Homilias JOÃO PAULO II 384


VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX


Esplanada do Aeroporto de Le Bourget

Paris, 1 de Junho de 1980






Iniciarei agradecendo do fundo do coração a todos os que quiseram reunir-se aqui, esta manhã, vindos também das longínquas províncias da França. A todos os meus mais férvidos votos e especialmente às mães de família, neste dia da festa das mães. Convido-vos agora a recolherdes-vos comigo.

1. As palavras que há pouco escutámos, tem um dúplice significado: encerram o Evangelho como tempo da revelação de Cristo e, simultaneamente, abrem-no para o futuro como tempo da Igreja, o de um dever incessante e de uma missão.

Cristo diz: Ide!

Ele indica a direcção do caminho: todas as nações.

Particulariza a missão: Ensinai-as, baptizai-as.

A Igreja recorda estas palavras neste solene dia em que deseja particularmente adorar a Deus no mistério interior da Vida da Divindade: Deus como Pai, Filho e Espírito Santo.

Oxalá estas palavras constituam o fundamento essencial da nossa meditação, enquanto nos encontramos todos, por uma disposição admirável da Providência, tão perto de Paris, que é a capital da França, uma das capitais da Europa, uma entre outras, certamente, mas única no seu género, e uma das capitais do mundo.

Na última frase referida pelo Evangelho, Cristo disse: "Ide pelo mundo inteiro" (Mc 16,15).

385 Estou hoje convosco, caros Irmãos e Irmãs, num destes lugares de onde, de uma maneira particular, se vê "o mundo", se vê a história do nosso "mundo" e se vê o "mundo" contemporâneo, um lugar onde este mundo se conhece e julga a si mesmo, conhece e julga as suas vitórias e os seus fracassos, os seus sofrimentos e as suas esperanças.

Permiti que, convosco, me deixe enlevar pela extraordinária eloquência das palavras dirigidas por Cristo aos seus discípulos. Permiti que através delas fixemos os olhos, pelo menos um instante, sobre o mistério insondável de Deus, e abordemos o que no homem é duradouro e por conseguinte o mais humano.

Permiti que nos preparemos deste modo para a celebração da Eucaristia na solenidade da Santíssima Trindade.

2. Cristo disse aos seus Apóstolos: "Ide... ensinai todas as nações...". Por isso hoje me encontro praticamente na capital da França, enquanto, há um ano, neste mesmo dia, primeiro domingo depois do Pentecostes, me encontrava num grande prado da antiga capital da Polónia, em Cracóvia, na cidade onde vivi e de onde Cristo me chamou para a Sé romana do Apóstolo Pedro. Tive lá diante dos olhos as fisionomias conhecidas dos meus compatriotas, e recordei-me de toda a história da minha nação, depois do seu baptismo. Esta história rica e difícil começara de um modo admirável, quase exactamente no momento em que tinha sido pronunciada a última palavra de Cristo dirigida aos Apóstolos: "Ensinai todas as nações, baptizai-as..". Com o baptismo a nação nasceu e a sua história teve início.

Esta nação — da qual sou filho — não vos é estrangeira. Nos períodos mais difíceis da sua história, ela encontrou junto de vós o apoio de que necessitava, os principais formadores da sua cultura, os porta-vozes da sua independência. Não posso deixar de me recordar disto, neste momento. É com gratidão que falo...

Bem mais tarde do que nesta região, os caminhos missionários dos sucessores dos Apóstolos atingiram o Vístula, os Cárpatos, o Mar Báltico... Aqui, ao contrário, a missão confiada por Cristo aos Apóstolos depois da Ressurreição conseguiu muito mais rapidamente um início de realização, senão de maneira própria da época apostólica, pelo menos no II século, com Ireneu, o grande mártir e pai apostólico, que foi bispo de Lião. Por outro lado, no Martirológio romano faz-se muitas vezes menção da "Lutetia Parisiorum"...

Primeiro a Gália e depois a França: a Filha primogénita da Igreja!

Hoje, na capital da história da vossa nação, quereria repetir estas palavras que constituem o vosso titulo de nobreza: Filha primogénita da Igreja.

E, retomando este titulo, quereria convosco adorar o mistério admirável da Providência. Prestar homenagem ao Deus vivo que, agindo através dos povos, escreve a história da salvação no coração do homem.

Esta história é tão antiga como o homem. Remonta à "pré-história", aos inícios. Quando Cristo disse aos Apóstolos: "Ide, ensinais todas as nações..." tinha já confirmado a duração da história da salvação, e, ao mesmo tempo, tinha anunciado esta etapa particular, a última etapa.

3. Esta história singular está escondida no mais íntimo do homem, é misteriosa e no entanto real, também na sua realidade histórica, está revestida, de maneira visível, de factos, acontecimentos, existências humanas e individualidade. Um capítulo muito longo desta história foi escrito na história da vossa pátria, pelos filhos e filhas da vossa nação. Seria difícil enumerá-los todos, mas recordarei apenas os que exerceram maior influência na minha vida: Joana D'Arc, Francisco de Sales, Vicente de Paulo, Luis Maria Grignon de Montfort, João Maria Vianney, Bernadette de Lourdes, Teresa de Lisieux, Irmã Isabel da Trindade, Padre Foucauld e todos os outros. Tão presentes estão na vida de toda a Igreja, tão influentes são pela luz e força do Espírito Santo...!

386 Melhor do que eu, eles diriam que a história da salvação começou com a história do homem, que a história da salvação tem sempre um novo inicio, que ela começa em cada homem que vem a este mundo. Deste modo a história da salvação entra na história dos povos, nações, pátrias e continentes.

A história da salvação começa em Deus. E precisamente isto que Cristo revelou e declarou até ao fim, quando disse: "Ide... ensinai todas as nações, baptizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo".

"Baptizar" quer dizer "imergir", e o termo significa a realidade mesma que ele exprime. Baptizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo quer dizer imergir o homem nesta Realidade que é Deus na sua Divindade: Realidade de todo insondável, que não é completamente reconhecível e compreensível senão por si mesma. E ao mesmo tempo, o baptismo imerge o homem nesta Realidade que, como Pai, Filho e Espírito Santo, se abre para o homem. Abre-se realmente. Nada é mais real do que esta abertura, esta comunicação, este dom do Deus inefável ao homem. Quando ouvimos os nomes do Pai, do Filho e do Espírito Santo, eles falam-nos deste dom, desta "comunicação" extraordinária de Deus que, em si mesmo, é impenetrável para o homem... Esta comunicação, este dom é do Pai, atingiu o seu apogeu histórico e a sua plenitude no Filho crucificado e ressuscitado, e permanece ainda no Espírito que "intercede por nós com gemidos inefáveis" (
Rm 8,26).

As palavras que Cristo, no termo da sua missão histórica, dirigiu aos Apóstolos, são uma síntese absoluta de tudo o que tinha constituído esta missão, etapa por etapa, deste a Anunciação até à Crucifixão... e finalmente à Ressurreição.

4. No coração desta missão, no coração da missão de Cristo, está o homem, todo o homem. Através do homem existem as nações, todas as nações.

A liturgia de hoje é teocêntrica, e todavia é o homem que ela proclama. Proclama-o porque o homem está no coração mesmo do mistério de Cristo, o homem está no coração do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E isto desde o início. Não foi ele criado à imagem e à semelhança de Deus? Fora disto o homem não tem sentido. O homem não tem um sentido no mundo senão como imagem e semelhança de Deus.

De outra maneira ele não tem sentido, e chegar-se-ia a dizer, como alguns afirmam, que o homem não é senão uma "paixão inútil".

Sim. É o homem que a liturgia de hoje também proclama.

"Quando contemplo o firmamento, obra das Vossas mãos, a lua e as estrelas que lá fixastes, exclamo: que é o homem, para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes? Contudo, criaste-lo pouco inferior aos anjos, de glória e de honra o coroastes. Destes-lhe poder sobre as obras das Vossas mãos, submetestes-lhe todas as criaturas" (Ps 8,4-7).

5. O homem... o elogio do homem... a afirmação do homem.

Sim, a afirmação do homem todo, na sua constituição espiritual e corporal, naquilo que o manifesta como sujeito exterior e interiormente. O homem adaptado, na sua estrutura visível, a todas as criaturas do mundo visível e ao mesmo tempo interiormente ligado à sabedoria eterna. E esta sabedoria, também ela, é anunciada pela liturgia de hoje, que canta a sua origem divina, a sua presença visível em toda a obra da criação para dizer enfim que ela "acha as suas delícias junto dos filhos dos homens" (Pr 8,31).

387 O que não fizeram os filhos e as filhas desta vossa nação para o conhecimento do homem, para exprimir o homem mediante a formulação dos seus direitos inalienáveis! Tem-se conhecimento do posto que a ideia de liberdade, igualdade e fraternidade ocupa na vossa cultura e na vossa história. Na realidade, estão aqui ideais cristãos. Digo com plena consciência que, os primeiros a formularem assim este ideal, não se referiam à aliança do homem com a sabedoria eterna. Mas eles queriam agir em favor do homem.

Para nós, a aliança interior com a sabedoria encontra-se na base de toda a cultura e do verdadeiro progresso do homem.

O desenvolvimento contemporâneo e o progresso, nos quais participamos, são o fruto da aliança com a sabedoria? Não são somente uma ciência sempre mais exacta dos objectos e das coisas, sobre a qual se constrói o progresso vertiginoso da técnica? O homem, artífice deste progresso, não se tem tornado sempre mais objecto deste processo? E eis que nele e em volta dele se destrói sempre mais esta aliança com a sabedoria, a eterna aliança com a sabedoria que é a fonte da cultura, isto é, do verdadeiro crescimento do homem.

6. Cristo veio ao mundo em nome da aliança do homem com a sabedoria eterna. Em nome desta aliança Ele nasceu da Virgem Maria e anunciou o Evangelho. Em nome desta aliança "crucificado... sob Pôncio Pilatos", padeceu na cruz e ressuscitou. Em nome desta aliança, renovada na sua morte e na sua ressurreição, deu-nos o seu Espírito...

A aliança com a sabedoria eterna continua n'Ele. Continua em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Continua no facto de ensinar as nações e de as baptizar no Evangelho e na Eucaristia. Continua na Igreja, isto é, no Corpo de Cristo, o povo de Deus.

Nesta aliança, o homem deve crescer e desenvolver-se como homem.

Deve crescer e desenvolver-se a partir do fundamento divino da sua humanidade, isto é, como imagem e semelhança do próprio Deus. Deve crescer e desenvolver-se como filho adoptivo de Deus.

Como filho adoptivo de Deus, o homem deve crescer e desenvolver-se mediante tudo o que concorre para o desenvolvimento e progresso do mundo onde vive. Através de todas as obras das suas mãos e do seu génio. Através do sucesso da ciência contemporânea e da aplicação da técnica moderna. Por meio de tudo o que diz respeito ao macrocosmo e ao microcosmo, graças a uma aparelhagem sempre mais aperfeiçoada.

Porque será que depois de um certo tempo, o homem descobriu em todo este gigantesco progresso uma fonte de ameaça para si mesmo? De que maneira e por que vias se chegou ao facto que, no coração mesmo da ciência e da técnica, tenha aparecido a possibilidade de uma gigantesca autodestruição do homem; ao facto que a vida quotidiana oferece tantas provas do uso, contra o homem, do que devia ser a favor do homem e devia estar ao serviço do homem?

Como se chegou lá? O homem, no caminho para o progresso, não tomou talvez o único caminho, o mais fácil, e não se esqueceu da aliança com a sabedoria eterna? Não tomou ele talvez o caminho "largo", esquecendo-se do caminho "estreito" (cfr. Mt
Mt 7,13-14)?

7. Cristo disse: "Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28,18). Diz isto quando o poder terreno — o Sinédrio, o poder de Pilatos — mostrou a sua supremacia sobre Ele, ao decretar a sua morte de cruz. Repete-o após a sua ressurreição.

388 "O poder no céu e na terra" não é um poder contra o homem. Nem é sequer um poder do homem sobre o homem. É o poder que permite ao homem revelar-se a si mesmo na sua realeza, em toda a plenitude da sua dignidade. É o poder de que o homem deve descobrir no seu coração a força específica, pelo qual ele deve revelar-se a si mesmo nas dimensões da sua consciência e na perspectiva da vida eterna. Então revelar-se-á nele toda a força do baptismo, saberá que está "imerso" no Pai, no Filho e no Espírito Santo, reconhecer-se-á a si mesmo no Verbo eterno, no Amor infinito.

É a isto que o homem é chamado na aliança com a sabedoria eterna.

Este é também o "poder" que Cristo tem "no céu e na terra".

O homem de hoje aumentou muito o seu poder na terra, pensa até mesmo na sua expansão além do nosso planeta.

Pode-se dizer igualmente que o poder do homem sobre o outro homem se torna sempre mais pesado. Ao abandonar a aliança com a sabedoria eterna, saberá sempre menos governar-se a si mesmo, não sabe mais governar os outros. Como se tornou urgente a questão dos direitos fundamentais do homem! Que visão ameaçadora revelam o totalitarismo e o imperialismo em que o homem deixa de ser o sujeito, o que significa que deixa de ser tido como homem. Ele passa a ser considerado somente como uma unidade e um objecto.

Escutemos mais uma vez o que Cristo diz com estas palavras: "Foi-me dado todo o poder no céu e na terra", e meditemos toda a verdade destas palavras.

8. Cristo, enfim, diz também isto: "Eu estarei sempre convosco, ,até ao fim do mundo" (
Mt 28,20); que significa também: hoje, em 1980, em todas as épocas.

O problema da ausência de Cristo não existe. O problema do seu afastamento da história do homem não , existe. O silêncio de Deus relativamente às inquitudes do coração e do destino do homem não existe.

Não há senão um shó problema que existe sempre e por toda a parte:

o problema da nossa presença junto de Cristo. Da nossa permanência em Cristo. Da nossa intimidade com a verdade autêntica das suas palavras e com a força do seu amor. Não existe senão um problema, aquele da nossa fidelidade à aliança com a sabedoria eterna, que é fonte de verdadeira cultura, isto é, do crescimento do homem, e o da fidelidade às promessas do nosso baptismo no nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo!

E agora, para concluir, permiti-me que vos interrogue:

389 França, Filha primogénita da Igreja, és tu fiel às promessas do teu baptismo?

Permiti-me perguntar-vos:

França, Filha da Igreja e educadora dos povos, tu és fiel, para o bem do homem, à aliança com a sabedoria eterna?

Perdoai-me estas perguntas. Coloquei-as como faz o ministro no momento do baptismo. Se as fiz, foi por solicitude para com a Igreja da qual sou o primeiro sacerdote e o primeiro servo, e por amor do homem, cuja grandeza definitiva está em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX



NA SANTA MISSA CELEBRADA


DIANTE DA BASÍLICA DE LISIEUX


Segunda-feira, 2 de Junho de 1980




1. Sinto muita felicidade em que me seja dado vir a Lisieux por ocasião da minha visita à capital da França. Estou aqui em peregrinação com todos vós, caros Irmãos e Irmãs, que viestes vós também de muitas regiões da França, até junto daquela que nós amamos tanto, a "pequena Teresa", cujo caminho para a santidade anda estreitamente ligado ao Carmo de Lisieux. Se as pessoas versadas na ascese e na mística, e as que amam os santos, tomaram o hábito de chamar ao caminho de Sor Teresa do Menino Jesus "o pequeno caminho" está completamente fora de dúvida que o Espírito de Deus, que a orientou por este caminho, o fez com a mesma generosidade com que orientou outrora a sua Patrona, a "grande Teresa" de Ávila, e com a qual guiou — e continua a guiar — tantos outros santos na Sua Igreja. Seja-Lhe pois dada glória eternamente!

A Igreja alegra-se com esta maravilhosa riqueza dos dons espirituais, tão esplêndidos e variados como o são todas as obras de Deus no universo visível e invisível. Cada um deles reflecte ao mesmo tempo o mistério interior do homem e corresponde às necessidades dos tempos, na história da Igreja e da humanidade.

É preciso dizê-lo de Santa Teresa de Lisieux que, até a uma época recente, foi com efeito a nossa santa "contemporânea". É assim que eu a vejo pessoalmente, no quadro da minha vida. Mas continua ela a ser a santa "contemporânea"? Não deixou ela de o ser para a geração que chega actualmente à maturidade na Igreja? Seria necessário perguntá-lo aos homens desta geração. Seja-me todavia permitido notar que os santos não envelhecem praticamente nunca, que não estão nunca sujeitos à "prescrição". Mantêm-se continuamente como testemunhas da juventude da Igreja. Não se tornam nunca pessoas do passado, homens e mulheres de "ontem". Pelo contrário: são sempre os homens e as mulheres do "amanhã", as pessoas do futuro evangélico do homem e da Igreja, as testemunhas "do mundo futuro".

2. "Na verdade, todos aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão, para cair de novo no temor; recebestes, pelo contrário, um espírito de adopção, pelo qual chamamos: Abba! Pai!" (Rm 8,14-15).

Seria talvez difícil encontrar palavras mais sintéticas, e ao mesmo tempo mais impressionantes, para caracterizar o carisma particular de Teresa Martin, isto é, o que forma a dom especialíssimo do seu coração, e que se tornou, pelo seu coração, dom particular para a Igreja. O dom admirável na sua simplicidade, universal e ao mesmo tempo único. Pode dizer-se convictamente de Teresa de Lisieux que o Espírito de Deus permitiu ao seu coração revelar directamente, aos homens do nosso tempo, o mistério fundamental, a realidade do Evangelho: o facto de ter recebido realmente "um espírito de adopção, pelo qual chamamos: Abba! Pai!". O "pequeno caminho" é o caminho da "santa infância". Neste caminho, há alguma coisa de único, o génio de Santa Teresa de Lisieux. Irá ao mesmo tempo a confirmação e a renovação da verdade mais fundamental e mais universal. Que verdade da mensagem evangélica é, com efeito, mais fundamental e mais universal que esta: Deus é nosso Pai e nós somos Seus filhos?

Esta verdade, a mais universal que exista, esta realidade, foi igualmente "relida" com a fé, a esperança e o amor de Teresa de Lisieux. Foi em certo sentido redescoberta com a experiência interior do seu coração e a forma tomada para toda a sua vida, somente 24 anos da sua vida. Quando morreu aqui, no Carmo, vítima da tuberculose de que trazia havia muito os bacilos, era quase uma criança. Deixou a lembrança da criança; da santa infância. E toda a sua espiritualidade confirmou uma vez mais a verdade destas palavras do Apóstolo: "Vós não recebestes um espírito de escravidão, para cair de novo no temor; recebestes, pelo contrário, um espírito de adopção...". Sim. Teresa foi a criança. Foi a criança "confiante" até ao heroísmo, e por consequência "livre" até ao heroísmo. Mas é precisamente porque foi até ao heroísmo, que ela só conheceu o sabor interior e também o preço interior desta confiança que impede de "recair no temor"; desta confiança que, até nas obscuridades e nos sofrimentos mais profundos da alma, permite exclamar: "Abba! Pai!".

390 Sim, ela conheceu este sabor e este prémio. Para quem lê atentamente a sua "História de uma alma", é evidente que este sabor da confiança filial provém, como o perfume das rosas, da haste que tem também espinhos. Se, de facto, nós somos "filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com Ele para sermos também glorificados com Ele" (Rm 8,17). por isso, precisamente, que a confiança filial da pequena Teresa, Santa Teresa do Menino Jesus mas também "da Santa Face", é tão "heróica", pois provém da fervorosa comunhão nos sofrimentos de Cristo.

E quando eu vejo diante de mim todos estes doentes e enfraquecidos, penso que estão também associados, como Teresa de Lisieux, à paixão de Cristo, e que, devido à fé que têm no amor de Deus, devido ao amor que têm, a oferta espiritual deles obtém misteriosamente para a Igreja, para todos os outros membros do Corpo místico de Cristo, um suplemento de vigor. Não esqueçam nunca esta bela, frase de Santa Teresa: "No coração da Igreja minha Mãe, eu serei o amor". Peço a Deus que dê a cada um destes amigos que sofrem, que eu amo com afecta especialíssimo, o conforto e a esperança.

3. Ter confiança em Deus com Teresa de Lisieux quer dizer seguir o "pequeno caminho", por onde nos guia o Espírito de Deus: guia sempre para a grandeza em que participam os filhos e as filhas da adopção divina. Já como menino, como menino de doze anos, o Filho de Deus declarou que a sua vocação era de se ocupar das coisas de Seu Pai (cfr. Lc Lc 2,49). Ser criança, tornar-se como criança, quer dizer entrar no centro mesmo da maior missão a que o homem foi chamado por Cristo, missão que atravessa o coração mesmo do homem. Ela, Teresa; sabia-o perfeitamente. Esta missão vai buscar a sua origem ao amor eterno do Pai. O Filho de Deus, como homem de maneira visível e "histórica", e o Espírito Santo, de maneira invisível e "carismática"„ cumprem-na através da história da humanidade.

Quando, na altura de deixar o mundo, Cristo diz aos Apóstolos: "Ide pelo mundo inteiro e ensinai o Evangelho a todas as criaturas» (Mc 16,15), insere-os, pela força do Seu mistério pascal, na grande corrente da Missão eterna. A partir do momento em que os deixou a fim de ir para o Pai, começa ao mesmo tempo a vir "de novo no poder do Espirito Santo" que o Pai envia em Seu nome. Mais profundamente que todas as verdades sobre a Igreja, foi esta posta em relevo na consciência da nossa geração pelo Concílio Vaticano II. Graças a isto, nós todos compreendemos melhor que a Igreja se encontra constantemente "em estado de missão a que quer dizer que toda a Igreja é missionária. E nós compreendemos igualmente melhor este mistério particular do coração de Terezinha de Lisieux, que, por meio do seu "pequeno caminho", foi chamada a participar tão plena e frutuosamente na missão mais elevada. Foi justamente esta "pequenez" que ela tanto amava a pequenez da criança, que lhe abriu de par em par toda a grandeza da Missão divina da salvação, que é a missão incessante da Igreja.

Aqui, no seu Carmo, na clausura do convento de Lisieux, Teresa sentiu-se especialmente unida a todas as missões e aos missionários da Igreja no mundo inteiro. Sentiu-se ela mesma "missionária", presente pela força e pela graça particular do Espírito de amor em todos os postos missionários, próxima de todos os missionários, homens e mulheres, no mundo. Foi proclamada pela Igreja padroeira das missões, como São Francisco Xavier que viajou incansavelmente no Extremo Oriente: sim, ela, a Terezinha de Lisieux, encerrada na clausura carmelita, aparentemente separada do mundo.

Tenho o gosto de poder vir aqui pouco depois da minha visita ao continente africano, e, diante desta admirável "missionária", de atribuir ao Pai da verdade e do amor eterno tudo o que, no poder do Filho e do Espírito Santo, é já fruto do trabalho missionário da Igreja entre os homens e os povos do continente negro. Desejaria ao mesmo tempo, se me posso assim exprimir, fazer que Teresa de Lisieux me emprestasse o olhar perspicaz da sua fé, a sua simplicidade e confiança, numa palavra a "pequenez" juvenil do seu coração, para proclamar diante de toda a Igreja quanto é abundante a messe, e para pedir como ela, para pedir ao Senhor da messe, que envie, com generosidade maior ainda, operários para a messe (cfr. Mt Mt 9,37-38). Que os envie apesar de todos os obstáculos e todas as dificuldades que se Lhe deparam no coração do homem, na história do homem. ,

Na África pensei muitas vezes: que fé, que energia espiritual tinham esses missionários do século passado ou da primeira metade deste, e todos esses Institutos missionários que se fundaram, para partirem sem hesitar para esses países então desconhecidos, com o fim único de tornar conhecido o Evangelho, de fazer que a Igreja nascesse! Viam nisso com motivo uma obra indispensável à salvação. Sem a audácia, sem a santidade deles, as Igrejas locais — cujo centenário acabamos de celebrar — as quais são agora dirigidas sobretudo por Bispos africanos, nunca teriam chegado a existir. Caros Irmãos e Irmãs, não percamos esse entusiasmo!

De facto, sei que vós não quereis resolver-vos a tal perda. Saúdo entre vós os antigos Bispos missionários, testemunhas do zelo de que falava. A França tem ainda muitos missionários pelo mundo, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, e alguns Institutos abriram-se a esse trabalho. Vejo aqui os membros do Capítulo das Missões Estrangeiras de Paris, e evoco o Beato Teófano Vénard cujo martírio no Extremo Oriente foi luz e apelo para Teresa. Penso também em todos os padres franceses que dedicam pelo menos alguns anos ao serviço das jovens Igrejas, no quadro do "Fidei donum". Hoje compreende-se aliás melhor a necessidade de uma troca fraternal entre as jovens e as velhas Igrejas, com benefício de umas e de outras. Sei por exemplo que as Obras pontifícias missionárias, ligadas Comissão episcopal das Missões no estrangeiro, não têm em vista somente despertar a ajuda material, mas formar o espírito missionário dos cristãos da França, e alegro-me com isso. Este ardor missionário não pode surgir e dar frutos senão a partir de uma maior vitalidade espiritual de irradiação da santidade.

4. "A beleza existe para nos encantar para o trabalho", escreveu Cipriano Norwid, um dos maiores poetas e pensadores que tenha dado a terra da Polónia. Foi recebido pela terra francesa — está depositado no cemitério de Montmorency...

Demos graças ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo pelos Seus santos. Demos graças por Santa Teresa de Lisieux. Demos graças pela beleza profunda, simples e pura, que se manifestou nela à Igreja e ao mundo. Esta beleza encanta. E Teresa de Lisieux tem dom particular para encantar pela beleza da sua alma. Ainda que saibamos todos que esta beleza foi difícil e cresceu no sofrimento, não deixa de alegrar com o seu encanto particular os olhos das nossas almas.

Encanta portanto esta beleza, esta flor da santidade que se desenvolveu neste solo; e o seu encanto não cessa de estimular os nossos corações a trabalharem: "A beleza existe para nos encantar para o trabalho". Para o trabalho mais importante, no qual o homem aprende a fundo o mistério da sua humanidade. Descobre nele mesmo o que significa ter recebido "um espírito de filho adoptivo", radicalmente diferente "de um espírito de escravo", e começa a bradar com todo o seu coração: "Abba! Pai!" (cfr. Rom Rm 8,15).

391 Com os frutos deste magnífico trabalho interior constrói-se a Igreja, o Reino de Deus na terra, na sua substância mais profunda e mais fundamental. E o brado "Abba! Pai!", que ressoa extensamente em todos os continentes do nosso planeta, volta também pelo seu eco à clausura carmelita silenciosa, à Lisieux, vivificando sempre de novo a lembrança de Teresinha, que, pela sua vida breve e oculta mas tão rica, pronunciou com força particular: "Abba! Pai!". Graças a ela, a Igreja inteira encontrou toda a simplicidade e todo o vigor deste brado, que tem a origem e a fonte no coração do próprio Cristo.



SOLENIDADE DO CORPO E SANGUE DO SENHOR




8 de Junho de 1980




1. A igreja escolheu, de há séculos, a quinta-feira depois da festa da Santíssima Trindade como dia consagrado a especial veneração pública da Eucaristia: o dia do Corpus Domini. Mas, por motivo de obrigação de trabalho da quinta-feira, celebramos essa solenidade neste domingo. Celebramo-la junto da Basílica de São Pedro, desejando associar a esta solenidade toda a fé e todo o amor de Pedro e dos Apóstolos, que na Quinta-feira Santa, antes da Páscoa, foram participantes da Ultima Ceia, isto é, da instituição deste Sacramento, que sempre na Igreja foi considerado como o mais Santo: o sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor. O Sacramento da Páscoa Divina. O Sacramento da Morte e da Ressurreição. O Sacramento do Amor, que é mais poderoso que a morte. O sacramento do sacrifício e do banquete da redenção. O Sacramento da comunhão das almas com Cristo no Espírito Santo. O Sacramento da fé da Igreja peregrina e da esperança da união eterna. O alimento das almas. O Sacramento do pão e do vinho, das espécies mais pobres, que se tornam o nosso tesouro e a nossa maior riqueza. «Eis o pão dos anjos, feito pão dos peregrinos» (Sequência), «... não como aquele que os vossos pais comeram, e morreram; o que come deste pão vive eternamente» (Jn 6,58).

2. Porque foi escolhida uma quinta-feira para a solenidade do Corpus Domini? A resposta é fácil. Esta solenidade refere-se ao Mistério historicamente ligado a tal dia, à Quinta-feira Santa. E aquele dia é, no sentido estritíssimo da palavra, a festa eucarística da Igreja. Na Quinta-feira Santa cumpriram-se as palavras que uma vez Jesus pronunciou na Sinagoga de Cafarnaúm; ao ouvi-las, «muitos dos Seus discípulos retiraram-se e já não andavam com Ele», ao passo que os Apóstolos responderam por boca de Pedro: «Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna» (Jn 6,66 Jn 6,68). A Eucaristia encerra em si o cumprimento destas palavras. Nela a vida eterna tem o seu penhor e o seu início.

«Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia» (Jn 6,54). Isto vale já para o mesmo Cristo, que inicia o Seu tríduo pascal na Quinta-feira Santa com a Última Ceia, é condenado à morte e crucificado na Sexta-feira Santa, e ressuscitará ao terceiro dia. A Eucaristia é o sacramento desta morte e desta ressurreição.

Nela o Corpo de Cristo torna-se verdadeiramente o Alimento; e o Sangue, a Bebida para a vida eterna, para a ressurreição. De facto, aquele que come este Corpo eucarístico do Senhor e bebe na Eucaristia o Sangue por Ele derramado para a redenção do mundo, chega àquela comunhão com Cristo, da qual o Senhor mesmo disse: «Permanece em Mim e Eu nele» (Jn 15,4). E o homem, permanecendo em Cristo, no Filho que vive no Pai, vive mediante Ele, daquela vida que forma a união do Filho com o Pai no Espírito Santo: vive a vida divina.

3. Nós celebramos portanto a solenidade do Corpo e do Sangue de Cristo na quinta-feira depois da Santíssima Trindade, para colocar em evidência precisamente aquela Vida que nos dá a Eucaristia. Mediante o Corpo e o Sangue de Cristo permanece nela um revérbero mais pleno da Santíssima Trindade, de maneira que a Vida Divina é participada, neste sacramento, pelas nossas almas. Este é o mistério mais profundo, mais interior, que assumimos com todo o nosso coração, com todo o nosso «eu» interior. E vivemo-lo no escondimento, no recolhimento mais pro-fundo, sem encontrarmos nem as palavras justas nem os gestos adaptados para a ele respondermos. As palavras mais exactas parecem talvez estas: «senhor, eu não sou digno de que entres debaixo do meu tecto...» (Mt 8,8), unidas a uma atitude de profunda adoração.

Todavia, existe um único dia e um tal tempo — em que nós, a uma realidade tão íntima, desejamos dar uma particular expressão externa e pública. Isto dá-se precisamente hoje. E expressão de amor e de veneração.

Cristo, pensando na Sua morte, de que nos deixou memorial exactamente na Eucaristia, não disse acaso uma vez: «Glorifica-Me, Tu, ó Pai, junto de Ti mesmo, com aquela glória que tinha conTigo antes que o mundo existisse»? (Jn 17,5).

Cristo permanece nesta glória depois da ressurreição. O Sacramento da Sua espoliação e da Sua morte é ao mesmo tempo o Sacramento desta glória, na qual Ele permanece. E embora à glorificação, de que Ele goza em Deus, não corresponda expressão alguma adequada de adoração humana, todavia é justo à Eucaristia de Quinta-feira Santa estar ligada também aquela liturgia particular de adoração, que traz consigo a festa de hoje. Este é o dia em que não só recebemos a Hóstia da vida eterna, mas também caminhamos com o olhar fixo na Hóstia eucarística, todos juntos na procissão, que é símbolo da nossa peregrinação com Cristo na vida terrena.

Caminhamos pelas praças e pelas ruas das nossas cidades — por estas nossas ruas pelas quais se desenrola normalmente a nossa peregrinação. Lá aonde — vivendo, trabalhando e apresentando-nos — nós O levamos no escondimento dos nossos corações, lá mesmo queremos levá-l'O em procissão e mostrá-lo a todos, para que saibam que, graças ao Corpo do Senhor, todos têm ou podem ter em si a vida (cfr. Jo Jn 6,53). E para que respeitem esta nova vida que está no homem.


Homilias JOÃO PAULO II 384