Homilias JOÃO PAULO II 456


VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE

A MONTECASSINO E CASSINO (ITÁLIA)

20 DE SETEMBRO DE 1980

CONCELEBRAÇÃO LITÚRGICA POR OCASIÃO

DO XV CENTENÁRIO DE SÃO BENTO




Monte Cassino, 20 de Setembro de 1980




No esplêndido cenário desta basílica, ressurgida milagrosamente da ruína devida ao ataque da guerra, e de novo consagrada pelo meu inolvidável predecessor Paulo VI, transborda hoje com uma assembleia tão escolhida, talvez única na história mais que milenária cassinense, de filhos e filhas de São Bento diante do seu glorioso sepulcro, como se o víssemos redivivo. Aqui à volta do altar, onde se concelebra o Sacrifício Eucarístico, vem-me espontaneamente ao espírito e não posso deixar de repetir o grito jubiloso de Isaias: Ó Pai venerando, "levanta os olhos à volta e vê: como todos estes se reuniram para vir a ti; os teus filhos chegaram de longe e as tuas filhas foram transportadas ao lado" (cf. Is Is 49,18 Is 60,4). Para celebrarem o teu jubileu, juntaram-se de todas as partes do mundo, na alegria de te manifestarem a sua fidelidade filial, de te exprimirem os seus votos e de pedirem a tua fecunda bênção em comunhão visível e muito desejada com o sucessor de Pedro. E este sente a satisfação de se encontrar com eles, para te manifestar a ti — Patriarca, pelo decorrer de tantos séculos, de milhões de monges — a estima e o amor que toda a Igreja professa por ti, criador, por desígnio e graça de Deus, de imensos tesouros de civilização, cultura e sobretudo de santidade.

A tua vida, embora passada no apertado raio de uma só região, foi maravilhosa por virtude e prodígios; mas a acção da tua mensagem vivificadora estendeu-se a toda a Europa e a todo o mundo, até alcançar os nossos dias, graças àquele teu pequeno mas grandíssimo livro, destinado a tornar-se fermento da divina justiça para a formação cristã das multidões que Deus, como já para Abraão, te preparava como inigualável herança.

É muito agradável e comovedor para mim, e para todos os aqui presentes, pensar que, precisamente neste mosteiro, num pequeníssimo e escuro ângulo que a guerra respeitou, foi escrito aquele livro, a tua Regra: como recorda ali em baixo uma inscrição lapidar: "Aqui escreveu a Regra e ensinou-a com palavras e obras".

Veneráveis Abades, dilectíssimos filhos e filhas de tão grande Pai e Legislador: neste encontro que podemos definir excepcional e neste vértice das celebrações centenárias do nascimento, do Santo, a esse preciosíssimo livro devemos regressar e nele inspirar-nos para conseguir a reconstrução moral e religiosa que urgentemente nos diz respeito e ao mundo devemos. A minha recentíssima Carta Apostólica Sanctorum Altrix teve em vista propor, quase em visão panorâmica, o muito de vital e de fértil que ainda podem oferecer o ensinamento e a instituição de Bento, não só para a vida de perfeição monástica, mas também para a renascença e o revigoramento do sentir e do praticar, que se inspiram no Evangelho.

Com imenso prazer sei ainda que, para digna memória do centenário, estais a celebrar em Roma, coração da Cristandade, um original Simpósio precisamente sobre a Regra, com o nobre propósito de verificar e descobrir, em seguida aos muitos estudos recentes e com base em experiências já feitas ou ainda em execução, quanto ela possui ainda de válido e vivificante, quais são as estruturas fundamentais e infrangíveis que hão-de resistir, quais as acessórias que a evolução dos tempos tornou e torna caducas, e quais os valores inderrogáveis a que é preciso aderir tenazmente nos mosteiros, para que possam reconhecer-se ainda inseridos no sulco da família beneditina.

Com razão, como acontece em todo o pensamento e em toda a prática de hoje, sentis a necessidade, vós especialmente que sois os pastores das comunidades, de que fique bem clara a identidade do filho e discípulo de Bento. Falo a quem sabe: vós que tantas vezes lestes e longamente meditastes a vossa Regra, sabeis bem o que por meio dela, da qual ninguém se aparte temerariamente (3, 7), o Patriarca quer construir e ao mesmo tempo ensinar.

Quer construir, como é bem sabido, a escola do serviço do Senhor (Prol.45). A identidade vossa está neste absoluto e total serviço ao valor absoluto que é Deus. Todo o mundo está em Deus; mas o mosteiro, como Bento gosta de o definir, é casa de Deus (53, 22) em especial: o monge está nele para servir o Senhor desta casa, na humildade, na obediência, na oração, no silêncio, no trabalho e sobretudo na caridade. Conheceis a insistência especial com que o vosso Legislador assinala esta virtude no seguimento de Cristo, como informadora de toda a vida monástica. O capítulo dos instrumentos das boas obras (Reg. 4) adverte-vos que, na realidade, a ascética e a mística beneditinas são simplesmente evangélicas, com um Evangelho aceito e praticado em todas as suas consequências.

457 Reconhecida esta identidade, eis o propósito e o amor, hoje também tão difundidos, de autenticidade. Dos beneditinos isto quero eu, queremos todos na Igreja e no mundo: convencidos do que é o monge na mente do Patriarca, sejam monges verdadeiramente, verdadeiramente (diz ele próprio revera)buscadores de Deus, amantes de Deus, felizes por viverem apartados do mundo, num contexto familiar de obediência e de caridade, do qual nascem a paz e a alegria: ninguém se perturbe nem contriste na casa de Deus (31, 19).

Uma longuíssima e ininterrupta tradição, a mais longa que pode aproximar-se daquela mesma que é a da Igreja, comprovou a nobreza, a beleza e a fecundidade da espiritualidade beneditina. Gloriai-vos dela santamente e continuai, embora com as devidas e cautas adaptações às mudadas circunstâncias actuais, seguindo o sulco traçado pelo Pai antigo e pelos pais da vossa tradição, sem vos deixardes surpreender ou aliciar por tendências para o secularismo, por não razoáveis e não necessárias inovações, por exageradas teorias de pluralismo, que terminam com fazer que vos desvieis da linha do vosso Legislador. Tem sido notado que uma das principais qualidades da Regra é a clareza: todos podem facilmente aprender e saber o que prescreve e recomenda o grande Mestre; só falta, humilde, dócil e alegremente, segui-lo.

Com a bênção de Deus, com o sorriso materno de Maria rainha dos monges, com o patrocínio do vosso Legislador, e com a mensagem da sua palavra interpretada pela sã tradição e traduzida no vosso fiel exemplo, continuai a dizer ainda, hoje e amanhã, a força da fé, o doce dever da oração, o apaixonado amor à liturgia, o benefício da autoridade e da obediência, o culto da leitura divina e de todos os estudos sagrados, a doçura do vosso canto gregoriano, a pronta dedicação ao trabalho da mente e das mãos, a dignidade mesmo na compostura externa das atitudes e no hábito religioso, a alegria da vida em comum e sobretudo a busca sincera da paz e da caridade.

Mes neste singular e consolador encontro com todos os Abades e os Superiores beneditinos, é-me agradável ( parece-me necessário apontar para tudo quanto na mencionada Carta Apostólica já recordei sobre a característica atitude paterna que o vosso Legislador imprime ao governo abacial. Sede superiores, administradores, mestres, mas sobretudo sede pais. Neste "mundo sem pais", como então recordava, deveis oferecer o testemunho em que São Bento pensou ao constituir o seu mosteiro como sociedade familiar, onde há um pai que provê, ensina e principalmente ama os seus monges, os respeita, lhes estima a dignidade pessoal, os faz co-responsáveis das decisões e os segue com afecto que abrange também a ternura do coração materno.

Para vós é norma mais ser amado do que temido (64, 15); e os dois capítulos da Regra que encerram como que o vosso directório (2 e 64), especialmente o admirável capítulo 64, realmente brotado de um peito rico de sabedoria e de amor, são a magna charta que deve reger e inspirar o vosso comportamento. Mas é toda a Regra que fala de vós, para vos inculcar sabedoria, prudência, inflexibilidade contra os vícios, promoção das virtudes, compaixão para com os fracos, e sobretudo aquela discrição romana e cristã que distingue o insigne código e constitui porventura a principal razão da sua difusão e validez. O equilíbrio do abade gera e alimenta o amor recíproco entre o abade e os filhos, e entre irmãos e irmãos. No nosso mundo, onde a falta do amor esvazia os ânimos de valor e alegria, saiba-se e veja-se, pelo vosso generoso sacrifício, que o mosteiro é sociedade de autêntico amor humano e sobrenatural.

Por fim, uma particular saudação desejo dirigir a todos os ramos femininos, alguns dos quais estão aqui também oficialmente representados. À luz e ao odor de virtude de Escolástica, que precisamente aqui repousa junto ao irmão, a vossa puríssima e virginal presença, ó filhas todas de São Bento, alegra e edifica o Povo de Deus. No silêncio do vosso escondimento ou na humildade das vossas obras, vós em particular reproduzis, e deveis aplicar-vos a isso convictamente, a atitude espiritual da virgem Maria, contente com ser escrava do Senhor, totalmente disponível unicamente para a vontade do Pai celeste. Dai flores como o lírio, exalai perfume, lançai preciosos ramos, e para alegria e benefício de todos os irmãos da terra cantai ao Senhor os mais castos louvores, e a Cristo vosso Esposo a exultação da vossa intimidade de amor.

Padres e irmãos, e irmãs todas, alegremo-nos pois com alegria imensa, celebrando a festa em honra de São Bento, de cuja glória exultam os Anjos e os Santos, de cuja doutrina e formação beneficiam nesta terra muitos milhares de almas dentro e fora dos claustros, e a cujo exemplo e patrocínio recorrem a Igreja e o mundo inteiro. Ressoa ainda a sua voz: "A Cristo nada absolutamente antepor". E a mensagem fundamental, e se o seu belo sonho é que todos os membros da família monástica estejam em paz, este sonho será feliz realidade para toda a família humana se no conjunto dela finalmente vier a inserir-se Cristo.



SANTA MISSA NO CENTENÁRIO DA FUNDAÇÃO

DA ASSOCIAÇÃO ITALIANA DE SANTA CECÍLIA


Basílica Vaticana

Domingo, 21 de Setembro de 1980

"Louvai, servos do Senhor, / louvai o nome do Senhor. / Bendito seja / o nome do Senhor para sempre (Ps 112 [113], ).


1. Estas palavras do Salmo responsorial da hodierna liturgia do domingo adaptam-se perfeitamente aos vossos sentimentos, caros Irmãos e Irmãs da "Associação Italiana de Santa Cecília", que aos milhares vos reunistes em Roma, no centro da catolicidade, sobre o venerável túmulo do Príncipe dos Apóstolos, para louvar e bendizer o nome do Senhor com a sugestividade harmoniosa do vosso canto, que nesta admirável Basílica se eleva como adorante oração a Deus.

458 Quisestes celebrar, de maneira solene e significativa, uma data fundamental para a vida da vossa Associação, que precisamente nestes dias completou os seus cem anos de existência. Data que manifesta não já velhice ou atrofia deste organismo, mas pelo contrário lhe põe em evidência a surpreendente vitalidade, de que é alegre garantia a vossa presença. Presença que deseja ser afirmação de vida, de gozo, de esperança, de fé cristã, e também proclamação de confiança e de amor à música "sacra", a que dedicastes, e continuais a dedicar, uma parte, talvez a melhor, a mais entusiasta, do vosso tempo, dos vossos interesses e das vossas energias.

No longíquo 4 de Setembro de 1880 reunia-se em Milão o primeiro Congresso Nacional Ceciliano: nascia assim a vossa Associação, que pretendia reunir, a serviço do Episcopado Italiano, todos os que tinham a peito a música "sacra". Mas, nas datas, poderemos ir ainda mais atrás: a verdadeira origem da "Associação Italiana de Santa Cecília" poderemos fazê-la remontar a 1584, quando em Roma foi instituída a "Congregação de Santa Cecília", aprovada por Sisto V em 1585. Também o grande Giovanni Pier Luigi de Palestrina fez parte, dessa Congregação, que perdurou até ao século XVIII. No século XIX retomou vida, dividindo-se em dois ramos, para a música "profana" com o nome de "Academia Estatal de Santa Cecilia"; e para a música "sacra" com o nome de "Associação Italiana de Santa Cecília". O afecto e a estima que os meus Predecessores, em particular São Pio X e Paulo VI, tiveram pela vossa Associação são bem conhecidos; como é também sabido que ela teve entre os seus membros os mais qualificados compositores, Maestros, Directores das Catedrais e das Igrejas da Itália.

2. Vós, caríssimos Irmãos e Irmãs, tendes orgulho de pertencer a uma Associação, que tem como fim principal promover a autêntica música "sacra"; com isto mesmo inseris-vos conscientemente em toda a plurissecular tradição da Igreja, que, ao prestar culto à Trindade Santíssima, se serviu da música e do canto para exprimir os mais profundos sentimentos religiosos do cristão: a adoração, a acção de graças, a súplica, a impetração, a dor e o entusiasmo espiritual. Por isso, o Concílio Vaticano II pôde afirmar que o "canto sacro, unido às palavras, é parte necessária e integrante da Liturgia solene", e que "a Música sacra será tanto mais santa quanto mais estreitamente estiver unida à acção litúrgica, quer exprimindo docemente a oração e favorecendo a unanimidade, quer enriquecendo com maior solenidade os ritos sagrados" (Sacrosanctum Concilium
SC 112).

Passaram quase oitenta anos desde o Motu Proprio Inter pastoralis officii, publicado por São Pio X a 22 de Novembro de 1903, num período difícil para as condições da música "sacra", que — segundo notam os historiadores e os especialistas — não mantinha sempre e em toda a parte aquele decoro, conveniente ao culto divino. O Documento do meu santo Predecessor foi, por mais de meio século, estímulo fecundo de frutos abundantes de arte autêntica e de profunda espiritualidade. O Concílio Vaticano II, por seu lado, publicou uma Constituição sobre a Liturgia, que, referindo-se explicitamente ao citado Motu Proprio de São Pio X, dedicava parte importante à música sacra (Sacrosanctum Concilium SC 112-121); e em Março de 1967, a então Sagrada Congregação dos Ritos publicava uma vasta e articulada Instrução, com o título "Musicam Sacram".

Nunca será demais insistir na importância cultural, formativa, social e espiritual da música sacra; e as iniciativas e os esforços que, a todos os níveis, forem realizados neste campo, merecerão o sincero aplauso da Sé Apostólica, dos Bispos e dos fiéis todos, desejosos de prestar a Deus um culto não indigno nem indecoroso da Sua infinita majestade, e provocarão também a aprovação de todas aquelas pessoas, que olham com certa preocupação para, fenómenos e experiências discutíveis, em relação com expressões musicais em certas celebrações litúrgicas.

3. A Igreja insistiu e insiste, nos seus documentos, no adjectivo "sacro", aplicando-o à música destinada à Liturgia. Quer isto dizer que Ela, pela sua experiência de séculos, está convencida que tal qualificação tem o seu importante valor. Na música destinada ao culto sacro — disse Paulo VI — "nem tudo é válido, nem tudo é lícito, nem tudo é bom"; mas só aquilo que, em união de dignidade artística e de superioridade espiritual, pode "exprimir plenamente a... fé, para a glória de Deus e para a edificação do Corpo místico" (Insegnamenti di Paolo VI, IX 1971, p. 301). Não se pode portanto afirmar que toda a música se torna sacra pelo facto e desde o momento em que se insere na Liturgia; falta ainda a essa atitude aquele sensus Ecclesiae, "sem o qual o canto, em vez de ajudar a fundir as almas na caridade, pode pelo contrário ser fonte de incómodo, de dissipação e de carência do sagrado, quando não de divisão na comunidade mesma dos fiéis" (Ibid., 300).

E sabido, além disso, que a Constituição conciliar sabre a Liturgia exige que as novas composições tenham "as características da verdadeira música sacra" (Sacrosanctum Concilium SC 121). E eu hoje, para a dignidade da Liturgia, dirijo-me com estima e respeito a todos os Musicistas, pois também eles estão entre aqueles "amigos da verdadeira arte", dos quais a Igreja declarou ter necessidade e a quem dirigiu, em nome da beleza inspirada pelo sopro do Espírito Santo, o convite a não deixarem que se perca uma aliança, entre as mais fecundas, entre Ela e a verdadeira arte (cf. Mensagem do Concílio aos Artistas). Vós, Musicistas, que tendes o dom admirável e misterioso de transformar o sentimento do homem em canto e de adaptar o som à palavra, dai à Igreja, à Liturgia, novas composições, seguindo tantos Musicistas que chegaram a manter a sua inspiração artística em perfeita e fecunda sintonia com as altas finalidades e as exigências do culto católico.

4. A música destinada à Liturgia deve ser "sacra" por características particulares, que lhe permitem ser parte integrante e necessária da Liturgia mesma. Como a Igreja, no que diz respeito a lugares, objectos e vestes, exige que tenham predisposição à própria finalidade sacramental, mais ainda para a música, que é um dos mais altos sinais epifânicos da sacralidade litúrgica, deseja Ela que possua uma predisposição adequada para tal finalidade sacra e sacramental, devido a especiais características que a distingam da música destinada, por exemplo, ao divertimento, à distracção ou mesmo à religiosidade larga e genericamente entendida.

A Igreja declarou quais são os géneros musicais que possuem com excelência a predisposição artística e espiritual conforme ao divino Mistério: são o canto gregoriano e a polifonia. Num período em que se difundiu o apreço e o gosto pelo canto gregoriano, cuja superioridade universalmente se reconhece, necessário que nos lugares, para que ele surgiu, seja reposto em honra: e praticado, no grau de capacidade das várias comunidades litúrgicas, em particular com a recuperação dos trechos mais significativos e daqueles que, pela facilidade e prática tradicional dos mesmos, devem tornar-se os cânticos comuns expressivos da unidade e da universalidade da Igreja (cf. Intr. a Jubilate Deo - cantus gregoriani faciliores..., Ed. Vat. 1974). A polifonia está também revalorizada com terem surgido, inesperada e felizmente, "Scholae Cantorum", compostas também por jovens, desejosos de autêntica beleza e de profunda espiritualidade. A estes dois géneros vem juntar-se o canto popular sacro, que deve efectivamente arrastar todo o povo e possuir portanto elementos de coralidade e de eloquente solenidade, como uma assembleia orante e adorante pode e deve exprimir. Santo Ambrósio compara com felicidade o canto dos fiéis ao mar: "As suas salmodias — escreve — rivalizam com o murmurar das ondas que se agitam levemente,... Que é o canto do mar, senão eco dos cânticos da assembleia cristã?... Enquanto o povo reza todo junto, burbulha como o refluxo de ondas espumantes, quando o canto dos homens, das mulheres, das virgens e dos rapazes forma eco aos responsáveis dos salmos como o harmonioso fragor das ondas" (Hexameron, II, V, 23: PL 14, 165).

5. A composição e a execução de uma verdadeira música sacra exigem preparação especial, quer artística quer espiritual-litúrgica. Neste momento não posso deixar de louvar todas aquelas iniciativas, que tendem seja a oferecer aos Compositores os auxílios, as sugestões e os instrumentos adequados, seja a dar aos Cantores a possibilidade de dedicarem parte do seu tempo a esta forma de expressão, qual é a música sacra.

É necessário que na prática musical litúrgica da Igreja Latina seja valorizado o imenso património que a civilização, a cultura e a arte cristã produziram em tantos séculos; o possível acolhimento de formas e instrumentos típicos de outras civilizações e culturas deverá ser realizado com discernimento, dentro do pleno respeito pelo génio dos povos e com aquele são pluralismo, que é antes de tudo salvaguarda dos valores característicos de cada civilização e cultura; estas só deste modo poderão acolher e assimilar, provados por uma prudente e joeirada experiência, elementos de outra proveniência, que não as desnaturem mas enriqueçam (cf. Gaudium et Spes GS 44 Ad Gentes divinitus AGD 22).

459 Irmãos e Irmãs caríssimas. Nesta solene celebração, que vos vê recolhidos em festa à volta do Papa, para agradecer ao Senhor os cem anos de vida da vossa Associação, digo-vos: Amai a "Associação italiana de Santa Cecília". Segui-a. Sustende-a. Continuai com renovado fervor na obra magnífica, que é ao mesmo tempo síntese de "arte" e de "fé". Mas precisamente porque a música "sacra" é expressão e manifestação de fé — da fé da Igreja e dos seus membros —, é necessário que no vosso comportamento de cristãos, a nível interior e a nível de testemunho exterior, haja perfeita sintonia, verdadeira coerência entre o vosso canto e a vossa vida. "Canta a Deus diz-nos Santo Agostinho — quem vive de Deus; salmodia ao Seu Nome quem trabalha pela Sua glória. Assim cantando, assim salmodiando, isto é, assim vivendo, assim trabalhando...preparai o caminho a Cristo, para que, mediante a obra dos evangelizadores, Lhe sejam abertos os corações dos fiéis" (Enarrat. in Ps 67,5 PL Ps 36,46 s. ).

Se fordes autênticos cristãos, com o vosso canto sereis evangelizadores, isto é, mensageiros de Cristo no mundo contemporâneo. Amém!



CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA


NA ABERTURA DA 5ª ASSEMBLEIA GERAL


DO SÍNODO DOS BISPOS




26 de Setembro de 1980




1. Veneráveis Irmãos no Episcopado e vós todos caros participantes na sessão do Sínodo dos Bispos, que está para começar. Bom é podermos iniciar os nossos trabalhos entrando no coração mesmo da oração sacerdotal de Cristo.Sabemos qual e quão grande foi o momento em que Ele pronunciou as palavras desta oração. Reparemos contudo de que inaudito conteúdo elas estão cheias: «Pai Santo, guarda em Teu nome aqueles que Me deste, para que sejam um, assim como Nós» (Jn 17,11).

Quando a Igreja ora pela sua unidade, refere-se a estas palavras simplesmente. Com estas palavras pedimos pela união dos cristãos. E, servindo-nos destas mesmas palavras, recomendamos ao Pai, em nome de Cristo, aquela unidade que devemos constituir durante a assembleia do Sínodo dos Bispos, que hoje se inicia. e começa os seus trabalhos depois de longa e aprofundada preparação: os trabalhos sobre as tarefas da família cristã.

2. Este tema escolheu-se como conclusão- apresentada depois de aprofundado exame por parte do Conselho para a Secretaria geral do Sínodo - das propostas que tinham chegado à mesma Secretaria Geral do Sínodo por parte de muitos Bispos e das Conferências Episcopais. Este tema, durante as próximas semanas, deverá constituir a base das nossas considerações, também porque estamos profundamente convencidos que por meio da família cristã a Igreja vive e cumpre a missão que lhe foi confiada por Cristo. Por isso pode dizer-se com franqueza que o tema da presente sessão do Sínodo se encontra no prolongamento das duas sessões precedentes. Quer a evangelização, tema do Sínodo de 1974, quer a catequese, tema do Sínodo de 1977, nãd só são dirigidas à família mas dela recebem a sua autêntica vitalidade. A família é o objecto fundamental da evangelização e da catequese da Igreja, mas é também o seu indispensável e insubstituível sujeito: o sujeito criativo.

3. Exactamente para isto, para ser este sujeito, não só para perseverar na Igreja e haurir nos seus recursos espirituais, mas para constituir a Igreja na sua dimensão fundamental, como uma «Igreja em miniatura» (Ecclesia domestica), a família deve de modo particular estar consciente da missão da Igreja e da própria participação nesta missão.

O presente Sínodo tem como objectivo mostrar a todas as famílias a peculiar participação delas na missão da Igreja. Esta participação comporta, ao mesmo tempo, a realização da finalidade própria da família cristã, quanto possível na sua plena dimensão.

Desejamos, por meio dos trabalhos da assembleia sinodal, reler uma vez mais o rico magistério do Concílio Vaticano II na perspectiva da verdade sobre a família nele contida, e também do aspecto da realização deste Concílio por parte das famílias. As famílias cristãs devem plenamente encontrar o seu lugar nesta grande obra. O Sínodo quer prestar um serviço, primeiro que tudo, com este fim.

4. «Constituímos um só corpo em Cristo, sendo individualmente membros uns dos outros» (Rm 12,5), ensina São Paulo na segunda leitura da liturgia de hoje. E por isso, mesmo que a reunião sinodal seja, por sua natureza, uma forma particular da actividade do Colégio episcopal, no âmbito desta assembleia sentimos particular necessidade da presença do testemunho dos nossos caros irmãos, que representam as famílias cristãs do mundo inteiro. «Possuímos dons diferentes, consoante a graça e as suas tarefas, há tanta necessidade da presença e do testemunho daqueles cujos «dons», segundo «a graça» do Sacramento do matrimónio a eles «dada», são dons de vida e de vocação para o matrimónio e para a vida familiar.

Ficar-vos-emos reconhecidos, caros irmãos e irmãs, se durante os trabalhos do Sínodo, a que nos dedicaremos segundo a nossa responsabilidade episcopal e pastoral, partilhardes connosco estes «dons» do vosso estado e da vossa vocação, pelo menos mediante o testemunho da vossa presença e também da vossa experiência, radicada na santidade deste grande sacramento, que é a vossa parte: o Sacramento, quero dizer, do matrimónio.

460 5. Quando Cristo, antes da morte, no limiar do mistério pascal, pede: «Pai Santo, guarda em Teu nome aqueles que Me deste, para que sejam um, assim como Nós» (Jn 17,11), então pede de algum modo, talvez de modo particular, também a unidade dos cônjuges e das famílias. Pede pela união dos discípulos, pela união da Igreja; e o mistério da Igreja foi comparado por São Paulo ao matrimónio (cf. Ef. Ep 5,21-33). A Igreja, por isso, não só põe o matrimónio e a família num lugar particular entre os seus encargos, mas olha também para o Sacramento do matrimónio, de certo modo, como para o seu modelo. Inflamada pelo amor de Cristo-Esposo, pelo Seu amor «até à morte», a Igreja olha para os Esposos, que juram entre si amor até à morte. E considera sua missão particular defender este amor, esta fidelidade e honestidade, e todos os bens que dele provêm para a pessoa humana e para a sociedade. E nela que, através da obra de educação, se forma a estrutura mesma da humanidade, de cada homem sobre a terra.

Eis o que diz, no Evangelho de hoje, o Filho ao Pai: «Dei-lhes as palavras que Tu Me deste e eles receberam-nas... e creram que Tu Me enviaste... E tudo o que é Meu é Teu, e tudo o que é Teu é Meu...» (Jn 17,8-10).

Não ressoa nos corações das gerações o eco deste diálogo? Não constitui ele o contexto vivificante da história de cada família e, por meio da família, de cada homem?

Não nos sentimos, mediante estas palavras, particularmente liga dos à missão do próprio Cristo: de Cristo-Sacerdote, Profeta e Rei? Não brota a família do coração mesmo desta missão?

6. «Rogo-vos, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus; este é o culto racional que Lhe deveis prestar» (Rm 12,1).

Este sacrificio e este culto testemunham a vossa participação no sacerdócio real de Cristo. Este não se exerce senão obedecendo àquela exortação, dirigida por Deus, Criador e Pai. A primeira leitura, tirada do Livro do Deuteronómio, diz: «Esta palavra está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, e tu podes cumpri-la» (Dt 30,14).

E Cristo ora assim pelos seus discípulos: «Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal... Santifica-os na verdade... Eu consagro-Me por eles, para eles serem também consagrados na verdade» (Jn 17,15-19).

Eis, traçadas pela Palavra de Deus da hodierna liturgia, as tarefas que devemos apresentar às famílias cristãs na Igreja e no mundo contemporâneo:

— a consciência da missão, que deriva da missão salvífica do próprio Cristo e é desempenhada como serviço especial,

— esta consciência alimenta-se da Palavra de Deus vivo e da virtude do sacrifício de Cristo. Deste modo consegue-se um testemunho de vida, capaz de «consagrar na verdade»,

— esta consciência derrama o bem, que é o único capaz de «livrar do mal». A tarefa da família é, deste modo, semelhante à tarefa d'Aquele que, no Evangelho de hoje, diz de Si mesmo: «Enquanto estava com eles no mundo, guardava-os em Teu nome: Guardei aqueles que Me deste e nenhum deles se perdeu... (Jn 17,12).

461 Sim! A tarefa de cada família cristã é a de guardar e conservar os valores fundamentais. E de guardar e conservar simplesmente o homem.

7. O Espírito Santo nos guie, e conduza todos os nossos trabalhos, durante a reunião que hoje começa.

Bem está que a iniciemos no coração mesmo desta grande oração «sacerdotal» de Cristo. Bem está que nós a iniciemos pela Eucaristia. Todo o nosso trabalho, durante os dias que vão seguir-se, será apenas serviço prestado aos homens: aos nossos irmãos e irmãs, aos cônjuges, aos pais, aos jovens, às crianças, às gerações e às famílias; a todos aqueles a quem Cristo revelou o Pai; a todos aqueles que «do mundo» o Pai deu a Cristo. «Eu rogo por eles... por aqueles que Tu me deste, porque são Teus» (
Jn 17,9).



SANTA MISSA DE SUFRÁGIO PELOS


SUMOS PONTÍFICES PAULO VI E JOÃO PAULO I




Domingo, 28 de Setembro de 1980




1. «Mas tu, ó homem de Deus, foge de todas estas coisas, e segue a piedade, a justiça, a fé, a caridade, a paciência e a mansidão. Combate o bom combate da fé e conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e da qual fizeste solene profissão diante de muitas testemunhas» (1Tm 6,11-12).

Estas palavras do Apóstolo, tiradas da liturgia deste domingo, permitem-nos, a dois anos da morte, renovar a recordação do Papa João Paulo I, que foi chamado para a Sé de Pedro a 26 de Agosto de 1978 e dela foi tornado a chamar para a casa do Pai, para alcançar a vida eterna, a 28 de Setembro, depois de terminar o seu serviço, que durou apenas 33 dias, nesta Sé: «Conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e da qual fizeste solene profissão diante de muitas testemunhas».

2. Quanto nos dizem estas palavras! Quanto dizem a todos os que saudaram com alegria a elevação do Cardeal Albino Luciani, Patriarca de Veneza, à Sé de São Pedro; a todos os que se recordam dele e como que vêem ainda o seu rosto bom, manso e tão facilmente iluminado por um sorriso sereno para cada homem. E quanto dizem estas palavras aos sacerdotes, para quem ele foi ao mesmo tempo irmão e pai, particularmente para aqueles sacerdotes a quem de tão boa vontade pregava os exercícios espirituais. Há pouco tempo pude ler o texto destes maravilhosos exercícios, cheios do seu espírito, da linguagem figurativa, adaptados em cada passagem à realidade da vida sacerdotal e centrados à volta da figura do Bom Samaritano. Vê-se bem quanto lhe era querida esta personagem, quanto se identificava com ela. Pode-se também supor que tal figura se tenha tornado a inspiradora principal daquele pontificado, que teve apenas tempo de iniciar. Verdadeiramente, ele foi para a Igreja e para o mundo magis ostensus quam datus!

3. Nós, Bispos reunidos para a presente sessão do Sínodo, recordamo-lo ainda como participante na sessão de 1977. Na sala sinodal eu ocupava um lugar perto dele, mesmo diante dele. Onze meses depois daquela sessão foi chamado para a Sé de São Pedro, e um ano depois já não vivia. Não teve sequer tempo para publicar aquele documento sobre o tema da catequese, em que devia exprimir-se, a pedido da assembleia sinodal, o fruto do seu trabalho; e era este tema tanto da sua predilecção! Todavia, durante o período de apenas quatro semanas de pontificado, conseguiu dar-lhe expressão particular em especial mediante as catequeses dadas nas audiências gerais das quartas-feiras, e dedicadas à fé, à esperança e à caridade.

Nem podemos, por outro lado, esquecer as palavras que precisamente sobre o tema do Sínodo dos Bispos pronunciou na sua primeira radiomensagem, no dia seguinte ao da sua eleição: após declarar, como sua primeira intenção, desenvolver «sine intermissione» a herança do Concílio Vaticano 11, empenhando-se em aplicar as sábias normas dele, dirigindo-se aos Cardeais do Sacro Colégio e a todos os Bispos da Igreja de Deus, «cuja colegialidade — acrescentou — desejamos fortemente valorizar, valendo-nos da sua actividade no governo da Igreja universal, quer mediante o órgão sinodal, quer através das estruturas da Cúria Romana» (cf. Insegnamenti di Giovanni Paolo I, pp. 15, 17). São estas palavras bastante claras a demonstração do seu formal empenho de «valorizar» o Sínodo.

É por isso que nós hoje, no momento em que estamos de novo reunidos no Sínodo, consideramos como particular necessidade do coração recordar diante de Deus o nosso irmão e pai, o Papa João Paulo I, inclinando a cabeça diante do imperscrutável mistério da Providência, como se manifestou na sua vinda e na sua partida, e agradecendo que ele tenha conservado «sem mácula e irrepreensível o mandamento até à aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo» (1Tm 6,14).

4. A figura de João Paulo I dirigirá sempre os nossos pensamentos para os seus Predecessores na Sé de Pedro, cujos nomes conjuntamente ele tomou em herança, como se quisesse afirmar que não é lícito separá-los e que, estando ao serviço na Sé de Pedro, é necessário continuar a obra de ambos.


Homilias JOÃO PAULO II 456