Homilias JOÃO PAULO II 392

392 Igreja santa, louva o teu Senhor! Amén.



CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA COM A ORDENAÇÃO SACERDOTAL

DE QUARENTA E CINCO DIÁCONOS


Basílica Vaticana

Domingo, 15 de Junho de 1980




1. Meus caros

É necessário que vos encontreis a Vós mesmos. É necessário encontrardes a justa grandeza do momento que viveis, à luz das palavras de Cristo, que ouvistes no Evangelho de hoje.

Cristo dirige a Sua oração ao Pai. Ora em voz alta, diante dos Doze por Ele escolhidos. Ora no Cenáculo na Quinta-feira Santa, depois de instituir o Sacramento da Nova e Eterna Aliança. Esta oração é ordinariamente chamada "oração sacerdotal". Diz assim:

"Manifestei o Teu nome aos homens que, do mundo, Me deste. Eram Teus, e Tu Mos deste... Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal (Jn 17,6 Jn 17,15). "Santifica-os na verdade. A Tua palavra é a verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu vos envio ao mundo" (Jn 17,17-19).

2. Vós, que deveis neste momento receber a Ordenação sacerdotal, escutai estas palavras; porque elas se referem a Vós. Falam de Vós. Saem directamente do Coração de Cristo, que diante dos discípulos se revelou como sacerdote da Nova e Eterna Aliança... e referem-se a Vós. E falam de Vós. Dizem: quer sois — quem deveis vir a ser — quem deveis ser. Escutai bem estas palavras e inscrevei-as profundamente nos Vossos corações, porque devem constituir para toda a vida o fundamento da Vossa identidade sacerdotal.

3. Portanto, primeiro que tudo: sois "escolhidos dentre o mundo e dados a Cristo" Em breve, isto realizar-se-á definitivamente. Sereis "escolhidos dentre os homens" (como diz a Carta aos He 5,1), "tomados do mundo" e "dados a Cristo". Por quem? Pelo Pai! Não pelos homens, ainda que "entre os homens" e certamente também por obra de vários homens: os Vossos pais, os da Vossa idade, os Vossos educadores, em particular talvez por obra de outros sacerdotes: muitos ou só algum, mediante o qual se revelou a vós a Vontade Divina...

Mas afinal, sempre e exclusivamente: pelo Pai. O Pai dá-vos hoje a Cristo — assim como Lhe deu aqueles primeiros Doze, que estiveram juntamente com Ele na hora da última Ceia. Assim também Vós: "escolhe-vos do mundo e dá-vos a Cristo". Isto deve realizar-se mesmo dentro em breve, no coração mesmo da Igreja, mediante o meu serviço sacramental.

4. Na Liturgia da Palavra foi-vos lida a descrição da vocação de um profeta; o chamamento de Jeremias — para poderdes mais uma vez recordar-vos como se realizou o Vosso próprio chamamento, de que modo se revelou Deus a cada um de Vós com a Sua graça, como chamou cada um de Vós...

393 O profeta defendia-se, desculpava-se, tinha medo. Talvez também o mesmo tenham sentido muitos de vós. Na vocação presbiteral há sempre um mistério, diante do qual vem à encontrar-se o coração humano — mistério atraente e ao mesmo tempo não fácil: fascinosum et tremendum. O homem deve sentir medo, para que em seguida tanto mais se manifeste o poder do chamamento, e tanto mais limpidamente fique posto em luz que, é o Senhor a chamar, e que o chamado procederá não por própria vontade nem pela própria força, mas só pela vontade e pela força de Deus mesmo. "Ninguém usurpe para si esta honra; somente a tome quem é chamado por Deus" como afirma a Carta aos Hebreus (5, 4) no seu texto clássico sobre o sacerdócio.

5. Assim, pois, é preciso conservar, neste momento e por toda a vida, profundo sentido das justas proporções. É necessário conservar a humildade: "Trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que tão excelso poder se reconheça vir de Deus e não de nós" (
2Co 4,7). Sim! é necessário conservar a humildade. Também esta é fonte de autêntico zelo. O zelo, na verdade, não é senão a profunda gratidão pelo dom, que se exprime em toda a vida e no próprio comportamento. Sede portanto fervorosos! Não tenhais descanso no zelo! A verdade interior do Vosso sacerdócio ministerial irradie sobre os outros, em particular sobre os jovens, de maneira que também eles sigam as Vossas pegadas. A Igreja, mediante aqueles que ordena sacerdotes, chama constantemente novos candidatos para a estrada do ministério sacerdotal. A vossa ordenação é acompanhada pela minha oração e, ao mesmo tempo, pela de toda a Igreja pedindo vocações sacerdotais.

6. "Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal... Santifica-os na verdade" (Jn 17,15 Jn 17,17). Sim! sois "escolhidos dentre os homens", "dados a Cristo" pelo Pai, para estardes no mundo, no coração das massas. Estais "constituídos para o bem dos homens" (He 5,1). O sacerdote é o sacramento em que a Igreja se exprime como a sociedade do Povo de Deus, é o sacramento "social". Os sacerdotes devem "convocar" cada uma das comunidades do Povo de Deus à volta de si, mas não para si. Para Cristo! "Nós não nos pregamos a nós próprios, mas a Cristo Jesus, o Senhor; quanto a nós mesmos, como vossos servos, por amor de Jesus" (2Co 4,5).

Por isso, deveis ser fiéis. Deve transparecer em Vós o sacerdócio do próprio Cristo. Deve manifestar-se em Vós Cristo, Bom e Pastor. Deve falar, mediante Vós, a Sua e só a Sua vontade.

Eis o que diz ainda o Apóstolo: "Afastamos de nós as paixões ocultas e vergonhosas; não procedemos com astúcia, nem adulteramos a palavra de Deus; pela manifestação de verdade é que nos recomendamos à consciência de todos os homens, diante de Deus" (2Co 4,2). Sim! todo o homem terá o direito de julgar--vos pela verdade das Vossas palavras e pelas Vossas obras, no nome daquele "sentido da fé", que é dado a todo o Povo de Deus como fruto da participação na missão profética de Jesus Cristo.

7. E por isso volto mais uma vez àquelas esplêndidas palavras de Paulo da segunda leitura de hoje — e por isso os votos mais calorosos que hoje Vos apresento, e Vos apresenta a Igreja inteira juntamente comigo vosso Bispo, são estes: Deus, que ordenou que das trevas resplandecesse a luz, resplandeça nos Vossos corações, para fazer refulgir o conhecimento da glória divina que brilha no rosto de Cristo (cfr. 2Co 4,6). Estes são os primeiros votos.

Os segundos são que Vós, investidos deste ministério pela misericórdia que foi usada convosco, nunca percais o Vosso ânimo (cfr. 2Co 4,1).

Cristo está convosco. A Sua Mãe é a Vossa Mãe. Os santos, de que invocamos hoje a intercessão, estão convosco. A igreja está convosco. Se vacilastes nalgum momento, recordai-vos que no Corpo de Cristo há as poderosas forças do Espírito, capazes de levantar cada homem e mantê-lo no caminho da vocação. No caminho para o qual o chamou o próprio Deus.

8. São estes os pensamentos, nascidos da meditação sobre a palavra de Deus, que a Igreja nos oferece neste momento solene. E agora acedei ao convite! Realizem-se em cada um de Vós as palavras da oração sacerdotal de Cristo: as palavras que Ele pronunciou no Cenáculo, no limiar do Seu mistério pascal. Cumpram-se estas palavras: Pai, "assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os envio ao mundo. Eu consagro-Me por eles, para eles serem também consagrados na verdade" (Jn 17,18-19). Amém.



CERIMÓNIA DE PROCLAMAÇÃO DE CINCO NOVOS BEATOS:


JOSÉ DE ANCHIETA, MARIA DA ENCARNAÇÃO, PEDRO DE BETANCUR,


FRANCISCO DE MONTMORENCY-LAVAL E CATARINA TEKAKWITHA




22 de Junho de 1980




«Louvai ao Senhor porque é bom , porque é eterna a Sua misericórdia »(Ps 135,1).

394 1. Este atraente convite do Salmista a unirmo-nos todos na glorificação de Deus, pela Sua infinita bondade e misericórdia, hoje aceita-o a Igreja toda, cheia de transbordante alegria pois pode inclinar-se a venerar cinco Filhos seus, elevados às honras dos altares mediante a Beatificação e, ao mesmo tempo, pode apresentá-los à imitação dos fiéis e à admiração do mundo: são um Jesuíta, «Apóstolo do Brasil», José de Anchieta; uma mística missionária, Maria da Encarnação (Guyart); um terceiro-franciscano fundador da Congregação Betlemita, Pedro de Betancur; um Bispo, Francisco de Montmorency-Laval; e uma jovem virgem pele-vermelha Catarina Tekakwitha.

Neles distribuiu Deus a Sua bondade e a Sua misericórdia, enriquecendo-os com a Sua graça; amou-os com amor paterno mas exigente, que prometia só provas e sofrimentos; convidou-os e chamou-os à santidade heróica; tirou-os das suas pátrias de origem e convidou-os para outras terras a fim de anunciarem, no meio de indizíveis fadigas e dificuldades, a mensagem do Evangelho. Dois são filhos da Espanha, dois da França, e uma nasceu na zona que hoje corresponde ao Estado de Nova Iorque e passou depois o resto da vida no Canadá. Como Abraão eles, em certa altura da vida, ouviram — persuasiva, misteriosa e imperiosa - a voz de Deus: «Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar (
Gn 12,1). Obedeceram, com disponibilidade humanamente inexplicável, e foram para zonas desconhecidas, não para procurar riquezas e glórias mundanas, não para fazer da própria vida uma aventura interessante, mas simplesmente para anunciar aos próprios contemporâneos que Deus é amor, que Jesus de Nazaré é o Messias e o Senhor, o Filho de Deus encarnado, o supremo Salvador e Redentor e o definitivo Libertador do homem, de cada homem, de todo o homem.

As vicissitudes terrenas por que passaram, decorreram ao todo, em cerca de 150 anos, entre 1534 e 1680: período caracterizado por complexos fenómenos sociais, políticos, culturais, económicos e, no campo eclesial, além do mais, pelo Concílio de Trento e pela instituição por Gregório XV, em 1622, da Congregação de Propaganda Fide, que animou o grandioso despertar e o indomável impulso missionário da Igreja na época moderna.

2. É um incansável e genial missionário é José de Anchieta, que aos dezassete anos, diante da imagem da Santa Virgem Maria na Catedral de Coimbra, faz voto de virgindade perpétua e decide dedicar-se ao serviço de Deus. Tendo ingressado na Companhia de Jesus, parte para o Brasil no ano de 1553, onde, na missão de Piratininga, empreende múltiplas actividades pastorais com o escopo de aproximar e ganhar para Cristo os índios das florestas virgens. Ele ama com imenso afecto os seus irmãos «Brasis», participa da sua vida, aprofunda-se nos seus costumes e compreende que a sua conversão à fé cristã deve ser preparada, ajudada e consolidada por um apropriado trabalho de civilização, para a sua promoção humana. Seu zelo ardente o move a realizar inúmeras viagens, cobrindo distâncias imensas no meio de grandes perigos. Mas a oração contínua, a mortificação constante, a caridade fervente, a bondade paternal, a união íntima com Deus, a devoção filial à Virgem Santíssima — que ele celebra em um longo poema de elegantes versos latinos —, dão a este grande filho de Santo Inácio uma força sobre-humana, especialmente quando deve defender contras as injustiças dos colonizadores os seus irmãos indígenas. Para eles compõe um catecismo, adaptado à sua mentalidade e que contribuiu grandemente para a sua cristianização. Por tudo isto ele bem mereceu o título de «apóstolo do Brasil».

3. Nascido de família pobre, dedicada à agricultura e à criação de gado, Pedro de Betancur tem na vida só um objectivo: levar a mensagem cristã às «Índias Ocidentais». Aos 23 anos deixa a pátria e chega a Guatemala, doente, sem recursos, só, desconhecido, convertendo-se em apóstolo dos escravos negros, dos índios submetidos a trabalhos desumanos, dos emigrantes sem trabalho nem segurança, e das crianças abandonadas. O Irmão Pedro, animado pela caridade de Cristo, fez-se todo para todos, em particular para os pequenos vagabundos de qualquer raça e cor, em benefício dos quais funda uma escola. Tendo em vista os doentes pobres, despedidos dos hospitais mas ainda necessitados de ajuda e assistência, Pedro funda o primeiro hospital do mundo para convalescentes. Morre aos 41 anos de idade.

O Menino de Belém, em cujo nome fundou a Congregação Betlemita, foi o tema assíduo da meditação espiritual do Beato, que nos pobres soube descobrir sempre o rosto de «Jesus Menino»: por isto os amou com delicada ternura, mantendo-se ainda viva a recordação dele na Guatemala."

4. Maria da Encarnação (Marie Guyart) foi chamada «Mãe da Igreja Católica do Canadá».

Aos 17 anos casa-se com Claude Martin; aos 18 anos é mãe; aos 20 anos, é já viúva. Maria recusa um segundo casamento que lhe propõem os pais e, aos 32 anos, entra no mosteiro das Ursulinas de Tours. Deus levou-a a compreender a fealdade do pecado e a necessidade da redenção. Tendo profunda devoção ao Coração de Jesus e meditando assiduamente o mistério da Encarnação, ela leva à maturidade a sua vocação missionária: «O meu corpo estava no nosso mosteiro, escreverá ela na sua autobiografia, mas o meu espírito não podia estar encerrado. O Espírito de Jesus levava-me à Índias, ao Japão, à América, ao Oriente, ao Ocidente, às paragens do Canadá e dos Hurões, e a toda a terra habitável onde houvesse almas racionais que eu via pertencerem a Jesus Cristo». Em 1639, está ela no Canadá. É a primeira Irmã francesa missionária. O seu apostolado catequético em favor dos indígenas é infatigável: compõe um catecismo na língua dos Hurões, outro na dos Iroqueses e um terceiro na dos Algonquins.

Alma profundamente contemplativa, comprometida todavia na acção apostólica, faz o voto de «procurar a maior glória de Deus em tudo o que seja de maior santificação», e em Maio de 1653 oferece-se interiormente em holocausto a Deus pelo bem do Canadá.

Mestra de vida espiritual, a ponto de Bossuet a definir como a «Teresa do Novo Mundo», promotora de obras evangelizadoras, Maria da Encarnação une em si, de maneira admirável, a contemplação e a acção. Nela a mulher cristã realizou-se plenamente e com raro equilíbrio, nos seus diversos estados de vida: esposa, mãe, viúva, directora de empresa, religiosa, mística, missionária, isto sempre na fidelidade a Cristo, sempre em união estreita com Deus.

5. Francisco de Montmorency-Laval, nobre filho da França, animado também do carisma missionário, poderia aspirar às carreiras humanas mais prometedoras, mas preferiu corresponder generosamente ao convite de Cristo que o enviava a anunciar o evangelho em regiões longínquas. Eleito Vigário Apostólico na «Nova França», revestido do carácter episcopal, estabelece-se em Quebec, e entrega-se com zelo infatigável à expansão do Reino de Deus realizando a figura ideal do Bispo: consagra aos índios a primeira parte do seu ministério; viaja sem descanso através de uma imensa região, a metade do continente norte-americano; funda o seminário de Quebec, que virá a ser a «Universidade Laval», uma das primeiras Universidades católicas dos tempos modernos; ocupa-se com cuidado particular, dos sacerdotes, dos religiosos e das religiosas; obtém da Santa Sé a instituição em Paris de um seminário para as «Missões Estrangeiras».

395 Maria da Encarnação, que o precedera no Canadá 20 anos antes e é hoje beatificada com ele, escrevia quando este chegava: «É homem de grande mérito e de virtude insigne; não foram os homens que o escolheram; direi com toda a verdade que ele vive como santo e como apóstolo».

6. Esta admirável coroa dos novos beatos, dom beneficente de Deus à Sua Igreja, é completado por esta doce, frágil mas também forte figura de jovem mulher que morreu quando tinha apenas 24 anos de idade: Catarina Tekakwitha, o «Lírio dos Mohawks», a donzela iroquesa, que na América do Norte do século XVII foi a primeira a renovar as maravilhas de santidade de Santa Escolástica, Santa Gertrudes, Santa Catarina de Sena, Santa Angela Merici e Santa Rosa de Lima, precedendo no sofrimento do Amor, a sua grande irmã espiritual, Teresa do Menino Jesus.

Gastou a sua curta vida em parte na região que é agora o Estado de Nova Iorque e em parte no Canadá. É amável, gentil e diligente pessoa, empregando o tempo a trabalhar, rezar e meditar. Na idade de 20 anos recebe o Baptismo. Mesmo quando seguia a sua tribo, nas estações da caça, continua as suas devoções, diante de uma rugosa cruz talhada por ela mesma na floresta. Quando a família insiste para que se case, ela responde muito serena e calmamente que tem Jesus como único esposo. Esta decisão, atendendo às condições sociais das mulheres nas tribos índias naquele tempo, expõe Catarina ao risco de viver como fora da casta e na pobreza. É gesto corajoso, desusado e profético. A 25 de Março de 1697, com a idade de 23 anos, consentindo o seu director espiritual, Catarina faz voto de perpétua virgindade; quanto sabemos é a primeira vez que tal voto é feito entre os Índios da América do Norte.

Os últimos meses da sua vida são ainda mais pura manifestação da fé sólida, decidida humildade, calma resignação e radiante alegria, embora no meio de terríveis sofrimentos. As suas últimas palavras, simples e sublimes, sussurradas no momento da morte, resumem, como nobre hino, uma vida da mais pura caridade: «Jesus, eu amo-vos».

7. Cheios de comovida alegria, agradecemos a Deus continuar a conceder generosamente à Igreja o dom da santidade, e inclinamo-nos reverentes a venerar os novos Beatos e as novas Beatas, de que traçámos brevemente a fisionomia espiritual; escutemos com docilidade a mensagem que nos dirigem com a energia do seu testemunho. Verdadeiramente, mediante a fé os seus corações abriram-se com generosidade à Palavra de Deus e tornaram-se habitação de Cristo. Eles, radicados e fundados na caridade, atingiram especial profundidade de conhecimento e compreensão do misterioso desígnio divino de salvação, e souberam o que é o amor de Cristo que ultrapassa todo o conhecimento (cfr. Ef
Ep 3,17-19). Neste dia de glória, recordam-nos que nós somos todos convidados e obrigados a procurar a santidade e a perfeição do nosso próprio estado (cfr. Lumen Gentium LG 42) e que a Igreja, que vive no tempo, por sua natureza é missionária e deve pisar de novo o mesmo caminho seguido por Cristo, isto é, o caminho da pobreza, da obediência, do serviço e do sacrifício de si mesmo, até à morte (Ad Gentes AGD 1,5).

Ó Beatos e Beatas, que hoje a Igreja peregrina glorifica e exalta, dai-nos a força de imitar a vossa fé límpida, quando nos encontrarmos nos momentos de trevas; a vossa serena esperança, quando nos encontrarmos abatidos pelas dificuldades; a vossa ardente caridade para com Deus, quando formos tentados a idolatrar as criaturas; o vosso amor delicado para com os irmãos, quando quisermos fechar-nos no nosso individualismo egoísta!

Ó Beatos e Beatas, abençoai as vossas Pátrias, as de origem e as que vos foram dadas por Deus, como a «Terra Prometida» a Abraão, as quais vós amastes, evangelizastes e santificastes!

Ó Beatos e Beatas, abençoai a Igreja toda, peregrina que espera a Pátria definitiva!

Ó Beatos e Beatas, abençoai o mundo, que tem fome e sede de santidade!

Beato José de Anchieta, Beata Maria da Encarnação, Beato Pedro de Betancur, Beato Francisco de Montmorency-Laval, e beata Catarina Tekakwitha, rogai por nós.



SANTA MISSA EM SUFRÁGIO PELO CARDEAL SÉRGIO PIGNEDOLI


Quinta-feira, 26 de Junho de 1980




396 Venerados Irmãos do Sacro Colégio,
e vós todos, caríssimos Filhos, que me escutais

Quis eu esta recolhida concelebração no interior da Basílica de São Pedro, para recordar e sufragar, a dez dias da inesperada morte, a alma do nosso amável Irmão, o Cardeal Sérgio Pignedoli. Retirou-se de nós silenciosamente, quase em pontas de pés, em conformidade com o seu estilo delicado e discreto, deixando em nós todos uma onda de comovida e sincera saudade.

1. Porque no-lo tirou o Senhor assim tão de improviso? E porque ficou dele esta impressão de doloroso assombro? Não tentarei responder à primeira destas duas perguntas porque me levaria a tentar ler — e seria tentativa infrutuosa — nos arcanos, mas sempre misericordiosos e providenciais, desígnios do Senhor, em quem firmemente cremos como dador e árbitro da vida humana para cada um dos dias, muitos ou poucos, que nos é dado viver nesta terra. "Vós, Senhor — repetirei com o autor do Livro da Sabedoria tendes o poder da vida e da morte, e conduzis os fortes às portas do Hades e de lá os tirais" (
Sg 16, ,13; cf. 1S 2,6).

2. A segunda pergunta, pelo contrário, que é de tipo histórico ou antropológico, é possível e até fácil encontrar resposta, evocando, ainda que seja rapidamente, a pessoa e, diria, os traços daquele que nos deixou. É sabido que, todas as vezes que morre um homem que bem procedeu no decurso da sua existência, é natural e generalizado o sentimento de um vivo pesar.

Tudo isto se verificou logo no princípio da semana passada, quando chegou de Régio Emilia a notícia de ter morrido o Cardeal Pignedoli. Tudo isto continua, à maneira de precisa sensação comum a todos nós, mesmo nesta tarde, porque diante do nosso espírito ou, melhor, dentro do nosso coração, aparece a imagem do dilecto Irmão. Poderíamos acaso esquecer, a carga humana, isto é, a rica sensibilidade, a extraordinária capacidade de relações e a particular atenção que ele revelou sempre diante dos outros homens, na multiplicidade dos contactos e dos encontros que teve e na variedade mesma dos encargos que lhe foram confiados?

Mais que mencionar a tomada de crescentes responsabilidades — desde os anos juvenis do seu sacerdócio, decorridos com os estudantes da Universidade Católica do Sagrado Coração, até aos anos da maturidade passados como Secretário da Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos, e até ao mais recente período em que foi Presidente do Secretariado para os Não-Cristãos —, é justo e oportuno pôr em relevo esta insigne qualidade sua, que foi nele natural e ao mesmo tempo adquirida, isto é, não só dote da sua personalidade, mas também fruto maduro das suas virtudes sacerdotais. Dela brotavam outras características suas, que me limito a nomear: primeiramente, o cuidado, melhor o culto da amizade, cujo alcance foi nele bastante vasto; o interesse constante pelos jovens que em grande número conheceu, seguiu e ajudou de variados modos. Assíduas foram para com eles as suas, solicitudes, como frequentes e apreciados os seus conselhos.

3. Mas é tempo de passar o discurso da evocação afectuosa do Irmão desaparecido para a atmosfera mais elevada, na qual nos quer e à qual nos leva a Palavra de Deus, há momentos proclamada. Eis, Irmãos e Filhos caríssimos, que ressoou aos nossos ouvidos a alta advertência evangélica do Estote parati (Lc 12,40): o Senhor falou-nos de vigilância, de prontidão e de preparação — "com o cinto apertado e as lâmpadas acesas" — à espera da Sua vinda.

É lição permanentemente válida, porque se relaciona com a brevidade do nosso viver nesta terra, porque nos recorda a "relatividade" da permanência temporária aqui e ao mesmo tempo a determinante importância dela, em ordem à outra e definitiva permanência no Céu. É por isso que a dolorosa circunstância que nos reuniu aqui, como aliás qualquer ocorrência de morte, se revela á luz da fé como realidade salutar, sendo oportunidade para meditação e fonte de graça. Também nós devemos estar sempre preparados psicologicamente, espiritualmente, na posse daquela liberdade interior, que, mantendo-nos desligados dos laços do mundo e conservando-nos na tensão do desejo, facilita e apressa na esperança o nosso encontro com Cristo Senhor, lá em cima, na pátria.

A mim parece que o Cardeal Pignedoli, mesmo pelo modo como de nós se afastou, nos oferece esse espectáculo de serenidade e desprendimento. Certamente, eu desejo, ou melhor, devo agradecer-lhe o multiforme e sempre diligente serviço que, por longos anos, prestou à Santa Sé e à Igreja; mas uma razão particular de reconhecimento quero agora manifestar, também em vosso nome, pela. frutuosa lição que nos deixou.

Concluirei então com o Livro da Sabedoria: "O justo, mesmo se morre antes de tempo, encontrará repouso". Na verdade, pela sua vida de servo bom e fiel, pela sua morte de servo pronto e vigilante, já encontrou repouso em Deus, isto é, o conforto, o prémio e a paz. Assim seja!



SOLENIDADE LITÚRGICA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO




397
29 de Junho de 1980




1. Neste dia, em que a Igreja celebra a memória de São Pedro e São Paulo, encontramo-nos em Roma na última etapa do caminho terrestre dos dois Apóstolos. E, ao mesmo tempo, dirigimo-nos, com a memória e o coração, peregrinando aos diversos lugares, que nos são conhecidos pelo Evangelho, pelos Actos dos Apóstolos e pelas Cartas. Entre todos estes lugares (distribuídos por quase todo o Mediterrâneo, do Oriente para o Norte), o mais importante é sem dúvida o que está perto de Cesareia de Filipe, que é recordado pelo Evangelho de hoje. O mais importante não só para a história de Pedro, mas também, em certo sentido, para a história de Paulo, para a história da Igreja e do Cristianismo, para a história da salvação. Jesus pergunta aos seus apóstolos: «Quem dizem por aí que é o Filho do homem?» (
Mt 16,13). São referidas várias opiniões que então corriam entre a gente da Palestina. E quando Jesus pergunta pela segunda vez: «Vós quem dizeis que Eu sou?» (Mt 16,15), responde Pedro. E precisamente esta resposta é a resposta-chave. É a resposta-chave pelo que diz respeito ao conteúdo e, contemporaneamente, mais ainda, pelo que diz respeito à fonte de que procede.

Este conteúdo pronuncia-o Pedro nas palavras: «Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo« (Mt 16,16). E o próprio Cristo anuncia de que fonte provém esta verdade, de que fonte brotou a confissão, sobre a qual doravante se deve construir a Igreja. Cristo diz: «Nem a carne nem o sangue to revelaram, mas o meu Pai que está nos céus» (Mt 16,17).

2. Na liturgia da Missa vespertina de ontem, que introduz na solenidade dos dois Apóstolos, Paulo diz o seguinte na carta aos Gálatas: «...quando aprouve a Deus — que me reservou desde o seio de minha mãe e me chamou pela Sua graça — revelar Seu Filho em mim..., não consultei nem a carne nem o sangue... parti para a Arábia e voltei outra vez a Damasco. Depois, passados três anos, fui a Jerusalém, para visitar Cefas e fiquei com ele quinze dias...» (Ga 1,15-18).

O Apóstolo dos gentios resume nestas palavras o seu itinerário. Encontrou-se com Pedro em Jerusalém, depois em Antioquia, e só depois em Roma, onde ambos eram esperados para a última prova. Todavia, esteve sempre unido com Pedro, e Pedro com ele, nisto: em Deus se comprazer revelando nele o Seu Filho. Pela primeira vez junto das portas de Damasco, depois de ter sido prostrado em terra e cegado por uma luz do céu, e à pergunta — «Quem sois, ó Senhor?» — ouvira a resposta: «Eu sou Jesus que tu persegues» (Ac 9,5). Então cumpriu-se em Paulo aquilo mesmo que se tinha cumprido em Pedro junto de Cesareia de Filipe, quando este confessou: «Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo». O Pai revelou-lhe em Cristo o Messias: o Seu Filho. O Filho de Deus vivo.E Paulo aceitou interiormente as palavras do Pai «sem consultar nenhum homem», assim como Pedro que ouviu da boca de Cristo: «Não foram a carne nem o sangue quem to revelou».

3. Encontramo-nos no ponto-chave da Economia Divina. Deus dá o Seu Filho e ao mesmo tempo Deus revela o Seu Filho primeiramente a Pedro que antes se chamava Simão, e era filho de Jonas e irmão de André, e depois — a seu tempo — a Paulo, que antes se chamava Paulo de Tarso. Graças ao poder desta revelação do Filho por parte do Pai, Pedro, que acreditou e confessou a sua fé, deve ser «pedra». E Eu te digo: Tu és Pedro, «a pedra», e «sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja e as portas do inferno nada poderão contra ela» (Mt 16,18). Graças ao poder da mesma revelação do Filho por parte do Pai, Paulo, que acreditou e confessou a sua fé em Cristo com o mesmo fervor de espírito, com que antes perseguira os confessores de Cristo, devia tornar-se «o instrumento escolhido» para levar o nome do Senhor perante os pagãos (cf. Act Ac 9,15).

A Igreja de Roma celebra hoje a memória de ambos. A «Pedra» e o «Instrumento escolhido» encontraram-se definitivamente aqui. Aqui cumpriram ambos o ministério apostólico, aqui o selaram definitivamente com o testamento do sangue por eles derramado, com o testemunho do sacrifício total da vida.

Prevendo este dia, Paulo escrevia a Timóteo, como lemos na liturgia de hoje: «Quanto a mim, estou pronto para o sacrifício; e o tempo da minha partida já se aproxima. Combati o bom combate, terminei a minha carreira e guardei a fé. Já nada me resta senão receber a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não só a mim, mas também àqueles que desejam a Sua vinda» (2Tm 4,6-8).

Como Paulo, poderia escrever de si mesmo Pedro. De cada um deles pode dizer-se que amou de modo particular a manifestação do Senhor. Que ambos O acolheram de todo o coração, que Lhe deram testemunho com toda a vida e com a morte. Deram testemunho não àquilo que «a carne e o sangue» podem revelar ao homem, mas àquilo que «revelou o Pai». A Verdade e o Poder desta Revelação permanecem na Igreja e crescem nela constantemente a partir da raiz da fé de ambos os Apóstolos: Pedro, que é a «pedra», e Paulo, que se tornou o «instrumento escolhido».

4. Festejando hoje o dia do nascimento definitivo deles, a Igreja romana e, toda a Igreja olha para si mesma. Vê-se a si mesma tal qual é no ano do Senhor de 1980.

E vendo-se a si mesma tal qual é pensando em Pedro, a quem o Senhor chamou «pedra», pede para ter tal força de fé no Filho de Deus vivo — fé revelada pelo Pai — que lhe permita perdurar e desenvolver-se como a Igreja de Deus vivo, e ao mesmo tempo como a «pedra» do mundo e dos homens, no mundo contemporâneo.

398 Pensando depois em Paulo, a quem o Senhor chamou «instrumento escolhido», a igreja não deixa de pedir para ter tal força de fé em Cristo, que não lhe permita nunca deter-se no cumprimento e no desempenho da sua missão. Pelo contrário, que a «obrigue» cada vez mais a levar Cristo, a toda a parte do globo e a toda a dimensão da existência humana, exactamente como fazia aquele a quem o Senhor chamou «instrumento escolhido».

E por fim a Igreja escuta as palavras que pela primeira vez Pedro ouviu de Cesareia de Filipe: «Dar-te-ei as chaves do reino dos céus, e tudo quanto ligares na terra ficará ligado nos céus, e tudo quanto desligares na terra será desligado nos céus» (
Mt 16,19). Escutando estas palavras, toda a Igreja pede para ser a serva fiel e vigilante em cada vinda do Senhor, histórica e definitiva, para se preparar a si mesma para esta vinda e preparar a família humana inteira.

Assim como a prepararam os Santos Apóstolos Pedro e Paulo. Que esta aspire por tal vinda com todas as forças. Assim como aspiravam eles. Hoje a nossa alegria, pela presente festa de São Pedro e São Paulo, aumentou com a presença da Delegação enviada pelo Patriarca ecuménico Dimítrios I e pelo seu Sínodo. Saúdo com estima e afecto esta Delegação, que desejou unir-se a nós na oração. Tal comunhão levar-nos-á, assim esperamos, à plena unidade e à celebração comum da Eucaristia. Esse será um dia de alegria plena. Mas já hoje é grande a nossa alegria. Demos graças a Deus.

Amén.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL



DURANTE A MISSA NA CATEDRAL DE BRASÍLIA


Brasília, 30 de Junho de 1980




Irmãos e filhos caríssimos

1. Ao celebrar esta primeira Eucaristia em terra brasileira, aos pés da Cruz, desejo professar juntamente convosco a verdade fundamental da fé e da vida cristã, que todo o Santo Sacrifício da Missa é uma renovação incruenta do Sacrifício oferecido na Cruz por nosso Senhor Jesus Cristo.

A Igreja vive deste Sacrifício da redenção, nele se renova incessantemente a si mesma, peregrinando através de todas as provações da vida terrestre para o eterno encontro na Casa do Pai. Ao sacrifício de Cristo todos os que nele participam unem os seus sacrifícios espirituais e, deste modo, a Eucaristia torna-se sacramento da comunhão de todo o Povo de Deus com o Pai celeste e, simultaneamente, o sinal da união fraterna entre os homens.

Fui convidado para vir ao Brasil primeiro que tudo por motivo do Congresso Eucarístico Nacional de Fortaleza. Este Congresso Eucarístico brasileiro, o décimo na ordem, deve constituir uma particular manifestação da união de toda a Igreja em terras brasileiras, em torno do Sacramento do Amor, no qual Cristo, ao dar-nos o próprio Corpo e Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho, fez de nós uma oferenda permanente e agradável ao Pai (Cf. Prex Eucharistica III). O Congresso Eucarístico deve, de modo particular, demonstrar e pôr em evidência o fato de que o Povo de Deus aqui sobre a terra vive da Eucaristia, que nela vai haurir as suas forças para as canseiras cotidianas e para as lutas em todos os campos da sua existência.

A partir desta cruz junto da qual celebro a primeira Missa em terra brasileira - acedendo aos convites que me chegaram de diversas partes - desejo passar depois por numerosos lugares, tomar contacto com vários ambientes e tocar muitas dimensões da vossa vida, a fim de incluir, num certo sentido, tudo isso no programa do Congresso Eucarístico. É meu desejo que esta minha passagem através da vossa terra me sirva de preparação para aquele grande Acontecimento, no centro do qual se encontra o Sacramento do Amor, como fonte da vida e da santidade de cada um e de todos. Considero uma etapa particular nesta caminhada a visita ao Santuário Mariano de Aparecida, porque acredito, assim como vós também, que a Mãe de Cristo nos aproxima de modo particularmente eficaz e simples do Sacramento do Corpo e do Sangue do seu Filho.

2. E quando, ao concluir esta peregrinação, eu puder encontrar-me junto do altar em Fortaleza, para a abertura do décimo Congresso Eucarístico Nacional em terra brasileira, então olharei para trás, na direção desta Cruz, a qual sempre e em toda a parte nos recorda a Paixão de Cristo e a sua Morte pela redenção do mundo: Sacrifício cruento de que a Eucaristia é sinal perene e eficaz.


Homilias JOÃO PAULO II 392