Homilias JOÃO PAULO II 375


SANTA MISSA PARA UMA PEREGRINAÇÃO IRLANDESA


Capela Paulina

Quarta-feira, 28 de Maio de 1980




Caros Irmãos e Irmãs da paróquia de Long Tower

1. Sei que por muito tempo andastes a pensar na vossa visita a Roma. Tivestes essa meta constantemente no espírito; fizestes planos com muita antecipação; preparastes-vos espiritualmente para esta peregrinação de fé. E agora as vossas esperanças e os vossos planos tornaram-se realidade, e esta realidade traz alegria aos vossos corações e também ao meu.

Além disso, este momento presente é a parte clara no quadro do vosso dia, porque estamos a celebrar juntos o Sacrifício Eucarístico, que é — como o Concílio Vaticano II nos recorda — "fonte e centro de toda a vida cristã" (Lumen gentium LG 11).

2. Viestes com as próprias alegrias e tristezas, trazendo nos corações as vossas intenções e as dos vossos queridos. Viestes invocar a intercessão dos santos Apóstolos de Roma, Pedro e Paulo, que dos muros desta capela dirigem o vosso olhar para o Senhor. Acima de tudo, viestes procurar Jesus Cristo no centro da Sua Igreja e renovar a vossa confiança n'Ele. É como se ouvísseis e observásseis as palavras do autor inspirado impelindo-vos a ir para Cristo: "Aproximemo-nos então confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e achar graça para sermos socorridos no tempo oportuno" (He 4,16).

3. E hoje toda a vossa expectativa veio a ser satisfeita. Vós aproximastes-vos de Cristo e Ele uniu-vos à Sua adoração eucarística do Pai. Dá-vos a Sua graça e favor, o Seu amor e a Sua paz.

4. A sensação de expectativa que precedeu a vossa visita durante estes meses, mesmo anos, desde que principiastes a fazer os vossos planos, é o símbolo de outra expectativa — expectativa que é parte da vida cristã. A oração na Missa fala desta, quando diz que "esperamos com alegre esperança a vinda do nosso Salvador Jesus Cristo".

A vinda do nosso Salvador Jesus Cristo na glória é o grande acontecimento futuro que dá dimensão completamente nova às nossas vidas. Somos cidadãos de uma cidade terrestre, em que a fadiga e o pão, o trabalho e o esforço são parte da estrutura da nossa existência. Deus quer a nossa condição temporal, tanto como Ele quer seja o nosso futuro destino, mas é precisamente à luz do futuro que todas as coisas presentes entram em perspectiva. Por outras palavras, a plenitude da realidade será revelada só quando Cristo vier de novo para nos tomar para Si — todos nós que fomos remidos pelo Seu precioso sangue, "o sangue precioso como de um cordeiro imaculado e sem defeito algum" (1P 1,19). A Sua vinda para cada um de nós num momento que só o Pai conhece, e a sua vinda final na glória dão nova dimensão à nossa perspectiva de vida.

376 5. É parte da nossa responsabilidade temporal trabalhar pelo progresso do Reino de Deus na terra, promover a dignidade de cada ser humano, combater a violência, aumentar o entendimento e a compaixão, e construir o edifício da paz nos seguros alicerces da justiça e do amor. Como o Filho do homem, nós estamos aqui "não para ser servidos mas para servir". Ao fazermos isto encontramos grande alegria e felicidade, e sabemos também que "nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem passou nunca pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que O amam" (1Co 2,9).

6. O elemento de expectativa é portanto parte da nossa vocação cristã. Corresponde ao plano de Deus. Esperar o nosso Salvador Jesus Cristo, longe de nos darmos uma desculpa para a inactividade ou falta de sensibilidade perante as necessidades do mundo, anima-nos "a viver no século presente com toda a sobriedade, justiça e piedade" (Tt 2,12).

Filhos muito amados: este é o testemunho que devemos dar ao mundo: mostrar pelas nossas acções que realmente cremos que "Cristo virá de novo". Nesta expectativa descobrimos o valor imenso dos nossos esforços como cristãos vivos. Nesta expectativa encontramos profunda alegria para as nossas vidas.

E ao voltardes para a pátria, eu desejaria pedir-vos que levásseis a minha mensagem a todos os membros da vossa paróquia, a todo o povo da Diocese de Derry. Dizei a todos que o Papa vos pede que vivais em alegre esperança, na firme convicção da vinda do "nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo" (Tt 2,13). Dizei a todos eles que o Papa lhes agradece a profunda fidelidade que dedicam a Cristo e ao Seu Vigário na terra. A vós aqui presentes, e a todos os que vos são queridos na Pátria, concedo de todo o coração a minha Bênção Apostólica.

VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX


Catedral de Notre-Dame, Paris

Sexta-feira, 30 de Maio de 1980




1. Amas tu?

Pergunta fundamental, pergunta corrente: a pergunta que abre o coração — e que dá o sentido à vida. É a pergunta que decide da verdadeira dimensão do homem. Em resposta é o homem todo que deve exprimir-se; e deve também ultrapassar-se a si mesmo.

Amas-me tu?

Esta pergunta foi feita, há um instante, neste lugar: É um lugar histórico, lugar sagrado. Aqui, encontramos nós o génio da França, o génio que se exprimiu na arquitectura deste templo há oito séculos e está sempre presente para dar testemunho do homem. O homem, com efeito, através de todas as formas com que procura definir-se, não pode esquecer que é, ele também, um templo: é o templo em que habita o Espírito Santo. Por esta razão, o homem elevou este templo que lhe presta testemunho há oito séculos: Notre-Dame.

Aqui, neste lugar, durante o nosso primeiro encontro, esta pergunta devia ser feita: "Amas-me tu?". Mas ela deve ser feita em toda a parte e sempre. Esta pergunta deve o homem fazê-la a si mesmo, continuamente.

377 2. Esta pergunta foi feita por Cristo a Pedro. Cristo fê-la três vezes, e três vezes respondeu Pedro. "Simão filho de João, tu amas-Me? — sim, Senhor Tu sabes que Te amo" (Jn 21,11).

E Pedro embrenhava-se já, com esta pergunta e com esta resposta, no caminho que devia ser o seu, até ao fim da vida. Por toda a parte o devia seguir o admirável diálogo em que ele ouvira também três vezes: "Apascenta os Meus cordeiros", "Apascenta as Minhas ovelhas... Sê o pastor deste redil, de que sou Eu a Porta e o Bom Pastor" (cfr. Jo Jn 10,7).

Sempre, até ao fim da vida, devia Pedro continuar no caminho, acompanhado desta pergunta tripla: "Tu amas-Me?". E media todas as suas actividades pela resposta que dera. Quando foi convocado diante do Sinédrio. Quando foi metido na prisão em Jerusalém; prisão de que não devia sair... mas de que apesar disso saiu. E quando saiu de Jerusalém para o Norte, para Antioquia, e depois, mais longe ainda, de Antioquia para Roma. E quando em Roma, tendo ele perseverado até ao fim dos seus dias, conheceu a força das palavras segundo as quais outro o levava para onde ele não queria... (cfr. Jo Jn 21,18).

E sabia também que, devido à força destas palavras, a Igreja era assídua "ao ensino dos Apóstolos e à união fraterna, à fracção do pão e às orações"... e que "o Senhor aumentava" todos os dias o número dos que tinham entrado no caminho da salvação" (Ac 2,42 Ac 2,47).

Assim se passaram as coisas em Jerusalém. Depois em Antioquia. Depois em Roma. E em seguida também aqui, a Ocidente e a Norte dos Alpes: em Marselha, Lião, Paris....

3. Pedro não pode nunca separar-se desta pergunta: "Amas-Me tu?". Leva-a consigo aonde quer que se dirige. Leva-a através de séculos, através das gerações. Ao meio de novos povos e novas nações. Ao meio de línguas e raças sempre novas. Leva-a ele só, ainda quando já não está só. Outros a levam com ele: Paulo, João, Tiago, André, Ireneu de Lião, Bento de Nórcia, Martinho de Tours, Bernardo de Claraval, o Pobrezinho de Assis, Joana d'Arc, Francisco de Sales, Joana Francisco, de Chantal, Vicente de Paulo, João Maria Vianney, Teresa de Lisieux.

Nesta terra que me é dado visitar hoje, aqui nesta cidade, houve e há muitos homens e mulheres que souberam e sabem ainda hoje que toda a sua vida tem valor e sentido, única e exclusivamente na medida em que ela é uma resposta a esta mesma pergunta: Amas tu? Amas-Me tu? Deram e dão a sua resposta de maneira total e perfeita — resposta heróica — ou então de maneira comum, ordinária. Mas, seja como for, sabem que a sua vida, que a vida humana em geral, tem valor e sentido na medida em que é a resposta a esta pergunta: Amas tu? E somente graças a esta pergunta que a vida vale a pena ser vivida.

Venho aqui seguindo as suas pegadas. Visito a pátria terrestre desses. Recomendo à intercessão deles a França e Paris, a Igreja e o mundo. A resposta que deram a esta pergunta "Amas tu?" tem significado universal, valor que não passa. Constrói, na história da humanidade, o mundo do bem. Só o amor constrói tal mundo. Constrói-o com dificuldade. Tem de lutar para lhe dar forma: tem de lutar contra as forças do mal, do pecado e do ódio, contra a concupiscência da carne, contra a concupiscência dos olhos e contra a soberba da vida (cfr. 1Jn 2,16).

Esta luta é incessante. É tão velha como a história do homem. No nosso tempo, esta luta, para dar forma ao nosso mundo, parece ser maior que nunca. E mais de uma vez nos perguntamos a temer, se o ódio não vencerá o amor, a guerra a paz, e a destruição a construção.

Como é extraordinária a eloquência desta pergunta de Cristo: "Amas tu?". É fundamental para cada um e para todos. É fundamental para o indivíduo e para a sociedade, para a nação e para o Estado. É fundamental para Paris e para a França: "Amas tu?".

4. Cristo é a pedra angular desta construção. E a pedra angular desta forma que o mundo, o nosso mundo humano, pode tomar, graças ao amor.

378 Pedro sabia-o, ele a quem perguntou Cristo três vezes: "Amas-me tu?". Pedro sabia-o, ele que, na hora da prova, renegou o Mestre três vezes. E a voz tremia-lhe quando respondeu: "Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo" (Jn 21,15). Contudo, não respondeu "Todavia, Senhor, eu enganei-Te", mas: "Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo". Dizendo isto, sabia já ser Cristo a pedra angular sobre que, apesar de toda a fraqueza humana, pode crescer nele, Pedro, esta construção que terá a forma do amor. Através de todas as situações e todas as provas. Até ao fim. Por isso escreverá ele um dia, na sua carta que nós acabamos de ler, o texto sobre Jesus Cristo, pedra angular sobre que "vós mesmos, como pedras vivas, entrais na construção de um edifício espiritual, por meio de um sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus por Jesus Cristo" (1P 2,5).

Tudo isto nada mais significa do que responder sempre e constantemente, com tenacidade e de maneira consequente, a esta única pergunta: Amas-me? Amas-me tu? Amas-me tu mais?

É com efeito esta resposta, quer dizer, este amor, que faz que sejamos "raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido..." (1P 2,9).

Ela é que faz que proclamemos as obras maravilhosas d'Aquele que nos "chamou das trevas para a Sua luz admirável" (ibid.).

Tudo isto soube-o Pedro na absoluta certeza da sua fé. E tudo isto o sabe e continua a confessá-lo também nos seus sucessores. Sabe, sim, e confessa que esta pedra angular — que dá a toda a construção da história humana a forma do amor, da justiça e da paz — foi, é e será, verdadeiramente, a pedra rejeitada pelos homens..., pelos homens, por muitos dos que são os construtores do destino do mundo; contudo, apesar disso, é Ele verdadeiramente, Jesus Cristo, quem foi, quem é e quem será a pedra angular da história humana. E é d'Ele que, apesar de todos os conflitos, objecções e negações, apesar da obscuridade e das nuvens que não cessa de se acumular no horizonte da história — e vós sabeis quanto elas são ameaçadoras hoje, na nossa época! — é d'Ele que surgirá a construção que não passa, é sobre Ele que ela se elevará, e é a partir d'Ele que ela se desenvolverá. Só o amor tem a força para conseguir isto. S6 o amor não conhece declínio.

Só o amor dura sempre (cfr. 1Co 13,8). 56 ele constrói a forma da eternidade nas dimensões terrestres e fugazes da história do homem na Terra.

5. Estamos aqui num lugar sagrado: Notre-Dame. Esta esplêndida construção, tesouro da arte gótica, os vossos avós consagraram-na à Mãe de Deus. Consagraram-na àquela que, entre todos os seres humanos, deu a resposta mais perfeita a esta pergunta: Amas-tu? Amas-Me tu? Amas-Me tu mais?

A sua vida inteira foi, com efeito, resposta perfeita, sem nenhum erro, a esta pergunta.

Convinha portanto que eu principiasse, num lugar consagrado a Maria, o meu encontro com Paris e com a França, encontro para que fui tão cortesmente convidado pelas Autoridades do Estado e da cidade, pela Igreja e pelos seus Pastores. A minha visita de segunda-feira à sede da UNESCO em Paris adquire deste modo o seu quadro completo e a dimensão que convém à minha missão de testemunho e de serviço apostólico.

Este convite é para mim de grande valor. Aprecio-o muito. Desejo também, segundo as minhas possibilidades e segundo a graça de estado que me foi dada, responder a este convite e fazer-lhe atingir a sua finalidade.

Por isso, alegro-me de que o nosso primeiro encontro se realize na presença da Mãe de Deus, diante d'Aquela que é a nossa esperança. Desejo confiar-lhe o serviço, que me pertence levar a termo, no meio de vós. É a ela também que eu peço, ao mesmo tempo que vós todos, caros irmãos e irmãs, que este serviço seja útil e frutuoso para a Igreja na França, para o homem e para o mundo contemporâneo.

379 6. São numerosos os lugares do vosso país aonde muitas vezes, talvez cada dia, o meu pensamento e o meu coração se dirigem em peregrinação: o santuário da Virgem Imaculada em Lourdes, Lisieux e Ars, aonde desta vez não poderei ir, e Annecy, para onde fui convidado há muito tempo sem poder até agora realizar o meu desejo.

Eis que se apresenta diante dos meus olhos a França, Mãe de santos no decorrer de gerações e de séculos. Oh quanto desejo eu que eles voltem todos ao nosso século e à nossa geração, segundo o número das carências e responsabilidades desta.

Neste primeiro encontro, desejo, a todos e a cada um, que oiçam em toda a sua eloquência a pergunta que outrora dirigiu Cristo a Pedro: Amas? Amas-Me tu? Ressoe esta pergunta e encontre eco profundo em cada um de nós.

O futuro do homem e do mundo depende desta pergunta. Escutá-la-emos? Compreenderemos a sua importáncia? Como responderemos a ela?



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX



AOS TRABALHADORES NA BASÍLICA DE SAINT-DENIS


Paris, 31 de Maio de 1980




1. "Bendita sois vós..."

Permiti-me, caros Irmãos e Irmãs, reunidos no interior desta venerável basílica de São Dinis que encerra os túmulos dos reis da França, saudar convosco a Maria, Mãe de Cristo.

As palavras desta saudação vós conhecei-las. Com certeza que mais de uma vez as pronunciastes ou as ouvistes pronunciar por outros:

"Sois bendita entre todas as mulheres, / e o fruto do vosso ventre é bendito" (Lc 1,42).

Saudação que se diriges uma mulher que traz no seio um homem: o fruto da vida e o começo da vida. Esta mulher vem de longe, de Nazaré, e eis que entra na casa de seus parentes que veio visitar. Ainda na soleira da casa, já ouve: "Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor!" (Lc 1,45).

No último dia do mês de Maio, a Igreja recorda-se desta visita e destas palavras; saúda Maria, Mãe de Jesus Cristo. Presta honras à sua Maternidade, quando esta não é ainda senão um mistério no seu seio e no seu coração.

380 Quero primeiro prestar honras à maternidade, e à fé no homem que esta implica. Quero em seguida prestar homenagem ao trabalho do homem, trabalho por meio do qual ele provê à vida dos seus, da sua família primeiramente — esta família tem portanto direitos fundamentais — ; este trabalho por meio do qual o homem realiza a sua vocação ao amor, porque o mundo do trabalho humano é construído sobre a força moral, sobre o amor. É o amor que deve inspirar a justiça e a luta pela justiça.

2. Prestar honra à maternidade quer dizer aceitar o homem na sua plena verdade e na sua plena dignidade, isto mesmo desde o princípio. O princípio do homem está no coração da sua mãe.

Nesta grande concentração; em que participam sobretudo os trabalhadores, desejaria saudar cada homem, cada mulher, em virtude da grande dignidade que lhes pertence desde o primeiro momento de existência no coração das próprias mães. Tudo o que :nós somos encontra lá o seu começo.

A primeira medida da dignidade do homem, a primeira condição do respeito dos direitos invioláveis da pessoa humana, é a honra devida à mãe. É o culto da maternidade. Não podemos separar o homem do seu começo humano. Hoje — que tanto sabemos já sobre os mecanismos biológicos que, nos seus campos respectivos, determinam este começo — precisamos, com uma consciência bem mais viva e uma convicção bem mais ardente, de proclamar o começo humano profundamente humano de todo o homem como o valor fundamental e a base de todos os seus direitos. O primeiro direito do homem é o direito à vida. Devemos defender este direito e este valor. No caso contrário, toda a lógica da fé no homem e todo o programa do progresso verdadeiramente humano ficariam abalados ou desabariam.

Na soleira da casa de Zacarias, Isabel diz a Maria: Feliz és tu, tu que acreditaste (cfr. Lc
Lc 1,45). Prestemos honra à maternidade, porque nela se exprime a fé no homem. Sinto uma alegria suplementar ao fazê-lo nesta véspera da festa, que todas as famílias francesas consagram às mães. O acto de fé no homem está em os seus pais lhe darem a vida. A mãe trá-lo no seu seio e está pronta a sofrer todas as dores do parto; graças a isso mesmo, com todo o próprio ser feminino, com todo o próprio eu maternal, proclama ela a sua fé no homem. Dá testemunho ao valor que está nela e ultrapassa-o ao mesmo tempo, e ao valor que constitui aquele que, ainda desconhecido, recém-concebido, plenamente, escondido no seio da mãe, deve nascer e deve manifestar-se ao mundo como filho de seus pais, como confirmação da humanidade deles, como fruto do amor mútuo e como futuro da família: da família mais próxima e, ao mesmo tempo, de toda a família humana.

Este filho será, talvez fraco, inadaptado, será talvez deficiente. Assim acontece por vezes. A maternidade é sempre uma dor — amor que se paga com sofrimento —, e acontece que este amor haja de ser ainda maior que a dor do parto mesmo. Esta dor pode abarcar toda a vida do filho. O valor da humanidade é confirmado também por estes filhos e por estes homens em que ele é retardado sofre por vezes dolorosa degradação...

É um elemento a mais para se dizer que não basta definir o homem segundo todos os seus critérios fisiológicos, e que se deve crer, desde o princípio, no homem.

Bendita sois vós, Maria, vós que acreditastes! Aquele que vós trazeis no coração, como fruto do vosso ventre, virá ao mundo na noite de Belém. Anunciará em seguida aos homens o Evangelho e subirá à cruz. Foi por isso, de facto, que Ele veio mundo: para dar testemunho à verdade.... Nele se manifestará até ao fim a verdade sobre o homem, o mistério do homem, a sua última e mais alta vocação: a vocação de todo o homem, mesmo do homem cuja humanidade não haja de chegar talvez a um desenvolvimento concreto e normal; de todo o homem sem excepção; não nos atendo a considerar nada a qualificação ou os graus de inteligência; de sensibilidade ou de rendimento físico, mas em virtude da sua humanidade em si, do facto de ser homem. Porque graças a isto, graças à sua humanidade mesma, ele é imagem e semelhança do Deus infinito.

3. Sei que, nesta assembleia, são principalmente trabalhadores que me ouvem. Este bairro, à volta da sua basílica carregada de história, transformou-se hoje num dos bairros mais de operários na periferia, parisiense. E sei que muitos trabalhadores, franceses e estrangeiros, vivem e trabalham aqui em condições muitas vezes precárias de alojamento, salário e emprego. Penso também na população francesa de Além-Mar. Número importante dos seus filhos trabalham aqui, em Paris; eles representam-na entre nós. Penso de maneira especial nos que vieram de longe, de Portugal, da Espanha, da Itália, da Polónia da Jugoslávia, da Turquia, da África do Norte; do Mali, do Senegal e do Sudeste Asiático. Apesar dos esforços que foram realizados em favos deles e do acolhimento que lhes é reservado neste país, vem juntar-se necessariamente à dura condição operária um desenraizamento, tanto mais penoso quanto por vezes a família está dividida entre o país de origem e o país de trabalho. Há também o sofrimento de um anonimato que pode dar saudades do calor afectiva da cidade ou da aldeia natal. Sim, esta cidade urbana actual torna as relações humanas difíceis, na sufocação de uma corrida nunca terminada entre o local de trabalho, o de alojamento familiar e os centros de abastecimento. A integração das crianças, dos jovens e dos anciãos, apresenta muitas vezes problemas agudos. São outros tantos apelos a que se trabalhe em harmonia, para criar condições de vida cada vez mais humanas para todos. A presença dos migrantes é aliás fonte de trocas frutuosas para uns e outros.

Desejo sobretudo animar o apostolado cristão que é realizado numa verdadeira solicitude de evangelização por sacerdotes, religiosas e leigos jovens e adultos, completamente dedicados a este mundo operário.

Vou entrar agora numa reflexão exigente sobre o trabalho do homem e sobre a justiça: todos aqueles cuja vida acabo de evocar saibam bem que tenho viva no espírito a sua situação e os seus esforços, e desejo manifestar-lhes todo o meu afecto assim como às suas famílias.

381 4. Existe um laço apertado, existe um laço especial entre o trabalho do homem e o meio fundamental do amor humano que tem o nome de família.

O homem trabalha desde as origens para submeter a terra e a dominar. Esta definição do trabalho tiramo-la dos primeiros capítulos do Livro do Génesis. O homem trabalha para assegurar a própria subsistência e a da família. Esta definição do trabalho tiramo-la do Evangelho, da vida de Jesus, Maria e José, e também da experiência quotidiana. São as definições fundamentais do trabalho humano. Uma e outra são autênticas, isto é, plenamente humanistas, e a segunda comporta em si mesma uma plenitude especial do conteúdo evangélico.

É preciso seguir estes conteúdos fundamentais para assegurar ao homem um lugar adequado no conjunto da ordem económica. E fácil, com efeito, perder este lugar. Perde-se quando se encara o trabalho primeiramente como um dos elementos da produção, como "mercadoria" ou "instrumento". Pouco importa o nome dos sistemas sobre os quais se apoia esta posição: se o homem está submetido à produção, se ele se torna só o instrumento dela, tira-se então ao trabalho, ao trabalho humano, a dignidade e o sentido específico. Fica bem lembrarmo-nos aqui do célebre dito do Cardeal Cardijn: "Um jovem trabalhador vale mais que todo o ouro do mundo".

Por isso, entre as diversas medidas que permitem avaliar o trabalho do homem, é preciso colocar no primeiro plano a medida da família. Quando o homem trabalha para assegurar a subsistência da família, isto significa, que no seu trabalho coloca toda a fadiga quotidiana do amor. Porque é o amor que faz nascer a família, é ele a sua expressão constante e o seu meio estável. O homem pode também amar o trabalho pelo trabalho, porque este lhe permite participar na grande obra de dominação da terra, obra querida pelo Criador. E este amor corresponde, certamente, à dignidade do homem. Mas o amor que o homem põe no seu trabalho não encontra a sua medida plena a não ser que o ligue, o una aos homens em si mesmos, e sobretudo aos que são a carne da sua carne e o sangue do seu sangue. O trabalho não pode portanto destruir a família; deve pelo contrário uni-la, ajudá-la a completar a sua coesão. Os direitos da família devem estar profundamente inscritos nos fundamentos mesmos de qualquer código do trabalho, porque este tem por sujeito próprio o homem e não apenas a produção e o lucro. Como encontrar, por exemplo, solução satisfatória ao problema — semelhante em numerosos países — da mulher que trabalha na fábrica segundo um ritmo avassalador e ao mesmo tempo conserva a solicitude constante de estar presente aos filhos e ao marido?

Ocorre-me aqui um vasto programa que poderia constituir objecto de estudos numerosos e especializados para exaurir todo o conteúdo deste problema. Limito-me a alguns aspectos que me parecem de importância capital. Durante a minha vida tive a sorte, a graça de Deus, de poder descobrir estas verdades fundamentais sobre o trabalho humano, graças à minha experiência própria de trabalho manual. Enquanto viver hei-de lembrar-me dos homens a que me ligou um mesmo campo de trabalho, ou em pedreiras ou em fábricas. Não me esquecerei da benevolência humana que os meus companheiros de trabalho manifestaram a meu respeito. Não esquecerei as trocas de ideias que tivemos, nos momentos tais da existência e da vida dos trabalhadores. Sei que valor tinham para estes homens, que eram ao mesmo tempo pais de família, os seus lares, o futuro dos filhos, o respeito devido às esposas e mães. Desta experiência de alguns anos tirei a convicção e a certeza que no trabalho se exprime o homem como sujeito capaz de amar, orientado para os valores humanos fundamentais, pronto para a solidariedade com todos os homens...

Na minha experiência de vida, aprendi o que é um trabalhador, e trago isto no meu coração. Sei que o trabalho é também necessidade, às vezes dura necessidade; todavia o homem deseja transformá-la à medida da sua dignidade e do seu amor.

Disto deriva a sua grandeza. Muitas vezes as condições de vida obrigam os homens a abandonar a pátria para ir buscar trabalho; tal o caso de muitos de vós. Deve ambicionar-se que toda a sociedade seja capaz de dar trabalho suficiente aos seus próprios cidadãos. Se todavia a emigração por motivo de trabalho se torna exigência ou necessidade, eu desejo ainda mais, a todos os que se encontram nesta situação, que saibam transformar a necessidade à medida do amor que os liga àquilo que lhes está mais próximo: às suas famílias e aos seus países natais. É falso dizer que o trabalhador não tem pátria. Ele é, de facto, de maneira especial, o representante do seu povo, é o homem da sua própria casa.

No trabalho humano estão inscritas sobretudo a lei do amor, a necessidade do amor e a ordem do amor.

A própria liturgia de hoje fala disto utilizando as palavras do Apóstolo Paulo que, segundo é sabido, vivia do trabalho das próprias mãos: "Aborrecei o mal, aderi ao bem. Amai-vos uns aos outros com amor fraternal... Nos dias de esperança estai alegres; nos da tribulação, pacientes; orai com perseverança; orai com perseverança..., e seja sempre acolhedora a vossa casa... Alegrai-vos com os que se alegram, e chorai com os que choram. Tende entre vós os mesmos sentimentos" (
Rm 12,9-16).

5. O mundo do trabalho humano deve portanto ser sobretudo um mundo construído sobre a força moral: deve ser o mundo do amor, e não o mundo do ódio. No trabalho humano estão inscritos profundamente os direitos do homem, da família, da nação e da humanidade. O futuro do mundo depende do respeito deles.

Quer isto acaso dizer que o problema fundamental do mundo do trabalho não é hoje a justiça e a luta pela justiça social? A verdade sobre a justiça de Deus não ressoa ao mesmo tempo que a adoração de Deus, cuja misericordia é para todas as gerações, nas palavras que o evangelista São Lucas colocou na boca da Virgem, que tem no próprio seio o Filho de Deus? "Exerceu a força com o Seu braço, aniquilou os que se elevavam no seu próprio conceito. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e aos ricos despediu-os com as mãos vazias" (Lc 1,51-53).

382 Estas palavras dizem que o mundo querido por Deus é um mundo de justiça. Que se funda sobre a justiça a ordem que deve reger as relações entre os homens. Que esta ordem deve ser continuamente implantada no mundo, e mesmo que deve ser implantada sempre no mundo, à medida que aumentam e se desenvolvem as situações e os sistemas sociais, à medida das novas condições e das possibilidades económicas, das novas possibilidades da técnica e da produção, e ao mesmo tempo das novas possibilidades e necessidades de distribuição dos bens.

Estas palavras do Magnificat de Maria são pronunciadas no mais belo movimento de fervor para com Deus, que — segundo o proclama Maria — fez nela grandes coisas. Dizem que o mundo querido por Deus não pode ser um mundo no qual uns, pouco numerosos, acumulem nas próprias mãos bens excessivos, e os outros — em número claramente superior — sofram de indigência e miséria, e morram de fome.

Quem são os primeiros? E quem são os outros? É preciso não nos encerrarmos aqui em esquemas demasiado estreitos. Trata-se hoje, na verdade, de sociedades inteiras, de zonas inteiras do mundo, que foram já definidas de várias maneiras. Fala-se, por exemplo, de sociedades desenvolvidas e de sociedades subdesenvolvidas. Mas é preciso falar também de sociedades de consumo, e daquelas em que os homens morrem literalmente de fome. É preciso ter hoje visão muito larga, universal, do conjunto do problema. Esquemas fechados não bastam. Esquemas estreitos podem às vezes, pelo contrário, mais tapar o caminho do que abri-lo, por exemplo quando se trata da vitória dum sistema ou dum partido, mais que das necessidades reais do homem.

Estas necessidades existem todavia não só em matéria de economia, no campo da distribução dos bens materiais. Existem outras necessidades humanas verdadeiras, existem ainda outros direitos do homem que sofrem violência. E não só os direitos do homem, mas igualmente os direitos da família e os direitos das nações. "O homem não vive só de pão..." (
Mt 4,4). Não tem fome só de pão, tem fome, muitas vezes mais ainda, de verdade; tem fome de liberdade, quando são violados alguns dos seus direitos tão fundamentais como o direito à liberdade de consciência e à liberdade religiosa, como o direito à educação dos filhos em conformidade com a fé e as convicções dos pais e das famílias, como o direito à instrução segundo as capacidades e não segundo, por exemplo, uma conjuntura política ou uma concepção do mundo imposta pela força.

6. O mundo do trabalho humano e a grande sociedade dos trabalhadores se se constroem especialmente sobre a força moral — e assim devia ser! —, devem por consequência obviar a todas estas dimenções da injustiça que se desenvolveram no mundo contemporâneo. Devem ser capazes de lutar nobremente por toda a forma de justiça: pelo bem verdadeiro do homem, por todos os direitos da pessoa, da família, da nação e da humanidade. Esta justiça é a condição da paz, assim como o Papa João XXIII o expressou com acuidade na sua encíclica Pacem in terris. A disponibilidade para se empreender luta tão nobre, a luta pelo verdadeiro bem do homem em todas as suas dimensões, deriva das palavras que pronuncia Maria, levando Cristo no seu coração, que ela pronuncia a respeito do Deus vivo, quando diz:

"Manifestou o poder do seu braço / e dispersou os soberbos. / Derrubou os poderosos do trono / e exaltou os humildes. / Aos famintos encheu de bens / e aos ricos despediu de mãos vazias." (Lc 1,51-53).

Cristo dirá um dia: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados" (Mt 5,6). Todavia, esta fome de justiça, este ardor na luta pela verdade e pela ordem moral no mundo; não são e não podem ser nem o ódio nem uma fonte de ódio no mundo.

Não se podem transformar num programa de luta contra o homem, unicamente porque se encontra, se é licito exprimirmo-nos assim; "no outro campo". Esta luta não pode tornar-se programa de destruição do adversário, não pode criar mecanismos sociais e políticos em que se manifestem egoísmos colectivos cada vez maiores, egoísmos poderosos e destruidores, egoísmos que destróem por vezes até a sociedade e a nação, e destróem também sem escrúpulos as outras: as nações e as sociedades mais fracas — do ponto de vista do potencial humano, económico e civil, — privando-as da sua independência e soberania efectiva, e explorando-lhes os recursos.

O nosso mundo contemporâneo vê crescer a ameaça terrível de destruição duns pelos outros, em particular com a acumulação dos meios nucleares. Já só o custo destes meios e o clima de ameaça que eles provocam, fizeram que milhões de homens e povos inteiros vissem reduzir-se as suas possibilidades de pão e de liberdade. Nestas condições, a grande sociedade dos trabalhadores, precisamente em nome da força moral que se encontra nela, deve perguntar categorica e claramente: onde, até que ponto e porquê foi ultrapassado o limite da nobre luta pela justiça, da luta pelo bem do homem, em particular do homem mais marginalizado e mais necessitado? Onde, até que ponto e porquê se transformou esta força moral e criadora em força destruidora, o ódio, nas novas formas do egoísmo colectivo, que deixa aparecer a ameaça da possibilidade duma luta de todos contra todos, e duma monstruosa autodestruição?

A nossa época exige que nos ponhamos esta pergunta, pergunta bem fundamental. É imperativo categórico das consciências: de todo o homem, das sociedades inteiras e em particular daquelas sobre que pesa a responsabilidade principal para hoje e para o futuro, do mundo. E nesta pergunta que se manifesta a força moral que é representada pelo trabalhador, pelo mundo do trabalho e ao mesmo tempo por todos os homens.

É preciso também perguntarmo-nos: em nome de que direito esta força moral, esta disponibilidade para lutar pela verdade, esta fome e esta sede de justiça, foram sistematicamente — e até nos programas — separadas das palavras de Maria que venera Deus com toda a sua alma quando traz no coração o 'Filho de Deus? A que título ficou ligada a luta pela justiça no mundo ao programa duma negação radical de Deus? Ao programa organizado de impregnação ateísta dos homens e das sociedades?

383 É preciso perguntá-lo, se não por outras razões, pelo menos em nome da verdade integral sobre o homem.

Em nome da sua liberdade interior e da sua dignidade. E também em nome de toda a sua história.

Eis uma pergunta que é necessário formular.

Seja como for, os cristãos não podem, não querem, preparar este ódio, mas somente no dinamismo do amor.

E, para concluir, conservemos na memória as palavras da liturgia de hoje: "Seja sincera a vossa caridade, aborrecendo o mal e aderindo ao bem. Amai-vos uns aos outros com amor fraterno, adiantando-vos em honrar uns aos outros: Sede diligentes, sem fraqueza, fervorosos de espírito, dedicados ao serviço do Senhor; alegres na esperança (
Rm 12,9-12).

(Palavras ditas por Sua Santidade em português)

Aos caríssimos Emigrantes de língua portuguesa, com uma afectuosa saudação e votos de todo o bem, exorto igualmente a serem fiéis aos autênticos valores da família, como Deus a quer, e do trabalho honrado.

E isto, ainda que sejam difíceis as condições de vida: pedem-lho a sua vocação cristã e as dignas tradições de que são portadores, mesmo fora da pátria querida. E que Nossa Senhora para todos seja luz e exemplo a seguir e, qual Mãe da nossa confiança, lhes alcance assistência, conforto e graça de Deus!

(Palavras ditas em espanhol)

Quero dirigir agora um saudação especialmente cordial, na sua própria língua, aos emigrantes espanhóis que tomam parte neste acto.

Conheço bem a problemática e dificuldades que tendes de enfrentar na vossa vida, em ambiente alheio e em situação não raras vezes de isolamento. Dai prova de solidariedade mútua, ajudando-vos a manter e promover a vossa dignidade de homens e de filhos de Deus. E não esqueçais os valores cristãos que recebestes dos vossos antepassados.

384 Com o meu respeito e afectuosa estima para convosco, para com os vossos filhos e famílias, peço ao Senhor que vos abençoe sempre.



Homilias JOÃO PAULO II 375