Homilias JOÃO PAULO II 153

153 Ó jovens que me escutais aqui, dir-vos-ei então que a Igreja, desde sempre, mas hoje bem mais que no passado, conta convosco, tem confiança em vós e muito espera de vós, em ordem ao cumprimento da sua missão salvífica no mundo. Disponde-vos pois, a acolher com coração aberto este meu renovado apelo, equivalente a um convite para entrardes animosamente na dinâmica da acção eclesial. Que seria da Igreja sem vós? Por isso, tanto conta ela convosco. Para nosso conforto existem as promessas formais de Cristo, que à Igreja garantiu a sua ininterrupta presença e assistência (Cfr. Mt 28,20 Mt 16,18); mas elas não nos eximem do dever permanente de unir a esta superior certeza a nossa diligente e assídua actividade. É aqui exactamente que deve colocar-se o meu insistente recurso a vós, jovens, recurso que terá — desejo-o de todo o coração — uma resposta positiva e pronta, da vossa parte.

5. Ainda uma palavra desejo acrescentar, indo-a buscar à documentação que me entregou o vosso Bispo acerca da vida pastoral nas dioceses de Belluno e Feltre. Ao mesmo tempo que dirijo uma saudação especial a esta Cidade, lastimando não a ter podido visitar, exprimo viva satisfação por tudo o que se está a fazer em ambas as comunidades pela formação das novas gerações, pelo progresso da actividade catequística e pelo aumento das vocações sagradas. Penso, em especial, na próxima Visita Pastoral e nas "missões populares", que, segundo costume bem confirmado, serão o momento preparátorio para ela. Oxalá estas missões, confiadas a sacerdotes zelosos e experimentados, atinjam todas as famílias e os grupos associativos, levando-os a descobrir Cristo redentor do homem e o consequente propósito de dar d'Ele testemunho no mundo.

Penso também, ó Irmãos, nos problemas sociais da vossa região, que, pela sua mesma conformação, dispõe de limitados recursos e não é hoje que principia, por desgraça, a sentir as privações e os sacrifícios da pobreza. Com quanta emoção foi recebida a notícia, referida pelos jornais, da saída anual da Itália, por motivos de trabalho, do pai do pequeno Albino Luciani, e ainda a dos dolorosos reveses provocados, não unicamente na sua família mas na sua terra e em toda a zona circunstante, pela guerra mundial que sobreveio de 1915 a 1918! Se tal flagelo parece por agora felizmente afastado, permanecem porém outras realidades dolorosas, como a pobreza do solo, as calamidades de vários géneros (recordo apenas o desastre do Vaiont e o terremoto que atingiu há anos o território das boas gentes do Friúli), a iminente ameaça do desemprego ou a incerteza do lugar de trabalho, e a continuada e sempre triste necessidade da emigração, quer permanente quer estacional.

A vossa, caros Fiéis, é verdadeiramente uma terra enrijecida no sacrifício, e eu tenho a obrigação de reconhecer e apontar como exemplo, ao lado do fervor da vossa fé e do apego às tradições atávicas, a provisão de virtudes humanas e cívicas que possuís. Quem não sabe que a guerra de há 60 anos deixou entre vós profundos vestígios e causou grandes sofrimentos? Isto robusteceu todavia e desenvolveu entre vós o sentimento patriótico e o vínculo da solidariedade nacional. Também estes valores quero eu exaltar porque, assim como definem o perfil dum povo, também se harmonizam, sem contradição de importância, com a genuína espiritualidade religiosa. Mas ainda mais se me torna necessário — e parece-me deste modo unir a minha voz à tão quente e persuasiva do Papa Luciani — deixar-vos, como recordação da visita, uma exortação especial à fortaleza, que é ao mesmo tempo alta qualidade humana e típica virtude cristã. Sede fortes na fé, fortes na laboriosidade e fortes no espírito de sacrifício. Será este o modo mais adequado e mais digno para honrar, nos factos, a amável figura do vosso e nosso João Paulo I.

Quero dirigir uma saudação particular, aos fiéis de língua alemã dentre a população destas maravilhosas serranias e vales. Saúdo igualmente os turistas dos países circunvizinhos, que nesta altura por aqui estão a passar as suas férias e que se encontram presentes nos diversos lugares da minha romagem de hoje à terra natal do Papa João Paulo I.

E desejo recomendar à materna intercessão de Maria Santíssima os múltiplos contactos recíprocos entre os homens, para além de todos os confins de estirpe e de nação, contactos que, precisamente nesta região, resultam tão numerosos e se demonstram frutuosos. Que com isso se continue a aprofundar e a reforçar a recíproca compreensão e a pacífica convivência entre os diversos grupos étnicos e os diversos povos! Maria, que é a Mãe da Igreja, é simultâneamente também a Rainha da paz.

Maria, Rainha da paz, rogai por nós!





PARA OS FIÉIS DE VITÓRIO VÉNETO


Castel Galdonfo, 28 de Agosto de 1979




Saúdo cordialmente o Senhor Bispo e os caríssimos Sacerdotes e Fiéis da Diocese de Vitório Véneto.

Sede bem-vindos à casa do Papa!

Há já um ano tínheis formulado ao Santo Padre João Paulo I, apenas eleito ao Sumo Pontificado, o vivo desejo de vos encontrardes novamente com Ele no primeiro aniversário da sua eleição; durante bem onze anos foi vosso Pastor, amado, seguido e venerado por vós. Mesmo depois de ser Papa continuava a ser um pouco vosso. E era justo! E por isso queríeis encontrar-vos com Ele, que sem dúvida nunca vos esquecera.

154 E ao contrário do que pensáveis, eis-vos aqui hoje, devido aos misteriosos e imprevisíveis desígnios de Deus, em peregrinação ao seu túmulo na Cripta Vaticana; eis-vos aqui, agradecidos pelo amor que vos deu, mas também ainda abalados e quase incrédulos pela veloz mudança das coisas, sucedidas num tão breve período de tempo: Mas Ele próprio, o inesquecível João Paulo I, tão afável e sabedor, com o seu sorriso consola-nos e encoraja-nos, confiando-nos à bondade divina da Providência, que desorganiza mas não confunde os planos humanos.

E, na verdade, vós desejastes efectuar de igual modo a vossa peregrinação para vos encontrardes com o seu sucessor, escolhido pela vontade de Deus para a Cátedra de Pedro. A vossa peregrinação, organizada pelo semanário diocesano "L'Azione", que celebra o seu sexagésimo quinto aniversário de existência, é um atestado de fé e de amor; e eu, enquanto vos dirijo a minha saudação mais cordial e o meu mais sentido agradecimento, asseguro-vos também da minha especial predilecção.

De facto, na vossa Diocese, durante onze anos, João Paulo I pôde demonstrar as suas altas qualidades pastorais, que depois o deveriam levar ao supremo Sólio apostólico. Visivelmente Ele não está entre nós, porque deste modo quis o Senhor; mas Ele permanece agora e permanecerá para sempre na Igreja, luminoso e benfeitor, e na humanidade pelo seu ensinamento e ensino.

Hoje a liturgia da festa de Santo Agostinho, presta-se magnificamente para celebrar a sua figura e para a imprimir ainda mais a fundo nos nossos corações.

1. Reflictamos antes de mais sobre a humildade do Papa João Paulo I.

Podemos dizer que o que nos impressionou mais profundamente, desde os anos da sua adolescência, foi a certeza do amor de Deus e a grandeza da chamada ao Sacerdócio.

Na sua primeira carta, São João, o confidente do Divino Mestre, revela quem é Deus e qual é a relação entre Deus e o homem: Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus para connosco: Em ter enviado o Seu Filho unigénito ao mundo, para que por Ele vivamos. Nisto consiste o Seu amor: Não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados ().

Eis a grande e definitiva revelação que a "palavra de Deus" apresenta ao homem de todos os tempos: Deus é amor e a manifestação que assegura tal amor é a Encarnação do Verbo e a sua morte na Cruz.

O Papa João Paulo I esteve sempre intimamente compenetrado desta suprema realidade do amor preveniente de Deus e, por isso, da consequente humildade necessária ao homem, que não pode arrogar-se direitos ou encher-se de soberbia.

Além do mais, Ele esteve sempre convencido da gratuitidade e do imenso valor da chamada ao Sacerdócio, e depois ao Episcopado, para o qual sempre se considerou pessoalmente pequeno, mas grande na amizade e intimidade infundidas peio próprio Jesus: Não fostes vós que Me escolhestes, fui Eu que vos escolhi e vos nomeei para irdes e dardes fruto e o vosso fruto permanecer (
Jn 15,16).

Por isso Ele viveu humildemente e ensinou sempre a humildade, e quando João XXIII o nomeou vosso Bispo, ele, como bem sabeis, adoptou como mote para as armas episcopais a palavra "Humildade".

155 Este foi sempre o seu ideal e uma vez Papa, na Audiência geral de 6 de Setembro apressou-se a dizer: "O Senhor tanto recomendou: sede humildes! Mesmo que tenhais feito grandes coisas, dizei: 'somos servos inúteis'. A tendência, porém, em todos nós, é antes em sentido contrário: pormo-nos em vista. Mas devemos estar baixinhos, baixinhos: é a virtude cristã que diz respeito a nós próprios".

Deste profundo e convicto sentido de humildade, nascia a sua extrema confiança em Deus, que é Pai, amor, misericórdia, e brotava também a sua alegria, o seu sorriso constante, o seu humorismo que crepita vivo e convicente em todos os seus escritos. A sua alegria nascia da fé e da humildade, como tinha afirmado Jesus: Digo-vos isto para que a Minha alegria esteja em vós e o vosso gozo seja completo (
Jn 15,11).

Foi uma grande lição, que não devemos esquecer!

2. Reflictamos ainda sobre o serviço da verdade do Papa João Paulo I.

Teve o culto da verdade e todos os seus estudos e as suas leituras, inteligentes e metódicos, estiveram em função e em perspectiva da Verdade e do seu anúncio; desde jovem, primeiro como Sacerdote e depois como Bispo, sentiu-se sempre e apenas ao serviço da Verdade e do seu anúncio para a salvação do mundo.

O seu primeiro tormento como Bispo, num período doutrinalmente muito difícil para a Igreja, por causa de hipóteses e de novidades incontroladas e confusas, foi a infatigável defesa da ortodoxia e da disciplina.

Já Papa, no discurso que proferiu ao Clero de Roma a 7 de Setembro de 1978, citando Santo Agostinho expunha o primeiro e principal dever do Bispo, praticado firmemente sempre por ele: "Praesumus — dizia Santo Agostinho — si prosumus; nós Bispos presidimos, se servimos. Justifica-se a nossa presidência se se resolve em serviço, com espírito e estilo de serviço. Este serviço episcopal viria porém a faltar, se o Bispo não quisesse exercitar os poderes recebidos. Dizia ainda Santo Agostinho: "O Bispo que não serve o público, é apenas "foenus custos", um espantalho posto no meio das vinhas, para que os pássaros não depeniquem as uvas". Por isso está escrito na Lumen Gentium: "Os Bispos regem... com os seus conselhos, exortações e exemplos, e ainda com a sua autoridade e o seu poder sagrado".

A defesa e o anúncio da Verdade foi a sua preocupação, o seu tormento, e foi também a sua glória, seguidor dos grandes Pastores seus ideais: Santo Agostinho, São Gregório Magno, São Francisco de Sales e Santo Afonso Maria de Ligório.

E como Santo Agostinho, o Papa João Paulo I parece dizer-nos:

"Se a tua fé dorme no teu coração. Cristo dorme em certo modo na tua barca, pois Cristo por meio da fé vive em ti. Quando começas a sentir-te perturbado, desperta Cristo que dorme; desperta a tua fé, e fica a saber que ele não te abandona" (Santo Agostinho, En. in Ps 90, 11, PL 37, 1169).

Ouçamos a sua palavra: Ele é um mestre de fé!

156 3. Por fim, reflictamos ainda sobre a bondade do Papa João Paulo I.

Ele bem tinha compreendido a lição de São João: Quem não ama a seu irmão, ao qual vê, como pode amar a Deus, que não vê (
1Jn 4,20).

Jesus tinha dito aos Apóstolos: Ninguém tem um amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos. E tinha-lhes dado um mandamento novo: Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei!

Pode dizer-se que João Paulo I fez destas palavras o programa de toda a sua vida.

Sempre cordial, afável e sorridente, ele quis que o seu Apostolado e a sua pastoral estivessem no plano da bondade e da caridade para com todos, particularmente para com os sacerdotes, os doentes, as crianças e os pobres.

Apresentando-se aos fiéis da Diocese de Vitório Véneto a ele confiados, escreveu: "Seria um Bispo verdadeiramente infeliz se não vos amas-se"; e acrescentava: "Posso assegurar-vos que vos amo, que desejo unicamente entrar ao vosso servico e pôr à disposição de todos as minhas pobres forças, o pouco que tenho e sou".

Adverso às parolas vãs, consagrou toda a sua vida a visitar paróquias e doentes, sacerdotes e associações, levando o seu conforto aos seus irmãos no Burundi e aos doentes em peregrinação a Lourdes.

E com o exemplo e a palavra ensinou sempre e a todos a amarem, como se lê na magnífica carta escrita a Santa Teresa de Lisieux. onde dizia: "Procurar o rosto de Cristo no rosto do próximo é o único critério que nos assegure que amamos seriamente a todos, superando antipatias, ideologias e meras filantropias" (Cardeal Albino Luciani, IIlustrissimi, Ed. Messaggero, Pádua, 1978, PP 206-207).

E no último Domingo da sua vida, ao rezar o Angelus deu o seu último ensinamento de caridade: "As vezes diz-se: 'estamos numa sociedade toda estragada, toda sem moral'. Mas tal afirmação não é verdade. Há ainda tanta gente boa, tanta gente honesta. Pergunte-se antes: Que fazer para melhorar a sociedade? Eu responderia: Procure cada um de nós ser bom e contagiar os outros com uma bondade toda penetrada pela mansidão e pelo amor ensinado por Cristo" (24 de Setembro). Foi o seu testamento de amor, repleto de corajoso optimismo cristão, que devemos considerar como precioso e pôr em prática.

Caríssimos Saoerdotes e Fiéis!

Quantas coisas nos ensinou o Papa João Paulo I!

157 Como fostes felizes por durante tantos anos terdes podido usufruir da presença de um pai tão bom!
Ele, embora imerso na "Cidade dos homens" para os iluminar e salvar, sentia-se membro da "Cidade de Deus" e dirigindo-se a Cristo pôde sempre dizer como Santo Agostinho: "Só te amo a Ti, só a Ti sigo, só a Ti procuro e estou disposto a estar sujeito a Ti, porque só Tu exerces o poder com justiça e eu desejo ser dirigido por Ti" (Santo Agostinho, Solilóquios, 1, 1, 5-6).

Isto diz-nos também a nós, ainda peregrinos nesta terra!

Façamos nossa a oração que Ele costumava rezar: "Senhor, aceita-me como sou, com os meus defeitos, com as minhas faltas, mas faz-me ser o que tu desejares".

A Virgem Santíssima que o guiou com "ternura delicada" na sua vida de rapaz, de seminarista, de sacerdote, de bispo e de Papa, vos guie também a vós, seus antigos e sempre amados fiéis, para uma vida intensamente cristã, em direcção da alegria eterna do céu.

E que a minha particular e afectuosa Bênção vos acompanhe sempre e vos seja propícia.

VISITA PASTORAL AO SANTUÁRIO

DE NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS

E SANTA MARIA GORETTI


Nettuno (Itália), 1 de Setembro de 1979




Caríssimos Irmãos e Irmãs

Num período ainda de relativo repouso e férias, encontramo-nos aqui esta tarde à volta do altar do Senhor, para celebrar a Eucaristia, meditando sobre o fenómeno, hoje tão importante, do Turismo, na nossa vida humana e cristã.

Com a melhor das vontades aceitei o convite de vir ao meio de vós, para ver-vos, ouvir-vos, trazer-vos a minha saudação cordial, manifestar-vos o meu afecto e Para orar convosco e reflectir sobre as verdades supremas, que devem ser sempre luz e ideal da nossa vida.

Nesta praça de Nettuno, diante da igreja em que repousam os restos mortais da jovem mártir santa Maria Goretti, à vista do mar, símbolo das mutáveis e às vezes tumultuosas alternativas humanas, oiçamos o que nos ensina a "palavra de Deus" que nos apresentam as leituras da Liturgia.

158 1. A "palavra de Deus" primeiro que tudo expõe a identidade e o comportamento do cristão.

Quem é o cristão? Como deve comportar-se o cristão? Quais são os seus ideais e as suas preocupações?

São perguntas de sempre, mas tornam-se muito mais actuais na nossa sociedade consumística e permissiva, em que sobretudo o cristão pode ser tentado a ceder à mentalidade comum; pondo em segundo lugar a sua requintada e heróica vocação de mensageiro e testemunha da Boa Nova.

— O apóstolo São Tiago, na sua carta, especifica claramente a identidade do cristão: Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, no qual não há mudança nem sombra de variação. Por sua livre vontade é que nos gerou pela palavra da verdade, para que sejamos como que as primícias das suas criaturas (
Jc 1,17-18).

O cristão é portanto uma criatura de Deus totalmente especial, porque mediante a graça, participa mesmo da vida trinitária; o cristão é um dom do Altíssimo ao mundo: desce do alto, do Pai da luz.

Não podia ser melhor descrita a admirável dignidade do cristão e também a sua responsabilidade.

— O cristão deve, por conseguinte, empenhar a fundo a sua vontade e viver com coerência a sua vocação. Diz ainda São Tiago: Recebei com mansidão a palavra em vós enxertada, a qual pode salvar as vossas, almas. Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes, enganando-vos a vós próprios (Jc 1,21-22).

São afirmações muito sérias e severas: o cristão não deve atraiçoar, não deve iludir-se com palavras vãs, não deve enganar. A sua missão é extremamente delicada, porque deve ser o fermento na sociedade, a luz no mundo e o sal da terra.

— O cristão convence-se, cada dia mais, da dificuldade enorme da sua obrigação: deve ir contra a corrente, deve testemunhar verdades absolutas mas não visíveis, deve perder a sua vida terrena para ganhar a eternidade e deve tornar-se responsável também pelo próximo, para o iluminar, edificar e salvar. Mas sabe que não está só. O que Moisés dizia do povo hebraico, é imensamente mais verdadeiro do povo cristão: Não há nenhum povo tão grande que tenha a divindade tão perto de si, como o Senhor, nosso Deus, sempre pronto a atender-nos quando o invocamos (Dt 4,7). O cristão sabe que Jesus Cristo, o Verbo de Deus, não só encarnou para revelar a verdade salvífica e remir a humanidade, mas ficou connosco na terra, renovando misticamente o Sacrifício da Cruz mediante a Eucaristia, e tornando-se alimento espiritual da alma e companheiro na estrada da vida.

Nisto se encontra o que vem a ser o cristão: uma primícia das criaturas de Deus, que deve manter pura e sem mancha a sua fé e a sua vida.

2. A "palavra de Deus", por conseguinte, ilumina também o fenómeno do turismo.

159 De facto, todas as realidades humanas são iluminadas e interpretadas pela revelação de Cristo, que veio salvar todo o homem e todos os homens.

Também a realidade do turismo deve ser vista à luz de Cristo.

— Sem dúvida, o turismo é agora fenómeno da época e de massa: tornou-se mentalidade e costume, porque é fenómeno "cultural", causado pelo acréscimo do conhecimento, do tempo livre e da possibilidade de movimento; e fenómeno "psicológico", facilmente compreensível, dadas as estruturas da sociedade moderna: industrialização, urbanização e despersonalização, devido às quais sente cada indivíduo a necessidade de distensão, de distracção, de mudança, especialmente no contacto com a natureza; e é também fenómeno "económico", fonte de bem-estar.

— Todavia, também o turismo, como todas as realidades humanas, é fenómeno ambíguo, quer dizer, útil e positivo, se dirigido e se dominado pela razão e por algum ideal; negativo, caso se transforme em simples fenómeno de consumismo, em frenesi, em atitudes alienantes e amorais, com dolorosas consequências para o indivíduo e para a sociedade.

— É por isso necessária também uma educação, individual e colectiva, para o turismo, a fim de que ele se mantenha sempre ao nível dum valor positivo de formação da pessoa humana, isto é, de justa e merecida distensão, de elevação do espírito, de comunhão com o próximo e com Deus. E pois necessária uma profunda e convicta educação humanística para o acolhimento, para o respeito do próximo, para a gentileza, para a compreensão recíproca e para a bondade; é necessária também uma educação ecológica, para o respeito do ambiente e da natureza. para o gozo são e sóbrio das belezas naturais, tão repousantes e elevantes para a alma sedenta de harmonia e serenidade; e é sobretudo necessária uma educação religiosa, para que o turismo não perturbe nunca as consciências e não abaixe nunca o espírito, antes, pelo contrário, o eleve, o purifique e o arraste até ao diálogo com o Absoluto e à contemplacão do mistério imenso que nos rodeia e atrai.

Esta a concepção do turismo à luz de Cristo, fenómeno irreversível e instrumento de concórdia e amizade.

3. Por fim, neste local singular, somos convidados todos a olhar para a figura de Santa Maria Goretti.

Não longe daqui, a 6 de Julho de 1902, deu-se a tragédia do seu assassínio, e ao mesmo tempo também a glória da sua subida à santidade mediante o martírio na defesa da sua pureza. Encontramo-nos junto da igreja a ela dedicada, onde repousam os seus restos mortais, e devemos parar um momento em silenciosa meditação.

Maria Goretti, adolescente de apenas doze anos, manteve-se pura deste mundo, como escreve São Tiago, a custo mesmo da própria vida; preferiu morrer, antes que ofender a Deus.

"Não — disse ao seu violento ássassino — É pecado! Deus não quer! Tu vais para o inferno".

Infelizmente a sua fé não conseguiu deter o tentador, que depois, graças ao seu perdão e à sua intercessão, se arrependeu e converteu. Ela, caiu mártir da sua pureza.

160 "Fortaleza da virgem — disse Pio XII —, fortaleza da mártir, que a juventude coloca numa luz mais viva e radiosa. Fortaleza que é ao mesmo tempo defesa e fruto da virgindade" (Pio XII, Discorsi e Radiomessaggi, IX, p. 46).

Maria Goretti, luminosa na sua beleza espiritual e na sua já conseguida eterna felicidade, convida-nos precisamente a termos fé firme e segura na "palavra de Deus", única fonte de verdade, e a sermos fortes contra as insinuantes e envolventes tentações do mundo. Uma cultura voluntariamente antimetafísica produz logicamente uma sociedade agnóstica e neopagã, apesar dos esforços louváveis de pessoas honestas e preocupadas com o destino da humanidade. O cristão está hoje sujeito a uma luta contínua, torna-se, ele também, "sinal de contradição", pelas opções que tem de realizar.

Exorto-vos especialmente a vós, meninas: olhai para Maria Goretti. Não vos deixeis seduzir pela aliciante atmosfera criada pela sociedade permissiva, que afirma tudo ser lícito. Segui Maria Goretti. Amai, vivei e defendei com alegria e coragem a vossa pureza. Não temais transportar a vossa limpidez ao meio da sociedade moderna, como facho de luz e ideal.

Com Pio XII dir-vos-ei: "Corações ao alto! Acima dos pântanos infectos e do lodo do mundo, estende-se um céu imenso de beleza. É o céu que fascinou a pequena Maria; o céu a que ela quis subir pelo caminho único que lá conduz: a religião, o amor a Cristo e a heróica observância dos seus mandamentos. Salve, ó suave e amável Santa! Mártir da terra e anjo do céu, lá da tua glória volve o olhar para este povo que te ama, que te venera, que te glorifica e te exalta!" (Pio XII, Discorsi e Radiomessaggi, XII, p. 122-123).

Irmãos caríssimos.

Maria Santíssima, tão amada e tão invocada por Maria Goretti, especialmente com o Santo Rosário, vos ajude a manter, sempre viva e fervorosa, a vossa identidade cristã, em toda a parte, em todas as realidades terrenas.

Um último pensamento me vem aqui espontâneo, hoje, 1° de Setembro, aniversário doloroso, que, para a consciência e a reflexão humana, tem ainda um significado de advertência profunda. Há 40 anos, no 1° de Setembro de 1939, um furacão de fogo e destruição caiu sobre a primeira Nação vitima, a Polónia, dando inicio ao incêndio cada vez mais extenso e cada vez mais devastador, da segunda guerra mundial. Deve esta lembrança estimular-nos à oração para obter da graça do Senhor que sejam afastadas as tentações — que aparecem entre os povos — das tensões e dos egoísmos, que chegam a levar naturalmente a formas de hostilidade e ódios que depois, só com dificuldade, se refreiam. Também Anzio e Nettuno, na Primavera de 1944, foram investidos por uma tempestade de fogo que se desencadeou, entre o céu e o mar, semeando a morte sobre esta risonha região; e enquanto a terra era disputada, palmo a palmo, durante alguns meses, entre as forças opostas, as populações. aterrorizadas perdiam muitas pessoas queridas, as próprias casas e o fruto dos suores empregados em lavrar os campos.

Peçamos ao Senhor pelo repouso de todos os que deram a vida pela liberdade e por aqueles que, obrigados a hostilizá-los, repousam agora acolhidos na mesma terra que os viu combaterem-se entre si; peçamos a Deus que nos preserve a nós, e preserve a humanidade inteira, do flagelo da guerra, que, se houvesse de voltar, tomaria dimensões dum apocalipse ainda mais terrível. A misericórdia de Deus dê paz aos mortos e à nossa geração; e em particular aos jovens, que assomam à vida, uma corajosa e convicta adesão aos ideais de colaboração e de paz.



VISITA PASTORAL À IGREJA DE NOSSA SENHORA DO LAGO


Castel Gandolfo, 2 de Setembro de 1979




Caríssimos Fiéis

No dia da solenidade da Assunção de Maria Santíssima de 1977, a vossa Paróquia esteve toda em festa: o Papa Paulo VI veio com grande alegria celebrar a Santa Missa nesta Igreja do Lago, que desejara mandar erigir aqui, nestas margens, para o bem dos fiéis aqui moradores e dos turistas... Era a realização dum desejo vivo, filho do seu zelo pastoral. E assim podemos dizer que também esta igreja — como toda a sua infatigável obra doutrinal, disciplinar e diplomática — demonstra de maneira convincente que Paulo VI teve única e constantemente um intento pastoral, quer abarcando a Igreja universal e toda a humanidade. quer em particular Roma, a Diocese de Albano e esta cidade de Castel Gandolfo sua residência de verão.

161 Assim encontro-me aqui convosco; esta manhã, primeiro que tudo para honrar uma vez mais a pessoa do meu dilecto Predecessor e para lhe agradecer todo o bem que realizou, no meio de tantas dificuldades e exigências, e depois para me encontrar convosco pessoalmente à volta do altar do Senhor nesta igreja nova e moderna.

Recebei portanto a minha saudação cordial, que nasce do afecto que sinto por vós, fazendo também eu parte desta Comunidade durante os meses de verão; saudação que de boa vontade torno extensiva aos enfermos. às pessoas idosas e a todos quantos não se encontram presentes. Convosco de modo especial dirijo o meu pensamento de gratidão ao Bispo, Dom Gaetano Bonicelli, ao Pároco, aos seus colaboradores e a todas as Autoridades que desejaram participar neste encontro de fé e de oração.

Hoje propõe-nos a Liturgia um argumento muito importante e interessante: a vida moral do cristão. É tema de valor essencial, especialmente hoje na sociedade moderna.

1. O cristão sabe que o objectivo da vida é a felicidade.

De facto, a razão e a Revelação afirmam categoricamente que nem o universo nem o homem são auto-suficientes e autónomos. A grande filosofia perene demonstra a necessidade absoluta dum Primeiro Princípio, incriado e infinito, Criador e Senhor do universo e do homem. E a Revelação de Cristo, Verbo Encarnado, fala-nos de Deus que é Pai, Amor, Trindade Santíssima.

Surge imediatamente a pergunta: porque nos criou Deus?

A resposta é metafisicamente segura: Deus criou o homem para o tornar participante da sua felicidade. O bem é difusivo; e Deus, que é absoluta e perfeita felicidade, criou o homem só para Si mesmo, isto é, para a felicidade. Felicidade gozada já em parte no período da vida terrena, e depois em totalidade no além, no Paraíso.

Recordemos o que disse Jesus aos Apóstolos: Disse-vos isto para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena (
Jn 15,11).

Recordemos também o que escrevia São Paulo aos Romanos: Penso que os sofrimentos do mundo presente não são comparáveis à glória futura que deverá ser revelada em nós (Rm 8,18). Assim, desejava São João que a alegria dos cristãos fosse perfeita (Cfr. 1Jn 1,14). Se a mentalidade moderna duvida e hesita ao procurar o significado último da razão por que devemos nascer, viver e morrer depois de experiências tão dramáticas e dolorosas, eis que Jesus vem iluminar-nos e certificar-nos sobre o verdadeiro sentido da vida: Eu sou a luz do mundo; quem me segue, não anda nas trevas mas terá a luz da vida (Jn 8,12).

Jesus certifica-nos que o homem nasceu para a felicidade, porque é criatura de Deus, felicidade infinita.

2. O cristão conhece o caminho para atingir a felicidade.

162 Uma vez assente a finalidade da vida, fica o problema de a atingir, ou seja de não errar no caminho, de conquistar verdadeiramente a felicidade que forma a ansiedade e o tormento do homem. E Deus, que é bondade e sabedoria infinita, não podia deixar o homem à mercê das dúvidas e das paixões que o agitam. De facto, o Senhor indicou o caminho seguro para a consecução da felicidade na lei moral, expressão da sua vontade criadora e salvífica, isto nos dez mandamentos, inscritos na consciência de cada homem, manifestados historicamente ao povo hebraico e aperfeiçoados pela mensagem evangélica.

O que dizia Moisés ao povo eleito vale para todos os homens: Observareis os mandamentos do Senhor vosso Deus que eu vos prescrevo e pô-los-eis em prática, porque esta será a vossa sabedoria e a vossa inteligência aos olhos dos povos (
Dt 4,6).

E Jesus insiste: Se me amais, observareis os meus mandamentos... Quem recebe os meus mandamentos e os observa, esse é quem me ama (Jn 14,15 Jn 21).

São João numa das suas cartas adverte ainda que o amor a Deus, fonte e garantia da verdadeira felicidade, não é vago e sentimental, mas concreto e prático: Nisto consiste o amor de Deus, em observar os seus mandamentos; e os seus mandamentos não são pesados (1Jn 5,3). Quem transgride, consciente e deliberadamente, a lei de Deus, vai fatalmente encontrar a infelicidade. Mas o cristão, em vez disso, possui o segredo da felicidade.

Com palavras de sabedoria, Paulo VI assim se expressava: "Se sou cristão, possuo a chave interpretativa da vida verdadeira, a felicidade suma, o bem superior, o primeiro grau da verdadeira existência, a minha intangível dignidade e a minha inviolável liberdade" (Paulo VI, Insegnamenti, vol. X,, 1972, p. 773).

3. Por fim, o cristão caminha com Cristo para a felicidade São Tiago na sua carta exorta a caminharmos com ânimo e presteza por este caminho da felicidade: Acolhei com docilidade a palavra que foi semeada em vós e pode salvar as vossas almas. Sede daqueles que põem em prática a palavra e não apenas a ouvem, iludindo-vos a vós mesmos (Jc 1,22).

E Jesus insiste na coerência cristã: não bastam as afirmações e as cerimónias externas; é necessária a vida coerente, uma religião pura e sem mancha (Jc 1,27), a prática da lei moral.

Não é fácil caminhar para a felicidade.

O próprio Jesus nos avisa: Que estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida, e quão poucos são os que a encontram! (Mt 7,14). Mas que horizontes desvela este caminho! O cristão torna-se participante da própria vida trinitária mediante a graça; tem c modelo em Jesus e uma força na Sua presença; e na luta quotidiana para observar a lei moral, alimenta-se do Pão Eucarístico, alimenta-se na oração e abandona-se com confiança entre os braços de Cristo, mestre e amigo.

O caminho para a felicidade, embora às vezes trabalhoso e difícil, torna-se então acto constante de amor a Cristo, que nos acompanha e nos espera.

Caríssimos fiéis:

163 Percorrei também vós com ânimo e amor este caminho para a felicidade e dai exemplo ao mundo, que, fechando os olhos à luz da verdade, se encontra às vezes desorientado como num labirinto dramático.

Paulo VI, naquele domingo de festa recordado no princípio, vendo, aproximar-se a soleira do além, aproveitou a ocasião para saudar-vos a todos e confiar-vos a Maria Santíssima: "Abençoe-vos o nome de Maria!". Assim concluiu a sua comovida homilia. Com a recordação e o ensinamento dele, também eu vos abençoo, confiando-vos a Maria, Mãe de Jesus e Mãe da Igreja.



Homilias JOÃO PAULO II 153