Homilias JOÃO PAULO II 248


VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE

À PARÓQUIA ROMANA DOS SANTOS DOZE APÓSTOLOS


Domingo, 16 de Dezembro de 1979




Graça e paz a vós da parte de Deus, nosso Pai, e da do Senhor Jesus Cristo (Flp 1, 2).

Com estas palavras, dirigidas por São Paulo aos primeiros cristãos da cidade de Filipos, envio a minha afectuosa saudação à comunidade paroquial dos Doze Apóstolos.

1. Saúdo, antes de mais, o Senhor Cardeal Vigário e os Prelados que quiseram participar nesta celebração eucarística.

249 Uma saudação cordial aos Membros da Cúria Generalícia dos Padres Franciscanos Menores Conventuais que, desde 1463, têm a responsabilidade pastoral desta insigne Basílica.

Uma saudação fraterna ao pároco, Padre Domenico Camusi, e aos Religiosos que dedicam as suas energias ao bem das almas desta zona e do centro histórico de Roma.

Desejo, além disso, saudar os numerosos Religiosos que vivem nos limites da paróquia: os Padres Servitas e os Padres Jesuítas da Pontifícia Universidade Gregoriana e do Pontifício Instituto Bíblico, que visitei ontem à tarde. Não posso esquecer as Religiosas: as Irmãs de Maria Reparadoras, as Irmãs do Sagrado Coração, as Filhas de São Paulo e as Irmãs Polacas, que estão ao serviço do Colégio Americano.

Uma saudação particular, enfim, a todos os fiéis: homens e mulheres, meninos e meninas, rapazes e jovenzinhas, jovens e anciãos, que formam as pedras vivas (
1P 2,5) desta comunidade paroquial. Na verdade, não sendo muito vasta — conta, de facto, 800 almas, em 272 famílias —, não é menos rica em vitalidade nem lhe faltam problemas de carácter pastoral.

2. O terceiro domingo do Advento oferece-nos sempre sinais particulares de alegria, que se manifestam em cores quentes nas vestes litúrgicas. A alegria é a antítese da tristeza e do temor. E por isso o Profeta Sofonias, convidando à alegria, exclama: Não temas, Sião, não te deixes tomar de abatimento. O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, como herói que te vem salvar. Por causa de ti vai encher-Se de júbilo e renovar-te no Seu amor; exultará de alegria por causa de ti, como em dia de festa (So 3,16-18).

Sentimos já a proximidade do Natal. Dele nos aproxima o Advento através dos seus quatro domingos, dos quais é este o terceiro.

O mesmo convite à alegria é repetido por São Paulo na carta aos Filipenses. Enquanto o Profeta anunciou a presença do Senhor em Sião o Apóstolo prenuncia a sua proximidade: Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos! Seja de todos conhecida a vossa tolerância. O Senhor está próximo! (Flp 4, 4-5).

3. A consciência da proximidade de Deus, que vem para "estar connosco" (Emanuel), deve reflectir-se em todo o nosso proceder. Disto nos fala toda a liturgia de hoje, sobretudo pela boca de São João Baptista, que pregava nas margens do Jordão.

Diversos homens o procuram para lhe perguntar: Que havemos de fazer? (Lc 3,10). São várias as respostas.

Uma para os publicanos, outra para os soldados: convida os primeiros à honestidade profissional; os outros a respeitarem o próximo nos simples problemas humanos. E convida-os a todos à mesma atitude, inculcada pelos profetas em toda a tradição do Antigo Testamento: a partilharem, tudo com os outros; a porem-se ao serviço destes segundo a própria abundância; a praticarem obras de generosidade e misericórdia.

Podemos alargar e multiplicar estas respostas de João nas margens do Jordão, transpondo-as para os nossos dias, para as condições em que vivem os homens de hoje. A sensação da proximidade de Deus provoca sempre perguntas semelhantes às que foram postas ao Precursor junto do Jordão: "Que hei-de eu. fazer?". "Que havemos nós de fazer?". A Igreja não cessa de responder a estas perguntas. Basta ler com atenção os documentos do Concílio Vaticano II para constatar a quantas perguntas do homem contemporâneo deu o Concílio a resposta adequada. Resposta dirigida a todos os cristãos e aos grupos particulares, aos bispos, aos sacerdotes, aos religiosos, aos leigos, às famílias, à juventude, aos homens da cultura e da ciência, aos homens da economia e da política, aos homens do trabalho...

250 4. É necessário, todavia, que a pergunta "Que havemos nós de fazer?" — seja feita não só por todos, mas também por cada um. Não apenas pelos grupos particulares e comunidades com base na sua responsabilidade social, mas também no mais fundo da consciência de cada um de nós. Que hei-de eu fazer? Quais são os meus deveres concretos? Como devo servir o verdadeiro bem e evitar o mal? Como devo realizar os deveres da minha vida?

O Advento conduz cada um de nós, por assim dizer, "ao compartimento interior do seu coração", para aí viver a proximidade de Deus, respondendo à pergunta que este coração humano deve pôr-se a si mesmo no conjunto da verdade interior.

E quando, sincera e honestamente, nos pomos esta pergunta na presença de Deus, acontece sempre aquilo de que fala o Precursor junto do Jordão na sua sugestiva metáfora: eis a pá de joeirar para limpar a eira.. Ela permite ao agricultor recolher o trigo no celeiro, enquanto a palha será queimada num fogo que não se apaga (Cfr. Lc
Lc 3 Lc Lc 17). É preciso fazer assim mais de uma vez. É preciso concentrarmo-nos em nós mesmos, com a ajuda da luz que o Espírito Santo nos não há-de negar, delinearmos e separarmos o bem e o mal. Chamar um e outro pelos seus nomes, sem nos enganarmos a nós mesmos. Este será então um verdadeiro "Baptismo" que renovará a alma. Aquele que está Próximo (Flp 4, 5) baptizar-nos-á no Espírito Santo e em fogo (Cfr. Lc Lc 3 Lc Lc 18).

O Advento — preparação para a grande solenidade da Encarnação — deve ficar ligado com tal purificação. Retorne-se ao costume do sacramento da Penitência. Se deve ser verdadeira a alegria pela proximidade do Senhor, anunciada neste domingo, então temos de purificar os nossos corações. A litúrgia de hoje indica-nos a dupla fonte da alegria: a primeira é a que deriva da honesta prática dos deveres da nossa vida; e segunda é a que nos é dada pela purificação sacramental e pela absolvição dos pecados que pesam sobre a nossa alma.

5. "O Senhor está próximo!" — anuncia São Paulo na carta aos Filipenses. Coliga-se com este facto o convite à esperança. De facto, enquanto a nossa vida pode oprimir cada um de nós com diversos fardos, Deus é a minha salvação (Is 12 Is 2). Se o Senhor se aproxima de nós é para que possamos haurir com alegria da água das fontes da Salvação (Is 12,3), a fim de podermos conhecer as "Suas obras", as que realizou e continua a realizar para o bem do homem.

A primeira destas obras todas é a criação: o bem natural, material e espiritual que dela nasce. Eis que nos aproximamos da nova e esplendorosa obra do Deus Vivo, do novo "mirabile Dei": eis que iremos viver de novo, na liturgia da Igreja, o mistério da Encarnação de Deus. Deus Filho fez-se homem; o Verbo fez-se carne para enxertar no coração dos homens a força e a dignidade sobrenaturais: Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jn 1,12).

É esta a razão por que, olhando para o Jordão, que nos recorda, na liturgia de cada ano, este grande Mistério, o Apóstolo brada: Não tenhais qualquer preocupação! Mas, em tudo, recorrei à oração e à súplica, juntamente com acções de graças, para que os vossos pedidos cheguem a, presença de Deus (Flp 4, 6).

Não tenhais qualquer preocupação. Assim mesmo. Não teremos, então, de realizar os nossos deveres e as nossas tarefas com toda a escrupulosidade, como ouvimos da boca de João Baptista? Certamente. Exige-nos tudo isso a proximidade de Deus. Ao mesmo tempo, porém, a mesma proximidade de Deus, a sua Encarnação e a sua vontade salvífica em relação ao homem, exigem de nós que nos não deixemos absorver completamente pelas preocupações temporais; que não vivamos de tal modo como se apenas "este mundo" fosse importante; que não percamos a perspectiva da eternidade. A Vinda de Cristo, a Encarnação do Filho de Deus, exige-nos que abramos de novo os nossos corações a esta perspectiva divina. É precisamente isto que quer dizer o Advento! É isto que quer dizer o "alegrai-vos" de hoje. A perspectiva divina da vida, que ultrapassa as fronteiras do temporal, é a fonte da nossa alegria.

6. Esta perspectiva é também a fonte da paz espiritual. As últimas palavras da segunda leitura de hoje devem ter particular significado para o homem contemporâneo; que tem vários motivos de inquietação e de medo: A paz de Deus, que está acima de toda a inteligência, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus" (Flp 4, 7).

Eis os votos da Igreja para cada um de nós ao aproximar-se o Natal.

Em nome da Igreja, desejo esta "paz de Deus" aos pais e às mães da paróquia, para que, na plena fidelidade à sua missão conjugal, saibam, com a vida e o exemplo, ajudar os filhos a crescer na fé cristã.

251 Desejo esta paz aos jovens e às jovens da paróquia, para que sempre estejam convencidos que a violência não traz alegria, antes semeia o ódio, o sangue, a morte e a desordem, e que a sociedade, por eles sonhada e antevista, será fruto dos seus sacrifícios, do seu esforço e do seu trabalho, num respeito solidário para com os demais.

Desejo esta paz aos anciãos e aos doentes da paróquia, para que estejam conscientes de que as suas orações e os seus sofrimentos são bens preciosos para o crescimento da Igreja.

Assim seja!



SANTA MISSA PARA OS UNIVERSITÁRIOS ROMANOS




Quarta-feira, 18 de Dezembro de 1979




1. Dentro de uma semana será Natal e voltareis, de certo, para junto das vossas famílias. Serão suspensas as aulas e os outros trabalhos nas escolas superiores de Roma. A grande família universitária cederá o lugar, na vossa vida, à pequena família doméstica, que está primeiro. A festa do Natal confirma, de modo particular, o primado da família na vida de cada um de nós. Neste tempo, em que Deus nasce como Homem, volte cada um ao lugar onde nasceu, para junto dos seres humanos que são seus pais — para junto do pai e da mãe —, para junto dos filhos dos mesmos pais — os irmãos e as irmãs. Todos se reencontrem naquele ambiente fundamental, naquela casa que têm o direito e o dever de chamar a sua casa — a casa familiar. Nessa noite em que Deus nasce como Menino sem casa, todos os que com a fé e com o coração se dirigem a esse Menino sentem uma particular saudade da casa.

Desejei muito encontrar-me convosco, precisamente agora, enquanto nos preparamos ainda para esta grande festa. Desejei encontrar-me convosco, com o meio universitário de Roma, enquanto ainda é tempo de Advento. Como fizemos nos dias que precederam a Páscoa, assim fazemos hoje. É bom que tenhais vindo, que estejais hoje junto de mim. Considero direito meu encontrar-me convosco nas proximidades do Natal, como o havíamos feito antes da Páscoa. Saúdo-vos cordialmente nesta Basílica de São Pedro. Saúdo-vos a todos, professores e alunos. Aqueles que encontrei já. E os novos, que estão hoje aqui pela primeira vez. Saúdo também aqueles que, por qualquer motivo, não vieram.

Nestes dias de Advento, em que a Igreja diz a Cristo que está para vir: «Vem, Senhor, não tardes» (versículo de Aleluia), queria repetir a cada um de vós o mesmo convite: «não tardes».

2. O Evangelho de hoje é muito interessante. Poder-se-ia dizer que contém em si, em certo sentido, uma concisa lição de caracterologia. Poder-se-ia dizer que este trecho foi escrito para os homens que querem olhar, com atenção, para dentro de si mesmos. Quanto nos faz pensar, de facto, o comportamento destes dois jovens, aos quais, um depois do outro, o pai diz: Filho, vai hoje trabalhar para a vinha (Mt 21,28). O primeiro diz imediatamente pronto e não mantém a palavra. O outro, ao contrário, diz primeiro: Não tenho vontade (Mt 21,30), mas acaba por ir e pôr-se a trabalhar. Quando Cristo faz a pergunta: «Qual dos dois fez a vontade do pai?», a resposta sai espontânea: «O último», com certeza.

Ouvindo estas palavras somos capazes de as referir a nós mesmos. Ponhamo-nos, por isso, a pergunta: a qual destes dois irmãos me assemelho mais? Com qual dos dois comportamentos se parece o meu comportamento habitual? Pertenço ao grupo daqueles que se inflamam com facilidade, prometem imediatamente, mas depois nada mantêm? Depressa esquecem aquilo a que se obrigaram. Ou, pelo contrário, sou o homem que primeiro diz que «não»? Talvez este primeiro «não» se tenha tomado até hábito, quase regra do meu comportamento. Digo «não», sem pretender, com isso, contrariar ninguém. Mas ... mas ... tenho necessidade daquele «não» para poder reflectir, meditar em todos os «prós» e os «contras». Para tomar, enfim uma decisão. E, como resultado, depois de primeiro ter dito «não», no fim digo «sim». Não serei, neste caso, melhor do que aquele que, com o «sim» inicial, não contrariou ninguém, mas, no fim de contas, nada fez? A luz da palavra de Cristo, tenho o direito de pensar que procedo melhor. Outras tantas reflexões sobre o próprio carácter e o próprio comportamento pode cada um de nós fazer, ouvindo o Evangelho de hoje. Tais reflexões são muito úteis. Úteis particularmente para os jovens que, não raro, se põem a pergunta: quem sou eu? como sou? quais são as minhas predisposições? que carácter devo procurar adquirir? Qualquer educador esmerado, qualquer pedagogo especializado dirá ao jovem: Põe-te essas perguntas! Responde-lhes o mais depressa possível! Não tardes!

3. O contexto completo da liturgia de hoje indica que este significativo acontecimento do Evangelho de São Mateus, de que os dois jovens são protagonistas, revela a maior dimensão da vida humana. É precisamente a esta dimensão que se deve chamar «advento». Permiti-me que eu explique porque chamei assim a esta dimensão da vida humana, que se revela através do acontecimento descrito no Evangelho de hoje.

Antes de mais, vós sentis, de certo, a necessidade da seguinte explicação introdutória e fundamental: estamos habituados a definir com a palavra «advento» um certo período litúrgico que precede o Natal e para ele nos prepara. Mas poder-se-á afirmar que o «advento» é «dimensão da própria vida humana»?

252 Fundamentando-me na liturgia de hoje, queria provar que tal extensão do significado é indispensável para que o advento, como período litúrgico, não seja vazio. De facto, nós só viveremos o «Advento» litúrgico na medida em que formos capazes de descobrir em nós o «advento» como dimensão fundamenta da nossa vida da nossa existência terrena.

É precisamente a isto que, no Evangelho de hoje, são chamados pelo pai, proprietário da vinha, os dois filhos.

4. Na realidade, que significa a «vinha»?

A vinha significa, ao mesmo tempo, o todo e a parte desse todo. Significa todo o mundo criado por Deus para o homem: para cada homem e para todos os homens. E, contemporaneamente, significa a parcela do mundo, aquele seu «fragmento», que é o dever concreto de cada homem concreto.

Nesta sua segunda significação a «vinha» está, ao mesmo tempo, «dentro de nós» e «fora de nós». Devemos cultivá-la melhorando o mundo e melhorando-nos a nós mesmos. Mais, um depende do outro: torno o mundo melhor na medida em que me melhorar a mim mesmo. Caso contrário, serei apenas um «técnico» do desenvolvimento do mundo e nunca o «trabalhador da vinha».

Sendo assim a «vinha» para que sou mandado, como o foram os dois filhos, no Evangelho de hoje, deve tornar-se, ao mesmo tempo, lugar do meu trabalho para o mundo, e do meu trabalho para mim mesmo. E isto será assim enquanto eu tiver uma sólida consciência de que Deus criou o mundo para o homem. Deus veio a primeira vez a este mundo para o homem, e para ele vem continuamente. Vem através de tudo o que este mundo é, através de tudo o que em si encerra. Cada vez que o homem avança na descoberta daquilo que o mundo criado encerra em si, elogia-se o génio do homem e, as mais das vezes, fica-se por aqui. Porém, se se reflectir mais profundamente sobre o problema, ver-se-á que este mundo, cada vez melhor descoberto pelo homem, é o advento cada vez mais pleno do Criador. Se, em cada ano, vivemos o período litúrgico do Advento, fazemo-lo para o estendermos também àquele advento, cada vez mais pleno, do Criador. Alarga-se, cada vez mais, ao homem a «vinha» a que é chamado.

5. Todavia a «vinha» significa também o mundo interior. O mundo que é o próprio homem. Cada homem constitui esse mundo único e irrepetível. Deus-Criador chega a este mundo interior através do mundo exterior, e chega, ao mesmo tempo directamente. Chega de modo incomparável, de modo diferente de todos os seres criados. O homem é, de facto, imagem e semelhança de Deus. Por isso se realiza também directamente o advento de Deus ao homem. Não apenas através do mundo que apresenta em si os traços da Sabedoria e do Poder criador, mas também directamente. Nesta vinda directa ao homem, Deus não é apenas Criador, é sobretudo Pai. Chega, por isso ao homem em Seu Filho, no Verbo eterno. Chega como Pai no Filho, pois doutro modo este não seria o advento do Pai.

O advento do Pai é, na história do homem sobre a terra, tão antigo como o próprio homem. Falam-nos disso os primeiros capítulos da revelação, as primeiras páginas do livro do Génesis. O primeiro lugar da existência humana era já a tal «vinha» interior. A «vinha» interior recebemo-la nós em herança do primeiro homem, tal como herdámos o mundo exterior, a terra que o Criador entregou ao homem para que ele dominasse sobre ela (Cfr. Gén
Gn 1,28).

É no mesmo lugar, no início, que entra também o pecado na história do homem. O pecado original é uma das realidades sobre que a liturgia do Advento se debruça com particular atenção. Neste contexto compreendemos melhor o significado da festa da Imaculada Conceição, celebrada em pleno Advento. Realçando este excepcional privilégio da Virgem, escolhida para ser a Mãe do Redentor, o Advento quer, ao mesmo tempo, recordar-nos que esta «vinha», herdada dos progenitores, produz espinhos e cardos (Gn 3,18). que encontramos nos campos, alqueivados pelo trabalho do agricultor. Encontramo-los também em nós, no nosso coração. Também dele se pode dizer que produz «espinhos e cardos».

Por isso é difícil o trabalho na vinha interior. E não nos podemos admirar que, por vezes, um jovem chamado a trabalhar nela, diga o seu «não irei». Todavia é indispensável o trabalho na «vinha interior». Doutro modo o homem introduz neste mundo, que foi criado para ele, o pecado, introduz o mal. E, na «vinha interior» alarga-se, então, o círculo do pecado, aumentam de poder as estruturas do pecado. A atmosfera do mundo em que vivemos torna-se moralmente cada vez mais envenenada. E nós não nos podemos render a esta destruição do ambiente humano por parte do pecado.

É necessário opormo-nos a ele.

253 6. Quem é Jesus Cristo? Aquele a quem nos dirigimos com a ardente invocação «Vem ... não tardes»? Aquele para cuja vinda na noite de Belém nos preparamos, e se preparam todos os homens, através do período litúrgico do Advento que precede a grande festividade do Natal? Ele é a plena e definitiva revelação do advento de Deus à história do homem. Deus desce, literalmente, ao homem. Não já através da obra da criação, ou seja através do mundo que nos fala d'Ele. Não já e apenas através dos homens que anunciam a verdade divina, como os Profetas e os grandes Chefes do Povo na Antiga Aliança. Deus desce ao homem de modo muito mais radical e definitivo: desce pelo facto de Ele mesmo se tornar Homem — Filho do homem. «Pela sua encarnação — lemos na Constituição do Concílio «Gaudium et Spes» —, Ele, o Filho de Deus, uniu-se, de certo modo, a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (Gaudium et Spes GS 22).

Jesus Cristo é a mais completa e definitiva revelação do advento de Deus à história da humanidade e à história de cada homem. De cada um de nós. E é n'Ele, na Sua vinda, no Seu nascimento na gruta de Belém, depois em toda a Sua vida e ensino, enfim na Sua cruz e na Sua ressurreição, que somos chamados, todos e cada um de nós, de modo definitivo, para a «vinha». Ele, que é a plenitude do advento de Deus, é também a plenitude do chamamento divino dirigido ao homem. N'Ele Deus parece dizer a cada um de nós: «não tardes»!

7. Devemos admitir que esta nossa «vinha» exterior e interior se modificou muito com o facto da vinda de Cristo. Por obra do Verbo Divino encontrou-se em nova luz, plenamente exposta ao sol. Por obra dos santos Sacramentos tornou-se fértil, de maneira nova. Trabalhar nela tornou-se mais fácil (o próprio Cristo diz: «O meu jugo é suave e a minha carga leve» — Mt Mt 11,30), mas também mais empenhativo: Cristo chama-lhe, de facto, «jugo» e «carga».

É necessário ver esta vinha com um sentido de máximo realismo. Encontrá-la no concreto da nossa, da vossa vida de estudantes, de universitários.

8. Em que sentido sois vós, Universitários, convidados a trabalhar na vinha pessoal da vossa vida, neste período tão importante e decisivo para vós?

À luz da mensagem de Natal, isto é, da, Encarnação de Deus na história humana, queria exortar-vos a um sério empenhamento no estudo, ou seja, na preparação para a vida profissional que escolhestes, entendendo-a como serviço ao homem, como acto de amor à humanidade. Esta tem necessidade de profissionais bem preparados, sérios e responsáveis, de modo a ser-lhes confiada a vida dos indivíduos e da comunidade de amanhã. A humanidade tem necessidade de personalidades equilibradas, amadurecidas, generosas, compreensivas e superiores a todo e qualquer egoísmo. E este é precisamente o tempo precioso da vossa formação intelectual, moral e afectiva, para os deveres que vos esperam na sociedade e para os que um dia assumireis na família que sereis chamados a constituir e que, a partir de agora. deve polarizar as vossas energias morais, para que sejais amanhã aqueles pais e aquelas mães que Deus quer e a Igreja espera.

Empenhai-vos em aprofundar a vossa fé cristã. O presente e vivo contraste de várias mentalidades derivadas de diversas filosofias, e o pluralismo ideológico, exigem conhecimento mais profundo e claro dá própria fé para ser possível vivê-la e testemunhá-la com mais serena convicção. Para além das tensões e das crises, provocadas pelas ideologias anti ou acristãs, há hoje grande necessidade de estudo sério e metódico da Revelação, para compreender que não há oposição entre fé e ciência, e que a ciência, nas suas aplicações, deve até ser iluminada pela fé.

Deve ser este também o vosso dever jovial de Universitários!

Procurai, enfim, viver em graça! Jesus nasceu em Belém, precisamente para isso: para nos revelar a verdade salvífica e para nos dar a vida da graça! Procurai ser sempre participantes da vida divina infundada em nós pelo Baptismo. Viver em graça é suprema dignidade, é inefável alegria, é garantia de paz, é ideal maravilhoso e deve ser também lógica preocupação de quem se diz seguidor de Cristo. Natal, portanto, significa a presença de Cristo na alma, através da graça.

E se, por fragilidade da natureza humana, se perdeu a vida divina por causa do pecado grave, o Natal deve então significar o retorno à graça mediante a Confissão sacramental, feita com seriedade de arrependimento e de propósitos. Jesus vem ainda para perdoar; o encontro pessoal com Cristo torna-se conversão, novo nascimento para assumir totalmente as próprias responsabilidades de homem e de cristão.

9. «Vem, Senhor, não tardes». Desejo, meus caros Amigos, que saiais do nosso encontro de hoje melhor e mais profundamente preparados para a Festa do Natal.

254 Desejo que estendais em vós a «dimensão interior do Advento», que é dimensão essencial de toda a existência cristã.

Desejo, finalmente, que este encontro com Cristo, para o qual se prepara toda a Igreja, vos traga a alegria. A alegria verdadeira. E que a vossa alegria seja completa (Cfr.
2Jn 12).

Vem, Senhor, não tardes.

10. Permiti ainda que formule algumas intenções para a nossa oração comum.

Os factos que, nos últimos dias e semanas, abalaram a opinião pública, estão certamente presentes na consciência de cada um de nós. Não se pode deixar de os recomendar a Deus, não se podem deixar estes problemas fora do âmbito da nossa oração.

Não podemos, portanto, deixar de recordar aquele amigo da vossa idade que, há cerca de 4 horas, encontrou a morte numa rua de Roma — mais uma vítima do inquietante processo de que somos testemunhas no nosso País.

Tal processo, que se nota sobretudo no norte de Itália, leva-nos a pensar nos meios particularmente atingidos pelas acções terroristas, em especial em Turim, como o testemunham as notícias dos últimos dias. Devemos, de formas diversas, manifestar a nossa solidariedade fraterna com aqueles que morrem assassinados. Com aqueles que — ainda não há muito tempo — foram feridos.

Com todos os que sofrem. É necessário também — tal como o fez Cristo— rezar por aqueles que fazem sofrer e provocam a morte, que difundem a violência e semeiam o terror.

Não podemos, todavia e ao mesmo tempo, deixar de perguntar-nos: qual é a finalidade destes actos que causam tanto sofrimento a indivíduos particulares, a famílias inteiras e a diferentes meios? E não podemos deixar de perguntar-nos de que fontes, de que premissas, de que concepção do mundo (nestes casos, seria bastante difícil falar de uma «ideologia») nasce tal espécie de comportamento em relação ao homem, a total falta de respeito pela sua vida, a tendência desenfreada para a violência, para a destruição e para o homicídio. Devemos meditar nisto.

Devemos reflectir sobre tudo isto.

Devemos fazer destas perigosas manifestações o tema da nossa oração pessoal e comunitária. E devemos, ainda, fazer objecto da nossa oração a grande ameaça do mundo, e em especial do nosso continente europeu, manifestada no decurso das últimas semanas.

255 A este problema— que inquieta, com razão, a opinião de todos — voltarei ainda, por ocasião do próximo Dia Mundial da Paz, a que se refere também a Mensagem publicada hoje, que se intitula: A verdade, força da paz.

Desejo inserir na nossa oração de hoje, na nossa liturgia eucarística, todos estes problemas, que se apresentam à solicitude social. Sim! É necessário rezar. É necessário vigiar em oração diante de Deus, para que o mal, que está crescendo dentro dos homens, se não torne mais forte que a nossa fraqueza. E, com a liturgia do Advento, é necessário gritar:

«Vem, Senhor, não tardes!».



SANTA MISSA DA MEIA-NOITE DO NATAL DE 1979


HOMILIA DE JOÃO PAULO II


Basílica Vaticana, 24 de Dezembro de 1979






1. Eis que de novo chegou a hora deste maravilhoso acontecimento: completaram-se os dias de Ela dar à luz e teve o seu Filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver para eles lugar na hospedaria (Lc 2,6-7). Perguntamo-nos: é acontecimento insólito? Quantas crianças nascem em toda a terra durante 24 horas, enquanto nalgumas partes do mundo é dia e noutras é noite! Certamente, cada um desses momentos é alguma coisa de insólito; é cada vez alguma coisa de único — para um pai, e sobretudo para uma mãe — nascer uma criança especialmente se se trata da primeira, do filho primogénito.

Aquele momento é sempre coisa grande. Todavia — dado que se realiza continuamente em qualquer lugar do mundo, em todas as horas do dia e da noite o nascimento do homem, no seu aspecto estatístico, é ainda ao mesmo tempo algo de comum e normal.

Também o nascimento de Cristo parece entrar nesta dimensão estatística, tanto mais que a ele se une, segundo a narrativa de São Lucas, a menção dum recenseamento, realizado nas terras governadas pelo imperador romano César Augusto; o evangelista explica que, para a aldeia habitada por Maria e José, a ordem do recenseamento veio do governador da Síria, Quirínio.

A tal acontecimento fazemos referência todos os anos, e fazemo-la como hoje, reunindo-nos nesta Basílica à meia-noite. Ora, se neste acontecimento há alguma coisa de insólito, talvez esteja em não se realizar nas habituais condições humanas, debaixo do tecto duma casa, mas num estábulo, que ordinariamente recebe apenas animais. O primeiro berço do Divino Recém-nascido, de facto, é uma manjedoira.

Esta noite, reunimo-nos nesta esplêndida Basílica, para fazer companhia ao Menino duma Mulher pobre, nascido num estábulo e deitado numa manjedoira.

2. Certamente nenhum dos habitantes, nem dos recém-chegados, presentes então em Belém, podia pensar que naquele momento e naquele estábulo se estavam a realizar as palavras do grande Profeta, muitas vezes relidas e continuamente meditadas pelos filhos de Israel.

Isaías escrevera, na verdade, palavras que formam o conteúdo duma grande Expectativa e duma inflexível Esperança:

256 Multiplicastes a alegria, / aumentastes o júbilo. / Rejubilam na vossa presença / como exultam no tempo da colheita ... / É que um menino nasceu para nós, / um filho nos foi concedido. / Tem o poder sobre os ombros ... / o poder será engrandecido / numa paz sem fim / para o trono de David e seu reinado, / a fim de o estabelecer e tornar firme, / por meio do direito e da justiça. / A partir de agora e por todo o sempre (Is 9,2 Is 9,5-6).

2. Nenhum dos presentes em Belém podia pensar que exactamente naquela noite as palavras do grande Profeta se estavam a realizar, nem que a profecia se estava cumprindo num estábulo, habitação ordinária de animais. Isto por não haver para eles (Maria e José) lugar na hospedaria (Lc 2,7).

3. Contudo há certos elementos, certas alusões nas palavras de Isaías, que já nesta noite parecem realizar-se à letra. Isaías escrevera:

O povo que andava nas trevas / viu uma grande luz; / aos que habitavam na região tenebrosa / resplandeceu uma brilhante luz (Is 9,2).

Ora, toda Belém e toda a Palestina naquele momento é «região tenebrosa» e os seus habitantes estavam a dormir. Mas fora da cidade — como lemos no Evangelho de Lucas — na mesma região encontravam-se uns pastores, que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite (Lc 2,8). Os pastores são filhos daquele «povo que anda nas trevas» e ao mesmo tempo são os representantes escolhidos para aquele momento, escolhidos «para ver a grande luz». Exactamente isto, na verdade, escreve São Lucas sobre os pastores de Belém: O anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu em volta deles, e tiveram muito medo (Lc 2,9).

E da profundidade daquela luz, que lhes vem de Deus, e na profundidade daquele medo, que é a resposta dos corações simples à Luz Divina, chega a voz:

Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria ...: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador que é o Messias Senhor (Lc 2,10-11).

Estas palavras devem ter produzido grande alegria nos corações daqueles homens simples, educados e alimentados, como todo o Povo de Israel, por uma grande Promessa, na tradição da expectativa do Messias. E justamente diz o Mensageiro que esta alegria será para todo o povo (Lc 2,10), isto é, exactamente para aquele Povo de Deus, que «andava nas trevas», mas não se cansava de pensar na Promessa.

4. Era necessário, precisamente naquela noite, um Mensageiro que levasse ao estábulo e à manjedoira de Belém a «grande luz» da profecia de Isaías. Era necessária esta luz, era necessária a manifestação da glória (Tt 2,13) — escreve São Paulo —, para se poder ler bem o Sinal: Encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoira (Lc 2,12). E os pastores de Belém, pessoas simples sem letras, leram muito bem o Sinal. Foram os primeiros, precederam todos aqueles que o leram em seguida e o relêem ainda agora. Foram as primeiras testemunhas do Mistério. Nós, que nesta noite enchemos a Basílica de São Pedro, e todos os que em qualquer lugar estão presentes na Missa da Meia-Noite, aproveitamos o testemunho que eles deram. Não sem motivo é chamada, nalgumas regiões, esta Missa da Meia-Noite, «Missa dos pastores».

5. Recordemo-nos que é a noite do Mistério, embora se pudesse apreciar doutro modo o acontecimento de aparecer a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador (Tt 2,13) com o nascimento do Menino, quando Ele passou da Virgem para o mundo, e quando na noite do seu nascimento não teve à disposição um tecto de casa sobre a cabeça, mas só uma manjedoira.

Ora, tendo-nos reunido aqui como participantes do primeiro testemunho dado pelos pastores de Belém àquele Mistério, procure-mos reflectir a fundo sobre ele.

257 Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14).

Estas palavras provêm da mesma luz, que brilhou aquela noite no coração dos homens de boa vontade.

Deus revê-se nos homens.

Esta noite representa um testemunho particular da divina complacência no homem. Não o criou Deus à sua imagem e semelhança? As imagens e as semelhanças cria-as alguém para ver nelas o reflexo de si mesmo. Por isso, olha para elas com complacência.

Deus não encontrou acaso complacência no homem, se, depois de o criar, o considerou coisa muito boa (Gn 1,31)?

E eis que em Belém estamos no auge dessa complacência. O que sucedeu então, pode acaso exprimir-se doutro modo?

É possível compreender diversamente o Mistério, pelo qual o Filho de Deus assume a natureza humana e nasce como Criança do seio da Virgem? É possível reler doutro modo este Sinal?

6. E por isto que, à meia-noite do Natal, diversos povos começam um grande cântico. Difunde-se todos os anos, inspirado no mesmo estábulo de Belém. Ressoa nos lábios dos homens de muitas terras e muitas raças. Ressoa o grande cântico da alegria e assume formas diversas. Cantam na Itália, cantam na Polónia, cantam em todas as línguas e nos vários dialectos, em todos os países e continentes.

Os homens, então, despertam; o homem acorda, «pastor do seu destino» (Heidegger).

Deus compraz-se no homem.

Quantas vezes é o Homem esmagado por este destino! Quantas vezes fica prisioneiro dele! Quantas vezes morre de fome, quantas vezes está perto do desespero, quantas vezes é ameaçado na consciência que tem da significação da própria humanidade! Quantas vezes apesar de todas as aparências — está o homem longe de comprazer-se em si mesmo!

258 Mas hoje ele acorda e ouve o anúncio:

Deus nasce na história humana.
Deus compraz-se no homem,
Deus tornou-se homem,
Deus compraz-se em ti!
Ámen.



Homilias JOÃO PAULO II 248