Homilias JOÃO PAULO II 107


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA



DURANTE A MISSA PARA OS OPERÁRIOS


EM JASNA GORA


108
Czestochowa, 6 de Junho de 1979




1. Jasna Gora tornou-se a capital espiritual da Polónia, aonde chegam peregrinos de todas as partes do solo pátrio, para aqui encontrarem a unidade com Cristo Senhor mediante o coração de Sua Mãe. E não só da Polónia, mas também de além-fronteiras. A imagem de Nossa Senhora de Jasna Gora tornou-se em todo o mundo sinal da unidade espiritual dos Polacos. Ela é também, diria, um sinal de reconhecimento da nossa espiritualidade e, ao mesmo tempo, do nosso lugar na grande família dos povos cristãos reunidos na unidade da Igreja. Admirável é, de facto, aquele reinar da Mãe mediante a sua efígie em Jasna Gora: o reinar do Coração cada vez mais necessário ao mundo, o qual tende a tudo exprimir mediante cálculos frios e fins puramente materiais.

Chegando como peregrino a Jasna Gora, daqui desejo unir-me cordialmente com todos aqueles que pertencem a esta comunidade espiritual, a esta grande família espalhada por toda a terra polaca e para além das suas fronteiras. Desejo que todos nós nos encontremos no coração da Mãe. Uno-me mediante a fé, a esperança e a oração, a todos aqueles que não podem vir aqui. Uno-me, particularmente, a todas as comunidades da Igreja de Cristo na Polónia, a todas as Igrejas diocesanas com os seus Pastores, a todas as paróquias e a todas as famílias religiosas masculinas e femininas.

De modo particular dirijo-me a Vós, que hoje viestes aqui da Silésia e da Zaglebie Dabrowskie. Ambas estas regiões da Polónia antiga e hodierna me estão perto. A riqueza da Polónia actual está, em boa parte, ligada aos recursos naturais, de que a Providência dotou estas terras, e aos grandes centros de trabalho humano nascidos aqui durante os últimos séculos. Historicamente, tanto a Silésia como a Zaglebie — e em particular a Silésia — sempre se mantiveram em íntima união com a sede de Santo Estanislau. Como antigo metropolita de Cracóvia, desejo exprimir a minha particular alegria por este nosso encontro, que hoje se realiza aos pés de Jasna Gora. Pelo coração, sempre estive perto da Igreja de Katowice que dá à vida católica da Polónia, no seu conjunto, experiências e valores particulares.

2. Sobretudo a experiência do enorme trabalho. As riquezas da terra, tanto as que aparecem à sua superfície como as que devemos procurar no interior dela, tornam-se riquezas do homem só à custa do trabalho humano. E' necessário este trabalho — trabalho multiforme, da inteligência e das mãos — para que o homem possa realizar a magnífica missão que lhe foi confiada pelo Criador, missão que o livro do Génesis exprime com as palavras:enchei e dominai (a terra) (
Gn 1,28). A terra está confiada ao homem e, mediante o trabalho, o homem domina-a.

O trabalho é também a dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra. Para o homem o trabalho não tem apenas um significado técnico, mas também ético. Pode dizer-se que o homem «submete» a terra a si quando ele próprio, com o seu comportamento, se torna senhor dela, não escravo, e também senhor e não escravo do trabalho.

O trabalho deve ajudar o homem a tornar-se melhor, espiritualmente mais maduro, mais responsável, de modo a que possa realizar a sua vocação sobre a terra, tanto como pessoa irrepetível, como na comunidade com os outros, sobretudo na comunidade humana fundamental que é a família. Unindo-se um ao outro, o homem e a mulher, precisamente nesta comunidade cujo carácter desde o princípio foi estabelecido pelo próprio Criador, dão vida a novos homens. O trabalho deve tornar possível a esta comunidade humana encontrar os meios necessários para se formar e manter.

A razão de ser da família é um dos factores fundamentais que determinam a economia e a política do trabalho. Estas últimas conservam o seu carácter ético quando tomam em consideração as necessidades da família e os seus direitos. Mediante o trabalho o homem adulto deve ganhar os meios de que precisa para manter a própria família. A maternidade deve ser tratada na política e na economia do trabalho como um grande fim e um grande dever em si mesma. A ela, de facto, está ligado o trabalho da mãe, que dá à luz, que amamenta, que educa, e que ninguém pode substituir. Nada pode substituir o coração de uma mãe que num lar está sempre presente e espera sempre. O verdadeiro respeito do trabalho traz consigo uma devida estima pela maternidade, e não pode deixar de assim ser. Disto depende também a saúde moral de toda a sociedade.

Os meus pensamentos e o meu coração abrem-se mais uma vez a vós, homens do trabalho árduo, aos quais a minha vida pessoal e o meu ministério pastoral me ligaram de vários modos. Desejo que o trabalho que fazeis não deixe de ser a fonte da vossa força social. Graças ao vosso trabalho, que sejam fortes os vossos lares! Graças ao vosso trabalho, que seja forte toda a nossa Pátria!

3. E por isso dirijo mais uma vez o meu olhar para a laboriosa Silésia e Zaglebie — para os altos-fornos, para as chaminés das fábricas — terra de grande trabalho e de grande oração. Ambas intimamente unidas na tradição deste povo cuja saudação mais corrente é expressa pelas palavras «Szczesc Boze» (Deus vos ajude), palavras que ligam e referem o pensamento de Deus ao trabalho humano.

Devo hoje bendizer a Divina Providência, agradecendo-lhe porque nesta terra o enorme desenvolvimento da indústria — desenvolvimento do trabalho humano — foi acompanhado igualmente pela construção de igrejas, pela criação de paróquias, pelo aprofundamento e consolidação da fé. Porque o desenvolvimento não levou à descristianização, à ruptura daquela aliança, que na alma humana deve unir trabalho e oração, segundo o mote dos beneditinos: «ora et labora». A oração que em todo o trabalho humano se refere a Deus Criador e Redentor, contribui ao mesmo tempo para a total «humanização» do trabalho.«O trabalho existe... para se ressurgir» (C. K. NORWID). Precisamente o homem, chamado desde o início, por vontade do Criador, para subjugar a terra mediante o trabalho, foi criado, também ele, à imagem e semelhança do próprio Deus. Apenas se pode encontrar a si mesmo, confirmar-se a si próprio, se procurar Deus na oração. Procurando Deus, encontrando-se com Ele mediante a oração, o homem deve necessariamente encontrar-se a si mesmo, pois é semelhante a Deus.Não pode encontrar-se de outro modo que não seja no seu Protótipo. Não pode, através do trabalho, confirmar o seu «domínio» sobre a terra, senão rezando simultaneamente.

109 Caríssimos Irmãos e Irmãs! Homens do árduo trabalho da Silésia, de Zaglebie e de toda a Polónia! Não vos deixeis seduzir pela tentação de que o homem possa plenamente encontrar-se a si mesmo, renegando a Deus, cancelando a oração da sua vida, mantendo-se unicamente trabalhador, iludindo-se ao pensar que bastam apenas os seus produtos para poder satisfazer as necessidades do coração humano. Nem só de pão vive o homem (Mt 4,4). Di-lo aquele que conhece o coração humano e deu suficiente s provas de cuidar das necessidades materiais. «A oração do Senhor» contém também a invocação do pão. Apesar disso, nem só de pão vive o homem. Permanecei fiéis às experiências das gerações que cultivaram esta terra, que trouxeram à superfície os seus tesouros escondidos, com Deus no coração, com a oração nos lábios. Conservai a que foi a fonte da força dos vossos pais e dos vossos antepassados, das vossas famílias e das vossas comunidades! Oxalá «a oração e o trabalho» se tornem nova fonte de força nesta geração e também nos corações dos vossos filhos, netos e bisnetos.

4. Digo-vos «Szczesc Boze» - Deus vos ajude!

E digo-o mediante o coração da Mãe, d'Aquela cujo reino em Jasna Gora consiste em ser Mãe amorosa para todos nós.

Digo o mediante o Coração daquela Mãe que escolheu um sítio mais perto das vossas casas, das vossas minas e fábricas, das vossas aldeias e cidades, o lugar de Piekary. Acrescentai o que hoje vos digo do alto de Jasna Gora ao que tantas vezes vos disse, como metropolita de Cracóvia, do alto de Piekary. E recordai-o!

Amen.

«Szczesc Boze» - Deus vos ajude.

Amen.



VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA



DURANTE A SOLENE CONCELEBRAÇÃO


NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO


DE BRZEZINKA (BIRKENAU)


Quinta-feira, 7 de Junho de 1979




1. ... Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé (1Jn 5,4)

Estas palavras da Carta de São João, vêm-me à mente e penetram-me o coração, quando me encontro neste lugar em que se verificou uma particular vitória da fé. Através da fé que faz nascer o amor de Deus e do próximo, o único amor, o amor supremo que está pronto a dar a vida pelos seus amigos (Jn 15,13 cfr. Jn 10,11), Uma vitória, pois, através do amor, que a fé vivificou até aos extremos do último testemunho.

Esta vitória através da fé e do amor trouxe-a para este lugar um homem cujo nome é Maximiliano Maria; de apelido: Kolbe; de profissão (como se escrevia nos registos do campo de concentração): sacerdote católico; de vocação: filho de São Francisco; de nascimento: filho de simples, laboriosos e devotos pais, tecelões nas proximidades de Lodz; por graça de Deus e por juízo da Igreja: beato.

110 A vitória mediante a fé e o amor trouxe-a esse homem para este lugar, que foi construído pela negação da fé — da fé em Deus e da fé no homem — e para espezinhar radicalmente não só o amor, mas todos os sinais da dignidade humana, da humanidade. Um lugar que foi construído sobre o ódio e sobre o desprezo do homem em nome de uma ideologia louca. Um lugar que foi construído sobre a crueldade. A ele conduz uma porta sobre a qual está colocada uma insrição «Arbeit Macht frei», que tem um som sardónico, porque o seu conteúdo era radicalmente nega do por aquilo que acontecia aqui dentro.

Neste lugar do terrível extermínio, que deu a morte a quatro milhões de homens de diversas nações, o padre Maximiliano, oferendo-se voluntariamente para morrer no «bunker» da fome em vez de um irmão, alcançou uma vitória espiritual semelhante à do próprio Cristo. Aquele irmão vive ainda hoje na terra polaca.

Mas o Padre Maximiliano Kolbe foi o único? Ele, sem dúvida, obteve uma vitória cujo influxo imediatamente sentiram os companheiros de prisão e ainda hoje sentem a Igreja e o mundo. Certamente, porém, muitas outras vitórias semelhantes se verificaram; penso, por exemplo, na morte no forno crematório de um campo de concentração, da Carmelita Irmã Benedita da Cruz, no mundo Edith Stein, ilustre aluna de Husserl, que se tornou ornamento da filosofia alemã contemporânea, e descendia de uma família hebreia residente em Wroclaw.

No lugar onde foi espezinhada de modo tão horrendo a dignidade do homem, a vitória obtida mediante a fé é o amor!

Pode ainda alguém admirar-se que o Papa, nascido e educado nesta terra, o Papa que foi para a Sé de São Pedro da diocese em cujo território se encontra o campo de Oswiecim (Auschwitz), tenha iniciado a sua primeira Encíclica com as palavras «Redemptor hominis» e que a tenha dedicado no conjunto à causa do homem, à dignidade do homem, às ameaças contra ele e por fim aos seus direitos inalienáveis que tão facilmente podem ser espezinhados e aniquilados pelos seus semelhantes? Basta revestir o homem com um uniforme diferente, armá-lo com todos os meios da violência, basta impor-lhe a ideologia em que os direitos do homem são submetidos às exigências do sistema, completamente submetidos, a ponto de não existir realmente...?

2. Venho aqui hoje como peregrino. Sabe-se que muitas vezes me encontrei aqui... Quantas vezes! E muitas vezes fui à cela da morte de Maximiliano Kolbe e me detive diante do muro do extermínio e passei entre os destroços dos fornos crematórios de Brzezinka. Não podia deixar de vir aqui como Papa.

Venho pois a este particular santuário, em que nasceu — posso dizer — o padroeiro do nosso difícil século, tal como há nove séculos sob a espada, em Rupella, nasceu Santo Estanislau, Padroeiro dos Polacos.

Venho para rezar com todos vós que hoje viestes aqui — e juntamente com toda a Polónia — e em união com toda a Europa. Cristo quer que eu, como Sucessor de Pedro, preste testemunho diante do mundo daquilo que constitui a grandeza do homem dos nossos tempos e a sua miséria. Daquilo que é a sua derrota e a sua vitória.

Venho e então ajoelho-me sobre este Gólgota do mundo contemporâneo, sobre estes túmulos, em grande parte sem nome, como o grande túmulo do Soldado Desconhecido. Ajoelho-me diante de todas as lápides que se sucedem e sobre as quais está gravada a comemoração das vítimas de Oswiecim (Auschwitz) nas seguintes línguas: Polaco, Inglês, Búlgaro, Cigano, Checo, Dinamarquês, Francês, Grego, Hebraico, Yddish, Espanhol, Flamengo, Servo-Croata, Alemão, Norueguês, Russo, Romeno, Húngaro e Italiano.

Em particular detenho-me juntamente convosco, queridos participantes neste encontro, diante da lápide com a inscrição em língua hebraica . Esta inscrição suscita a recordação daquele. Povo cujos filhos e filhas estavam destinados ao extermínio total. Esse Povo que tem a sua origem em Abraão, o pai da nossa fé (Cfr.
Rm 4,12), como se exprimiu Paulo de Tarso. Precisamente esse povo, que recebeu de Deus o mandamento: «não matar», experimentou sobre si mesmo em medida particular o que significa matar. Diante desta lápide não é lícito a ninguém passar adiante com indiferença.

Ainda quero deter-me em frente de outra lápide: a de língua russa. Não acrescento comentário algum. Sabemos de que nação fala. Conhecemos qual a parte tida por esta nação, na última terrível guerra, a favor da liberdade dos povos. Diante desta lápide não se pode passar com indiferença.

111 Por fim a última lápide: em língua polaca. Foram seis milhões de Polacos que perderam a vida durante a segunda guerra mundial: a quinta parte da nação. Mais uma etapa das lutas seculares desta nação, da minha nação, pelos seus direitos fundamentais entre os povos da Europa. Mais um alto grito pelo direito a um lugar próprio no mapa da Europa. Mais uma dolorosa conta com a consciência da humanidade. Escolhi apenas três lápides. Seria preciso determo-nos em cada uma das existentes, e assim faremos.

3. Oswiecim (Auschwitz) é uma destas contas. Não podemos apenas visitá-lo. É necessário nesta ocasião, pensar com medo onde se encontram as fronteiras do ódio, as fronteiras da destruição do homem pelo homem, as fronteiras da crueldade.

Oswiecim (Auschwitz) é um testemunho da guerra. A guerra traz consigo um aumento desproporcionado do ódio, da destruição, da crueldade. E se não se pode negar que ela manifesta também novas possibilidades de coragem humana, de heroísmo e de patriotismo, permanece contudo o facto que nela prevalece o número das perdas. Prevalece cada vez mais, porque cada dia cresce a capacidade destruidora das armas inventadas pela técnica moderna. Das guerras são responsáveis não só os que as procuram directamente, mas também aqueles que não fazem todo o possível por as impedir. E portanto seja-me permitido repetir neste lugar as palavras que Paulo VI pronunciou perante a Organização das Nações Unidas:

«Não são necessários longos discursos para proclamar a finalidade suprema da vossa Instituição. Basta recordar que o sangue de milhões de homens e inumeráveis e inauditos sofrimentos, inúteis morticínios e formidáveis ruínas sancionam o pacto que vos une, com um juramento que deve mudar a história futura do mundo: jamais a guerra, jamais a guerra! A paz, a paz, deve guiar a sorte dos Povos e da humanidade inteira! » (Paulo VI, Discurso à Organização das Nações Unidas, MS 57, 1965, p. 881).

Se este grande apelo de Oswiecim (Auschwitz), o grito do homem martirizado aqui, deve trazer frutos para a Europa (e também para o mundo), é necessário tirar todas as justas consequências da Declaração dos Direitos do homem, como João XXIII exortava a fazer na encíclica Pacem in Terris. Nela, de facto, é «reconhecida, da forma mais solene, a dignidade de pessoa a todos os seres humanos sem excepção; e é, por conseguinte, proclamado como seu direito fundamental o direito de investigar livremente a verdade, o de seguir o bem moral o de praticar os deveres de justiça, o de exigir condições de vida conformes à dignidade humana, e outros relacionados com estes» (João XXIII, Pacem in Terris
PT 4).

É necessário voltar à sabedoria do velho Mestre Pawel Wlodkowic, Reitor da Universidade Jagelónica em Cracóvia, e assegurar os direitos das nações: à existência, à liberdade, à independência, à própria cultura e ao desenvolvimento honesto.

Wlodkowic escreve: «Onde actua mais o poder do que o amor, procuram-se os próprios interesses e não os de Jesus Cristo, por conseguinte afastamo-nos facilmente da norma da lei divina (...). Todo o direito se opõe a quem ameaça aqueles que querem viver em paz: opõe-se-lhe o direito civil (...) e canónico (...), o direito natural, isto é o princípio: 'O que desejas para ti, fá-lo ao próximo. Opõe-se o direito divino, enquanto (...) no enunciado 'Não roubar' é proibida toda a rapina e no enunciado 'Não matar' toda a violência» (Pawel Wlodkowic, Saeventibus, 1415, Tract. II Solutio quaest. 4a: cfr. I. Ehrlich, Pisma Wybrane Pawla Wlokowica, Warszawa 1968, t. 1 S. 61 58-59).

E não só o direito se lhe opõe, mas também e, sobretudo, o amor. Aquele amor do próximo no qual se manifesta e se traduz o amor de Deus que Cristo proclamou como mandamento seu. Mas é também o mandamento que cada homem traz escrito no seu coração, gravado pelo seu próprio Criador. Esse mandamento concretiza-se também no «respeito do próximo», da sua personalidade, da sua consciência; concretiza-se no «diálogo com o próximo», no saber procurar e reconhecer o que de bom e de positivo pode haver ainda em quem possui ideias diferentes das nossas, mesmo em quem, de boa fé, sinceramente erra.

Nunca um à custa do outro, ao preço do servilismo do outro, ao preço da conquista, do ultraje, da exploração e da morte!

Pronuncia estas palavras o sucessor de João XXIII e de Paulo VI. Mas pronuncia-as simultaneamente o filho da Nação que na sua história remota e mais recente sofreu dos outros um multíplice tormento. E não o diz para acusar, mas para recordar. Fala em nome de todas as Nações, cujos direitos são violados e esquecidos. Di-lo porque a isto o impelem a verdade e a solicitude pelo homem.

4. Santo Deus, Santo Poderoso, Santo e imortal!

112 Da peste, da fome, do fogo e da guerra... e da guerra, livra-nos, ó Senhor. Amen.



VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA



DURANTE A MISSA EM NOWY TARG


Sexta-feira, 8 de Junho de 1979




1. «Do Mar Báltico aos picos das montanhas...». Aos picos dos Tatra.

Na minha peregrinação através da Polónia tenho hoje ocasião de me aproximar precisamente daqueles montes, precisamente daqueles Tatra que desde há séculos constituem a fronteira meridional da Polónia. Foi esta a fronteira mais fechada e mais resguardada e, ao mesmo tempo, mais aberta e amigável. Através dela passavam os caminhos que levavam aos nossos vizinhos, aos nossos amigos.Até durante a última ocupação estes caminhos eram os mais percorridos pelos refugiados que se dirigiam para o Sul, a fim de procurarem depois alcançar o exército polaco, que combatia pela liberdade da Pátria além-fronteiras.

Desejo saudar com todo o coração estes lugares aos quais sempre estive tão intimamente ligado. Desejo, além disso, saudar todos aqueles que vieram aqui, tanto de Podhale como de todos os Pré-Cárpatos, da Arquidiocese de Cracóvia e também de mais longe: das dioceses de Tarnów e de Prezmysl. Permiti que me refira ao antigo laço de vizinhança e que vos saúde a todos, como fazia habitualmente, quando era metropolita de Cracóvia.

2. Desejo falar neste lugar de Nowy Targ, da terra polaca, porque ela mostra-se aqui particularmente bela e rica de paisagens. O homem tem necessidade da beleza da natureza e portanto não nos devemos admirar que venham até aqui homens de várias partes da Polónia e do estrangeiro. Chegam tanto de verão como de inverno. Procuram repouso. Desejam encontrar-se a si mesmos no contacto com a natureza. Desejam recuperar as suas energias através do salutar exercício da marcha, da subida, da escalada, da descida com os skis. Esta região hospitaleira é também terreno de grande trabalho pastoral, porque as pessoas vêm aqui não só para fortalecer as forças físicas mas também as espirituais.

3. Esta bela terra é ao mesmo tempo uma terra difícil. Pedregosa, montanhosa. Não tão fértil como o planalto do Vístula. E por isso seja-me permitido referir-me, precisamente nesta terra dos Pré-Cárpatos e dos Pré-Tatra, ao que sempre foi tão querido ao coração dos Polacos: o amor pela terra e pelo trabalho dos campos. Ninguém pode negar que isto representa não só um sentimento, um laço afectivo, mas também um grande problema económico-social. Estas regiões conhecem particularmente bem o problema, porque precisamente destes lados, onde havia a maior escassez de terra cultivável e algumas vezes grande miséria, a gente emigrava para longe, para fora da Polónia para além-mar. Ali procuravam trabalho e pão e encontravám-no. Desejo hoje dizer a todos os que estão dispersos pelo mundo, qualquer que seja o lugar onde estiveram: «Szczesc Bozé»! Deus vos ajude! Não esqueçam a própria Pátria de origem, a família, a Igreja, a oração e tudo aquilo que levaram daqui. Porque apesar de terem tido que emigrar por falta de bens materiais, daqui levaram consigo, todavia, um grande património espiritual. Que procurem, ao tornarem-se ricos materialmente, não empobrecer espiritualmente; nem eles, nem os seus filhos, nem os seus netos.

O grande e fundamental direito do homem é o direito ao trabalho e o direito à terra. Embora o desenvolvimento da economia nos leve noutra direcção, embora se valorize o progresso com base na industrialização, embora a geração hodierna abandone em massa o campo e o trabalho dos campos, apesar disso o direito à terra não deixa de constituir a base de uma economia e sociologia sãs.

Como é necessário que eu durante a minha visita faça votos, com todo o coração me dirijo à minha Pátria para que aquilo que sempre constituiu a força dos Polacos — até mesmo durante os períodos mais árduos da história — isto é o laço pessoal com a terra, não deixe de o ser também na nossa geração industrializada. Que seja tido em consideração o trabalho dos campos; que seja apreciado e estimulado! E que não falte nunca na Polónia o pão e o alimento!

4. Este voto está unido a outro. O Criador deu a terra ao homem para que ele a «submetesse» — e neste domínio do homem sobre a terra baseou o direito fundamental do homem à vida . Tal direito está intimamente ligado com a vocação do homem à família e à procriação. Por isso o homem abandonará pai e mãe para se unir à sua esposa e os dois formarão uma só carne (Gn 2,24). E como a terra, por providencial desígnio do Criador, dá fruto, assim esta união, no amor, de duas pessoas, homem e mulher, frutifica numa nova vida humana. Desta vivificante unidade das pessoas, o Criador fez o seu primeiro sacramento, e o Redentor confirmou este perene sacramento do amor e da vida dando-lhe uma nova dignidade e imprimindo-lhe o sinal da sua santidade. O direito do homem à vida está unido, por vontade do Criador e em virtude da Cruz de Cristo, ao sacramento indissolúvel do matrimónio.

Faço pois votos, caríssimos compatriotas, por ocasião desta minha visita, de que aquele sagrado direito não deixe de plasmar a vida em terra polaca: aqui, nos Pré-Tatra, nos Pré-Cárpatos e em toda a parte. Diz se justamente que a família é a célula fundamental da vida social. É a comunidade humana fundamental. Tal como é a família, assim é a nação, porque tal é o homem. Faço pois votos por que sejais fortes graças a famílias profundamente radicadas na força de Deus, e faço votos também por que o homem possa desenvolver-se plenamente na base do vínculo indissolúvel dos esposos-pais, no clima familiar que nada pode substituir. Faço ainda votos e peço sempre por isto, que a família polaca, gere a vida e seja fiel ao sagrado direito à vida. Se se inflige o direito do homem à vida no momento em que ele começa a ser concebido no seio materno, ataca-se indirectamente toda a ordem moral que serve para assegurar os bens invioláveis do homem. A vida ocupa entre eles o primeiro lugar. A Igreja defende o direito à vida, não só por respeito à majestade do Criador que é o primeiro dador desta vida, mas também por respeito ao bem essencial do homem.

113 5. Desejo ainda dirigir-me aos jovens, que amam de modo especial estes lugares e procuram aqui não só o repouso físico mas também o espiritual. «Repousar — escreveu outrora Norwid — significa 'conceber de novo' (em polaco é um jogo de palavras). O repouso espiritual do homem, como justamente o entendem tantos grupos de jovens deve levar ao reencontro e à elaboração em si daquela «nova criatura» de que fala São Paulo. A isto leva o caminho da Palavra de Deus lida e celebrada com fé e com amor, a participação nos sacramentos e sobretudo na Eucaristia. A isto leva o caminho da compreensão e da realização da comunidade, ou seja a comunhão com os homens, que nasce da Comunhão Eucarística, e também a compreensão e a realização do serviço evangélico, isto é a «diaconia». Meus caríssimos, não deveis desistir daquele nobre esforço que vos permite tornardes-vos testemunhas de Cristo. Testemunha, na linguagem bíblica, significa mártir («martyr»).

Confio-vos à Immaculada, à qual o Beato Maximiliano Kolbe confiava continuamente todo o mundo.

Confio-vos a todos à Mãe de Cristo que aqui nas proximidades reina como Mãe no Santuário de Ludzmierz, e também no que se ergue no coração dos Tatra em Rusinowa Polana (quanto amou esse lugar o Servo de Deus Frei Adalberto, quanto o admirou e amou do seu Ermo em Kalatowkik), e em tantos outros santuários erguidos aos pés dos Cárpatos, na Diocese de Tranow, de Przemysl... a Este e a Oeste. E em toda a terra polaca.

Que o património da fé de Cristo e da ordem moral sejam conservados por Santo Estanislau, bispo e mártir, padroeiro dos Polacos, testemunha de Cristo desde há séculos na nossa terra pátria.



VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II À POLÓNIA



NA CATEDRAL DE WAWEL,


NO ENCERRAMENTO


DO SÍNODO ARQUIDIOCESANO


Cracóvia, 8 de Junho de 1979




Dilectissimo Metropolita de Cracóvia,
Veneráveis Bispos,
Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. Realiza-se hoje o ardente desejo do meu coração. O Senhor Jesus, que me chamou desta Sé de Santo Estanislau, nas vésperas do seu nono centenário, permite-me participar no encerramento do Sínodo da Arquidiocese de Cracóvia, Sínodo que sempre esteve ligado no meu espírito, a este grande jubileu da nossa Igreja. Vós todos o sabeis muito bem, porque diversas vezes tratei este tema, e não tenho portanto necessidade de hoje o repetir. Talvez nem fosse capaz de dizer tudo o que, em relação a este Sínodo, passou pelo meu espírito e pelo meu coração, quais esperanças e projectos construí a partir dele neste período decisivo da história da Igreja e da Pátria.

Para mim e para todos vós, o Sínodo tinha sido ligado ao aniversário do nono centenário do ministério de Santo Estanislau, que durante sete anos foi bispo de Cracóvia. O programa de trabalho previa então um período que ia de 8 de Maio de 1972 a 8 de Maio de 1979. Desejávamos, durante todo este tempo, honrar o bispo e pastor (de há nove séculos) da Igreja de Cracóvia, procurando exprimir — em função do nosso tempo e das suas necessidades — a nossa solicitude pela obra salvífica de Cristo nas almas dos nossos contemporâneos. Tal como Santo Estanislau de Szczepanow fazia há nove séculos, assim também nós queremos fazer nove séculos depois. Estou persuadido de que este modo de honrar a memória do grande Padroeiro da Polónia é o mais adequado. Isto corresponde tanto à histórica missão de Santo Estanislau, quanto àqueles grandes compromissos perante os quais se encontram hoje a Igreja e o cristianismo contemporâneo, depois do Concílio Vaticano II. O iniciador do Concílio, o Servo de Deus João XXIII, especificou esta tarefa com a palavra «actualização». A finalidade do trabalho de sete anos do Sínodo de Cracóvia — em resposta aos intentos essenciais do Vaticano II. — devia ser a actualização da Igreja de Cracóvia, a renovação da consciência da sua missão salvífica, como também o programa preciso para a sua realização.

2. A via que levou a este fim tinha sido traçada pela tradição dos Sínodos particulares da Igreja; basta recordar os dois Sínodos precedentes , nos tempos do ministério do Cardeal Adam Stefan Sapieha. As prescrições para conduzir os trabalhos sinodais eram traçadas pelo Código de direito canónico. Porém considerámos que a doutrina do Concílio Vaticano II. abria aqui novas perspectivas criando, diria, novas tarefas. Se o Sínodo devia servir para a realização da doutrina do Vaticano II., devia fazê-lo antes de tudo com a mesma concepção e com o mesmo método de trabalho. Isto explica todo o projecto do Sínodo pastoral e a sua consequente actuação. Pode dizer-se que, para a elaboração das resoluções e dos documentos, percorremos um caminho mais longo mas também mais completo . Este caminho passou através da actividade de centenas de grupos de estudo sinodais, nos quais se pôde exprimir um vasto número de fiéis da Igreja de Cracóvia. Estes grupos, como sabeis, eram formados na sua maior parte por católicos leigos, que encontraram ali, por um lado, a possibilidade de penetrar na doutrina do Concílio, e por outro, a possibilidade de exprimir, a este respeito, as próprias experiências, as próprias propostas, que manifestavam o seu amor pela Igreja, e o seu sentido de responsabilidade pelo conjunto da sua vida na Arquidiocese de Cracóvia.

114 Durante a etapa de preparação dos documentos finais do Sínodo, os grupos de estudo tornaram-se lugares de vastas consultas; a eles, de facto, se dirigia a Comissão Geral que coordenava a actividade de todos os grupos de trabalho e de todas as comissões de peritos que desde o início do Sínodo tinham sido convocadas. Deste modo amadureciam aquelas verdades que o Sínodo, reportando-se à doutrina do Concílio, queria transferir para a vida da Igreja de Cracóvia. Desejava formar, segundo elas, o futuro da Igreja.

3. Hoje, todo este trabalho, este percurso de sete anos, está já atrás de vós. Nunca pensei que participaria no encerramento dos trabalhos do Sínodo de Cracóvia, como hóspede vindo de Roma. Se porém é esta a vontade de Cristo, seja-me permitido, neste momento, assumir mais uma vez o papel daquele metropolita de Cracóvia, que através do Sínodo tinha desejado saldar a grande dívida que havia contraído para com a Igreja universal, para com o Espírito Santo. Seja-me também permitido neste papel como disse — agradecer a todos aqueles que construíram este Sínodo, ano após ano, mês após mês, com o seu trabalho, o seu conselho, o seu contributo criativo e o seu zelo. Os meus agradecimentos, dirigem-se, em todo o caso, a toda a comunidade do Povo de Deus da Arquidiocese de Cracóvia, aos eclesiásticos e aos leigos; aos sacerdotes, aos religiosos e às religiosas. Especialmente a todos os presentes: aos bispos guiados pelo meu venerando Sucessor Metropolita de Cracóvia; de modo particular ao bispo Stanislaw Smolenski, que dirigiu, como presidente da Comissão Geral, os trabalhos do Sínodo. A todos os Membros desta Comissão, e mais uma vez à Comissão preparatória, que sob a direcção de Monsenhor Prof. E. Florkowski preparou, em 1971 e 1972, o estatuto, o regulamento e o programa do Sínodo. As Comissões de trabalho, às Comissões de peritos, ao incansável Secretariado, aos Grupos redaccionais, e enfim a todos os Grupos de estudo.

Talvez devesse , nesta circunstancia , ter falado de modo diverso, mas não me é possível. Estive demasiado ligado pessoalmente a este trabalho.

Desejo, por conseguinte em nome de todos vós, depor esta obra completa diante do sarcófago de Santo Estanislau, ao centro da catedral de Wawel; ela, de facto, tinha sido empreendida em vista do seu jubileu.

E juntamente com todos vós peço à Santíssima Trindade que tal obra traga frutos centuplicados. Amen.

Homilias JOÃO PAULO II 107