Homilias JOÃO PAULO II 406


VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL



NA SANTA MISSA DE ORDENAÇÃO SACERDOTAL


Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980




Veneráveis irmãos e caríssimos filhos

1. É solene esta demora. O Senhor está presente aqui, no meio de nós. Para dar-nos a certeza disto, bastaria a sua promessa: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles”(Mt 18,20). É em nome d’Ele que estamos reunidos para a Ordenação Presbiteral destes jovens que estão aqui, diante do altar. Sobre eles, escolhidos da maravilhosa e generosa terra do Brasil com afeto de predileção, Jesus fará descer, daqui a pouco, o Espírito do Pai e Seu. E o Espírito Santo, marcando-os com o seu sinete através da imposição das mãos do Bispo, enriquecendo-os de graças e poderes particulares, realizará neles uma misteriosa e real configuração a Cristo, Cabeça e Pastor da Igreja, e fará deles seus ministros para sempre.

É bom, nesta altura do solene rito, deter-nos e meditar. O Evangelho que ouvimos e a cerimónia litúrgica que precedeu a sua leitura são argumentos capazes de fixar a nossa mente nume contemplação sem fim. É natural que, neste momento de intensa alegria, eu me dirija de modo particular a vós, caríssimos ordenandos, que sois o motivo desta celebração. E o faço com as palavras do Apóstolo Paulo: “Os nostrum patet ad vos... cor nostrum dilatatum est”. “Os nossos lábios se abrem para vós... o nosso coração se alarga”(2Co 6,11). O meu ardente desejo é ajudar-vos a compreender a grandeza e o significado do passo que estais para dar. Esta hora solene terá sem dúvida um reflexo sobre todas as que virão depois no decurso da vossa existência. Devereis voltar muitas vezes à recordação desta hora para tomar impulso para continuar, com renovado ardor e generosidade, o serviço que hoje fostes chamados a exercer na Igreja.

2. “Quem sou eu? Que se requer de mim? Qual é a minha identidade?”. É esta a pergunta ansiosa que mais frequentemente se põe hoje o sacerdote, certamente não a salvo dos contra choques da crise de transformação que abala o mundo.

Vós, caríssimos filhos, não sentis certamente a necessidade de fazer-vos estas perguntas. A luz que hoje vos invade vos dá uma certeza quase sensível daquilo que sois, daquilo a que fostes chamados. Mas pode acontecer que encontreis, amanhã, irmãos no sacerdócio, que, em meio à incerteza, se interrogam sobre a própria identidade. Pode acontecer que, adormecido e distante o primeiro fervor, chegueis também vós, um dia, a vos interrogar. Por isso, eu gostaria de propor-vos algumas reflexões sobre a verdadeira fisionomia do sacerdote, que servissem de poderoso auxílio para a vossa fidelidade sacerdotal.

407 Não é decerto nas ciências do comportamento inumano, nem nas estatísticas sócio-religiosas que procuraremos a nossa resposta, mas sim, em Cristo, na Fé. Interrogaremos humildemente o Divino Mestre e perguntaremos a Ele quem somos nós, como Ele quer que sejamos, qual é, diante d’Ele, a nossa verdadeira identidade.

3. Uma primeira resposta nos é dada imediatamente: somos chamados. A história do nosso sacerdócio começa por um chamamento divino, como aconteceu com os Apóstolos. Na escolha deles, é manifesta a intenção de Jesus. É Ele quem toma a iniciativa. Ele mesmo o fará notar: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi”(
Jn 15,16). As cenas simples e enternecedoras que nos apresentam o chamado de cada discípulo revelam a atuação precisa de escolhas determinadas (cf. Lc Lc 6,13) , sobre as quais é útil meditar.

Quem escolhe Ele? Não parece que Ele considere a classe social dos seus eleitos (cf. Mt Mt 8,19-22), nem que conte com entusiasmos superficiais. Uma coisa é certa: somos chamados por Cristo, por Deus. O que quer dizer, somos amados por Cristo, amados por Deus. Pensamos nisto bastante? Na realidade, a vocação ao sacerdócio é um sinal de predileção da parte d’Aquele que, escolhendo-vos entre tantos irmãos, vos chamou a participar, de um modo todo especial, da sua amizade: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que fez o seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”(Jn 15,15).O nosso chamamento ao Sacerdócio, assinalando o momento mais alto no uso da nossa liberdade, provocou a grande e irrevogável opção da nossa vide e, portento, a página mais bela na história da nossa experiência inumana. Nossa felicidade consiste em não depreciá-la jamais!

4. Com o rito da Sagrada Ordenação sereis introduzidos, filhos caríssimos, em um novo género de vide, que vos separa de tudo e vos une a Cristo com um vínculo original, inefável, irreversível. Assim, a vossa identidade se enriquece com uma outra nota: sois consagrados.

Esta missão do Sacerdócio não é um simples título jurídico. Não consiste apenas num serviço eclesial prestado à comunidade, delegado por ela, e por isso revogável pela mesma comunidade ou renunciável por livre escolha do “funcionário”. Trata-se, ao contrário, de uma real e íntima transformação por que passou o vosso organismo sobrenatural por obra de um “sinete” divino, o “caráter”, que vos inabilita a agir “in persona Christi” (nas vezes de Cristo), e por isso vos qualifica em relação a Ele como instrumentos vivos da sua ação.

Compreendeis agora como o sacerdote se torna um “segregatus in Evangelium Dei” (escolhido para anunciar o Evangelho de Deus) (cf. Rm Rm 1,1), não pertence mais ao mundo, mas se acha doravante num estado de exclusiva propriedade do Senhor. O caráter sagrado o atinge em tal profundidade que orienta integralmente todo o seu ser e o seu agir para uma destinação sacerdotal. De modo que não resta nele mais nada de que possa dispor como se não fosse sacerdote, ou, menos ainda, como se estivesse em contraste com tal dignidade. Ainda quando realiza ações que, por sua natureza são de ordem temporal, o sacerdote é sempre o ministro de Deus. Nele, tudo, mesmo o profano, deve tornar-se “sacerdotalizado”, como em Jesus, que sempre foi sacerdote, sempre agiu como sacerdote, em todas as manifestações de sua vide.

Jesus nos identifica de tal modo consigo no exercício dos poderes que nos conferiu, que a nossa personalidade como que desaparece diante da sua, já que é Ele quem age por meio de nós. “Pelo Sacramento da Ordem disse alguém com justeza, o sacerdote se torna efetivamente idôneo a emprestar a Jesus nosso Senhor a voz, as mãos e todo o seu ser. É Jesus quem, na Santa Missa, com as palavras da consagração, muda a substância do pão e do vinho na do seu corpo e do seu sangue” (cf. I. Escrivà de Balaguer, Sacerdote per l’eternità, Milano 1975, p. 30). E podemos continuar. É o próprio Jesus quem, no Sacramento da Penitência, pronuncia a palavra autorizada e paterna: “Os teus pecados te são perdoados”(Mt 9,2 Lc 5,20 Lc 7,48 cf. Jo Jn 20,23). É Ele quem fala quando o sacerdote, exercendo o seu ministério em nome e no espírito da Igreja, enuncia a palavra de Deus. É o próprio Cristo quem tem cuidado dos enfermos, das crianças e dos pecadores, quando os envolve o amor e a solicitude pastoral dos ministros sagrados.

Como vedes, encontramo-nos aqui nas culminâncias do sacerdócio de Cristo, do qual nós somos partícipes, e que fazia o autor da Carta aos Hebreus exclamar: “... grandis sermo et ininterpretabilis ad dicendum” (teríamos muitas coisas a dizer sobre isso, e coisas difíceis de explicar) (He 5,11).

A expressão “Sacerdos alter Christus” (o Sacerdote é um outro Cristo), criada pela intuição do povo cristão, não é um simples modo de dizer, uma metáfora, mas sim, uma maravilhosa, surpreendente e consoladora realidade.

5. Este dom do Sacerdócio, lembrai-vos sempre disto, é um prodígio que foi realizado em vós mas não para vós. Ele o foi para a Igreja, o que quer dizer, para o mundo a ser salvo. A dimensão sagrada do sacerdócio é totalmente ordenada à dimensão apostólica, isto é, à missão, ao ministério pastoral. “Como o Pai me enviou, assim Eu vos envio”(Jn 20,21).

O sacerdote é, portanto, um enviado. Eis uma nova conotação essencial da identidade sacerdotal.

408 O sacerdote é o homem da comunidade, ligado de forma total e irrevogável ao seu serviço, como o Concílio o ilustrou claramente (cf. Presbyterorum Ordinis PO 12). Sob este aspecto, vós sois destinados ao cumprimento de uma dupla função, que bastaria, ela só, para uma infindável meditação sobre o Sacerdócio. Revestindo a pessoa de Cristo, exercitareis de alguma forma a sua função de mediador. Sereis intérpretes da palavra de Deus, dispensadores dos mistérios divinos junto ao povo (cf. 1Cor 1Co 4,1 2Co 6,4). E sereis, junto de Deus, os representantes do povo em todos os seus componentes: as crianças, os jovens, as famílias, os trabalhadores, os pobres, os pequenos, os doentes, e até mesmo os distantes e os adversários. Sereis os portadores das suas ofertas. Sereis a sua voz orante e suplicante, exultante e gemente. Sereis a sua expiação(cf. 2Cor 2Co 5,21).

Levemos por isso gravada na memória e no coração a palavra do Apóstolo: “Pro Christo legatione fungimur, tamquam Deo exhortante per nos” (Somos embaixadores de Cristo, como se Deus exortasse por meio de nós) (2Co 5,20), para fazer de nossa vide uma íntima, progressiva e firme imitação de Cristo Redentor.

6. Queridos filhos, com esta rápida exposição procurei ilustrar-vos os traços fundamentais do perfil do sacerdote.

Desejo agora tirar algumas consequências práticas que vos ajudarão no cumprimento da vossa atividade sacerdotal, dentro ou fora da sociedade eclesial.

Antes de tudo, no mundo eclesial. Sabeis que a doutrina do sacerdócio comum dos fiéis, tão amplamente desenvolvida pelo Concílio, ofereceu ao laicato a ocasião providencial de descobrir sempre mais a vocação de todo o batizado ao apostolado e o seu necessário compromisso, ativo e consciente, com a tarefa da Igreja. Dela resultou uma vasta e consoladora florescência de iniciativas e de obras que constituem uma inestimável contribuição para o anúncio da mensagem cristã, seja em terras de missão, seja em países, como o vosso, onde se sente mais agudamente a necessidade de suprir, com o auxílio dos leigos, a presença do sacerdote.

Isto é consolador, e devemos ser os primeiros a nos alegrar com esta colaboração do laicado e a encorajá-la.

Nada disso, entretanto, urge dizê-lo, diminui de forma alguma a importância e a necessidade do ministério sacerdotal, nem pode justificar um menor empenho pelas vocações eclesiásticas. Menos ainda, pode justificar a tentativa de transferir para a assembléia ou comunidade o poder que Cristo conferiu exclusivamente aos ministros sagrados. O papel do sacerdote permanece insubstituível. Devemos, sim, solicitar de todos os modos a colaboração dos leigos. Mas, na economia da redenção, existem tarefas e funções - como o oferecimento do Sacrifício Eucarístico, o perdão dos pecados, o ofício do magistério - que Cristo quis ligar essencialmente ao sacerdócio, e nas quais ninguém, sem ter recebido a ordem sagrada, nos poderá substituir. Sem o ministério sacerdotal, a vitalidade religiosa corre o risco de se cortar de suas fontes, a comunidade cristã de desagregar-se e a Igreja de secularizar-se.

É verdade que a graça de Deus pode agir de igual modo, especialmente onde existe a impossibilidade de ter o ministro de Deus, e onde não há culpa no fato de não o ter. É necessário porém não esquecer que o caminho normal e seguro dos bens da redenção passa através dos meios instituídos por Cristo e nas formas estabelecidas por Ele.

Daqui se compreende também o quanto deva ser caro ao coração de cada um de nós o problema das vocações. A este campo exortamo-vos a consagrar as primeiras e mais desveladas preocupações do vosso ministério. É um problema da Igreja (cf. Optatam Totius OT 2). É um problema importante entre todos. Dele depende a certeza do futuro religioso da vossa pátria. Poderão talvez desanimar-vos as dificuldades reais em fazer chegar ao mundo jovem o convite da Igreja. Mas tende confiança! Também a juventude do nosso tempo sente poderosamente a atração para as alturas, para as coisas árduas, para os grandes ideais. Não vos iludais que a perspectiva de um Sacerdócio menos austero nas suas exigências de sacrifício e de renúncia - como, por exemplo, na disciplina do celibato eclesiástico - possa aumentar o número daqueles que pretendem comprometer-se no seguimento de Cristo. Pelo contrário. É antes uma mentalidade de Fé vigorosa e consciente que falsa e se fez necessário criar em nossas comunidades. Ali onde o sacrifício cotidiano mantém desperto o ideai evangélico e eleva a alto nível o amor de Deus, as vocações continuam a ser numerosas. Confirma-o a situação religiosa do mundo. Os países onde a Igreja é perseguida são, paradoxalmente, aqueles em que as vocações florescem mais, algumas vezes até em abundância.

7. É necessário, além disso, que tomeis consciência, amados sacerdotes, de que o vosso ministério se desenvolve hoje no ambiente de uma sociedade secularizada, cuja característica é o eclipse progressivo do sagrado e a eliminação sistemática dos valores religiosos. Sois chamados a realizar nela a salvação como sinais e instrumentos do mundo invisível.

Prudentes, mas confiantes, vivereis entre os homens para partilhar suas angústias e esperanças, para confortar-lhes os esforços de libertação e de justiça. Não vos deixeis, porém, possuir pelo mundo, nem pelo seu príncipe, o maligno (cf. Jo Jn 17,14-15). Não vos ajusteis às opiniões e aos gostos deste mundo, como exorta São Paulo: “Nolite conformari huic saeculo”(Rm 12,1-2). Inseri, antes, a vossa personalidade, com as suas aspirações, na linha da vontade de Deus.

409 A força do sinal não está no conformismo, mas na distinção. A luz é diversa das trevas para poder iluminar o caminho de quem anca no escuro. O sal é diverso da comida para dar-lhe o sabor. O fogo, é diverso do gelo para aquecer os membros enrijecidos pelo frio. Cristo nos chama luz e sal da terra. Num mundo dissipado e confuso como o nosso, a força do sinal está exatamente em ser diferente. Ele deve destacar-se tanto mais quanto a ação apostólica exige maior inserção na massa inumana.

A este propósito, quem não percebe que uma certa absorção da mentalidade do mundo, a frequentação de ambientes dissipantes, como também o abandono do modo externo de apresentar-se, distintivo dos Sacerdotes, podem diminuir a sensibilidade do próprio valor de sinal?

Quando se perdem de vista estes horizontes luminosos, a figura do padre se obscurece, sua identidade entra em crise, seus deveres peculiares não se justificam mais e se contradizem, se enfraquece a sua razão de ser.

Nem esta fundamental razão de ser se recupera fazendo-se o sacerdote “um homem-para-os-outros”. Acaso não o deve ser quem quer que deseje seguir o Divino Mestre?

“Homem-para-os-outros” o sacerdote o é, decerto, mas em virtude da sua peculiar maneira de ser “homem-para-Deus”. O serviço de Deus é o alicerce sobre o qual construir o genuíno serviço dos homens, aquele que consiste em libertar as almas da escravidão do pecado e em reconduzir o homem ao necessário serviço de Deus. Deus, com efeito, quer fazer da humanidade um povo que O adore “em espírito e verdade”(
Jn 4,23).

Fique assim bem clero que o serviço sacerdotal, se quer permanecer fiel a si mesmo, é um serviço excelente e essencialmente espiritual. Que isto seja hoje acentuado contra as multiformes tendências a secularizar o serviço do padre, reduzindo-o a uma função meramente filantrópica. O seu serviço não é o do médico, do assistente social, do político ou do sindicalista. Em certos caves, talvez, o padre poderá prestar, embora de maneira supletiva, estes serviços e, no passado, os prestou de forma egrégia. Mas hoje eles são realizados adequadamente por outros membros da sociedade, enquanto que o nosso serviço se especifica sempre mais claramente como um serviço espiritual. É na área das almas, das suas relações com Deus, e de seu relacionamento interior com os seus semelhantes que o sacerdote tem uma função essencial a desempenhar. É aqui que se deve realizar a sua assistência aos homens do nosso tempo. Certamente, sempre que as circunstâncias o exijam, ele não se eximirá de prestar também uma assistência material, mediante as obras de caridade e a defesa da justiça. Mas, como tenho dito, isto é, em definitivo, um serviço secundário, que não deve jamais fazer perder de vista o serviço principal, que é o de ajudar as almas a descobrir o Pai, a abrir-se para Ele e amá-l’O sobre todas as coisas.

Somente assim é que o sacerdote jamais poderá sentir-se um inútil, um falido, ainda quando fosse constrangido a renunciar a qualquer atividade exterior. O Santo Sacrifício da Missa, a oração, a penitência, o melhor, antes, o essencial do seu sacerdócio permaneceria íntegro, como o foi para Jesus nos 30 anos de sua vide oculta. A Deus seria dada ainda uma glória imensa. A Igreja e o mundo não ficariam privados de um autêntico serviço espiritual.

8. Queridos ordenandos, caros sacerdotes, a esta altura, o meu sermão se transforma em oração, nume oração que desejo confiar à intercessão de Maria Santíssima, Mãe da Igreja e Rainha dos Apóstolos. Na trépida espera do sacerdócio, vos colocastes certamente perto d’Ela, como os Apóstolos no Cenáculo. Que Ela vos obtenha as graças de que mais necessitais para a vossa santificação e para a prosperidade religiosa do vosso país. Que Ela vos obtenha sobretudo o amor, o seu amor, aquele que lhe deu a graça de gerar Cristo, para serdes capazes de cumprir a missão de gerar Cristo nas almas. Que Ela vos ensine a ser puros, como Ela o foi, vos torne fiéis ao chamamento divino, vos faça compreender toda a beleza, a alegria e a força de um ministério vivido sem reservas na dedicação e na imolação pelo serviço de Deus e das almas. Pedimos finalmente a Maria, para vós e para todos nós aqui presentes, que nos ajude a dizer, a seu exemplo, a grande palavra: SIM à vontade de Deus, mesmo quando exigente, mesmo quando incompreensível, mesmo quando dolorosa para nós.

Assim seja!



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL



EM HONRA DO BEM-AVENTURADO


PADRE JOSÉ DE ANCHIETA


São Paulo, 3 de Julho de 1980

1. Estou realmente feliz por estar hoje convosco, nesta querida cidade de São Paulo, cuja Câmara Municipal, delicadamente, quis oferecer-me o título de “Cidadão Paulista”, motivando este gesto o fato de ter recentemente, como Sumo Pontífice, decretado a beatificação do


410 Padre José de Anchieta, da Companhia de Jesus, considerado - e com razão - um dos fundadores da vossa cidade.

Esta manifestação de cordialidade me comove e me leva a exprimir o meu vivo e sincero agradecimento.

E agora, desejo refletir convosco sobre a fascinante figura do Bem-aventurado Anchieta, tão ligado à história religiosa e civil deste querido Brasil.

O Bem-aventurado Anchieta chegou aqui, a esta parte de vossa grande Nação, o Brasil, em 1554. A cidade ainda não existia; havia apenas alguns aglomerados de aborígenes. Chegou aos 24 de janeiro, vigília da festa da Conversão de São Paulo. A primeira Missa aqui celebrada, portento, foi exatamente em honra do Apóstolo dos Gentios, e a ele foi dedicada a vila que devia surgir ao redor da pequena choupana - a “Igrejinha” - que seria o seu coração. Daí o nome desta vossa cidade de São Paulo, hoje sem dúvida a maior cidade do Brasil.

Natural das Ilhas Canárias, educado em Portugal, José de Anchieta provinha daquelas nações que, naquela época, tanto contribuíram para a descoberta do mundo: da Espanha e de Portugal partiam navegadores e pioneiros, sulcando os mares, chegando a terras até então desconhecidas. Na sua trilha seguiam conquistadores, colonos, comerciantes, exploradores.

Terá vinco o Padre Anchieta como um soldado em busca de glória, um conquistador em busca de terras, ou um comerciante em busca de bons negócios e dinheiro? Não! Veio como missionário, para anunciar Jesus Cristo, para difundir o Evangelho. Veio com o único objetivo de conduzir os homens a Cristo, transmitindo-lhes a vida de filhos de Deus, destinados à vida eterna. Veio sem exigir nada para si; pelo contrário, disposto a der a sua vida por eles.

Pois bem, também eu venho a vós, impelido pelo mesmo motivo, impulsionado por igual amor: venho a vós como humilde mensageiro de Cristo.

Esta tem sido sempre a única motivação das viagens que me conduziram aos vários Continentes: são viagens apostólicas daquele que, por ser o Servo de Cristo, quer confirmar os irmãos na fé.

É este o motivo, também hoje, porque me encontro no meio de vós. Ele me une, intimamente, a vosso amado Beato José de Anchieta.

Acolhei-me, assim como acolhestes Anchieta: que minha passagem no meio de vós tenha algo daquilo que foi a passagem e é a permanência do grande Apóstolo no meio de vossa gente, nas vossas aldeias de então, no vosso grande País. Seja essa a passagem da graça do Senhor.

2. Jovem, cheio de vida, inteligente, alegre por natureza, de coração aberto e amado por todos, brilhante nos estudos da Universidade de Coimbra, José de Anchieta soube granjear a simpatia de seus colegas, que gostavam de ouvi-lo recitar. Por causa do seu timbre de voz, chamavam-no “canarinho”, lembrado assim o canto dos pássaros de sua ilha natal, Tenerife, nas Canárias.

411 Diante dele abriam-se tantas estradas ao sucesso. Mas, jovem de fé, estava atento às inspirações e moções de Deus que o atraía por outros caminhos, chamava-o e orientava-o por uma vereda bem diferente daquela que outros, talvez, haviam imaginado para ele. Num estado de alma de escuridão espiritual, o jovem buscava o silencio, a solidão, para orar. Muitas vezes, deixando de lado os livros, passeava sozinho, às margens do rio Mondego.

Foi em uma destas caminhadas que José entrou na catedral de Coimbra e, diante do altar da Virgem Maria, sentiu inesperadamente a paz e a serenidade tão desejadas. Resolveu, então, dedicar sua vida ao serviço de Deus e dos homens. E, para viver este ideai, fez ali, na mesma hora, o voto de castidade, consagrando-se à Virgem: tinha então 17 anos.

A partir de então, intensificou sua oração, prosseguiu seus estudos com ardor. Embora jovem, demonstrava um grande senso de maturidade diante do valor da vida. O dom de si, feito à Mãe de Deus, começou a concretizar-se como um chamado à vida religiosa.

Por aquela época, liam-se na Universidade de Coimbra as cartas que Francisco Xavier - o grande missionário - escrevia do Oriente, e que traziam também insistentes apelos aos jovens estudantes das Universidades européias. Profundamente impressionado com o que Francisco Xavier dizia, acerca das carências de tantos povos e países e desejando seguir um exemplo tão eloquente de dedicação à glória de Deus e ao bem dos homens, José de Anchieta resolveu entrar para a Companhia de Jesus: queria ser missionário!

E assim, poucos anos depois, veio ao Brasil.

Neste instante, quero dirigir-me a vós, jovens de São Paulo, jovens de todo o Brasil, da grande Nação que pode ser chamada “jovem”, já que sua população conta com tão elevado índice de moços: olhai para o vosso Anchieta!

Era jovem como vós, mas aberto a Deus e aos seus apelos. Era cheio de vida como vós, mas na oração buscava a resposta à vida. E neste contacto com o Deus vivo encontrou o caminho que conduz à vida verdadeira, a uma vida de amor a Deus e aos homens.

O Senhor, que viveu sobre a terra, passando de aldeia em aldeia, fazendo o bem (cf. Mt
Mt 9,35), ainda hoje passa, à procura de corações abertos ao seu convite: “Vem e segue-me!” (Mt 19,21 , Lc 10,2).

Lembrai-vos: José de Anchieta respondeu com generosidade e o Senhor fez dele o “apóstolo do Brasil”, aquele que, de maneira insigne, contribuiu para o bem do vosso povo.

3. Uma vez missionário, José de Anchieta viveu o espírito do Apóstolo dos Gentios, que em suas epístolas falava das peripécias, dificuldades e perigos enfrentados, por carregar no coração como “preocupação de todos os dias a solicitude por todas as Igrejas” (2Co 11,26-28).

Numa carta de 1° de junho de 1560, revelando a sua ânsia de conduzir ao Senhor os povos deste país, Padre Anchieta escrevia textualmente: “Por este motivo, sem nos deixar intimidar pelas calmarias, tempestades, chuvas, correntezas espumantes e impetuosas dos rios, procuramos sem descanso visitar todas as aldeias e vilas, quer dos índios, quer dos portugueses; e mesmo de noite acorremos aos doentes, atravessando florestas tenebrosas, a custo de grandes fadigas, tanto pela aspereza dos caminhos como pelo mau tempo”(J. de Anchieta, Carta ao P. Tiago Laynez, Prepósito-General da Companhia de Jesus, 1° de junho de 1560). E descrevendo ainda mais abertamente as condições daqueles que, com ele e como ele, dedicavam-se aos “brasís” - como os costumava chamar -, revela ainda mais profundamente a grandeza do Seu amor e do seu espírito de sacrifício e, sobretudo, a finalidade de sua existência: “Mas nada é difícil para aqueles que acalentam no coração e têm como fim único a glória de Deus e a salvação das almas, pelas quais não hesitam em der a sua vida” (Ibidem).

412 Salvar as almas para a glória de Deus: este era o objetivo de sua vida. Isto explica a prodigiosa atividade de Anchieta, ao buscar novas formas de atuação apostólica, que o levavam finalmente a fazer-se tudo para todos, pelo Evangelho; a fazer-se servo de todos a fim de ganhar o maior número possível para Cristo (cf. 1Cor 1Co 9,19-22).

Não recusou nenhum esforço, para compreender os seus “brasís” e compartilhar-lhes a vida. Se aprendeu a difícil língua deles - e tão bem, a ponto de ser o primeiro a compor uma gramática dessa língua - isto se deve a seu amor, que o impelia a incarnar-se entre eles, mas para falar-lhes de Jesus, transmitir-lhes a Boa-Nova. Desta forma, tornou-se exímio catequista que - seguindo o exemplo de Cristo Senhor, Deus feito homem para revelar o Pai -, vivendo entre os homens, falava-lhes de maneira simples, acomodando-se a suas categorias mentais e aos seus costumes.

Com esta mesma finalidade, levando em consideração os dotes e qualidades naturais dos índios, a sua sede de saber a sua generosidade, hospitalidade e o seu senso comunitário, promoveu e desenvolveu as “aldeias”, centros onde a vida cada um se fundia com a dos outros, de maneira adequada. no trabalho, na solidariedade, na cooperação. Coração de cada um desses centros era sempre a Casa de Deus, onde o Sacrifício Eucarístico era celebrado regularmente e onde o Senhor Sacramentado permanecia presente. Sim, porque um grupo social que não é animado pela caridade que só Deus sabe infundir nos corações (cf. Rm Rm 5,5), não pode durar, nem pode oferecer aquilo que o coração de homem e a humanidade inteira buscam com ansiedade.

Em Puebla, falando da libertação do homem, insisti que ela deve ser encarada à luz do Evangelho, isto é, à luz de Cristo, que deu sua vida para resgatar a humanidade, libertando-a do pecado.

Ainda mais recentemente, falando na África, onde é tão vivo o senso comunitário, recomendei aos povos daquele continente que procurassem desenvolver o seu sentido social de maneira autenticamente cristã, sem deixar-se influenciar por correntes alheias, materialistas de um lado, e consumistas, de outro. Repito-o também a vós. O Padre Anchieta conseguia compreender a mentalidade e os costumes da vossa gente. Com a sua ação social prudente, inspirada pelo Evangelho e nele enraizada, soube estimular um crescimento e um desenvolvimento capazes de integrar essa mesma mentalidade e costumes - naquilo que eles tinham de autenticamente inumano, e, portento, querido por Deus - na vida das pessoas e da comunidade civil e cristã.

Apreciando a sede de saber dos “brasis”, o seu acentuado talento para a música, a sua habilidade e outros dotes, criou para eles centros de formação cultural e artesanal que, pouco a pouco, contribuíram para elevar o nível geral das gerações futuras: São Paulo, Olinda, Bahia, Porto Seguro, Rio de Janeiro, Reritiba - onde morreu e que hoje se chama Anchieta - são lugares que, junto com outros não mencionados, nos falam da incansável atividade apostólica do Bem-aventurado.

Mas, em todo este ingente esforço dispendido por ele, com a ajuda de tantos co-irmãos, desconhecidos por muitos, mas igualmente admiráveis, havia uma visão e um espírito: a visão integral do homem resgatado pelo sangue de Cristo; o espírito do missionário que tudo fez para que os seres humanos dos quais se aproxima para ajudar, apoiar e educar, atinjam a plenitude da vida cristã.

Permiti que eu me dirija agora de modo especial a vós, Bispos, Sacerdotes, Religiosos e Religiosas, que doastes vossa vida para servir a causa de Deus, na Igreja. A finalidade de vossa ação pastoral, individual ou coletivamente, jamais se desvie daquilo que - como disse em minha Encíclica “Redemptor Hominis” - é o verdadeiro escopo pelo qual o Filho de Deus se fez homem e agiu entre nós. Que a Sua missão de amor, de paz e de redenção seja verdadeiramente a vossa.

Lembrai-vos de que Cristo mesmo nos indicou em que consiste a Sua missão: “Veni ut vitam habeant et ut abundantius habeant” (Vim para que tenham a Vida e a tenham em abundância)( Jo Jn 10,10).

Se quiserdes ser continuadores da vida e da missão de Cristo, sede fiéis à vossa vocação. Padre Anchieta multiplicou-se incansavelmente, através de tantas atividades, até mesmo o estudo da fauna e da flora, da medicina, da música e da literatura, mas tudo isso ele orientava para o bem verdadeiro do homem, destinado e chamado a ser e viver como filho de Deus.

4. De onde Padre Anchieta hauriu a força para realizar tantas obras em uma vida toda consumida em prol dos outros, até morrer, extenuado, quando ainda em plena atividade?

413 Certamente não de uma saúde de ferro. Pelo contrário: sempre teve uma saúde precária. Durante suas viagens apostólicas, feitas a pé e sem conforto, continuamente sofreu em seu corpo as consequências de um acidente sofrido quando jovem.

Talvez hauriu sua força dos seus talentos e dotes humanos? Em parte, sim; mas isto não explica tudo. Somente com esta afirmação não se chega à verdadeira raiz.

O segredo deste homem era a sua fé: José de Anchieta era um homem de Deus. Como São Paulo, podia dizer: “Scio cui credici” (Sei em Quem acreditei... e estou seguro de que Ele tem o poder de guardar o meu depósito até aquele dia) (
2Tm 1,12). .

Desde o momento em que, na catedral de Coimbra, falara com Deus e com a Virgem Maria, Mãe de Cristo e nossa, desde aquele momento até ao último suspiro, a vida de José de Anchieta foi de uma linear clareza: servir o Senhor, estar à disposição da Igreja, prodigalizar-se por aqueles que eram e deviam ser filhos do Pai que está nos céus.

Por certo não lhe faltaram dores e penas, decepções e insucessos; também ele teve sua parte no pão de cada dia de todo apóstolo de Cristo, de todo sacerdote do Senhor. Mas em meio à sua incansável atividade e contínuo sofrimento, jamais faltou a calma, serena e viril certeza alicerçada no Senhor Jesus Cristo, com quem se encontrava e a quem se unia no mistério eucarístico; a quem se entregava constantemente para deixar-se plasmar pelo seu Espírito.

José de Anchieta havia compreendido qual era a vontade de Deus a seu respeito no dia em que se ajoelhara humildemente diante de uma imagem de Nossa Senhora: a Mãe do Salvador começou a tomar conta dele e ele a nutrir um terníssimo amor para com ela. Ensinou a seus “brasís” a conhecê-la e a lhe querer bem. Dedicou a ela um poema que é um verdadeiro canto da alma, escrito em circunstâncias dificílimas quando, tomado como refém, corria permanente perigo de vida. Não tendo nem papel nem tinta à disposição, na areia da praia escreveu com amor o seu poema - que aprendeu de cor - : “De Beata Virgine Matre Dei Maria”.

A união com Deus, profunda e ardente; o apego vivo e afetuoso a Cristo crucificado e ressuscitado, presente na Eucaristia; o terno amor a Maria: aí está a fonte de onde jorra a riqueza da vida e da atividade de Anchieta, autêntico missionário, verdadeiro sacerdote.

Queira Deus, por intercessão do Beato José de Anchieta, dar-vos a graça de viver como ele ensinou, como nos convida com o exemplo de sua existência.





Homilias JOÃO PAULO II 406