Homilias JOÃO PAULO II 188

188 4. Esta tarde quero repetir-vos quanto julgo dever afirmar aos jovens: vós sois o futuro do mundo, e "o amanhã pertence-vos". Desejo chamar à vossa memória os encontros tidos pelo próprio Jesus com os jovens do seu tempo. Os Evangelhos conservam-nos interessantes passagens da conversa de Jesus com um rapaz. Lemos que ele pôs a Jesus uma das questões fundamentais que a juventude em todo o lugar se propõe: Que coisa devo fazer...? (Mc 10,17), recebendo uma resposta precisa e penetrante: Então Jesus olhou para ele com amor e disse-lhe...: Vem, e segue-me (Mc 10,21). Mas vede o que sucede: o jovem, que tinha mostrado tanto interesse no problema fundamental, afastou-se triste, porque tinha muitas posses (Mc 10,22). Sim, afastou-se e — como pode deduzir-se pelo contexto — recusou aceitar o chamamento de Cristo.

Na sua concisa eloquência, este acontecimento, penetrante até ao fundo, exprime uma grande lição em poucas palavras: toca problemas substanciais e questões basilares que de modo algum perderam importância. Por toda a parte se põem os jovens questões fundamentais: perguntas sobre o significado da vida, sobre o recto modo de viver, sobre a verdadeira escala de valores: "Que devo fazer? Que fazer para alcançar a vida eterna?". Estas interrogações dão testemunho dos vossos pensamentos, das vossas consciências, dos vossos corações e das vossas vontades. Dizem ao mundo que vós, vós jovens, trazeis dentro do peito uma especial abertura a tudo quanto é bom e verdadeiro. Esta abertura, em certo sentido, constitui uma "revelação" do espírito humano. E nesta abertura à verdade, à bondade e à beleza cada um de vós pode reencontrar-se á si mesmo; por este motivo vós podeis, nessa abertura, experimentar em certa medida aquilo que experimentou o jovem do Evangelho: Jesus olhou para ele com amor (Mc 10,21).

5. A cada um de vós digo eu agora: escutai a chamada de Cristo quando ouvirdes que Ele vos diz: "Segue-me", anda sobre as minhas pegadas. Está ao meu lado! Permanece no meu amor! — uma opção que se deve fazer: a opção por Cristo e pelo modelo de vida que apresenta, pelo seu mandamento de amor!

A mensagem de amor trazida por Cristo é sempre importante, sempre interessante. Não é difícil ver como o mundo moderno — não obstante a sua beleza e grandeza, não obstante as conquistas da ciência e da tecnologia, não obstante os procurados e abundantes bens materiais que oferece — está desejoso de mais verdade, de mais amor, de mais alegria. E tudo isto se encontra em Cristo e no modelo de vida que apresenta.

Engano-me, porventura, quando digo a vós, jovens católicos, que faz parte da vossa tarefa no mundo e na Igreja revelar o verdadeiro significado da vida, lá onde o ódio, o desleixo e o egoísmo ameaçam subverter o mundo? Frente a estes problemas e a estas desilusões, muitos tentarão escapar às próprias responsabilidades, refugiando-se no egoísmo, nos prazeres sensuais, na droga, na violência, no indiferentismo ou em atitudes de cinismo. Mas hoje eu proponho-vos uma opção de amor, que é o oposto da fuga. Se vós realmente aceitardes este amor que vem de Cristo, ele, vos conduzirá a Deus. Talvez dentro do sacerdócio ou na vida religiosa; talvez em qualquer especial serviço a desempenhar em favor dos vossos irmãos e irmãs, em particular aos necessitados, aos pobres, a quem está sozinho, aos marginalizados, àqueles cujos direitos foram conculcados e àqueles que viram as próprias exigências fundamentais frustradas. Seja o que foro que venhais a fazer da vossa vida, empenhai-vos em que forme um reflexo do amor de Cristo. Todo o povo de Deus ficará enriquecido com a diversidade dos vossos esforços. Em tudo o que fizerdes, recordai-vos que vos chama Cristo, de uma maneira ou doutra, a um serviço de amor: amor de Deus e do próximo.

6. E, agora, regressando à narração do jovem do Evangelho, nós vemos que ele ouve a chamada "Segue-me!", mas "foi-se embora triste, porque tinha muitas posses".

A tristeza deste jovem leva-nos a reflectir. Poderemos ser tentados a pensar que ter muitas coisas, muitos bens deste mundo, pode tornar-nos felizes. Vemos, pelo contrário, no caso do jovem do Evangelho, que as muitas riquezas se tornaram obstáculo à aceitação do chamamento de Jesus a segui-1'O. Não estava disposto a dizer sim a Jesus, e não a si mesmo; a dizer sim ao amor, e não à fuga!

O verdadeiro amor é exigente. Seria trair a minha missão se não vo-lo dissesse com toda a clareza. Porque foi Jesus — o nosso mesmo Jesus — a dizer: Vós sereis meus amigos se fizerdes o que Eu vos mando (Jn 15,14). O amor requer esforço e compromisso pessoal no cumprimento da vontade de Deus. Significa disciplina e sacrifício, mas significa também alegria e realização humana.

Queridos jovens, não tenhais medo de um esforço honesto e de honesto trabalho; não tenhais medo da verdade. Com a ajuda de Cristo e através da oração, vós podeis responder à sua chamada, resistindo às tentações, aos entusiasmos passageiros e a toda a forma de manipulação de massa. Abri os vossos corações a este Cristo do Evangelho, ao seu amor, à sua verdade, à sua alegria. Não vades embora tristes!

E, como última palavra a vós todos que me escutais esta tarde, queria dizer-vos isto: o motivo desta minha missão, da minha viagem através dos Estados Unidos é dizer-vos, e dizer a cada um — jovens e anciãos — dizer a cada um em nome de Cristo: "Vem e segue-me!".

Segui a Cristo! vós esposos: comunicai o vosso amor como também os pesos que levardes, respeitai a dignidade humana da vossa esposa; aceitai com alegria a vida que Deus vos confiar; tomai estável e seguro o vosso matrimónio por amor dos vossos filhos.

189 Segui a Cristo: vós ainda solteiros ou que estais preparando o vosso matrimónio. Segui a Cristo! vós jovens ou anciãos. Segui a Cristo! vós doentes ou que vos sentis envelhecidos; vós que sofreis ou estais aflitos; vós que sentis a necessidade de cuidados, a necessidade de amor, a necessidade de um amigo: segui a Cristo!

Em nome de Cristo faço chegar a vós todos o chamamento, o convite e o apelo: Vem e segue-me. Para isto vim à América e para isto estou esta tarde aqui em Boston: para vos chamar a Cristo, para chamar todos e cada um de vós a viver no seu amor, hoje e sempre. Amen!



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

SANTA MISSA NO «YANKEE STADIUM»



Nova Iorque, 2 de Outubro de 1979




1. A paz esteja convosco!

Foram estas as primeiras palavras que Jesus dirigiu aos Apóstolos depois da ressurreição. Com estas palavras tornou Cristo Ressuscitado a levar a paz aos seus corações, quando estes estavam ainda num estado de forte emoção, a seguir à primeira terrível experiência da Sexta-Feira Santa. Esta tarde, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e pela força do Seu Espírito, no coração dum mundo que está preocupado com a sua própria existência, repito eu as mesmas palavras dirigindo-as a vós, porque são palavras de vida: "A paz esteja convosco!".

Jesus não nos deu simplesmente a paz. Deu-nos a Sua Paz, acompanhada pela Sua Justiça. Ele torna-se a nossa Paz e a nossa Justiça.

Que significa isto? Significa que Jesus Cristo — o Filho de Deus feito homem, o homem perfeito — completa, restabelece e manifesta em si mesmo a insuperável dignidade que Deus quer dar ao homem desde o princípio. Realiza em si mesmo o que o homem é chamado a ser: aquele que esteja de todo reconciliado com o Pai, aquele que esteja em plenitude unificado em si mesmo e completamente dado aos outros. Jesus Cristo é a Paz viva e a Justiça viva.

Jesus Cristo torna-nos capazes de participarmos do que Ele é. Por meio da sua Encarnação, o Filho de Deus une-se em certo modo com todo o ser humano. No nosso ser interior reconciliou-nos com Deus, reconciliou-nos com os outros, reconciliou-nos com os nossos irmãos e com as nossas irmãs: ele é a nossa Paz.

2. Que insondáveis riquezas temos em nós, e nas nossas comunidades cristãs! Somos portadores da Justiça e da Paz de Deus. Não somos acima de tudo os activos construtores da justiça e da paz simplesmente humanas, sempre perecedoiras e sempre frágeis. Somos, em primeiro lugar, os humildes beneficiados pela verdadeira vida de Deus, que é Justiça e Paz no vínculo da Caridade. Durante a Santa Missa, quando o sacerdote nos saúda com as palavras "A paz do Senhor esteja convosco", devemos pensar principalmente nesta Paz que é dom de Deus: Jesus Cristo, a nossa Paz. E quando, antes da Comunhão, o sacerdote nos convida a trocarmos entre nós um sinal de paz, devemos pensar sobretudo que somos convidados a trocar mutuamente a Paz de Cristo, de Cristo que permanece em nós e nos convida a participarmos no Seu Corpo e no Seu Sangue, para nossa alegria e para serviço a toda a humanidade.

Porque a Justiça e a Paz de Deus exigem que demos fruto na obra humana da justiça e da paz, em todas as esferas da vida de hoje. Quando nós cristãos pomos Jesus Cristo no centro dos nossos sentimentos e dos nossos pensamentos, não nos alheamos do próximo e das necessidades do próximo. Pelo contrário, somos integrados no movimento eterno do amor de Deus que vem ao nosso encontro; somos arrastados no movimento do Filho, que veio ao meio de nós, que se tornou um de nós; somos arrastados no movimento do Espírito Santo, que visita os pobres, aplaca os corações perturbados, alivia os corações feridos, aquece os corações frios e nos dá a plenitude dos seus dons. A razão por que o homem é o primeiro e fundamental caminho, que a Igreja segue, está em caminhar a Igreja seguindo as passadas de Cristo: foi Jesus que lhe mostrou o caminho. Este caminho passa de modo infalível através do mistério da Encarnação e da Redenção; leva de Cristo até ao homem. A Igreja olha para o mundo precisamente através dos olhos de Cristo: Jesus é o princípio da sua solicitude pelo homem (Cfr. Redemptor Hominis RH 13-19).

3. É tarefa imensa. É fascinadora. Acabo de pôr em evidência alguns aspectos dela ao falar diante da Assembleia Geral das Nações Unidas, outros hei-de tocar durante a minha viagem apostólica no vosso País.

190 Hoje, consenti-me que insista no espírito e natureza do contributo, que a Igreja oferece para a causa da Justiça e da Paz, e que recorde algumas prioridades urgentes sobre as quais o vosso serviço à humanidade se deverá concentrar actualmente.

O pensamento social e a prática social, quando se inspiram no Evangelho, devem sempre caracterizar-se por especial sensibilidade a respeito daqueles que se encontram nas situações mais penosas: os pobres, os que sofrem por causa de todos os males físicos, psíquicos e morais que afligem a humanidade, incluindo os famintos, os marginalizados, os desempregados e os sem esperança. Há tanta pobre gente deste tipo no mundo! Há tanta no meio de vós! Em muitas ocasiões, o vosso País mereceu bem justificada reputação pela generosidade, tanto pública como privada. Sede fiéis a esta tradição, estando à altura das vossas grandes possibilidades e das presentes responsabilidades. A rede de obras caritativas de toda a espécie, que a Igreja conseguiu implantar aqui, é preciosa exigência para mobilizar com eficácia generosos empreendimentos, destinados a dar alívio às situações de mal-estar que se multiplicam, tanto aqui como em todas as partes do mundo. Fazei um esforço para assegurar-vos que esta forma de auxílio mantenha o seu insubstituível carácter de encontro fraterno e pessoal com aqueles que se vêem em estado de necessidade; sendo preciso, restabelecei este carácter, apesar de todos os factores que actuem em sentido contrário. Seja esta forma de auxilio respeitadora da liberdade e da dignidade daqueles que são ajudados; seja meio para formar as consciências de quem dá.

4. Isto porém não basta. Na ossatura das vossas instituições nacionais e em colaboração com todos os vossos compatriotas, deveis procurar as razões estruturais que alimentam ou causam as várias formas de pobreza, no mundo e no vosso País, de maneira que chegueis a aplicar os remédios convenientes. Não permitais que vos intimidem ou desanimem explicações simplistas, que são mais ideológicas que científicas, explicações que procuram descrever um mal complexo apresentando uma causa só. Mas não hesiteis diante das reformas — especialmente das profundas — de atitudes e estruturas, que possam revelar-se necessárias para criar de novo as condições de que precisam os desprotegidos da sorte, a fim de encontrarem uma oportunidade eficaz na luta dura pela vida. Os pobres dos Estados Unidos e de todo o mundo são vossos irmãos e vossas irmãs em Cristo. Não deveis nunca contentar-vos com deixar-lhes as migalhas do banquete. Deveis ir tirar ao vosso remedeio, e não à abundância, para ajudá-los. E deveis tratá-los como hóspedes à vossa mesa.

5. Católicos dos Estados Unidos, quando fazeis progredir as vossas legitimas instituições, participais ao mesmo tempo no desenvolvimento da nação; quanto às instituições e organizações que brotam da história comum nacional e das vossas actividades comuns. Costumais fazer assim, dando a mão aos vossos compatriotas de qualquer fé e confissão religiosa. A união entre vós em tudo o que é essencial, sob a direcção dos vossos Bispos, para aprofundar, proclamar e promover realmente a verdade sobre o homem, sobre a sua dignidade e sobre os seus direitos inalienáveis, a verdade assim como a Igreja a recebe na Revelação e sem cessar a desenvolve na sua doutrina social, à luz do Evangelho. Estas convicções não constituem porém modelo pré-fabricado para a sociedade (Cfr. Octogesima Adveniens, 42). É principalmente tarefa dos leigos levar à prática os projectos concretos, definir as prioridades e aplicar os modelos que sejam convenientes para que se promova o bem verdadeiro do homem. A Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes diz-nos que: "Dos Sacerdotes devem os leigos esperar a luz e força espiritual. Mas não pensem que os seus pastores sejam de tal forma peritos que possam dar-lhes uma solução concreta e imediata para todos os problemas, mesmo graves, que se lhes deparem, ou que seja essa a sua missão: mas antes, que iluminem pela sabedoria cristã e prestando fiel atenção ao ensinamento do Magistério, assumam os leigos, eles próprios, as suas responsabilidades (Gaudium et Spes
GS 43).

6. Para levar este empreendimento a feliz conclusão, é necessária viva energia espiritual e moral, haurida na inexaurível fonte divina. Esta energia não se expande facilmente. O estilo de vida de muitos membros da nossa sociedade, rica e permissiva, é cómodo, e tal é também o estilo de vida dum número cada vez maior de pessoas nos Países mais pobres. Como eu disse o ano passado à Assembleia Plenária da Pontifícia Comissão Justitia et Pax: "Os cristãos quererão estar na vanguarda, favorecendo modos de vida que finalmente acabem por interromper o frenesi do consumismo, triste e debilitante" (Discurso à Assembleia Plenária da Pontifícia Comissão Justitia et Pax; L'Oss. , Rm 4). Não se trata de retardar o progresso, porque não há verdadeiro progresso humano quando todas as coisas concorrem para favorecer o instinto do interesse egoísta, o do sexo e o do poder. Devemos encontrar um modo de viver simples. Porque não é justo que se procure manter inalterado o nível de vida dos Países ricos, concentrando a maior parte das energias e das matérias-primas, que são destinadas a servir para toda a humanidade. Porque a rapidez em criar maior e mais justa solidariedade entre os povos, é a primeira condição da paz. Os católicos dos Estados Unidos e todos vós, cidadãos dos Estados Unidos, tendes tal tradição de generosidade espiritual, de actividade, de simplicidade e de sacrifício, que não podeis fugir a prestar atenção a. este apelo de hoje, em favor dum renovado entusiasmo e duma nova determinação. É na alegre simplicidade de vida, inspirada pelo Evangelho e pelo espírito evangélico de fraterna partilha, que encontrareis o remédio melhor contra o áspero criticismo, a dúvida paralisante e a tentação de ver no dinheiro o instrumento principal e a verdadeira medida do progresso humano.

7. Em diversas ocasiões, recordei a parábola evangélica do rico e de Lázaro. Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente. Um pobre, chamado Lázaro, jazia ao seu portão, coberto de chagas. Bem desejava ele saciar-se do que caía da mesa do rico (Lc 16,19 ss.). Tanto o rico, como o mendigo, morreram e foram ambos levados diante de Abraão; a sentença foi dada conforme se comportara cada um. A Sagrada Escritura diz-nos que Lázaro encontrou consolação, ao passo que o rico encontrou tormento. Foi condenado o rico acaso porque foi rico, porque teve na terra abundantes propriedades, porque "se vestia de púrpura e linho fino e vivia os dias regalada e esplendidamente"? Não, diria que não o foi por este motivo. O rico foi condenado porque não prestou atenção ao outro homem. Porque se descuidou em informar-se sobre Lázaro, a pessoa que jazia sua porta, desejosa de saciar-se do que caía da mesa. Cristo não condena nunca a posse pura e simples dos bens materiais. Mas pronuncia palavras muito severas contra os que usam dos seus bens materiais de modo egoísta, sem atenderem às necessidades dos outros. O Sermão da Montanha começa com as palavras: "Bem-aventurados os pobres de espírito". E, no termo do balanço do juízo final, como se lê no Evangelho de São Mateus, Jesus diz as palavras que bem conhecemos: Tive fome e não Me destes de comer, tive sede e não Me destes de beber; era peregrino e não Me recolhestes; estava nu e não Me vestistes; enfermo e na prisão, e não fostes visitar-Me (Mt 25,42-43).

A parábola do rico e de Lázaro deve estar continuamente presente na nossa memória; deve formar a nossa consciência. Cristo pede que sejamos abertos aos nossos irmãos e às nossas irmãs que estão em necessidade: pede aos ricos, aos de boa posição, aos que se encontram economicamente beneficiados, que sejam abertos aos pobres, aos subdesenvolvidos e aos prejudicados. Cristo reclama uma abertura que é mais que atenção benévola, mais que actos simbólicos ou de activismo desprendido, mas que deixam o pobre, indigente como antes, se não mais ainda.

Toda a humanidade deve pensar na parábola do rico e do mendigo. A humanidade deve traduzi-la em termos contemporâneos, em termos de economia e de política, em termos de todos os direitos humanos, em termos de relações entre o "Primeiro", o "Segundo" e o "Terceiro Mundo". Não podemos estar ociosos, enquanto milhares de seres humanos morrem de fome. Nem podemos ficar indiferentes, enquanto os direitos do espírito humano são espezinhadas, enquanto se faz violência à consciência humana em matéria de verdade, de religião e de criatividade cultural.

Não podemos estar ociosos alegrando-nos com as nossas riquezas e a nossa liberdade, se, em qualquer lado, o Lázaro do século XX jaz à nossa porta. A luz da parábola de Cristo, a riqueza e a liberdade trazem especial responsabilidade. A riqueza e a liberdade criam especial obrigação. E assim, em nome da solidariedade que nos une, todos simultaneamente, numa comum humanidade, proclamo de novo a dignidade de cada pessoa humana: o rico e Lázaro são ambos seres humanos, ambos criados à imagem e semelhança de Deus, ambos igualmente remidos por Cristo a alto preço, ao preço do sangue precioso de Cristo (1P 1,19).

8. Irmãos e Irmãs em Cristo, com profunda convicção e afeição repito-vos as palavras que dirigi ao mundo quando aceitei o meu ministério apostólico ao serviço dos homens todos e de todas as mulheres: "Não tenhais medo! Abri, escancarai as portas a Cristo! Ao Seu poder salvífico abri os confins dos Estados, os sistemas económicos como também os políticos, os vastos campos da cultura, da civilização e do desenvolvimento. Não tenhais medo! Cristo sabe 'o que está dentro do homem'. Só Ele o sabe!" (Homilia no início do Pontificado; L'Oss. Rom. , Rm 1-2).

Como vos disse no princípio, Cristo é a nossa Justiça e a nossa Paz. E todas as nossas obras de justiça e de paz vão buscar a esta fonte a insubstituível energia e a luz, para a grande missão que nos espera. Dedicando-nos resolutamente ao serviço de todas as carências dos indivíduos e dos povos — uma vez que nos impele Cristo a fazê-lo —, apesar disso havemos de recordar-nos que a missão da Igreja não se limita a este testemunho da fecundidade social do Evangelho. Percorrendo a Igreja a estrada que a leva ao homem, a Igreja não oferece, no campo da justiça e da paz, unicamente os frutos terrenos do Evangelho: traz ao homem — a cada pessoa humana — a sua verdadeira nascente: Jesus Cristo em pessoa, nossa Justiça e nossa Paz.

VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

SANTA MISSA NO «LOGAN CIRCLE»



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Filadélfia, 3 de Outubro de 1979




Queridos irmãos e irmãs
da Igreja que está em Filadélfia

1. Constitui grande alegria para mim celebrar a Eucaristia convosco hoje. Todos estamos reunidos numa só comunidade, num só povo, na graça e na paz de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo; estamos reunidos em companhia do Espírito Santo. Reunimo-nos a fim de proclamar o Evangelho em todo o seu poder, porque o Sacrifício Eucarístico é o ponto culminante e ratificação daquilo que proclamámos.

Cristo morreu, Cristo ressuscitou e Cristo virá ainda! Deste altar do Sacrifício, eis que se levanta um hino de louvor e de acção de graças a Deus por meio de Cristo. Nós, que pertencemos a Cristo, somos todos parte deste hino, deste sacrifício de louvor. O sacrifício do Calvário renova-se neste altar, e torna-se também a nossa oferta, oferta pelos vivos e pelos defuntos, pela Igreja universal.

Unidos na caridade de Cristo, somos todos nós uma só coisa neste Sacrifício: o Cardeal Arcebispo, chamado a guiar esta Igreja pelo caminho da verdade e do amor; os seus Bispos auxiliares e o clero diocesano e religioso, que participam com os Bispos na pregação da palavra; religiosos, homens e mulheres, que por meio da consagração das suas vidas mostram ao mundo o que significa ser fiel à mensagem das Bem-aventuranças; pais e mães, com a sua alta missão de reforçar a Igreja no amor; todas as categorias do laicado, com os encargos que devem exercer na missão de evangelizar e salvar, que é própria da Igreja. Este Sacrifício oferecido hoje em Filadélfia é a expressão da nossa oração comunitária. Em união com Jesus Cristo levantamos a nossa súplica pela Igreja universal, pelo bem-estar de todos os nossos companheiros e todas as nossas companheiras, e hoje, em particular, pela salvaguarda de todos os valores humanos e cristãos, que formam o património desta terra, desta região e desta cidade.

2. Filadélfia é a cidade da Declaração da Independência, daquele importante documento que encerra solene proclamação da igualdade de todos os seres humanos, dotados pelo seu Criador de direitos fundados e inalienáveis: a vida, a liberdade e a busca da felicidade, que exprime "firme confiança na protecção da divina Providência". Estes constituem os sãos princípios morais formulados pelos vossos Pais Fundadores e conservados para sempre na vossa história. Nos valores humanos e civis que estão encerrados no espírito desta Declaração, reconhecem-se facilmente fortes laços com valores fundamentais, religiosos e cristãos. Também o sentimento religioso faz parte dessa herança. O Sino da Liberdade, que admirei noutra ocasião, reproduz as palavras da Bíblia: Proclamareis a libertação no país (
Lv 25,10). Esta tradição lança, para todas as futuras gerações da América, um nobre desafio: "Nação posta sob a protecção de Deus, invisível, com liberdade e justiça para todos".

3. Como cidadãos, deveis esforçar-vos por conservar estes valores humanos, por compreendê-los melhor e por lhes clarificar as consequências sobre a comunidade inteira, como também o seu digno contributo para o mundo. Como cristãos, deveis reforçar estes valores humanos e completá-los confrontando-os com a mensagem do Evangelho; deste modo podereis descobrir os seus significados mais profundos, e assim podereis mais plenamente satisfazer os vossos encargos e as vossas obrigações quanto aos seres humanos vossos semelhantes, a que estais unidos por comum destino. Sempre, para nós que temos conhecimento de Jesus Cristo, os valores humanos e cristãos são apenas os dois aspectos da mesma realidade: a realidade do homem, remido por Cristo e chamado à plenitude da vida eterna.

Na minha primeira Carta Encíclica expliquei esta importante verdade: "Cristo, Redentor do mundo, é Aquele que penetrou, de uma maneira singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e entrou no seu 'coração'. Justamente, portanto, o mesmo II Concílio do Vaticano ensina: 'Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem, Adão; de facto, o primeiro homem, era figura do futuro (Rm 5,14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, que é novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocação sublime' " (Redemptor Hominis RH 8).

É por isso que em Jesus Cristo todos os homens, mulheres e crianças são chamados a encontrar a resposta às perguntas sobre os valores que hão-de inspirar as suas relações pessoais e sociais.

4. Como pode portanto um cristão, inspirado e guiado pelo mistério da Encarnação e Redenção de Cristo, reforçar os seus próprios valores e os que estão compreendidos na herança desta nação? A resposta a esta pergunta, para ser exaustiva, teria de ser longa. Permiti-me, portanto, tocar eu somente os pontos mais importantes. Estes valores são reforçados: quando o poder e a autoridade se exercem no pleno respeito de todos os direitos fundamentais da pessoa humana, cuja dignidade é a dignidade de quem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26); quando a liberdade é aceita, não em absoluto e por si mesma, mas como dom que permite a doação de si e o serviço aos outros; quando a família é protegida e reforçada; quando a sua unidade é preservada; e quando é reconhecido e honrado o seu papel de célula fundamental da sociedade. Os valores humano-cristãos são estimulados quando é realizado todo o esforço a fim de que nenhuma criança, em parte alguma do mundo, encontre a morte por falta de alimento, ou vá depaurando as suas possibilidades intelectuais e físicas por insuficiência de alimentação, ou tenha de conservar por toda a vida os sinais das privações sofridas. Os valores humano-cristãos triunfam quando é corrigido qualquer sistema que permite o desfrute de qualquer ser humano; quando nos servidores públicos são encorajadas a integridade e a honestidade; quando quem administra a justiça é leal e imparcial; quando se dá uso responsável dos recursos materiais e energéticos do mundo, recursos que são destinados ao bem de todos; quando o ambiente é conservado intacto para as gerações futuras. Os valores humano-cristãos triunfam quando as decisões políticas e económicas aceitam o primado da dignidade humana, quando estas são tomadas para servir o homem: cada pessoa criada por Deus, cada irmão e cada irmã remidos por Cristo.

192 5. Recordei a Declaração da Independência e a Campanha da Liberdade, dois monumentos que exemplificam o espírito de liberdade sobre o qual este País é fundado. Tal dedicação à liberdade faz parte de vossa herança. Quando o Sino da Liberdade soou pela primeira vez em 1776, foi para anunciar a liberdade da vossa Nação, o início da busca de um comum destino independente de qualquer coacção exterior. Este princípio da liberdade é o princípio supremo na ordem política e social, nas relações entre o Governo e o povo, nas relações interpessoais. Além disso, a vida do homem é vivida também noutra ordem de realidades: na ordem relacionada com aquilo que é objectivamente verdadeiro e moralmente bom. A liberdade obtém. assim significado mais profundo, adquirindo referência à pessoa humana. Diz respeito em primeiro lugar à relação do homem consigo mesmo. Cada pessoa humana, dotada de razão, é livre quando é senhora das suas próprias acções, quando está em condição de preferir aquele bem que está em conformidade com a razão, e por conseguinte, com a sua própria dignidade humana.

A liberdade não pode nunca tolerar ofensa alguma contra os direitos dos outros, e um dos direitos fundamentais do homem é o direito de adorar a Deus. Na Declaração sobre a Liberdade Religiosa, o Concilio Vaticano II estabeleceu que "a exigência de liberdade na sociedade humana se refere, sobretudo, aos bens do espírito humano, especialmente aos que dizem respeito ao livre exercício da religião na sociedade... Ora, como a liberdade religiosa, que os homens exigem para cumprimento do dever de prestar culto a Deus, diz respeito à imunidade de coacção na sociedade civil, deixa integra a doutrina tradicional católica acerca do dever moral dos homens e sociedades para com a verdadeira Religião e a única Igreja de Cristo" (Dignitatis Humanae
DH 1).

6. O próprio Deus uniu a liberdade com o conhecimento da verdade. Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á (Jn 8,32). Na minha primeira Encíclica, escrevi a este propósito: "Estas palavras encerram em si uma exigência fundamental e, ao mesmo tempo, uma advertência: a exigência de uma relação honesta para com a verdade, como condição de uni, autêntica liberdade; e advertência, ademais, para que seja evitada qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficial e unilateral, toda a liberdade que não compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e sobre o mundo" (Redemptor Hominis RH 12).

A liberdade, por conseguinte, só pode ser compreendida se relacionada com a verdade revelada por Jesus Cristo, e proposta pela sua Igreja, nem pode ser tomada como pretexto para a anarquia moral, porque toda a ordem moral deve permanecer ligada à verdade. São Pedro, na sua primeira carta, diz: Comportai-vos como homens livres, não como aqueles que fazem da liberdade um como véu para encobrir a malícia (1P 2,16). Nenhuma liberdade pode existir quando é dirigida contra o homem naquilo que ele é, ou contra o homem na sua relação com os outros e com Deus.

Vem isto especialmente a propósito ao considerar-se a esfera da sexualidade humana. Aqui, como em qualquer outro campo, não pode existir verdadeira liberdade sem respeito pela verdade relativa à sexualidade humana e ao matrimónio. Na sociedade de hoje, vemos muitas correntes de ideias que trouxeram desordem e muito relaxamento quanto à visão cristã da sexualidade, correntes que encerram todas uma coisa de comum: o recurso ao conceito de liberdade para justificar todo o comportamento que não está exactamente em harmonia com a verdadeira ordem moral e com o ensinamento da Igreja. As normas morais não são obstáculo pára a liberdade da pessoa ou do casal; pelo contrário, elas existem precisamente em favor desta liberdade, uma vez que foram impostas para assegurar o uso recto da liberdade.

Quem quer que se recuse a aceitar estas normas ou a agir em conformidade com elas, quem quer que procure libertar-se a si mesmo destas normas; não é verdadeiramente livre. Livre, pelo contrário, é a pessoa que regula o próprio comportamento de acordo com as exigências do bem objectivo. O que disse aqui refere-se ao conjunto da moralidade conjugal, mas aplica-se com igual razão aos sacerdotes no que diz respeito às obrigações do celibato. A coesão entre liberdade e ética tem, além disso, consequências na busca do bem comum na sociedade e na independência nacional que o Sino da Liberdade anunciou há dois séculos.

7. A lei divina é a medida única da liberdade humana e é-nos dada pelo Evangelho de Cristo, o Evangelho da Redenção. Mas a fidelidade a este Evangelho de Redenção não será nunca possível sem a acção do Espírito Santo. É o Espírito Santo que protege a mensagem que dá vida, mensagem entregue à Igreja. É o Espírito Santo que assegura a fiel transmissão do Evangelho para a vida de todos nós. E mediante a acção do Espírito Santo que a Igreja foi construída dia após dia como reino: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino universal de justiça, amor e paz.

Hoje, por conseguinte, vimos diante do Pai para lhe oferecer as súplicas e os desejos dos nossos corações, para lhe oferecer louvores e graças. Fazemo-lo da cidade de Filadélfia para bem da Igreja universal e do mundo. Fazemo-lo como membros da lamina de Deus (Ep 2,19) em união com o Sacrifício de Cristo Jesus, nossa pedra angular, para a glória da Santíssima Trindade. Amen.









Homilias JOÃO PAULO II 188