa Senhora da Pureza, as Irmãs Adoradoras do Preciosíssimo Sangue, as Irmãs de São José, as Irmãzinhas dos Pobres de São Vicente, às Irmãs Terceiras Franciscanas de Todos os Santos, as Irmãs Filhas da Misericórdia, as Filhas do Sagrado Coração, as Irmãs Oblatas Cistercienses da Caridade. Mas, em especial, uno-me aos pobres, aos doentes, aos anciãos, a todos aqueles que sofrem de solidão, de incompreensão, de marginalização e de fome de afecto, e peço a estes que se unam a Cristo suspenso da Cruz e ofereçam os próprios sofrimentos pela Igreja e pelo Papa.

E com humildade confessemos as nossas culpas, as nossas negligências, a nossa indiferença perante este Amor que se revelou na Cruz. Ao mesmo tempo, renovemo-nos no espírito corri o grande desejo da Vida, da Vida da Graça, que eleva continuamente o homem, o reforça e o compromete. Aquela Graça que dá a plena dimensão á nossa existência sobre a terra.

Assim seja.



MISSA PARA OS FUNCIONÁRIOS DA TIPOGRAFIA POLIGLOTTA


E DE L'OSSERVATORE ROMANO




30 de Março de 1979




Caríssimos Irmãos
e Amigos no Senhor!

Como nos anos passados, Vós, que trabalhais na Tipografia Poliglota Vaticana e em L'Osservatore Romano preparastes-vos com alguns dias de «Exercícios Espirituais» para o cumprimento do «Preceito Pascal»; e esta manhã estais aqui reunidos para vos encontrardes comunitária e pessoalmente com Jesus, com o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, com Aquele que é a nossa «Páscoa».

E eu, da melhor vontade, aceitei o convite de me encontrar convosco para participar neste rito místico e solene, e para tornar cada vez mais cordiais e pessoais as relações entre o Vigário de Cristo e o Pessoal dos vários organismos do Vaticano.

54 Estais aqui para celebrar a «Páscoa», segundo o mandato autorizado e materno da Igreja e eu, querendo deixar-vos uma recordação que vos sirva de reflexão e exortação para propósitos sérios e constantes, tomo como tema as leituras da liturgia de hoje.

1. No capítulo sétimo do Quarto Evangelho, o Evangelista João indica claramente a perplexidade de muitas pessoas de Jerusalém sobre a verdadeira identidade de Jesus. Era a festa dos «Tabernáculos», como recordação da permanência dos Judeus no deserto. Havia muito movimento de gente na Cidade Santa, e Jesus ensinava no templo. Alguns diziam: Não é Este que procuram matar? Fala livremente e não Lhe dizem nada. Teriam as autoridades reconhecido que Ele é, na verdade, o Messias? Nós, porém, sabemos de onde Ele é; mas o Messias que vier, ninguém saberá de onde é.

São afirmações, estas, que indicam a perplexidade dos judeus daquele tempo: esperam o Messias, sabem que o Messias terá qualquer coisa de arcano e de misterioso, pensam que também poderia ser Jesus, dados os prodígios que realiza e a doutrina que ensina; mas não têm a certeza, pelo facto de a Autoridade religiosa oficial estar contra ele e mais ainda desejar eliminá-lo.

E Jesus então explica o motivo da perplexidade deles e do seu não-conhecimento da sua verdadeira identidade: eles baseiam-se apenas nas características externas, civis e familiares, e não vão para além da sua natureza humana, não penetram no invólucro da sua aparência. Sim, conheceis-Me e sabeis de onde Eu sou; se bem que Eu não tenha vindo de Mim mesmo; mas Aquele que Me enviou e que vós não conheceis, Esse é verdadeiro. Eu conheço-O, porque venho de junto d'Ele e foi Ele Quem Me enviou.

É um acontecimento histórico, narrado pelo Evangelho; mas é também o símbolo de uma realidade perene: muitos não sabem ou não querem saber quem é Jesus Cristo e ficam perplexos e desorientados. E mais ainda, como então no Templo, quando depois do seu discurso procuram prendê-lo, assim também, às vezes, alguns o contestam e combatem. Vós, pelo contrário, sabeis quem é Jesus; sabeis de onde veio e porque veio! Sabeis que Jesus é o Verbo Encarnado, é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que assumiu um corpo humano, é o Filho de Deus feito homem; morto na cruz para a nossa salvação, ressuscitado glorioso e sempre presente connosco na Eucaristia.

Aquilo que Jesus dizia aos Apóstolos na Última Ceia vale também para todos os cristãos iluminados pelo Magistério da Igreja: E a vida eterna consiste nisto: Que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste ... Manifestei o Teu nome aos homens que, do mundo, Me deste ... Agora sabem que tudo quanto Me deste vem de Ti, porque lhes dei as palavras que Tu Me deste e eles receberam-nas; reconheceram verdadeiramente que saí de Ti e creram que Me enviaste ... Pai justo, se o mundo não Te conheceu, Eu conheci-Te e estes conheceram que Tu Me enviaste (
Jn 17,3-9 Jn 17,25).

A grande tragédia da história é que Jesus não é conhecido, e por conseguinte, não é amado, não é seguido.

Vós conheceis a Cristo! Vós sabeis quem Ele é! O vosso privilégio é grande! Sabei ser sempre dignos e conscientes dele.

Daqui nasce a vossa alegria «pascal» e a vossa responsabilidade cristã. Oxalá o encontro «pascal» com Jesus eucarístico vos dê a força de aprofundardes este conhecimento de Jesus para fazer da vossa fé um ponto fixo de referência, não obstante a Indiferença ou a hostilidade de grande parte do mundo em que devemos viver.

2. O livro da Sabedoria (capítulo segundo), analisando as características do homem justo e do homem ímpio, indica de modo prático como deve ser o testemunho do cristão consciente e coerente. O justo — diz o livro da Sabedoria — proclama possuir a ciência de Deus e declara-se filho do Senhor: gloria-se de ter Deus por pai.

Possuir a ciência de Deus! Ter Deus por pai! São afirmações enormes que põem em crise os filósofos! Pois bem, o cristão sabe e testemunha que conhece a Deus como Pai, como Amor e como Providência.

55 Deus é o Senhor da vida e da história e, no seu amor paterno, o cristão abandona-se com confiança.

— A vida do justo é diferente da dos outros, e completamente diferentes são os seus caminhos, e assim acaba por ser reprovação e condenação para aqueles que não vivem rectamente, cegos pela malícia, e não querem conhecer «os segredos de Deus».

O cristão, de facto, está no mundo, mas não é do mundo (Cfr.
Jn 17,16); a sua vida deve ser necessariamente diferente da vida daqueles que não têm fé. O seu comportamento, o seu modo de vida, o seu modo de pensar, de fazer opções, de avaliar as coisas e as situações são diferentes, porque se realizam à luz da palavra de Cristo, que é mensagem de vida eterna.

— Por fim — sempre segundo a Sabedoria — o justo afirma que a morte é bem-aventurada, ao passo que os ímpios não esperam a recompensa da santidade e não acreditam (Sg 2,22).

O cristão deve viver na perspectiva da eternidade. As vezes, a sua vida autenticamente cristã pode suscitar também a perseguição, aberta ou astuta: «Vejamos se as suas palavras são verdadeiras: ponhamo-lo à prova com insultos e tormentos, para conhecer a benignidade do seu carácter e experimentar a sua resignação». A certeza da felicidade eterna, que nos espera, torna o cristão forte contra as tentações e paciente nas tribulações. Se a Mim Me perseguiram — disse o Divino Mestre — também vos perseguirão a vós (Jn 15,20).

Faço votos por que o encontro pascal com Jesus vos traga a alegria e a força do testemunho, convencidos de que, depois da dor terrível da Sexta-feira Santa, nasce a alegria gloriosa do Domingo da Ressurreição!

— Por fim, a liturgia leva-nos ainda a meditar na fraqueza e fragilidade humanas, e na necessidade de confiar totalmente na misericórdia de Deus: O Senhor está perto dos contritos de coração, e salva os de espírito torturado ... E estará livre de castigo aquele que n'Ele se refugiar (Ps 33).

Sempre, mas especialmente na sociedade moderna tão convulsa e violenta, o cristão sente necessidade de recorrer ao Senhor com a oração e mediante os sacramentos.

Continuai, pois, também vós, a ir buscar força e luz aos Sacramentos da Penitência e da Eucaristia, nos quais Deus «ofereceu remédio à nossa fraqueza»; acolhei com alegria os frutos da Redenção e manifestai-os na vossa vida quotidiana, em casa, no trabalho, no tempo livre e nas várias actividades, convencidos de dever transformar-se em Cristo aquele que O recebe: Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue, fica em Mim e Eu nele. Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come, viverá por Mim (Jn 6,56-57).

Grande honra! Sublime compromisso!

Com estes votos, pedindo a particular assistência de Maria Santíssima, a todos desejo de todo o coração, que a vossa vida e a daqueles que vos são queridos, possa sempre gozar e fazer gozar a alegria da páscoa cristã.



HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

NA SANTA MISSA COM OS EX-ALUNOS

DO COLÉGIO BELGA EM ROMA


56
Sábado, 31 de Março de 1979


Caros amigos

A Eucaristia, que hoje celebramos juntos, é o sinal de uma particular unidade com Cristo, único e eterno Sacerdote, que penetrou uma vez por todas no santuário... com o seu próprio sangue (
He 9,12). O mesmo Cristo está presente todos os dias na Igreja até ao fim do mundo (Mt 28,20). Permanece nela, reunindo ó povo de Deus à volta da mesa da Palavra e da Eucaristia. Permanece nela pelo nosso serviço sacerdotal.

Dado que nos encontramos hoje reunidos à volta do altar, nesta comunhão que formámos outrora no Colégio Belga em Roma, os nossos corações estão cheios de gratidão pelo dom da vocação sacerdotal, porque Ele nos escolheu para irmos e darmos fruto (Jn 15,16), porque, confiando-nos os seus mistérios, confiou-nos homens que têm a redenção pelo seu sangue (Ep 1,7). Olhando tudo isto com os olhos da fé, sentimos a nossa indignidade e apressamo-nos sempre a repetir: Somos servos inúteis (Lc 17,10). Continuamos a sentir a grandeza do Dom, e agradecemo-lo a Deus. Damos graças ao Senhor porque Ele é bom (Ps 105,1).

Hoje desejamos comunicar uns aos outros essa gratidão. O Senhor quer que saibamos ser reconhecidos, que olhemos a nossa vida sob o aspecto dos dons recebidos por intermédio dos homens, dos nossos irmãos. Deste modo eu gostaria hoje de, convosco, relembrar os anos que nos reunimos dentro das paredes do velho Colégio belga situado na Via del Quirinal, 26, junto da igreja de Santo André, onde morreu e repousa Santo Estanislau Kostka, padroeiro da juventude.

Separam-nos desse tempo uns trinta anos. Poderíamos ceder às leis do tempo que nos levam, entre outras coisas, também ao esquecimento. Mas a voz do coração é mais forte, exigindo-nos que guardemos as coisas na memória e as repensemos com gratidão. Hoje agradecemos a Cristo que nos concedeu a graça de estarmos juntos, nesse período importante da nossa vida, quando estávamos ainda nos primeiros anos do nosso sacerdócio, ou nos preparávamos para ele. Ecce quam bonum et quam jucundum habitare fratres in unum: como é bom, como é agradável viverem os irmãos em boa união (Ps 132,1).

Damos graças a Deus por nos ter permitido sermos irmãos uns dos outros, e a nossa gratidão é recíproca entre nós. Ele permitiu-nos viver essa fraternidade que une os homens provenientes de diversas famílias, diversas nações, diversos continentes, porque era mesmo assim que Ele nos reunia então. E dizemos: obrigado por aquilo que cada um de nós foi para os outros naquele tempo e por aquilo que todos fomos para todos. Obrigado pelo modo como partilhámos com os outros as qualidades da inteligência, do carácter e do coração. Obrigado pelo lugar que tiveram, nesta partilha recíproca, os estudos então em curso, bem como as experiências apostólicas e pastorais a que se entregava, já então, cada um de nós. Obrigado pelo que foi para nós a Roma sagrada que aprendemos a conhecer de maneira sistemática, como capital da antiguidade e capital da cristandade. Obrigado pela experiência da Europa, do mundo e de cada uma das nossas pátrias, que se levantavam então dos sofrimentos da segunda guerra mundial:

Pensemos, enfim, no que eram para nós os nossos Superiores: o nosso venerando Reitor, o Cardeal de Furstenberg, que está hoje presente no meio de nós; e também os nossos Bispos que nos vinham ver, que nos visitavam no Colégio, bem como outros homens da Igreja, os apóstolos do seu tempo como o Padre Cardijn, sem contar os doutos professores, os pregadores de retiros e os directores espirituais. Que não foram eles para nós?

De tudo isto queremos nós falar, primeiro, ao próprio Cristo, começando por esta concelebração, por esta liturgia. E esta concelebração permite-nos também exprimirmo-nos uns aos outros. Desejamos igualmente renovar o espírito que recebemos pela "imposição das mãos" (Cfr. 1Tm 1,6), e essa união dos corações de que o próprio Senhor conhece o segredo. Amen!



VISITA PASTORAL NA PARÓQUIA ROMANA


DE SÃO BOAVENTURA NO BAIRRO DE TORRE SPACCATA


HOMILIA DE JOÃO PAULO II


1° de Abril de 1979




Senhor, queremos ver a Jesus! (Jn 12,12)

57 1. Assim diz a Filipe, que era de Betsaida, a multidão vinda a Jerusalém de diversas partes. Quando aqui, a este lugar — nos confins da Grande Roma, onde até há pouco só havia campo — chegou gente das várias partes da Itália, parecia que ela dizia isso mesmo: Queremos ver no meio de nós a Cristo. Queremos que Ele habite connosco; que se levante aqui a Sua casa. Conhecemo-nos pouco uns aos outros. Queremos que Ele faça que nos conheçamos reciprocamente, que leve a que uns dos outros nos aproximemos, para deixarmos de ser estranhos, nos tornarmos comunidade.

Assim falou a gente, aqui chegada das diversas partes da Itália. Assim falastes vós mesmos, caros paroquianos desta jovem paróquia de São Boaventura de Bagnoregio. E essas ou semelhantes palavras são ainda actuais: continuam a ouvir-se mesmo agora.

A vossa paróquia é muito jovem, Nasceu aqui da vossa fé, neste terreno ainda há pouco inculto.

Nasceu aqui da vossa vontade resoluta de fazer que Jesus habitasse no meio de vós.

Nasceu da iniciativa que manifestastes diante das Autoridades eclesiásticas, e mesmo diante das Autoridades civis. Graças a ela, levantou-se esta igreja que serve já à vossa comunidade cristã. E foram postos em actividade os outros instrumentos úteis à vossa vida paroquial.

Bem sei que muito trabalho foi já levado a termo com método e abnegação, apesar das numerosas dificuldades encontradas, e sei que tendes ânimo de continuar a bela obra desenvolvendo-a segundo as linhas dum incremento progressivo que se alargue, cada dia mais, para atingir todas as necessidades desta família paroquial. O Papa segue-vos com a sua boa vontade e os seus paternais votos: queremos ver a Jesus!

2. Com tanta maior alegria venho hoje ter convosco como Bispo de Roma, tratando-se da minha primeira visita canónica. Alegro-me de poder realizá-la, hoje no quinto domingo da Quaresma; mas agrada-me também que esteja presente o Cardeal Vigário de Roma, assim como o Bispo Auxiliar D. Giulio Salimei, que durante esta semana fará na vossa paróquia uma visita pastoral mais pormenorizada. Cordialmente saúdo todos os paroquianos. Congratulo-me convosco deste bom e animador início. Saúdo os vossos Pastores, os Padres Franciscanos Conventuais, com quem já tive ocasião de encontrar-me e informar-me sobre os problemas essenciais da vida paroquial. Desejo dirigir palavras de aplauso e de ânimo aos numerosos grupos que trabalham com zelo e dedicação nos vários sectores do apostolado, desejando que tenham uma actividade cada vez mais próspera e rica de bem.

Quero ainda testemunhar o meu vivo reconhecimento e a minha sincera benevolência aos Padres Carmelitas da vizinha Paróquia de Santa Maria Rainha do Mundo, que tiveram o mérito de dar início, no meio de evidentes e graves dificuldades, à cura pastoral desta zona que se ia tornando cada vez mais populosa.

3. E agora permiti que me refira de novo às leituras litúrgicas deste domingo. O profeta Jeremias fala, na primeira leitura, da aliança que Deus quer estreitar, uma vez mais, com a casa de Israel. Uma vez que o povo de Israel não manteve a precedente aliança, Deus quer constituir outra, mais sólida e interior: Imprimirei a Minha lei, gravá-la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e Israel será o Meu povo (
Jr 31,33).

Esta Aliança baseia-se na perfeita obediência do Filho ao Pai. Em virtude desta obediência, Cristo foi ouvido (He 5,7) e é ouvido sempre; Ele mantém ininterruptamente esta união do homem com Deus que se estabeleceu na Sua Cruz. «A Igreja — como afirma o Concílio — é sacramento, ou sinal e instrumento, da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (Lumen Gentium LG 1).

Vós que formastes aqui uma viva partezinha da Igreja, isto é, a vossa Paróquia, expressastes de modo especial esta aliança com Deus em que desejais perseverar com a graça de Jesus Cristo.

58 Se alguém vos perguntasse porque o fizestes, poder-lhe-íeis responder assim, como diz hoje o Profeta: nós queremos que Ele seja o nosso Deus e nós o seu Povo; nós queremos que as suas Leis estejam impressas no nosso coração.

Vós procurais um apoio para os vossos corações e para as vossas consciências. Procurais um apoio para as vossas famílias. Quereis que estas sejam estáveis, que não se dissolvam; que formem aqueles lares vivos de amor, perto dos quais o homem possa aquecer-se todos os dias. Perseverando no vínculo sacramental matrimonial, quereis transmitir a vida aos vossos filhos e, juntamente com a vida, a educação humana e cristã. Cada um de vós, caros pais, reconhece profundamente esta grande responsabilidade que está ligada à dignidade do pai e da mãe. Ficai sabendo que disto depende a vossa própria salvação e a salvação dos vossos filhos. Como faço eu de pai? Que espécie de mãe sou eu? Estas as perguntas que vos pondes mais de uma vez. Alegrais-vos, e eu convosco, de todo o bem que se manifesta em vós, nas vossas famílias e nos vossos filhos; alegro-me convosco dos seus progressos na escola, do desenvolvimento das suas juvenis consciências. Quereis que eles se tornem verdadeiramente «homens». Isto, em grande medida, depende do que eles adquirirem na casa paterna. Neste trabalho ninguém vos pode substituir. A sociedade, a nação e a Igreja constróem-se tendo por base os fundamentos que lançais vós.

Olho para estas crianças, a juventude da vossa paróquia. Estão aqui presentes em bom número. É jovem, verdadeiramente jovem, esta paróquia. As crianças e os jovens, quantas esperanças colocam na vida! E quanta esperança temos nós, nelas!

Precisamente por isto, é necessário que apoiemos fortemente toda a nossa vida, e primeiramente a vida familiar, sobre Jesus Cristo. Porque Ele, que se tornou fonte de salvação eterna para todos ... (
He 5,9) , indica-nos cada dia os caminhos desta salvação. Com a palavra e com o exemplo ensina-nos como devemos viver. Mostra-nos qual é o sentido profundo e último da vida humana.

E se o homem se tornar seguro neste sentido da vida humana, então todos os problemas, mesmo os ordinários e quotidianos, resolvem-se em concordância com esse sentido. A vida desenvolve-se então, ao mesmo tempo, no plano humano e divino.

Hoje ouvimos o Senhor Jesus anunciar a sua morte. Este é já o quinto domingo da Quaresma; aproximámo-nos muito da Semana Santa, do Tríduo Sacro que nos recordará de novo, de maneira especial, a Sua paixão, morte e ressurreição. Por isso, as palavras, com que o Senhor anuncia o Seu fim agora próximo, falam da glória: Chegou a hora de ser glorificado o Filho do homem ... Agora a minha alma está perturbada; e que direi Eu? ... Pai, glorifica o Teu nome (Jn 12,23 Jn 12,27-28). E, por último, pronuncia as palavras que tão profundamente manifestam o mistério da morte redentora: Agora é que é o julgamento deste mundo ... E Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim (Jn 12,31-32). Aquela elevação de Cristo acima da terra é anterior à elevação para a glória: elevação no madeiro da Cruz, elevação de martírio, elevação mortal.

Jesus anuncia a Sua morte também nestas palavras misteriosas: Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto (Jn 12,24). A Sua morte é o penhor da vida, é a fonte da vida para todos nós. O Eterno Pai dispôs esta morte na ordem da graça e da salvação, assim como está estabelecida, na ordem da natureza, a morte do grão de trigo debaixo da terra, a fim de que possa dele brotar a espiga dando fruto abundante. E depois deste fruto, que se torna pão quotidiano, alimenta-se o homem. Também o sacrifício, realizado na morte de Cristo, se tomou alimento das nossas almas sob as aparências do pão.

Preparemo-nos para viver a Semana Santa, o Tríduo Sacro, a Morte e a Ressurreição. Aceitemos esta vida, cuja fonte é o Seu Sacrifício. Vivamos esta vida nutrindo-nos com o alimento do Corpo e Sangue do Redentor, cresçamos nela para conseguir a vida eterna.



MISSA PASCAL PARA OS UNIVERSITÁRIOS DE ROMA


5 de Abril de 1979




1. Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco (Lc 22,15).

Vêm-me ao pensamento estas palavras de Cristo, hoje que nos encontramos todos juntos à volta do altar da Basílica de São Pedro para participar na celebração da Eucaristia. Logo desde o início, desde que me é permitido subir a este altar, muito desejei eu encontrar-me convosco, com a juventude que estuda nas Universidades e nas Escolas Superiores desta cidade. Sentia que me fazíeis falta, vós Universitários da Diocese do Papa. Tinha o desejo — deixai que vo-lo diga — de vos sentir perto. Estou habituado, desde há anos, a estes encontros. Muitas vezes no período da Quaresma — e também do Advento — me foi dado encontrar-me com os estudantes universitários em Cracóvia, por ocasião do encerramento dos exercícios espirituais que reuniam milhares de participantes. Hoje encontro-me convosco. Saúdo cordialmente a todos vós que aqui estais presentes. Em vós e mediante vós saúdo todos os vossos Colegas, os vossos Professores, os Investigadores, as vossas Faculdades, as organizações e os responsáveis pelo vosso meio. Saúdo toda a Roma «académica».

59 Neste período em que, todos os anos, Cristo nos fala de novo na vida da Igreja com a sua «Páscoa», acende-se nos corações juvenis, a necessidade de estar com Ele. O tempo da Quaresma, a Semana Santa e o Tríduo Sagrado não são apenas uma recordação dos factos acontecidos há quase dois mil anos, mas constituem um convite especial à participação.

2. Páscoa significa «Passagem».

No Antigo Testamento significava o êxodo da «casa da escravidão» do Egipto e a passagem do Mar Vermelho, sob uma singular protecção de Jahvé, rumo à «Terra Prometida». A peregrinação durou quarenta anos. No Novo Testamento esta Páscoa histórica cumpre-se em Cristo durantes os três dias: desde quinta-feira à tarde até à madrugada de domingo. E significa aqui a passagem ,através da morte, rumo à ressurreição e, ao mesmo tempo, o êxodo da escravidão do pecado rumo à participação na vida de Deus mediante a Graça. Cristo diz no Evangelho de hoje: Quem observa a minha palavra nunca mais verá a morte (
Jn 8,51). Estas palavras indicam, ao mesmo tempo, o que é o Evangelho. É o livro da vida eterna, para onde se dirigem os inumeráveis caminhos do terreno peregrinar do homem. Cada um de nós avança por um desses caminhos. O Evangelho elucida-nos sobre todos eles. E é nisto que precisamente consiste o mistério deste livro sagrado. Nasce daqui o facto de ele ser muito lido, e é daqui que provém a sua actualidade. A luz do Evangelho, a nossa vida adquire nova dimensão. Adquire o seu sentido definitivo. Por isso a própria vida se revela como uma passagem.

3. A vida humana é passagem.

Esta vida não é um todo delimitado definitivamente entre a data do nascimento e a data da morte. Abre-se, rumo a um ulterior acabamento em Deus. Todos nós sentimos dolorosamente o desfecho da vida, o limite imposto pela morte. Todos nós estamos, de algum modo, conscientes do facto que o homem não está contido por completo nestes limites, e que não pode morrer definitivamente.Muitas interrogações não pronunciadas e muitos problemas não resolvidos — se não na dimensão da vida pessoal, individual, ao menos na da vida das comunidades humanas: das famílias, das nações, da humanidade — se interceptam no momento da morte de cada homem. De facto, nenhum de nós vive sozinho. Através de cada homem passam diversos círculos. Disse ainda São Tomás: «Anima humana est quodammodo omnia» (Com. in Arist. De Anima, III, 8, lect. 13). Trazemos em nós a necessidade de «universalização». E, num determinado momento, a morte interrompe tudo isto ...

Quem é Cristo? É o Filho de Deus que assumiu a vida humana na sua orientação temporal para a morte. Aceitou a necessidade da morte. Antes que a morte O atingisse, Ele foi muitas vezes ameaçado por ela. O Evangelho de hoje recorda-nos uma dessas ameaças: ... apanharam pedras para lhas atirarem (Jn 8,59).

Cristo é Aquele que aceitou a realidade toda do morrer humano. Por isso mesmo, é Ele quem completou uma revolução fundamental no modo de entender a vida. Demonstrou que a vida é uma passagem, não só além da morte, mas a uma vida nova. Deste modo a Cruz tornou-se para nós Cátedra suprema da verdade de Deus e do homem. Todos devemos ser alunos — «assíduos ou livres ouvintes» — desta Cátedra. Compreenderemos então que a Cruz é também o berço do homem novo.

É assim que aqueles que são seus alunos olham para a vida, é assim que a entendem. E deste modo ensinam aos outros: Eles imprimem esta significação da vida em toda a realidade temporal: na moralidade, na criatividade, na cultura, na política e na economia. Muitas vezes se tem afirmado — como sustentavam, por exemplo, os discípulos de Epicuro nos tempos antigos, e como o fazem, no nosso tempo e por outros motivos, alguns discípulos de Marx — que este conceito da vida afasta o homem da realidade temporal, e que, de certo modo, a invalida. A verdade é bem diferente. Só esta concepção da vida dá plena importância a todos os problemas da realidade temporal. Abre a possibilidade da sua plena colocação na existência do homem. E uma coisa é certa: tal concepção da vida não permite circunscrever o homem às coisas do temporal, não permite subordiná-lo a elas por completo. Decide pela sua liberdade.

4. A vida é prova.

Dando à vida humana esta significação «pascal» — ela é passagem, é passagem para a liberdade —, Jesus Cristo ensinou com a sua palavra, e ainda mais com o próprio exemplo, que ela é prova. A prova corresponde à importância das forças acumuladas no homem. O homem é criado «para» a prova, e a ela chamado desde o início. É preciso pensar profundamente nesta chamada, meditando os primeiros capítulos da Bíblia, sobretudo os primeiros três. Neles é o homem definido não apenas como um ser criado à imagem de Deus (Gn 1,26-27) mas, ao mesmo tempo, é definido como ser submetido à prova. E é esta — se bem analisarmos o texto — a prova do pensamento, do «coração» e da vontade, a prova da verdade e do amor. Neste sentido ela é, ao mesmo tempo, a prova da Aliança com Deus. Quando esta primeira aliança foi destruída, Deus reatou-a de novo. As leituras de hoje recordam a Aliança com Abraão, que foi caminho de preparação para a vinda de Cristo.

Cristo confirma esta significação da vida: é a grande prova do homem. Precisamente por isto, tem ela sentido para o homem. Não tem sentido, pelo contrário, se julgarmos que o homem, na vida, deve apenas tirar proveito, usar, «receber», mas lutar afincadamente pelo direito de aproveitar-se, de usar, de «receber» ...

60 A vida tem o seu sentido quando é considerada e vivida como uma prova de carácter ético. Cristo confirma este sentido e define, ao mesmo tempo, a adequada dimensão desta prova que é a vida humana. Voltemos a ler atentamente, por exemplo, o Sermão da Montanha, e ainda o capítulo 25 do Evangelho de São Mateus: a imagem do juízo. Basta apenas isto para renovar em nós a fundamental consciência cristã no sentido da vida.

O conceito de «prova» liga-se intimamente com o conceito de responsabilidade. Um e outro se dirigem à nossa vontade, aos nossos actos. Aceitai, caros amigos, ambos estes conceitos — ou antes estas duas realidades — como elementos da construção da própria humanidade. Esta vossa humanidade está já amadurecida e, ao mesmo tempo, é ainda jovem. Encontra-se em fase de formação definitiva do projecto da vida. Tal formação adquire-se precisamente nos anos «académicos», na época dos estudos superiores. Talvez o projecto pessoal de vida esteja por ora suspenso devido a muitas incógnitas. Talvez vos falte ainda uma exacta visão do vosso lugar na sociedade, do trabalho para que vos preparais através dos vossos estudos. Esta é, de certo, uma grande dificuldade; mas as dificuldades deste género não podem paralisar as vossas iniciativas. Não podem fazer nascer apenas a agressão. A agressão nada resolverá. Não mudará a vida para melhor. A agressão pode apenas torná-la «má de outro modo». Ouço-vos denunciar, com a vossa linguagem tão franca, a senilidade das ideologias e a insuficiência de objectivos da «máquina social». Ora bem, para promover a verdadeira dignidade — mesmo intelectual — do homem e não vos deixardes, por vossa vez, enredar em diversos sectarismos, não esqueçais que é indispensável adquirir uma profunda formação baseada no ensino que nos deixou Cristo nas suas palavras e no exemplo da vida. Procurai aceitar as dificuldades que tendes de enfrentar precisamente como uma parte da prova que é a vida de cada homem. É necessário assumir esta prova com toda a responsabilidade. É uma responsabilidade ao mesmo tempo pessoal — pela minha vida, pelo seu futuro projecto, pelo seu valor —, e social — pela justiça e pela paz, pela ordem moral do próprio ambiente nativo e de toda a sociedade —, é uma responsabilidade pelo autêntico bem comum. O homem, que tem uma tal consciência do sentido da vida, não destrói, antes constrói o futuro. É Cristo que no-lo ensina.

5. E ensina-nos também que a vida humana tem o sentido de um testemunho à verdade e ao amor. Há pouco tive ocasião de me exprimir sobre este tema, falando à juventude universitária do México e das muitas nações da América Latina. Permito-me citar alguns pensamentos de tal discurso, que talvez interessem também aos estudantes europeus e romanos. Existe hoje em dia uma unificação mundial dos deveres, dos receios e ao mesmo tempo das esperanças, dos modos de pensar e de avaliar, que atormenta o vosso jovem mundo. Naquela circunstância, sublinhei, entre outras coisas, que é necessário promover uma «cultura integral, que preste atenção ao desenvolvimento completo da pessoa humana, em que ressaltem os valores da inteligência, da vontade, da consciência, da fraternidade, todos eles baseados em Deus Criador e maravilhosamente sublimados em Cristo» (Cf. Gaudium et spes
GS 61). Quer isto dizer que à formação científica é necessário juntar profunda formação moral e cristã, que seja intimamente vivida e realize uma síntese cada vez mais harmónica entre fé e razão, entre fé e cultura, entre fé e vida. Unir num só objectivo a submissão a uma investigação científica rigorosa e o testemunho de uma vida cristã autêntica — eis o compromisso entusiasmante de qualquer estudante universitário (Cfr. AAS 71, 1979, PP 236-237) Do mesmo modo vos repito a vós o que em Fevereiro escrevi aos estudantes das Escolas Latino-americanas: «Os estudos devem comportar não só determinada quantidade de conhecimentos adquiridos no decurso da especialização, mas também peculiar maturidade espiritual, que se apresenta como responsabilidade pela verdade: pela verdade no pensamento e na acção» (Ibid., p. 253).

São suficientes estas poucas citações.

Existe no mundo contemporâneo uma grande tensão. No fim de contas, trata-se de uma tensão quanto ao sentido da vida humana, quanto ao significado que podemos e devemos dar a esta vida, para que ela seja digna do homem, seja tal que valha a pena ser vivida. Existem também claros sintomas de afastamento destas dimensões. De facto, o materialismo, sob diversas formas, herdado dos últimos séculos, é capaz de coarctar este sentido da vida. Mas o materialismo não está, de modo nenhum, nas raízes mais profundas da cultura europeia e mundial. Não é, de modo nenhum, um correlativo nem uma expressão plena do realismo epistemológico ou ético.

Cristo — deixai-me dizer assim — é o maior realista da história do homem.Reflecti um pouco sobre esta formulação. Meditai no seu significado.

É precisamente em virtude deste realismo que dá testemunho Cristo ao Pai, e dá testemunho ao homem. Ele sabe, na verdade, o que há em cada homem (Jn 2,25). Sabe! Repito-o sem querer ofender nenhum dos que em qualquer tempo procuraram, ou procuram hoje, compreender o que é o homem, e querem ensiná-lo.

Exactamente baseado neste realismo, Cristo ensina que a vida humana tem sentido enquanto é testemunha da verdade e do amor.

Pensai nisto, vós que sendo estudantes deveis ser particular mente sensíveis à verdade e ao testemunho da verdade. Vós sois, por assim dizer, os profissionais da inteligência, enquanto vos dedicais ao estudo das disciplinas humanistas e científicas, tendo em vista a preparação para o lugar que vos espera na sociedade.

Pensai nisto, vós que tendo coração juvenil, sabeis quanta necessidade de amor nele vos nasce. Vós, que procurais uma forma de expressão para este amor na vossa vida. Há alguns que encontram tal expressão na exclusiva entrega de si mesmos a Deus. Mas a maioria absoluta é a daqueles que encontram a expressão deste amor no matrimónio, na vida familiar. Preparai-vos solida mente para isto. Recordai-vos que o amor, como sentimento nobre, é dom do coração, e é também um compromisso que é preciso assumir em favor do outro, dela ou dele. Cristo espera da vossa parte um amor assim. Deseja estar convosco quando ele nasce nos vossos corações, e quando amadurece no juramento sacramental. E depois, e sempre.

6. Cristo diz: Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco (Lc 22,15). Quando a comeu pela primeira vez com os discípulos pronunciou palavras particularmente cordiais e particularmente comprometedoras. Já vos não chamo servos ... mas chamei-vos amigos (Jn 15,15); É este o meu mandamento — que vos ameis uns aos outros (Jn 15,12). Estas palavras do discurso de despedida de Cristo, insertas no Evangelho de São João, recordai-as agora, no período da Paixão do Senhor. Meditai nelas de novo.

61 Purificai os vossos corações no Sacramento da Reconciliação. Mentem os que acusam o convite que a Igreja faz à penitência como proveniente de uma mentalidade «repressiva». A Confissão sacramental não é uma repressão, mas uma libertação. Não recalca o sentido da culpa, mas apaga a culpa, desfaz o mal cometido e dá a graça do perdão. As causas do mal não devem procurar-se no exterior do homem, mas antes no interior do seu coração; e o remédio nasce também do coração. Sendo assim, os cristãos, através da sinceridade do próprio compromisso de conversão, devem revelar-se contra o amarfanhamento do homem e proclamar com a própria vida a alegria da verdadeira libertação do pecado mediante o perdão de Cristo. A Igreja não tem projecto seu de escola universitária, de sociedade, mas tem um projecto do homem, do homem novo, renascido da Graça. Reencontrai a verdade interior das vossas consciências. O Espírito Santo vos conceda a graça de um sincero arrependimento, de um firme propósito de emenda, e de uma sincera confissão das culpas.

Conceda-vos Ele profunda alegria espiritual.

Aproxima-se o Dia que o Senhor fez (Sl. 117/118, 24)

Estai preparados para este Dia!




Homilias JOÃO PAULO II 52