Homilias JOÃO PAULO II 462

462 Se hoje através dos mesmos nomes de João e de Paulo dirigimos o nosso pensamento para os seus dois Predecessores, que inauguraram, em certo sentido, nova época na Igreja, devemos de modo particular dirigir este pensamento simultaneamente de oração e de sacrifício para o Papa Paulo VI, primeiro que tudo porque o segundo aniversário da sua morte remonta só a algumas semanas e precede de pouco o hodierno aniversário da morte do seu imediato Sucessor.

Entre as muitas obras realizadas, Paulo VI passará à história como quem, pondo em prática o ensinamento do Concílio Vaticano II acerca da colegialidade, deu vida exactamente a este Sínodo dos Bispos, para o qual nos reunimos em sessão ordinária já pela quintá vez. Fundamental, a este respeito, se mostra o texto do documento, instituidor Apostolica sollicitudo, porque, com uma antecipação de três meses sobre a conclusão mesma do Concílio, fixava as linhas ainda agora válidas do novo Organismo eclesial, concebido como peculiare sacrorum Antistitum consilium, e expressamente lhe indicava o espírito e as finalidades: favorecer a mais estreita união e a oportuna colaboração entre o Sumo Pontífice e os Bispos de todo o mundo (cf. Motu proprio Apostolica sollicitudo em AAS 57, 1965,
PP 775 ss.).

5. Inaugurando a precedente sessão ordinária do Sínodo dos Bispos com uma celebração na Capela Sixtina, Paulo VI saudava a assembleia como «estupendo exemplo de comunhão eclesial» e, dirigindo-se à consciência pessoal de cada Bispo presente, dizia, em particular, o seguinte:

«Somos escolhidos, somos chamados e somos investidos pelo Senhor com uma missão transformadora. Como Bispos, somos os sucessores dos Apóstolos, os pastores da Igreja de Deus. Um dever nos qualifica: sermos testemunhas, sermos portadores da mensagem evangélica, sermos mestres diante da humanidade. Tudo isto queremos recordar, Venerados Irmãos, para reavivar a consciência da nossa eleição, da nossa vocação, das responsabilidades do encargo grande, perigoso e incómodo, que nos foi confiado; mas sobretudo para reconfirmar toda a nossa confiança na assistência de Cristo nos nossos sofrimentos, nas nossas fadigas e nas nossas esperanças».

E ainda:

«Sermos verdadeiros apóstolos de Cristo hoje, é grande acto de coragem, e ao mesmo tempo grande acto de confiança no poder e no auxílio de Deus; auxílio que Deus não poderá certamente permitir que falte, se o coração do apóstolo estiver aberto ao influxo delicado e poderoso da Sua graça».

«O panorama do mundo, sobre o qual se debruça a responsabilidade nossa de evangelizadores, dá-nos ideia da imensidade, faz-nos tocar com a mão o peso da nossa missão. Quanto, quanto está ainda por fazer! Daí resulta, à primeira vista, uma inferioridade esmagadora, uma inadequação da nossa parte que pode parecer insuficiência total. Mas é por isso que deve afirmar-se e confirmar-se o nosso empenho: o olhar sobre o mundo e sobre o futuro não pode gerar preguiça (...). Bem ao contrário: longe de nos dobrarmos sobre nós mesmos, exactamente para reagirmos à tentação da- inércia, devemos estar certos de que a «virtude», ou seja a força, o auxílio e o socorro do Senhor estão connosco» (cf. Insegnamenti di Paolo VI, XV, 1977, PP 888-890).

Foram estas as palavras animadoras que ouvimos a 30 de Setembro de 1977. Era necessário que hoje elas ressoassem de novo no meio de nós, para darem testemunho da continuidade desta grande causa, e para a servir reunimo-nos aqui de novo.

6. Nesta altura, porém, como de tarde me dirigirei em peregrinação a Subiaco com os representantes das Conferências Episcopais dos Países Europeus, não posso deixar de fazer referência, ainda que breve, a outro dos insignes méritos de Paulo VI. Aludo ao que disse, decidiu e fez, para na consciência da Europa moderna ficar sempre viva, como fermento activo, a memória do grande contributo de pensamento e de obras a ela dado por São Bento e, mais em geral, pela tradição beneditina. Depois de proclamar o Santo, Patrono da Europa, ele foi a Monte Cassino visitar o seu Túmulo, consagrou a igreja do arquicenóbio e, num discurso memorável, falou da sociedade «hoje tão necessitada de haurir linfa nova nas raízes..., as raízes cristãs que São Bento em tão grande parte lhe deu». E a propósito nomeou as superiores motivações, isto é, os dois «motivos pelos quais ainda agora desejamos a austera e suave presença de Bento entre nós: pela fé, que ele e a sua Ordem pregaram na família dos povos, naquela especialmente que se chama Europa; a fé cristã, a religião da nossa civilização, a da santa Igreja, mãe e mestra das gentes; e pela unidade, para que o grande Monge solitário e social nos educou como irmãos, e pela qual a Europa foi a cristandade. Fé e unidade: que poderemos nós desejar de melhor e invocar para o mundo inteiro, e de modo particular para a conspícua e eleita porção que se chama Europa?» (cf. Insegnamenti di Paolo VI, II, 1964, p. 606).

Precisamente sobre a base desta histórica herança, o mesmo Pontífice, recebendo em diversas ocasiões grupos de Prelados pertencentes às Nações europeias, insistiu repetidas vezes no dever, até na missão, de incitarem as outras Nações e colaborarem com mais responsável empenho na difusão da fé. Aos representantes de algumas Conferências Episcopais da Europa recordou «o valor dos exemplos das Igrejas deste Continente diante das outras áreas do mundo católico e, sobretudo, diante das Igrejas de mais recente formação», as quais esperam o necessário auxílio das Igrejas mais antigas (cf. Insegnamenti di Paolo VI, V, 1967, p. 495).

Os mesmos conceitos repetiu ele em Março de 1971 aos presidentes e delegados das Conferências da Europa reunidos em Roma para constituírem o especial «Conselho» dos Episcopados Europeus. Nessa ocasião quis recordar mais uma vez o carácter unitário da tradição, da civilização e dos costumes dos habitantes do Continente e exortou a «darem testemunho evangélico de fé, esperança, caridade, justiça e paz, consideradas as causas importantíssimas, que na Europa solicitam a Igreja e a sociedade humana», sem esquecer, por outro lado, as necessidades da Igreja universal, especialmente do Terceiro Mundo (cf. Insegnamenti di Paolo VI, IX, 1971, PP 221-222).

463 7. Queira «o Rei dos reis e Senhor dos senhores, Aquele que é o Senhor que possui a imortalidade e habita na luz inacessível, a quem nenhum homem viu nem pode ver» (1Tm 6,15-16), desvelar na eternidade bem-aventurada o esplendor da Sua santidade «face a face» e admitir à comunhão consigo na eterna caridade os dois nossos veneráveis e amados irmãos e pais: Paulo VI e João Paulo I.

A Ele a honra e o poder para sempre!



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A SUBIACO (ITÁLIA)

SANTA MISSA EM HOMENAGEM

A SÃO BENTO NO XV CENTENÁRIO DE NASCIMENTO




Praça da Resistência

Subiaco, 28 de Setembro de 1980




Caríssimos fiéis de Subiaco

1. Sinto-me feliz, no final da peregrinação com os Bispos Europeus à Sagrada Gruta, de poder encontrar-me convosco e testemunhar-vos o afecto profundo que nutro por esta vossa comunidade cujo nome, graças a São Bento, é conhecido no mundo inteiro. Com o Rev.mo Padre Abade, saúdo todos vós, e com especial intensidade de sentimentos, as pessoas anciãs e as que sofrem. A minha cordial saudação dirige-se também às crianças e aos jovens, que alegram com a sua presença festiva esta nossa assembleia litúrgica.

Reunimo-nos à volta do altar de Deus para celebrar o memorial da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Ouvimos a Leitura dos trechos bíblicos, que a Liturgia de hoje nos oferece e agora somos convidados a meditar as admoestações neles contidas: são palavras de censura e são palavras de promessa.

Neste lugar e neste momento, não podemos deixar de pensar que sobre estas páginas São Bento também fixou a própria reflexão durante a sua vida terrena. Com que eco profundo deveriam ter ressoado na sua alma as ameaças contra os ricos e contra as aberrações que acompanham habitualmente a posse de bens materiais excessivos!

E que íntima vibração de consenso e de adesão não teria suscitado nele a palavra de Paulo a Timóteo, que também nós acabamos de ouvir: "Mas tu, ó homem de Deus, foge de todas estas coisas, e segue a justiça, a paciência e a mansidão. Combate o bom combate da fé e conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e da qual fizeste solene profissão diante de muitas testemunhas" (1Tm 6,11-12).

2. Bento foi homem de Deus, e tomou-se tal, seguindo o caminho das virtudes tão claramente indicado pelos apóstolos. Seguindo-o constante e incessantemente. Ele foi um verdadeiro peregrino do Reino de Deus, um verdadeiro homo viator. Não parou ao longo da estrada e nem se desviou para caminhos mais fáceis. Todo o seu empenho foi orientado para seguir o comprometimento: combater o bom combate da fé para "guardar sem mácula e sem repreensão este mandamento, até à aparição de nosso Senhor Jesus Cristo" (1Tm 6,14).

Nesta luta ele empregou todo o tempo que o Eterno Pai quis conceder-lhe nesta terra. Foi uma dura batalha que ele travou consigo mesmo, destruindo o "homem velho" e dando sempre mais lugar ao "homem novo", que cresce pela "aparição de nosso Senhor Jesus Cristo". E o Senhor, mediante o Espírito Santo, fez que esta transformação não permanecesse somente nele; na sua admirável providência dispôs que a experiência de Bento se tornasse uma fonte de irradiação, a penetrar a história dos homens, e sobretudo a história da Europa.

464 Subiaco foi e continua a ser uma etapa importante deste processo: o lugar do nascimento de São Bento de Núrsia e ao mesmo tempo o lugar da sua manifestação.

3. Bento foi homem de Deus, por que se esforçou por tornar a sua vida totalmente transparente ao Evangelho. De facto, não se contentou de ler o Evangelho com o fim de conhecê-lo: quer conhecê-lo para traduzi-lo, todo inteiro, em cada um dos aspectos da sua vida. Leu o Evangelho no seu conjunto e, ao mesmo tempo, cada trecho, cada perícope que a Igreja relê na sua liturgia, cada fragmento. De facto, em cada fragmento do Evangelho está contido, num certo sentido, o conjunto; o todo vive em cada fragmento, assim como cada fragmento vive do conjunto.

É nesta luz que devemos pensar neste trecho que hoje voltamos a ler aqui, isto é, a parábola do rico epulão e do pobre Lázaro: "Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo...".

O homem de Deus, Bento, vibrava em sintonia com o relato, enquanto lia com toda a profundidade da sua alma estas palavras eternas, num certo sentido absorvendo toda a simplicidade da verdade encerrada neste trecho. E a verdade é a que emerge, fulgurante, do exemplo de Cristo que — como realça São Paulo — "de rico que era, fez-se pobre por vós, para que vos tornásseis ricos por meio da sua pobreza" (
2Co 8,9).

4. A verdade portanto está numa profunda "inversão de tendência": ao desejo ardente de possuir sempre mais é necessário substituir o esforço do desprendimento dos bens da terra; à lógica da competição para apoderar-se de uma riqueza sempre maior, é preciso contrapor o esforço de levar a um justo bem-estar o maior número possível de homens; à mentalidade, que considera os bens materiais como, objecto de apresamento, é necessário fazer substituir a mentalidade que os considera como meios de amizade e de comunhão.

A riqueza, infelizmente, é de regra ocasião de divisão e incentivo à luta: ela deve tornar-se, pelo contrário, instrumento de comum participação na alegria de uma vida digna de seres humanos: riqueza, por conseguinte, como fonte de elevação para todos, na possibilidade de ter acesso aos valores da cultura, do conhecimento recíproco, da mesma experiência religiosa, favorecida por maior disponibilidade de tempo e pela interior libertação dos anseios de um futuro incerto.

São valores que podem ser entendidos somente pelo "homem novo" que, renascendo em Cristo, redescobre o verdadeiro significado das coisas.

É necessária a conversão do coração para poder olhar para as realidades do mundo com os olhos de Cristo, que, com a palavra e o exemplo, nos revelou que a verdadeira riqueza está no desprendimento, a verdadeira força no que se considera fraqueza, e a verdadeira liberdade em colocar-se voluntariamente ao serviço dos irmãos.

Bento, homem de Deus, assimilou esta "verdade" até nos seus recantos mais escondidos. Disto é prova a Regra, que se inspira nela em cada uma das suas partes: o monge é um homem que renuncia competir com os outros para os superar e dominar, mas esforça-se, ao contrário, em competir consigo mesmo no domínio das próprias ambições para se colocar ao serviço dos outros no amor.

Pois bem: o critério principal, que orientou São Bento na redacção das normas de convivência dentro do mosteiro, foi precisamente o da caridade recíproca, pela qual os "irmãos" deviam ser levados a uma atitude de constante atenção recíproca e de cuidadosa disponibilidade ao presta-rem um ao outro os serviços necessários.

Há um capítulo da Regra, o septuagésimo segundo, que traça um quadro sugestivo do relacionamento que devia instaurar-se dentro da família monástica. É uma página para a qual não só cada família cristã deveria olhar como para um estimulante ideal, mas pela qual pode reformar-se com proveito também a comunidade civil para dela haurir inspiração no ajustar os próprios relacionamentos de convivência.

465 Ao ilustrar, pois, "o fervor que deve animar com ardentíssimo espírito de caridade os monges", Bento estabelece: "antecipem-se um ao outro no reverenciar-se; suportem reciprocamente com grande paciência as suas enfermidades físicas e morais; esforcem-se pela obediência recíproca; nenhum procure o próprio proveito mas antes o do outro; nutram um para com o outro um casto amor fraterno; temam a Deus amando-O; ... não anteponham absolutamente nada a Cristo, que nos conduza todos à vida eterna" (VII, 3-9.11-12).

São indicações sem dúvida muito elevadas, cuja prática pode parecer reservada a poucos espíritos privilegiados. Não se deve esquecer, contudo, que semelhante ideal Bento ousou propor a homens provenientes de uma sociedade em decadência, em que predominavam o arbítrio, a violência e a exploração. E foi sobre a base destas normas que, do decrépito mundo de uma romanidade, reduzida já a uma larva inconsistente, puderam surgir em várias partes da Itália e da Europa os vigorosos núcleos sociais dos mosteiros, em que homens diferentes pela idade, raça e cultura se encontraram irmanados na obra ciclópica da construção de uma nova civilização.

6. Nestes valores também a nossa sociedade, interiormente corroída por perigosos germes de desagregação e de desfazimento, pode encontrar decisivos factores de coesão e recuperação. Bento oferece-nos a prova incontestável de como se pode fazer penetrar o Evangelho na história concreta dos homens, levando-lhe um dinamismo transformador, capaz de incalculáveis e benéficos desenvolvimentos. A experiência beneditina, vigorosa já pela aprovação de quase quinze séculos de história, está sob os nossos olhos para demonstrar-nos como o amor, que se abre aos irmãos para compartilhar com eles qualidades pessoais, energias e bens, se revela a verdadeira "mola" do progresso, a única capaz de fazer avançar a sociedade, sem nunca sacrificar o homem.

Oxalá Deus conceda que os homens de hoje acolham esta lição fecunda e se encaminhem com decisão, seguindo os exemplos de São Bento, pelas estradas do respeito recíproco, da abertura leal, da partilha generosa, do empenho concorde, numa palavra, pelos caminhos do amor. O futuro é construído não por quem odeia, mas por aquele que ama.

Reafirmamos isto nesta celebração litúrgica, na qual Cristo nos reúne à volta da sua mesa, para nos distribuir aquele Pão que de todos nós faz uma só coisa com Ele e n'Ele. A participação do Corpo e do Sangue do Senhor compromete os cristãos é bom recordar isto de vez em quando a serem no mundo as testemunhas do amor d'Aquele que, ao deixar-se pregar na cruz, "perdeu a própria vida" (
Mt 10,39) para consentir que o homem se reencontrasse consigo mesmo.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A ÓTRANTO (ITÁLIA)

CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA

NA COLINA DOS MÁRTIRES EM ÓTRANTO


Domingo, 5 de Outubro de 1980

1. Fez-nos vir aqui hoje a Ótranto a recordação dos Mártires. Fez-nos vir aqui a veneração para com o martírio, sobre o qual, desde o princípio, se constrói o Reino de Deus, proclamado e iniciado na história humana por Jesus Cristo.


A verdade sobre o martírio tem no Evangelho uma eloquência cheia de penetrante profundidade e ao mesmo tempo de transparente simplicidade. Cristo não promete aos Seus discípulos êxitos na terra ou prosperidade material; não apresenta diante dos olhos deles alguma "utopia", como aconteceu mais de uma vez e como acontece sempre na história das ideologias humanas. Diz simplesmente aos seus discípulos: "hão-de perseguir-vos". Entregar-vos-ão aos órgãos das diversas autoridades, meter-vos-ão na cadeia e chamar-vos-ão diante dos diversos tribunais. Tudo isto "por causa do meu nome" (Lc 21,12).

A substância do martírio, desde o princípio e no decurso de todos os séculos, está ligada com este nome. Qualificamos de mártires aqueles cristãos que, no curso da história, suportaram sofrimentos, muitas vezes terrificantes pela sua crueldade "in odium fidei". Aqueles a quem "in odium fidei" era por último infligida a morte. Portanto aqueles que, aceitando deste modo os sofrimentos e suportando a morte, deram especial testemunho a Cristo.

Colocando diante dos olhos dos Seus discípulos a imagem dos sofrimentos que os esperam por causa do Seu Nome, o Mestre diz: "Isso proporcionar-vos-á ocasião de dar testemunho" (Lc 21,13).

2. Há quinhentos anos aqui, em Ótranto, 800 discípulos de Cristo deram precisamente esse testemunho, aceitando a morte pelo Nome de Cristo. A eles se referem as palavras que o Senhor Jesus pronunciou sobre o martírio: "Sereis odiados por todos por causa do Meu nome" (Lc 21,17). Sim. Foram objecto de ódio. Beberam pelo Nome de Cristo o cálix deste ódio até ao fundo, à semelhança do seu Mestre, que da Ceia pascal se dirigiu directamente ao Getsémani e ali orava: "Pai, se quiseres, afasta de Mim este cálix" (Lc 22,42). Todavia, o cálix do ódio humano, da crueldade e da cruz não se afastou. Cristo, obediente ao Pai, esvaziou-o até ao fundo: "Não se faça a Minha vontade, mas a Tua" (Lc 22,42).

466 O testemunho do Getsémani e da cruz é selo definitivo, impresso em tudo o que Jesus fez e ensinou. Ele, aceitando a morte, deu a própria vida pela salvação do mundo. Os Mártires de Ótranto, aceitando a morte, ofereceram a vida por Cristo. E deste modo deram especial testemunho a Cristo.

O testemunho dos Mártires introdu-los de modo especial também no Seu Mistério pascal. "Com a vossa perseverança diz Jesus salvareis as vossas almas" (
Lc 21,19). Como Ele mesmo conquistou a nova vida aceitando a morte, assim os Mártires aceitando a morte, conquistam a Vida, a que deu início Cristo na Sua Ressurreição.

3. "Aquela" Vida, a Vida nova e plena, desmente, em certo sentido, a experiência da morte. Desmente sobretudo a certeza daqueles que, inflingindo a morte, julgavam tirar a vida aos Mártires, privá-los da vida e tirá-los de maneira definitiva da terra dos vivos.

"Aparentemente, estão mortos aos olhos dos insensatos, / a sua saída deste mundo é considerada desgraça, / e sua morte como destruição".

Assim proclamava-o autor do livro da Sabedoria (3, 2-3) muito tempo antes de Cristo pronunciar as suas palavras sobre o martírio.

"... mas eles estão em paz" (Sg 3,3).

Mas eles estão em paz!

No acto do martírio dá-se, por assim dizer, uma radical contraposição dos critérios e dos fundamentos, mesmos do pensar. A morte humana dos máritres, a morte ligada ao sofrimento e ao tormento — assim como a morte de Cristo na cruz cede, em certo sentido, diante de outra Realidade superior. O autor do livro da Sabedoria escreve:

"As almas dos justos estão nas mãos de Deus, / e nenhum tormento os tocará" (Sg 3,1).

Esta outra Realidade superior não anula o facto do tormento e da morte, assim como não anulou o facto da paixão e da morte de Cristo. Ela, a "mão" invisível de Deus; transforma só este facto humano. Transforma-o já na sua trama terrestre, mediante o poder da fé que se revela nas almas dos mártires diante do tormento e do sofrimento:

"Se eles, aos olhos dos homens, foram atormentados, / a sua esperança está cheia de imortalidade" (Sg 3,4).

467 A força desta fé e a força da esperança que provém de Deus são mais poderosas que o castigo e que a morte mesma. Os Mártires dão testemunho a Cristo precisamente por esta força da fé e da esperança. Eles, de facto, semelhantes a Ele na paixão e na morte, proclamam contemporaneamente o poder da Sua ressurreição. Basta recordar aqui como morria o primeiro Mártir de Cristo, o diácono Estêvão; extinguiu-se gritando: "Eu vejo os Céus abertos e o Filho do Homem, de pé, direita de Deus" (Ac 7,56).

Assim pois, graças à força da fé e ao poder da esperança, mudam em certo sentido as proporções: as proporções da vida e da morte, da derrota e da vitória, do despojamento e da elevação. O autor do livro da Sabedoria escreve em seguida:

"Depois de terem sofrido um pouco, / receberão grandes bens. / Porque Deus, que os provou, / achou-os dignos de Si" (Sg 3,5).

4. Aqui tocamos um ponto especialmente importante no facto do martírio. O Martírio é grande prova, em certo sentido é a prova definitiva e radical. É a maior prova do homem, a prova da dignidade do homem diante do próprio Deus. É difícil dizer a este propósito mais do que afirma exactamente o livro da Sabedoria: "Deus, que os provou, achou-os dignos de Si" (Sg 3,5). Não existe medida maior da dignidade do homem do que a existente em Deus mesmo: nos olhos de Deus.

O martírio é portanto "a" prova do homem que se realiza aos olhos de Deus, prova na qual o homem, ajudado pelo poder de Deus, ganha a vitória.

Através de tal prova passaram, no decurso da história, numerosos confessores e discípulos de Cristo. Através de tal prova passaram os Mártires de Ótranto há 500 anos. Através de tal prova passaram e passam os Mártires do nosso século, mártires muitas vezes desconhecidos ou pouco conhecidos, ainda que não se encontrem longe de nós.

E assim na hodierna circunstância não posso deixar de dirigir o meu olhar, além do mar, à não distante Igreja na Albânia, perturbada por dura e prolongada perseguição mas enriquecida pelo testemunho dos seus mártires: Bispos, Sacerdotes, Religiosos, Religiosas e simples fiéis.

Além de para eles, o meu pensamento vai também para os outros irmãos cristãos e para todos os crentes em Deus, que padecem semelhante sorte de privações naquela Nação.

Estarem espiritualmente próximos de todos aqueles que sofrem violência por causa da sua fé, eis um dever especial de todos os cristãos, segundo a tradição herdada dos primeiros séculos. Diria mais: aqui trata-se também de uma solidariedade devida às pessoas e às comunidades, cujos direitos fundamentais são violados ou mesmo totalmente espezinhados. Devemos pedir que o Senhor sustenha estes nossos irmãos com a Sua graça em tais provas difíceis. E queremos pedir também por quem os persegue, repetindo a invocação de Cristo na Cruz, dirigida ao Pai: "Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem".

Muitas vezes procuram-se qualificar os mártires como "culpados de crimes políticos". Também Cristo foi condenado à morte aparentemente por este motivo: porque afirmava ser rei (cf. Lc Lc 23,2). Não esqueçamos, por isso, os mártires dos nossos tempos. Não nos comportemos como se eles não existissem. Agradeçamos a Deus que eles tenham vitoriosamente superado a prova. Imploremos a força do Espírito Santo para os perseguidos, que ainda têm de medir-se com tal prova. Cumpram-se neles as palavras do Mestre: "Eu próprio vos darei palavras de sabedoria, a que não poderão resistir ou contradizer os vossos adversários" (Lc 21,15).

Mantenhamo-nos em comunhão com os Mártires. Eles escavam o leito mais profundo do rio divino na história. Constroem os fundamentos mais consistentes daquela cidade divina que se eleva para a eternidade. O autor do livro da Sabedoria proclama:

468 "(Deus) provou-os como ouro na fornalha, e aceitou-os como holocausto" (Sg 3,6).

5. Na Igreja na terra permanece a recordação e a veneração dos Santos Mártires, como aqui em Ótranto, e em tantos outros lugares da Itália, da Europa e do mundo. No Reino de Deus eles recebem, junto a Cristo, uma particular forma e poder no mistério da Comunhão dos Santos e em toda a economia divina da verdade e do amor.

"Julgarão as nações e dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre. Aqueles que põem a sua confiança n'Ele, compreenderão a verdade, e os que são fiéis habitarão com Ele no amor, porque os seus eleitos são dignos de favor e misericórdia" (Sg 3,8-9).

Os mártires, diante da Majestade da divina Justiça, poderiam gritar como lemos no Apocalipse: "Até quando, Senhor santo e verdadeiro, esperarás para julgar e tirar vingança do nosso sangue sobre os habitantes da terra?" (Ap 6,10). Todavia na luz eterna da Santíssima Trindade, unidos na suprema Verdade e no perfeito Amor, eles tornam-se porta-vozes da graça e da misericórdia para os seus irmãos e irmãs na terra. Isso mesmo se tornam até para os seus perseguidores. E tornam-se principalmente para a Igreja, que, segundo os desígnios misericordiosos de Deus, deve ser a "Cidade divina" elevada entre os povos, deve ser "em Cristo como um sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano" (Lumen Gentiu, 1).

Por isto mesmo esta Igreja, reunida hoje em Otranto sobre o grande túmulo dos Mártires, deseja, no espírito da missão que lhe é própria, elevar, por meio deles, a sua oração a Deus. Nesta oração colocam-se em primeiro lugar os problemas que nós hoje, deste grande túmulo dos Mártires de Otranto, passados 500 anos, vemos de modo novo e com nova clareza, na perspectiva da Cruz de Cristo e da Missão da Igreja.

6. O Concílio Vaticano II, que afirmou que "a Igreja é em Cristo como sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano" (Lumen Gentium LG 1), manifestou também a sua atitude coerente com tal profissão a respeito daqueles acontecimentos que, no passado, contrapuseram reciprocamente muçulmanos e cristãos como inimigos: "E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens" (Nostra Aetate NAE 3).

Para nós, estas palavras têm importância decisiva. No mesmo espírito tive já ocasião de falar mais de uma vez: em Ankara, capital da Turquia, na minha visita a esse País o ano passado; e também em Nairobi, em Accra, em Ouagadougou e em Abidjão, durante a minha recente viagem à terra africana.

Hoje, junto dos túmulos gloriosos dos Mártires de Ótranto, invoco a intercessão daqueles cujas "almas estão nas mãos de Deus" e, juntamente com toda a Igreja, elevo fervorosa oração para que as palavras do ensinamento do Concílio Vaticano II se tornem sempre mais uma realidade. Vá neste momento um pensamento deferente e cordial para a Igreja de Bizâncio que teve históricos laços com a Igreja local de Otranto.

Desta antiga Apúlia, estendida como cabeça de ponte para Levante, nós olhamos com atenção e simpatia para as regiões do Oriente e particularmente para onde tiveram origem histórica as três grandes Religiões monoteístas, isto é o Cristianismo, o Judaísmo e o Islão. Temos presente na memória o que diz o Concílio daquele "povo a que foram dados os testamentos e as promessas e do qual nasceu Cristo segundo a carne (cf. Rom Rm 9,45); povo, em virtude da eleição, caríssimo por motivo dos seus pais, porque os dons e a vocação, de Deus são irrevocáveis (cf. Rom Rm 11,28-29)". E em seguida lemos na mesma página do Concílio Vaticano II. "Mas o desígnio de salvação abraça também aqueles que reconhecem o Criador, e entre estes em particular os Muçulmanos que, professando ter a fé de Abraão, adoram connosco um Deus único, misericordioso, que julgará os homens no dia final" (Lumen Gentium LG 16)

Ao mesmo tempo não podemos fechar os olhos diante de situações particularmente delicadas que lá se criaram e ainda subsistem. Deflagraram duríssimos conflitos; a região do Próximo Oriente é atravessada por tensões e conflitos, com risco sempre ameaçador de reexplodirem novas guerras. É doloroso notar que muitas vezes os embates se deram seguindo as linhas de divisão entre grupos confessionais diversos, de maneira que foi possível para alguns, infelizmente, alimentá-los artificiosamente recorrendo ao sentimento religioso.

Os termos do drama próximo-oriental são conhecidos: o Povo Hebraico — depois de experiências trágicas, ligadas ao extermínio de muitos filhos e filhas, e impelido pela ânsia de segurança — deu vida ao Estado de Israel; ao mesmo tempo criou-se a condição dolorosa do Povo Palestinense, em notável parte excluído da sua terra. São factos que estão à vista de todos. E outros Países, como o Líbano, sofrem por uma crise que ameaça ser crónica. Nestes dias, por fim, está a decorrer um áspero conflito numa região vizinha, entre o Iraque e o Irão.

469 Reunidos hoje aqui, junto dos túmulos dos Mártires de Otranto, meditemos nas palavras da liturgia, que proclamam a glória e o poder deles no Reino de Deus: "Governarão as nações, terão poder sobre os povos e o Senhor reinará para sempre sobre eles". Portanto em união com estes Mártires, nós apresentamos ao Deus único, ao Deus Vivo, ao Pai de todos os homens, os problemas da paz no Próximo Oriente e também o problema, que tanto nos é caro, da aproximação e do verdadeiro diálogo com aqueles a quem nos une — não obstante as diferenças — a fé num só Deus, a fé herdada de Abraão. O espírito de unidade, de respeito recíproco e de entendimento mostre-se mais vigoroso do que aquele que divide e contrapõe.

O Líbano, a Palestina, o Egipto, a Península árabe e a Mesopotâmia de há milénios que alimentaram as raízes de tradições sagradas para cada um dos três grupos religiosos; lá ainda, durante séculos, conviveram nos mesmos territórios comunidades cristãs, judaicas e islâmicas; naquelas regiões, a Igreja Católica ufana-se de comunidades insignes por antiguidade de história, vitalidade, variedade de ritos e próprias características espirituais.

Domina sobranceira a todo este mundo, como centro ideal, um escrínio precioso que retém os tesouros das memórias mais venerandas, e é ela mesma o primeiro destes tesouros, a Cidade Santa, Jerusalém, hoje objecto de uma disputa que parece sem solução, amanhã — se se quiser — amanhã encruzilhada de reconciliação e de paz.

Sim, nós pedimos que Jerusalém — em vez de ser como hoje é, objecto de contestação e divisão — se torne o ponto de encontro, para o qual continuem a volver-se os olhos dos Cristãos, dos Judeus e dos Muçulmanos, como para próprio lar comum; à volta do qual eles se sintam irmãos, nenhum superior, nenhum devedor aos outros; para o qual voltem a dirigir os seus passos os peregrinos, seguidores de Cristo, ou fiéis da lei mosaica, ou membros da comunidade do Islão.

7. E agora o nosso pensamento dirige-se uma vez mais para a Liturgia dos Mártires. Olhamos com os olhos do autor do Apocalipse e vemos no grande cemitério de Ótranto e, ao mesmo tempo, na perspectiva da eterna Jerusalém... vemos: "debaixo do altar as almas dos que foram mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que deram... Deram a cada um deles uma veste branca e foi-lhes dito que repousassem ainda algum tempo, até se completar o número dos seus companheiros e dos seus irmãos" (
Ap 6,9 Ap 6,11).



Homilias JOÃO PAULO II 462