Homilias JOÃO PAULO II 86

CONCELEBRAÇÃO EM HONRA DE SANTO ESTANISLAU




20 de Maio de 1979




1. A alegria do período pascal inspira à Igreja, na liturgia de hoje, palavras de viva gratidão. Estas: Nisto se manifestou o amor de Deus para connosco (1Jn 4,9); manifestou-se em Deus ter mandado o Seu unigénito Filho ao mundo (Id., ibid.); mandou-O para nós termos a vida por meio d'Ele (Id., ibid.); mandou-O como vítima de expiação pelos nossos pecados (1Jn 4,10).

Este sacrifício oferecido no Calvário na Sexta-feira Santa foi aceite. E eis que o Domingo de Páscoa nos trouxe a certeza da Vida. Aquele que rompeu os selos do sepulcro, manifestou a vitória sobre a morte, e com isto revelou a Vida que temos por meio d'Ele (1Jn 4,9).

A esta Vida são chamados todos os homens: Deus não faz acepção de pessoas (Ac 10,34 cfr. Ga 4,9). E o Espírito Santo, como o testemunha na liturgia de hoje São Pedro, desceu sobre quantos ouviam a palavra (Ac 10,44).

A obra de salvação levada a termo por Cristo não tem qualquer limite no espaço e no tempo. Abraça cada um e todos. Cristo morreu na Cruz por todos e a todos ganhou esta Vida Divina, cuja potência se manifestou na Sua Ressurreição.

87 A esta grande e universal alegria pascal da Igreja desejo associar hoje, de modo especial, a alegria dos meus compatriotas, a alegria da Igreja na Polónia, expressa pela presença de tantos peregrinos do mundo inteiro com o ilustre e amadíssimo Primaz da Polónia, Estevão Cardeal Wyszynski, com os Arcebispos e Metropolitas de Cracóvia e de Wroclaw, e com muitos representantes do resto do Episcopado Polaco. Celebrando este Santíssimo Sacrifício, queremos exprimir a Deus, que é «Amor», a nossa gratidão pelo milénio tanto da fé como da permanência na união com a Igreja de Cristo. E pelo milénio da presença da Polónia, sempre fiel, junto deste centro espiritual da catolicidade e da universalidade, que é o túmulo de São Pedro em Roma, como também esta esplêndida Basílica sobre ele construída.

2. O motivo da nossa especial alegria é, este ano, o jubileu de Santo Estanislau, Bispo de Cracóvia e Mártir. Na verdade, passaram 900 anos desde que este Bispo sofreu o martírio às mãos do rei Boleslau. Expôs-se à morte, admoestando o rei e pedindo-lhe mudasse de atitude. A espada real não poupou contudo o Bispo; atingiu-o durante a celebração do Santíssimo Sacrifício, e de repente tirou-lhe a vida. Testemunha deste momento ficou a preciosíssima relíquia do crânio do Bispo, no qual se encontram ainda hoje sinais visíveis dos golpes mortais. Esta relíquia, guardada num precioso relicário, é levada, todos os anos há muitos séculos, da catedral Wawel à igreja de São Miguel em Skalka (Rupella) no mês de Maio, quando na Polónia são celebradas as solenidades de Santo Estanislau. Nesta procissão tomavam parte, no decurso dos séculos, os reis polacos, sucessores daquele Boleslau, que dera a morte ao Bispo e, segundo a tradição, terminou a vida como penitente convertido.

O hino litúrgico em honra de Santo Estanislau era executado como canto solene da Nação, que aceitou o mártir como próprio padroeiro. Eis as primeiras palavras deste hino:

«Gaude mater Polonia / Prole fecunda nobili / Summi Regis magnalia / Laude frequenta vigili».

3. Hoje eu, primeiro Papa na história da Igreja da estirpe dos Polacos e dos Povos eslavos, celebro com gratidão a memória de Santo Estanislau, porque até há alguns meses era eu o seu sucessor na sé episcopal em Cracóvia. E juntamente com os meus compatriotas aqui reunidos, exprimo a viva gratidão a todos os que participam aqui nesta solenidade. Dentro de duas semanas, terei a felicidade de dirigir-me em peregrinação à Polónia, para lá agradecer a Deus o milénio da fé e da Igreja, que se funda em Santo Estanislau, como sua pedra angular. E embora este acontecimento seja principalmente o jubileu da Igreja na Polónia, exprimimo-lo também na dimensão da Igreja universal, porque a Igreja e uma grande família de Povos e Nações, de que no momento justo todos contribuíram para fazer uma comunidade mediante o próprio testemunho e o próprio dom, e colocaram assim em relevo a sua participação na unidade universal. Tal dom foi, há 900 anos, o sacrifício de Santo Estanislau.

4. Podemos recordar, decorridos 900 anos, o grande mistério de Santo Estanislau unindo-o ao próprio mistério pascal de Cristo. Assim o fez o Episcopado polaco na sua Carta Pastoral a todos os polacos de dentro e de fora das fronteiras da pátria, a fim de os preparar para o jubileu deste ano.

É este o parágrafo da Carta:

«Meditando na oração sobre este martírio, perdura ainda em nós a recordação da paixão do nosso Salvador Jesus Cristo. Chamou os Seus discípulos a participarem nesta paixão: 'quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz ... e siga-me!' Se a partir da sua morte e ressurreição os discípulos do Senhor deram o próprio sangue durante séculos em testemunho de fé e de amor, isto sempre se realizou com Ele e n'Ele. Cristo atrai-os para o Seu Coração trespassado e ficam unidos a Ele. Todo o martírio religioso, só na morte de Cristo encontra o seu sentido e valor, e chega a ser plenamente compreendido e frutífero. A cruz da vida e o martírio de Santo Estanislau estavam na sua essência muito próximos da cruz e morte de Jesus Cristo no Calvário. Tinham o mesmo significado. Cristo defendia a verdade do Seu Pai, Deus eterno; defendia a verdade de Si mesmo, Filho de Deus; defendia também a verdade do homem, da sua vocação e destino, da sua dignidade de Filho de Deus. Defendia o homem que na verdade vive debaixo do poder terreno, mas de modo mais incomparável vive debaixo do poder divino. Seja o fruto deste santo jubileu a fidelidade ao sangue que derramou Cristo no Calvário para salvar o homem, para salvar a cada um de nós; a fidelidade à Mãe Dolorosa de Cristo; a fidelidade ao martírio e sacrifício de Santo Estanislau».

Com quanto regozijo leio estas palavras: Permitem-nos compreender melhor o que proclama a liturgia sobre Santo Estanislau: vivit victor sub gladio.Na verdade, sobre a cabeça do Bispo de Cracóvia, Estanislau de Szczepanow, caiu no ano de 1079 a espada que lhe tirou a vida; e sob essa espada ficou vencido o Bispo. Boleslau eliminou do seu caminho o próprio adversário. O grande drama encerrou-se nas fronteiras limitadas do tempo. Apesar de tudo, se a força da espada conseguiu terminar o drama no momento do sacrifício e da morte, no mesmo instante a força do Espírito, que é Vida e Amor, começou a revelar-se e a crescer. Irradiou das suas relíquias e atingiu os povos das terras dos Piastas e uniu-as. A força material da espada pode matar e destruir; em compensação, reavivar e unir de modo estável só o podem conseguir o amor e a força espiritual. O amor manifesta-se na morte quando alguém dá a vida pelos seus amigos (
Jn 15,13) .

Alegremo-nos, uma vez que podemos louvar a Deus hoje pela revelação do seu amor na morte de Santo Estanislau, servo da Eucaristia e servo do Povo de Deus na sé de Cracóvia.

A Igreja na Polónia está agradecida à Sé de Pedro, pois acolheu mediante o Baptismo, em 966, a Nação na grande comunidade da família dos Povos.

88 A Igreja na Polónia está agradecida à sé de São Pedro, porque o Bispo e Mártir Santo Estanislau de Szczepanow foi elevado aos altares e proclamado Padroeiro dos Polacos.

A Igreja na Polónia, graças à memória do seu Padroeiro, confessa a força do Espírito Santo, a Força do Amor, que é mais forte que a morte.

E com esta confissão deseja servir os homens do nosso tempo. Deseja servir a Igreja na sua universal missão no mundo contemporâneo. Deseja contribuir para o reforço da fé, da esperança e da caridade, não só no seu povo mas também nas outras Nações e Povos da Europa e do mundo inteiro.

Junto do túmulo de São Pedro pedimos, com a mais profunda humildade, que tal testemunho e tal prontidão de servir sejam bem recebidos pela Igreja de Deus, que está «em toda a terra». Peçamos com humildade, com amor e com a mais profunda veneração, que sejam aceites por Deus omnipotente, Perscrutador dos nossos corações e Pai do século futuro.



VISITA PASTORAL NA IGREJA ROMANA

DE SANTO ANTÓNIO DOS PORTUGUESES

JOÃO PAULO II
23 de Maio de 1979




Senhor Cardeal Patriarca
e veneráveis Irmãos no Episcopado,
Excelentíssimos Senhores,
Amadíssimos filhos e filhas de Portugal “fidelíssimo",
A GRAÇA DO SENHOR Jesus esteja com todos vós!

Assim vos saúdo cordialmente, com apreço e gratidão pela alegria deste encontro. E por vós, por vós especialmente amados Irmãos Bispos e Senhores Embaixadores, saúdo o querido Povo português.

89 Congregou-nos aqui o amor de Cristo, para louvar e agradecer a Deus. O motivo è um apelo e uma resposta, que vêm de há oito séculos. O apelo, feito pelo meu Predecessor Alexandre III, na Bula Manifestis Probatum, ao vosso primeiro Rei Dom Afonso Henriques, dirigia-se a Portugal. E dizia: “Submisso e devotado à santa Igreja Romana, exercitando-te... na dilatação dos confies da Fé cristã, (que) a Sé Apostólica se alegre (sempre) por tão devoto e glorioso filho, e descanse em teu amor”(1). E a resposta deu-a Portugal, ao longo da sua história.

Nesta data significativa, aqui na igreja de Santo António dos Portugueses em Roma, bem perto do Túmulo de São Pedro, entre os motivos de comum alegria – como frisou no seu discurso o Senhor Cardeal Patriarca – no nosso louvor a Deus prevalecem as relações entre Portugal e a Sé Apostólica, em oito séculos de história, percorridos juntamente.

O que caracterizou essa caminhada em conjunto, talvez se possa sintetizar nisto: fidelidade à Igreja, Mãe e Mestra dos povos, da parte de Portugal, desde quando o seu primeiro Rei, pela Carta Claves Regni, ofereceu à Igreja Romana a terra portucalense (2); e boa vontade, da parte da Santa Sé, que vai até conceder a Portugal o título de “fidelíssimo”, na pessoa dos seus soberanos (3).

Nesta selecta representação, que aqui veio hoje orar com o Papa, vejo a herança e a identidade de Portugal cristão, com antigas e renovadas fidelidades, com passadas e presentes aspirações. São de Deus conhecidas e deixo no coração, neste momento, evocações respeitosas e justas menções de pessoas e factos, que, na vossa pátria, marcaram a vide da Igreja, una e única, sempre e em toda a parte solícita pela vocação do homem em Cristo (4).

Nesta nossa Liturgia de agradecimento ao Senhor, quereria apenas lembrar três coordenadas da trajectória de fidelidade a Deus e à Igreja, na vida cristã e na piedade do dilecto Povo português, como outros tantos motivos de regozijo no Senhor, e de estímulo para o futuro. E essas coordenadas são:

– Cristo, Redentor e Salvador, não acaso a figurar, em expressivo símbolo, nas quinas do bandeira pátria, e cuja cruz assinalava as caravelas de quinhentos, lançadas em gloriosa aventura, também por motivo de “cristãos atrevimentos” (5);

– a Virgem Santíssima, Mãe de Deus e Mãe da Igreja, Nossa Senhora, como vós preferís chamá-la, a qual, na “Casa Lusitana”e “Terra de Santa Maria”, a dado momento, de “Senhora”passou a ser “Rainha de Portugal”(6);

– a vivência daquela dimensão essencial da Igreja, qual é a de ser por sua natureza missionária (7): a obra de evangelização realizada constitui uma das mais lídimas glórias religiosas de Portugal (8).

Na luz do passado, este grato encontro de hoje – Portugal do presente e o presente da Igreja na vossa pátria com o Sucessor de São Pedro – é propósito de continuidade na linha das vossas fidelidades. Oxalá todos os Portugueses, buscando o bem comum – segundo Deus, a lei suprema de toda a sociedade – se empenhem em cultivar os valores espirituais, num clima social de moralidade, justiça, paz e amor fraternal!

Sim, amados Portugueses: cultivai a dignidade pessoal, conservai o bom espírito de família e respeitai a vide e o Senhor da vide e Senhor da história; que no viver e testemunhar a vossa opção por Cristo, continueis a ouvir o vosso épico e “multo façais na Santa Cristandade” (9).

Em vós, aqui presentes, abençoo a vossa terra e o vosso Povo – pessoas, famílias e comunidades, com os seus responsáveis, pensando também nos vossos emigrantes e, com particular afecto, nos meus Irmãos Bispos. O Papa vos ama, a todos, e confia em vós!

90 E concentrando a mente e o coração em Cristo, do qual procedem todas as coisas e para o qual são todas as coisas (10), nesta Eucaristia, pelo valimento de Nossa Senhora e dos Santos da vossa terra, vamos continuar a louvar, agradecer e a pedir a Deus Pai, por Portugal, unidos no Espírito Santo.

Amen!
***


1. Alexandre PP. III, Bula Manifestis probatum, 23 de Maio de 1179: Lisboa, Torre do Tombo, Cx. das Bulas, m. 16, doc. 20.

2. Cfr. Dom Afonso Henriques, Carta Claves regni ao Papa Lúcio II, 13 de Dezembro de 1143.

3. Cfr. Bento PP. XIV, Bula Charissime in Christo ao Rei de Portugal Dom João V, 17 de Dezembro de 1748: Bullarium Romanum. Venetiis 1778, t. III, pág. 1.

4. Cfr. Enc. Redemptor Hominis, n.°
RH 18.

5. Camões (de) Luís, Lusíadas, Canto VII, 14.

6. Cfr. Auto de Aclamação de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal pelas Cortes de Lisboa, em 1646: referido por Oliveira - P. Miguel, História Eclesiástica de Portugal, Lisboa 1958; pág. 333 ss.

7. Cfr. II Conc. do Vaticano, Decr. Ad Gentes, AGD 1: AAS 58 (1966), pág. 964.

8. Cfr. Pio PP. XII, Enc. Saeculo exeunte octavo, ao Episcopado Português, de 13 de Junho de 1940.

91 9. Camões (de) Luís, Lusíadas, Canto VII, 3.

10.
He 2,10



SOLENIDADE DA ASCENSÃO DE NOSSO SENHOR



AOS ESTUDANTES DOS SEMINÁRIOS INGLESES DE ROMA


Quinta-feira, 24 de Maio de 1979




Caros filhos e Irmãos e amigos em Jesus Cristo.

Na solenidade da Ascensão de nosso Senhor, o Papa tem o gosto de oferecer o Sacrifício Eucarístico ao vosso lado e por vós. Tenho o gosto de estar com os estudantes e o Corpo docente do Venerável Colégio Inglês, neste ano em que estais a celebrar o vosso quarto centenário. E hoje, de maneira especial, sinto-me espiritualmente perto de vós, dos vossos pais e famílias, e de todos os fiéis da Inglaterra e de Gales de todos os que estão unidos na fé de Pedro e Paulo, na fé de Jesus Cristo. As tradições de generosidade e fidelidade, de que foram dados exemplos na vida do vosso Colégio por 400 anos, estão presentes no meu coração esta manhã. Viestes agradecer e louvar a Deus por aquilo que foi realizado pela Sua graça no passado, e buscar fortaleza para prosseguirdes — sob a protecção da nossa Bem-aventurada Senhora — no fervor dos vossos antepassados, muitos dos quais deram a vida pela fé católica.

Uma cordial palavra de boas vindas vai também para os novos sacerdotes do Pontifício Colégio Beda. Para vós também é este um momento de especial compromisso que vos levará a conservar vivos os ideais manifestados pelo vosso padroeiro, São Beda Venerável, que amanhã ides comemorar. Boas vindas também ao corpo docente e aos estudantes vossos companheiros.

Com alegria portanto e vigorosas resoluções para o futuro, reflictamos brevemente sobre o grande mistério da liturgia, de hoje. Nas leituras escriturísticas aparece resumido para nós todo o significado da Ascensão de Cristo. A riqueza deste mistério está expressa em duas afirmações: "Jesus falou-lhes", e "tomou o Seu lugar".

Na providência de Deus — no desígnio eterno do Pai — chegou a hora para Cristo se afastar. Deixaria os Apóstolos com a Sua Mãe Maria, mas só depois de lhes fazer as suas recomendações. Os Apóstolos ficaram agora encarregados de desempenhar uma missão segundo as recomendações que Jesus deixara, e estas recomendações foram por sua vez a expressão fiel da vontade do Pai.

As recomendações indicadas eram sobretudo de que os Apóstolos deviam esperar o Espírito Santo, que era o dom do Pai. Desde o principio se tornou claríssimo que a origem da fortaleza dos Apóstolos é o Espírito Santo. É o Espírito Santo quem guia a Igreja no caminho da verdade; o Evangelho destina-se a ser divulgado graças ao poder de Deus, e não por meio da ciência humana ou da força.

Os Apóstolos, sobretudo, foram preparados para ensinar — para levar as Boas Novas através do mundo inteiro. E foram-no para baptizar em nome do pai e do Filho e do Espírito Santo. Como Jesus, falaram eles explicitamente do Reino de Deus e da salvação. Os Apóstolos destinavam-se a ser testemunhas de Cristo "até às extremidades da terra". A Igreja primitiva entendeu claramente estas indicações e principiou a era missionária. Cada um ficou sabendo que tal era missionária não podia terminar até que o mesmo Jesus, que subiu ao céu, regressasse de novo.

As palavras de Jesus ficaram sendo um tesouro que a Igreja havia de conservar e pregar, meditar e viver. E, ao mesmo tempo, o Espírito Santo estabeleceu na Igreja um carisma apostólico destinado a conservar intacta esta revelação. Segundo as Suas palavras, Jesus ficou a viver na Sua Igreja: "Estou convosco até à consumação dos séculos". E assim toda a comunidade eclesial ficou consciente da necessidade de ser fiel às recomendações de Jesus, ao depósito da fé. Esta solicitude havia de passar de geração em geração — até aos nossos dias. E foi por causa deste princípio que eu falei recentemente aos vossos mesmos Reitores, estabelecendo que "a primeira das prioridades para os seminários é hoje o ensino da palavra de Deus em toda a sua pureza e integridade, com todas as suas exigências e em todo o seu alcance. A palavra de Deus — e só a palavra de Deus — é a base de todo o ministério, de toda a actividade pastoral, de toda a actividade sacerdotal. O poder da palavra de Deus constituiu a base dinâmica do Concílio Vaticano II, e João XXIII fê-lo ressaltar claramente no dia da inauguração: 'O maior empenho do Concílio Ecuménico é este: que o sagrado depósito da doutrina cristã seja mais eficazmente guardado e ensinado' (João XXIII, Discurso de 11 de Outubro de 1962). E se os seminaristas desta geração devem ser mais adequadamente preparados para tomar sobre si a herança e o propósito deste Concílio, devem ser exercitados acima de tudo na palavra de Deus: no 'sagrado depósito da doutrina cristã'" (João Paulo II, Alocução de 3 de Março de 1979). Sim, queridos filhos, o nosso maior propósito é de sermos fiéis às indicações do Senhor Jesus.

92 E a segunda reflexão sobre o significado da Ascensão encontra-se nesta frase: "Jesus tomou o seu lugar". Depois de ter suportado a humilhação da Sua paixão e morte, Jesus tomou o Seu lugar à direita de Deus; tomou o Seu lugar ao lado do Pai eterno. Mas também entrou no céu como nossa Cabeça. Assim, na expressão de São Leão Magno, "a glória da Cabeça" tornou-se "a esperança do corpo" (Cfr. São Leão Magno, Sermo I de Ascensione Domini). Por toda a eternidade, mantém Cristo o Seu lugar como o primogénito entre muitos irmãos (Rm 8,29): a nossa natureza está com Deus em Cristo. E como homem, o Senhor Jesus vive para sempre a fim de interceder por nós diante do Seu Pai (Cfr. He 7,25). Ao mesmo tempo, do Seu trono de glória, Jesus envia para toda a Igreja uma mensagem de esperança e um apelo à santidade.

Por causa dos méritos de Cristo, por causa da Sua intercessão junto do Pai, ficamos nós capazes de alcançar n'Ele a justiça e a santidade. A Igreja deve, na verdade, experimentar dificuldades, o Evangelho deve sofrer reveses, mas, como Jesus está à direita do Pai, a Igreja nunca desfalecerá. A vitória de Cristo é nossa. O poder de Cristo glorificado, do amado Filho do eterno Pai, é superabundante para sustentar cada um e todos nós na fidelidade da nossa dedicação ao Reino de Deus e na generosidade do nosso celibato. A eficácia da Ascensão de Cristo toca cada um de nós na realidade concreta das nossas vidas de cada dia. Por causa deste mistério, é vocação de toda a Igreja "esperar em alegre esperança a vinda do nosso Salvador Jesus Cristo".

Queridos filhos, vivei na esperança de ser isto parte tão importante do mistério da Ascensão de Jesus. Tende profunda consciência da vitória de Cristo e do Seu triunfo sobre o pecado e a morte. Capacitai-vos que a força de Cristo é maior que a nossa fraqueza, maior que a fraqueza do mundo inteiro. Procurai entender e partilhar a alegria que Maria experimentou ao saber que o Seu Filho tomara o seu lugar ao lado do Pai, por Ele amado infinitamente. E renovai hoje a vossa fé na promessa de nosso Senhor Jesus Cristo, que foi preparar o lugar para nós, de maneira que há-de voltar de novo e tomar-nos para si.

É este o mistério da Ascensão da nossa Cabeça. Lembremo-nos sempre: "Jesus deu indicações", e então "Jesus tomou o Seu lugar". Ámen.



ORDENAÇÕES EPISCOPAIS NA BASÍLICA DE SÃO PEDRO




Domingo, 27 de Maio de 1979




1. Tu, Senhor, que tens conhecimento do coração de todos os homens, indica-nos qual escolheste (Ac 1,24).

Assim oraram os apóstolos reunidos no Cenáculo de Jerusalém quando pela primeira vez tiveram de preencher o lugar deixado livre na comunidade que formavam. Era necessário, de facto, que os Doze continuassem a dar testemunho do Senhor e da sua Ressurreição. Cristo constituíra a seu tempo os Doze. E eis que neste momento, depois da perda de Judas, era necessário enfrentar pela primeira vez o dever de decidir em nome do Senhor quem havia de tomar o lugar vago.

Então os presentes oram exactamente assim: Tu, Senhor, que tens conhecimento do coração de todos os homens, indica-nos qual destes dois escolheste para ocupar, no ministério apostólico, o lugar abandonado ... (Ac 1,24-25).

O que há tanto tempo se realizou na Igreja primitiva repete-se também hoje. Foram escolhidos os que hão-de tomar os diversos lugares «no ministério apostólico». Foram escolhidos a seguir à oração fervorosa de toda a Igreja e de cada comunidade que precisa deles e à qual eles servirão.

Assim fostes escolhidos vós, queridos Irmãos. Hoje encontrais-vos aqui junto do túmulo de São Pedro para receber a consagração episcopal. Sem dúvida também hoje, como durante todo o período precedente de preparação para a ordenação episcopal, cada um de vós repete nesta Basílica: «Senhor, Tu conheces os corações de todos. Senhor, Tu mesmo disseste uma vez aos apóstolos, depois de os chamares: Não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi e vos nomeei para irdes e dardes fruto, e o vosso fruto permanecer (Jn 15,16)».

Na verdade, veneráveis e queridos Irmãos, viestes aqui hoje das diversas partes do mundo, do Oriente e do Ocidente, do Sul e do Norte. (Ps 102-12). A vossa presença exprime a alegria pascal da Igreja, que já nas várias partes da terra pode atestar que o Pai mandou o seu Filho como salvador do mundo (1Jn 4,14).

93 Nesta altura, numa linguagem bonita e sugestiva e, ao mesmo tempo, simples, gostaria de descrever e como que reunir os países, de que provindes, vós ordenandos, começando pelo Oriente mais afastado, pelas Filipinas, pela Índia, e depois, passando pela África (Sudão e Etiópia), chegar à América do Sul (Brasil, Nicarágua e Chile) e do Norte (Estados Unidos e Canadá), e depois chegar ainda à Europa (Itália, Bulgária, Espanha e Noruega).

O tempo não mo permite, infelizmente. A presença entre os ordenandos dum Bispo da Bulgária oferece-me todavia a agradável ocasião de dirigir um pensamento especial àquela nobre Nação, há tantos séculos cristã. Aproveito esta alegre circunstância para enviar uma afectuosa saudação a todos os meus irmãos católicos e irmãs, de rito latino e de rito bizantino, que, embora não sejam muitos em número, dão testemunho da vitalidade da sua Fé no amor da pátria e no serviço das comunidades a que pertencem. Também uma saudação respeitosa à venerável Igreja Ortodoxa Búlgara e a todos os seus filhos.

Entre os ordenandos há ainda três Arcebispos, chamados a servir, de modo especial, a missão universal da Sé Apostólica: o Secretário do Conselho para os Assuntos Públicos da Igreja e dois Representantes Pontifícios. O mandato deles deriva, como exigência natural e necessária, da função específica confiada a Pedro dentro do Colégio Apostólico e de toda a comunidade eclesial. O encargo que têm é, portanto, o de serem ministros da unidade «católica», como «servos dos servos de Deus», juntamente com aquele que representam.

3. Eis que, dentro em breve, por meio da consagração episcopal, recebereis singular participação no sacerdócio de Cristo, a participação mais plena. Tornar-vos-eis desse modo pastores do Povo de Deus em diversos lugares da terra, cada um com o próprio encargo em serviço da Igreja.

Foi o próprio Cristo, como recordou o Concílio Vaticano II, quem desejou que «os sucessores dos apóstolos, isto é, os Bispos, fossem na sua Igreja pastores até ao fim dos séculos» (Cfr. Const. Lumen Gentium
LG 8). Obedientes a essa vontade do seu Mestre, os apóstolos «não só tiveram vários colaboradores no ministério, mas (...) determinaram que, ao morrerem eles, outros homens exímios tomassem os seus lugares. (...) Assim, como testemunha Santo Ireneu, por meio daqueles que os apóstolos constituíram Bispos e dos seus sucessores até nós, a tradição apostólica em todo o mundo é manifestada e conservada» (Ibid., LG 20).

O Concílio explicou amplamente a função essencial, que os Bispos exercem na vida da Igreja. Entre os muitos testemunhos que se referem a este assunto, baste recordar a vigorosa síntese contida naquela passagem da Lumen Gentium em que, partindo da base do dado da fé, segundo a qual «na pessoa dos Bispos (...) está presente no meio dos crentes o Senhor Jesus» em si mesmo, se deduz com coerência lógica: Cristo «por meio do excelso ministério deles prega a palavra de Deus a todas as gentes e continuamente administra aos crentes os sacramentos da fé; por meio do cargo paternal que têm (cfr. 1Co 4,5) incorpora novos membros com a regeneração sobrenatural, no seu Corpo; e, por fim, com a sabedoria e prudência dos mesmos, dirige e ordena o Povo do Novo Testamento na sua peregrinação para a eterna bem-aventurança» (Ibid., LG 21).

À luz destas límpidas e ricas afirmações conciliares, exprimo a viva alegria que me causa conferir-vos hoje, queridos Irmãos, a consagração episcopal e introduzir-vos desse modo no colégio dos Bispos da Igreja de Cristo: com este gesto, na verdade, posso demonstrar particular estima e amor aos vossos Compatriotas, às vossas Nações, às Igrejas locais de que fostes escolhidos e para cujo bem fostes constituídos Pastores (Cfr. Ep 5,1).

Medito juntamente convosco as palavras do Evangelho de hoje: Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vo-lo dei a conhecer (Jn 15,15). E desejo com todo o coração congratular-me convosco por esta amizade. Que poderia haver de maior? E, por isso, não vos desejo coisa nenhuma senão esta: permanecei na sua amizade. Permanecei nela como Ele permanece no amor do Pai (Cfr. Jn 15,10).

Encham totalmente este amor e esta amizade, a vossa vida e tornem-se a fonte inspiradora das vossas obras no serviço que hoje assumireis. Desejo-vos frutos abundantes e felizes neste vosso ministério: que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça (Jn 15,16), que o Pai vos dê tudo quanto Lhe pedirdes em nome de Cristo (Cf. Jo Jn 15,16) — seu eterno Filho.

A vossa missão e o vosso ministério levem ao reforço do amor recíproco, do amor comum, da união do Povo de Deus na Igreja de Cristo, porque no amor e na união é que se revela, em toda a sua luminosa simplicidade, o rosto de Deus: Pai e Filho e Espírito Santo; Deus que é amor (Cf. 1Jn 4,16).

E aquilo de que o mundo, aquele mundo a que somos enviados, mais necessita, é precisamente o amor.





CELEBRAÇÃO NO ENCERRAMENTO DO «MÊS DE MARIA»




94
31 de Maio de 1979




Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor (
Lc 1,45).

1. Com esta saudação, a idosa Isabel exalta a jovem parenta Maria, que foi, humilde e pudica, apresentar-lhe os seus serviços. Sob o impulso do Espírito Santo, a mãe do Baptista começa por proclamar, na história da Igreja, as maravilhas que Deus operou na jovem de Nazaré, e vê plenamente realizada em Maria a bem-aventurança da fé, porque ela acreditou no cumprimento da palavra de Deus.

No encerramento do mês de Maria, nesta esplêndida noite romana, junto da gruta de Lurdes, devemos reflectir, Irmãs e Irmãos caríssimos, na que foi a atitude interior e fundamental da Virgem Santíssima para com Deus: na sua fé. Maria acreditou! Acreditou nas palavras do Senhor, transmitidas pelo Anjo Gabriel; o seu coração puríssimo, já completamente consagrado a Deus desde a infância, dilatou-se na Anunciação no «Fiat» generoso, incondicionado, com que Ela aceitou tornar-se a Mãe do Messias e Filho de Deus: desde aquele momento, inserindo-se Ela ainda mais profundamente no plano de Deus, far-se-á conduzir pela mão da misteriosa Providência e, durante toda a vida, radicada na fé, seguirá espiritualmente o seu Filho, tornando-se a sua primeira «discípula» perfeita e realizando quotidianamente as exigências de tal seguimento segundo as palavras de Jesus: Quem não toma a sua cruz para vir após Mim, não pode ser Meu discípulo (Lc 14,27).

Assim Maria avançará por toda a vida na «peregrinação da fé» (Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium LG 58), enquanto o seu dilectíssimo Filho, incompreendido, caluniado, condenado e crucificado Lhe traçará, dia após dia, um caminho doloroso, premissa necessária para aquela glorificação, cantada no «Magnificat»: todas as gerações me hão-de chamar ditosa (Lc 1,48). Mas antes, Maria deverá subir, também ela, ao Calvário, para assistir, dolorosa, à morte do seu Jesus.

2. A festa da Visitação apresenta-nos outro aspecto da vida interior de Maria: a sua atitude de humilde serviço e de amor desinteressado por quem se encontra em necessidade. Ela acaba de saber do Anjo Gabriel o estado da sua parenta Isabel, e imediatamente se põe em viagem para a montanha, a fim de chegar «depressa» a uma cidade da Judeia, a actual «Ain Karem». O encontro das duas Mães é também o encontro entre o Precursor e o Messias, que, pela mediação da sua Mãe, começa a operar a salvação fazendo saltar de alegria João o Baptista ainda no seio da mãe.

Ninguém jamais viu a Deus; se nos amarmos uns aos outros, Deus está em nós ... Dele temos este mandamento: quem ama a Deus, ame também a seu irmão (1Jn 4,12 1Jn 4,21), dirá São João o evangelista. Mas quem, melhor do que Maria, tinha posto em prática esta mensagem? E quem, senão Jesus, que Ela trazia no seio, a impelia, a incitava, a inspirava a esta contínua atitude de serviço generoso e de amor desinteressado para com os outros? O Filho do Homem... não veio para ser servido, mas para servir (Mt 20,28), dirá Jesus aos seus discípulos; mas a sua Mãe já tinha realizado perfeitamente esta atitude do Filho. Ouçamos de novo o célebre comentário, cheio de unção espiritual, que Santo Ambrósio faz da viagem de Maria: «Feliz de realizar o seu desejo, delicada no seu dever, dedicada na sua alegria, apressou-se em direcção da montanha. Para onde, senão para o alto, devia tender Aquela que já estava repleta de Deus? A graça do Espírito Santo não conhece obstáculos, que demorem o passo» (Expositio Evangelii secundum Lucam, II, 19: CCL 14, pág. 39).

E se reflectirmos com particular atenção sobre a passagem da Carta aos Romanos, ouvida há pouco, damo-nos conta de que brota dela uma imagem eficaz do comportamento de Maria Santíssima, para a nossa edificação: a sua caridade não teve fingimentos; amava profundamente os outros; fervorosa no espírito, servia o Senhor; alegre na esperança; forte na tribulação, perseverante na oração; solícita pelas necessidades dos irmãos (Cfr. Rm 12,9-13).

3. «Alegre na esperança»: a atmosfera que invade o episódio evangélico da Visitação é a alegria: o mistério da Visitação é um mistério de alegria. João Baptista exulta de alegria no seio de Santa Isabel; esta, cheia de alegria pelo dom da maternidade, prorrompe em bênçãos ao Senhor; Maria eleva o «Magnificat», hino todo repleto da alegria messiânica.

Mas qual é a misteriosa fonte escondida de tal alegria? É Jesus, que Maria já concebeu nor obra do Esnírito Santo, e que já começa a derrotar aquilo que é a raiz do medo, da angústia e da tristeza: o pecado, a mais humilhante escravidão para o homem.

Esta noite celebramos juntos o encerramento do mês mariano de 1979. Mas o mês de Maio não pode terminar; deve continuar na nossa vida, porque a veneração, o amor e a devoção a Nossa Senhora não podem desaparecer do nosso coração, pelo contrário devem crescer e exprimir-se num testemunho de vida cristã, modelada pelo exemplo de Maria, «o nome da bela flor que eu sempre invoco / de manhã e à noite» como canta o poeta (Dante Alighieri DANTE ALIGHIERI, A Divina Comédia, Paraíso XXIII, 88).

95 Ó Virgem Santíssima, Mãe de Deus, Mãe de Cristo, Mãe da Igreja, olha-nos clemente nesta hora!

Virgo Fidelis, Virgem fiel, pede por nós! Ensina-nos a crer como creste tu! Faz que a nossa fé em Deus, em Cristo e na Igreja, seja sempre límpida, serena, corajosa, forte e generosa.

Mater Amabilis, Mãe digna de amor! Mater Pulchrae dilectionis, Mãe do amor formoso, pede por nós! Ensina-nos a amar a Deus e aos nossos irmãos, como tu os amaste: faz que o nosso amor para com os outros seja sempre paciente, benigno e respeitoso.

Causa nostra letitiae, Causa da nossa alegria, pede por nós! Ensina-nos a saber colher, na fé, o paradoxo da alegria cristã, que nasce e floresce do sofrimento, da renúncia, da união com o teu Filho crucificado: faz que a nossa alegria seja sempre autêntica e plena, para a podermos comunicar a todos!

Ámen!



Homilias JOÃO PAULO II 86