Homilias JOÃO PAULO II 498


VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE

À REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA

(15-18 DE NOVEMBRO DE 1980)

SANTA MISSA AOS OPERÁRIOS NA CIDADE DE MAGÚNCIA



499
Base Aérea de Finthen

Domingo, 16 de Novembro de 1980




Caros irmãos e irmãs!

1. "Graça e paz vos sejam dadas da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo" (Flp 1, 2). Com este voto de bênção do apóstolo saúdo todos vós de coração. A minha fraterna saudação é para o venerado Bispo da Diocese de Mogúncia, o Senhor Cardeal Hermann Volk, e para os Bispos e Sacerdotes aqui presentes: de, modo particular, porém, hoje. é para vós, caros operários e operárias católicos de perto e de longe.

A liturgia do domingo hodierno, a palavra de Deus, que escutámos com íntimo recolhimento, dispõe-nos de maneira particular a enfrentar importantes temas, propostos pela vossa presença e pelas palavras de saudação que me foram dirigidas no início.

O encontro com o mundo do trabalho, que me foi proporcionado em Mogúncia, junto do túmulo de um grande pioneiro e apóstolo da questão social no século passado, isto é do Bispo de Mogúncia Guilherme Manuel von Ketteler, traz-me recordações vividas, de uma série de encontros semelhantes, no tempo do meu serviço na Sé de São Pedro (Guadalajara e Monterrey, no México; o encontro em Jasna Gora, na Polónia, com a grande massa de mineiros e metalúrgicos da Silésia; Limerick, na Irlanda; Des Moines, nos Estados Unidos; em Turim, a maior cidade industrial da Itália; em Saint Denis, no âmbito de Paris; e finalmente em São Paulo, no Brasil). São sempre encontros de conteúdo particularmente importante não só do ponto de vista social, mas também evangélico. O problema do trabalho humano deve colocar-se no centro daquele pacto, que o Criador realizou com o homem, feito à sua imagem e semelhança, e que ele reafirmou e renovou em Jesus Cristo, que ele próprio viveu por muitos anos, numa oficina em Nazaré.

Por conseguinte, não é para admirar que a questão social, ligada como ao fundamento com a realidade do trabalho humano, tome lugar central nas declarações do magistério eclesiástico. Ela pertence irrenunciavelmente ao anúncio do Evangelho, de modo especial no mundo presente.

Se por isso enfrentamos o tema de hoje, queremos seguir a voz da liturgia, que nos coloca na presença do Senhor que se aproxima / Porque vem para julgar a terra. / Julgará o mundo com justiça / e os povos, segundo a Sua fidelidade" (
Ps 95 [96], 13).

A configuração da justiça humana e a medida que deve ser aplicada a toda a questão social, ainda sempre em expansão, devem ser vistas a partir da perspectiva definitiva da justiça de Deus mesmo. A liturgia deste domingo, penúltimo do Ano litúrgico, é-nos de muito auxilio.

2. Na leitura da segunda Carta de São Paulo aos Tessalonicenses o tema do trabalho humano é tratado de maneira completamente aberta e muito directa em base à experiência pessoal do Apóstolo: "Não temos vindo vivido entre vós desregradamente, nem temos comido de graça o pão de ninguém; com trabalho e fadiga labutámos noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós. Não porque não tivéssemos esse direito, mas para vos oferecer em nós mesmos um modelo a imitar" (2Th 3,7-9).

Paulo de Tarso unia a sua missão e o seu serviço apostólico com o trabalho, com o trabalho de artesão. Como Cristo uniu o trabalho da sua redenção com o trabalho na oficina de Nazaré, também Paulo uniu o apostolado com o trabalho das suas mãos. Seja isto um apelo para muitos entre vós, aliás para todos, um apelo para todo o mundo cristão do trabalho: vede o problema do trabalho na dimensão da obra de redenção e uni o trabalho com o apostolado! A Igreja do nosso tempo tem necessidade de modo particular deste apostolado do trabalho: do apostolado dos trabalhadores e do apostolado entre os trabalhadores, para iluminar com a luz do Evangelho este vasto sector da vida. Precisamente como fez o Bispo Ketteler! Sobre o trabalho do homem deve resplandecer a luz da verdade e do amor de Deus! Ela não deve ser velada pelas. sombras da injustiça, da exploração, do ódio e da humilhação do homem!

500 A este apostolado compete grande tarefa na pastoral dos trabalhadores nas dioceses e nas comunidades como também para a eficiência das vossas associações, que se dedicam sobretudo ao mundo do trabalho. Evidentemente, os trabalhadores sentem mais do que os outros o efeito deletério de um intimo isolamento, com todos os prejuízos que daí derivam para a fé. Desejo chamar a novos e mais enérgicos esforços em particular as vossas associações, que já conquistaram, por diversos motivos, méritos históricos, particularmente o movimento católico dos dadores de trabalho, a juventude operária cristã e a Obra de Kolping — por amor dos homens criados por Deus e remidos por Cristo.

3. Na segunda Carta aos Tessalonicenses lemos: "A estas ordenamos e exortamos, em nome do Senhor Jesus Cristo, a que trabalhem pacificamente para comerem o pão que eles mesmos tiverem ganho" (3, 12). Pouco antes o Apóstolo exprimira o mesmo pensamento de maneira muito lapidar: "Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer" (ibidem, 3, 10).

Estas claras palavras, lidas no contexto do desenvolvimento hodierno da questão social, levam-nos a recordar os princípios da doutrina social católica. Eles foram expostos, depois da Encíclica Rerum Novarum emanada pelo meu venerado predecessor Leão XIII, no ano de 1891, em inúmeras declarações do magistério eclesiástico, especialmente do Concílio Vaticano II, com cuidado pastoral profundamente sentido; foram explicados em numerosas obras por muitos estudiosos católicos, especialmente de língua alemã, e comunicados ao povo cristão operário pelo multíplice esforço de zelantes pastores de almas e de leigos responsáveis. Não deixeis esmorecer deploravelmente esta herança espiritual de crentes precursores no campo da questão social; deixai, pelo contrário, que ela traga frutos concretos para os problemas, velhos e novos, que vos preocupam.

No centro de todas as reflexões sobre o mundo do trabalho e sabre a economia deve estar sempre o homem. Não obstante as leis próprias da economia, deve ser sempre decisivo o respeito pela dignidade intangível do homem, não só de cada trabalhador, mas também da sua família, não só dos homens de hoje, mas também das futuras gerações.

Deste princípio, que exige, ainda mais que no passado, uma mudança , de pensamento, desce também a luz sobre a compreensão dos problemas no vosso país, que aqui posso recordar apenas brevemente, mas que me estão muito presentes.

Penso, por exemplo, naqueles cujo lugar de trabalho é periclitante ou que o perderam. Uma reestruturação dos grupos pode revelar-se, após uma prova muito cuidadosa, necessária; e quanto mais se vê serenamente tanto melhor é. Nunca, porém, devem ser os trabalhadores, que por muitos anos deram o melhor de si mesmos únicos a sofrer-lhe as consequéncias! Sede solidários com eles e ajudai-os a encontrarem de novo um trabalho qualificante. Já destes encorajantes exemplos disto.

Penso nos trabalhadores que chamastes de outros países e que juntamente convosco criaram aquilo de que hoje usufruís. Nos problemas que surgiram, o vosso sentido de responsabilidade encontrará soluções, que não ofendam a sensibilidade humana dos mesmos e venham ao encontro do bem espiritual das suas famílias.

Problemas ulteriores e ainda mais profundos derivam do nosso impacto cada vez mais frequente contra os limites do progresso económico. Embora não o queiramos, o progresso constringe-nos a afastarmo-nos das nossas pretenções e a renunciar a alguma coisa, para compartilhar pacificamente os bens limitados com o maior número possível de homens. Se o clima social começa a irrigidir-se, os sucessivos progressos de transformação são superáveis apenas objectivamente e em colaboração solidária entre todos.

4. Na consideração destes importantes problemas relativos à justiça e a um vasto bem-estar social, não podemos nunca fechar-nos dentro dos confins de um país, de uma comunidade de países ou mesmo de um continente. A questão social tem hoje dimensão humana, de natureza mundial. Isto emerge claramente das declarações do magistério dos últimos Papas (Mater et Magistra, Populorum Progressio) e do Concílio Vaticano II. Se é frequente dizer-se que sob este ponto de vista há uma tensão entre ocidente e oriente, não é menos significativa a tensão entre norte e sul. Por "norte" entende-se a zona dos países ricos, que vivem numa certa abundância. O "sul", especialmente o chamado Terceiro Mundo, designa aquela faixa de países cujas populações, sob o ponto de vista económico, não raro são subdesenvolvidas, conduzem vida mísera, e estão mesmo expostas a duríssima fome, até ao ponto de morrerem.

Como cidadãos tendes o dever de criar um clima político, que ponha o Estado em condições, sobretudo os Estados ricos, de prestarem auxílios eficientes para o desenvolvimento em todas as formas necessárias aos países desprovidos e não raro explorados.

Como católicos há muitos anos que, nas vossas instituições sociais, começastes a compreender de modo exemplar e em medida crescente, a vossa co-responsabilidade em dimensões mundiais. Não desistais dos vossos esforços! Abri ainda mais profundamente o vosso coração às necessidades às vezes desesperadoras daqueles países! Como supremo Pastor da Igreja, sobre cujos ombros pesa uma responsabilidade imediata também por aqueles países, desejo nesta ocasião agradecer-vos muito cordialmente também em nome daqueles pobres e pobríssimos, pelos vossos esforços e sacrifícios. De modo particular agradeço a todos os fiéis do vosso País, o último sinal de solidariedade tão cordial, isto é a colecta realizada por ocasião da minha visita pastoral, para aliviar da miséria a região do Sahel, na Africa Central.

501 Esta dimensão mundial da questão social é um apelo à nossa consciência humana e cristã; ela caracterizará cada vez mais o último quartel deste século. A busca de soluções por parte de todos os homens de boa vontade e o apostolado de todos os cristãos devem crescer em medida cada vez maior nesta dimensão mundial. Em nome do Evangelho! E juntamente em nome da solidariedade humana!

5. O problema social na sua hodierna dimensão histórica, para cada povo e para toda a humanidade está intimamente ligado à tarefa central de assegurar a paz no mundo. "Justitia et Pax", Justiça e paz! como aqui uma dependente da outra: mostrou-no-lo o Papa João XXIII na sua Encíclica Pacem in terris. Devemos pensar novamente nela, quando a liturgia nos recorda as palavras de Cristo sobre "guerras e revoluções": "Erguer-se-á povo contra povo e reino contra reino. Haverá grandes terremotos e, em vários lugares, fomes e epidemias; haverá fenómenos apavorantes e grandes sinais no céu" (
Lc 21,10 ss.).

Estas palavras derivam do discurso "escatológico" segundo Lucas. Cristo enumera os diversos sinais para o "desaparecimento do mundo no sofrimento"; eles repetem-se continuamente na história. Por isso acrescenta: "Quando ouvirdes falar de guerras, e revoltas, não vos alarmeis; é preciso que estas coisas sucedam primeiro, mas não será logo o fim" (Lc 21,9).

Recordamo-nos ainda com clareza da horrível atrocidade da segunda guerra mundial, especialmente nós, filhos e filhas dos povos europeus. Recordamo-nos daquele tempo de tremendas destruições e sofrimentos indescritíveis, da devastação e do desprezo do homem. Isto não deve nunca repetir-se nas gerações dos nossos filhos e netos, nunca mais entre os homens, nem no nosso continente nem noutros lados.

Queremos pedir incessantemente a Deus que esta espantosa lição da história inculque em todo o mundo o respeito dos direitos de cada homem e de cada povo. Como isto é importante no nosso velho continente! A preocupação pela paz não deve nunca faltar no cumprimento do nosso mandato cristão; não pode nunca faltar nos esforços de todos os homens de boa vontade, especialmente daqueles que nisto têm particulares responsabilidades.

Esperamos que a preocupação pela paz leve todos os responsáveis a procurarem um diálogo continuo sobre os diversos problemas — por muito graves e complexos que possam ser — e assim reforçarem cada vez mais, dia após dia, a tão desejada paz. Como não poderíamos deixar de desejar contemporaneamente que também o encontro de Madrid, sobre a segurança e a colaboração na Europa, possa contribuir para reforçar a paz no pleno respeito dos direitos de cada homem e de cada povo, incluída a liberdade religiosa, na base dos princípios reconhecidos no Acto final de Helsínquia.

Oxalá a eficiente aplicação deste autorizado princípio dos direitos do homem e dos direitos de cada povo afaste da vida da humanidade toda a forma de imperialismo, agressão, domínio, exploração e colonialismo! Digo isto como filho de uma Nação que no decurso dos séculos muito sofreu e é constrangida a defender com grande determinação estes direitos do homem e do povo.

Sobre isto ouvi o grito de bênção da liturgia hodierna, com as palavras do profeta Malaquias: "levantar-se-á o sol da justiça", que trará para todos a salvação sob os seus raios! (cf. 4, 21).

6. No Evangelho hodierno Cristo diz também: "Tomai cuidado em não vos deixardes enganar, pois muitos virão com o Meu nome dizendo 'Sou eu', e ainda: 'o tempo está próximo'. Não os sigais" (Lc 21,8).

Caros irmãos e irmãs! Pedimo-vos: permanecei firmes, irremovíveis na verdade do Evangelho! Percorrei sob a sua luz os caminhos da justiça e da paz! Ninguém nos deve enganar!

Cristo diz ainda: "Deitar-vos-ão as mãos e perseguir-vos-ão, entregando-vos às sinagogas e metendo-vos nas prisões; conduzir-vos-ão perante reis e governadores por causa do Meu nome" (Lc 21,12).

502 Caros irmãos e irmãs! Rezemos por todos os homens do mundo! Rezemos particularmente pelos nossos irmãos na fé, cujos direitos sejam violados! Rezemos por aqueles que sofrem opressões, aos quais é negado aquilo que deriva do princípio da liberdade de consciência e de religião, qualquer que seja o modo em que isto se verifica no mundo.

Cristo diz, por fim: "Gravai, pois, no vosso coração, que não vos deveis preocupar com a vossa defesa porque Eu próprio vos darei palavras de sabedoria, a que não poderão resistir ou contradizer os vossos adversários. Sereis entregues até pelos vossos pais, irmãos, parentes e amigos. Hão-de causar a morte a alguns de vós e sereis odiados por todos, por causa do Meu nome. Mas nem um só cabelo da vossa cabeça se perderá. Pela vossa constância é que salvareis as vossas almas" (
Lc 21,14-19).

Caros irmãos e irmãs! Nós pensamos em todos aqueles, também compatriotas vossos, que foram fiéis a esta palavra do nosso Redentor e Mestre de maneira heróica! Rezemos por que todos nós permaneçamos fiéis! Rezemos ao Senhor que nos dê sempre o seu espírito de força, especialmente nas horas e nos tempos de provação! E que nós, dia a dia, demos testemunho d'Ele!

7. Cristo diz: "isto proporcionar-vos-á ocasião de dar testemunho" (Lc 21,13). Agradeçamos-lhe estas palavras. Agradeçamos-lhe esta extraordinária ocasião de poder dar testemunho de um Evangelho de paz e de justiça, aqui em Mogúncia, junto do túmulo do grande pioneiro e apóstolo deste Evangelho, do Bispo Guilherme Manuel von Ketteler. Para todos vós, que honrais o nome do Senhor, levante-se sempre o sol da justiça e com os seus raios venha a vós a salvação. Amém.

(Em inglês)

Nesta feliz ocasião desejo dirigir uma palavra de bons votos e gratidão aos membros da comunidade americana hoje aqui presentes. O vosso contributo na preparação deste encontro é profundamente apreciado. Peço ao Espírito de Deus vos dar em abundância a justiça, a paz e a alegria que constituem o reino de Deus. E por nosso lado, caros irmãos e irmãs, permiti que vos exortemos com as palavras de São: Paulo: "procuremos o que interessa à paz e à mútua edificação" (Rm 14,19). Habite sempre o amor de Deus nos vossos corações.



VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE

À REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA

(15-18 DE NOVEMBRO DE 1980)

CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA

PARA OS SACERDOTES E OS SEMINARISTAS




Catedral de Fulda

Segunda-feira, 17 de Novembro de 1980




1. Veneráveis Irmãos, Cardeais, Arcebispos e Bispos,
que constituís o Episcopado da vossa pátria!
Meus amados sacerdotes em Cristo, do presbitério de cada diocese alemã!
Dilectos diáconos!
503 Dilectos alunos dos seminários, dilectos estudantes de teologia!

As palavras do apóstolo Pedro, que hoje ouvimos na segunda Leitura da celebração litúrgica, parece-me assumirem, aqui em Fulda, diante do túmulo de São Bonifácio, um tom particular: "Aos presbíteros, que estão entre vós, rogo eu, presbítero como eles, testemunha dos sofrimentos de Cristo, e particularmente da glória que se há-de manifestar: Apascentai o rebanho que Deus vos confiou!" (
1P 5,1-2).

Passaram já 19 séculos desde que foram escritas estas palavras, e mesmo assim falam-nos ainda hoje com o mesmo vigor e força; parece-me até que nos anunciam uma especial mensagem neste momento em que, aqui em frente do túmulo do bispo e mártir, padroeiro da Alemanha, vos encontrais precisamente vós, a quem se dirige a exortação de Pedro, sem dúvida em medida diferente: "Apascentai o rebanho de Deus". Pedro, que foi o primeiro a ouvir de Jesus, o Bom Pastor, esta exortação: "Apascenta as minhas ovelhas" (Jn 21,16) dirige-se "como primeiro entre os iguais" a todos aqueles que eram pastores com ele, da Igreja do seu tempo. Com quanta comoção ouvimos este apelo, porque nós somos hoje os pastores da Igreja, no segundo milénio do cristianismo que está prestes a concluir-se! Vós que, segundo o grau diferente do vosso serviço, como bispos, sacerdotes ou diáconos sois os pastores da Igreja na vossa pátria! E também vós que ouvistes o chamamento de Cristo e vos preparastes para o serviço pastoral dos anos futuros!

"Apascentai o rebanho de Deus". Sede pastores dos vossos irmãos e das vossas irmãs na fé, na vossa graça baptismal e na vossa, esperança na bem-aventurada participação da graça e do amor eternos!

2. Pedro recorda-nos na sua carta os sofrimentos de Cristo e também o mistério pascal, de que se tornou testemunha. A este testemunho da cruz e da ressurreição une ele, depois, também a esperança de participar "da glória que se há-de manifestar" (1P 5 1P 1).

A vocação para pastores da Igreja e o vosso multíplice serviço, têm sempre e em toda a parte a sua raiz no mistério de Cristo que tudo abraça: dele começais e para ele retornais, e nele encontrais força para o crescimento e para um sólido conforto; servi-lo com o fruto do vosso trabalho.

Este mistério é acolhido realmente na fé quando aqueles que o servem são semelhantes a homens "que esperam o seu Senhor, ao voltar do seu noivado, a fim de lhe abrirem a porta, assim que ele chegar e bater" (Lc 12,36).

O serviço portanto é este: estar vigilante para o retorno do Senhor.

Quando Jesus começou a sua paixão, levou consigo os apóstolos para o jardim do Getsémani, e conduziu três ainda mais para a frente e pediu-lhes que estivessem vigilantes. Quando todavia adormeceram, vencidos pelo cansaço, voltou junto deles e disse: "Vigiai e orai para não cairdes em tentação" (Mt 26,41).

O serviço que prestamos, dilectos irmãos, é pois o de estarmos vigilantes pelo Senhor. Vigilar significa velar pelo bem confiado. O bem que nos está confiado é infinitamente precioso. Devemos perseverar constantemente nisto. Devemos aprofundar cada vez mais as raízes da nossa fé, da nossa esperança e da nossa caridade "nas maravilhas de Deus" (Ac 2,11); devemos identificar-nos cada vez mais com a Manifestação do Pai em Cristo; devemos, por fim, tornar-nos cada vez mais sensíveis às obras do Espírito Santo, que o Senhor nos deu e através de nós quer continuar a dar, mediante o nosso serviço, a nossa santidade e a nossa identidade sacerdotal.

Do mesmo modo devemos ter um sentimento cada vez mais profundo da grandeza do homem, como nos foi manifestada no mistério da Encarnação e da Redenção: como é preciosa a alma de cada homem e como são ricos os tesouros da graça e do amor!

504 Poderemos então corresponder às exortações de Pedro, o qual nos recomenda que realizemos o nosso serviço "não constrangidos, mas de boa vontade... com dedicação... (como) modelo do vosso rebanho" (1P 5,2 1P 5,3).

3. Vemos aqui reunidos muitos eminentes bispos e sacerdotes, provenientes deste País; nomearei só alguns da história mais recente: os bispos von Ketteler e Adolf Kolping os Cardeais von Galen, Frings, Döpfner e Bengsch — o Padre Alfred Delp
e os sacerdotes recentemente ordenados Karl Leisner — Karl Sonnenschein e o Padre Tupert Mayer — Romano Guardini e o Padre Kentenich.

Olhemos para eles mais atentamente: todos nos mostram o que significa esta "vigília"; que significa "estarem cingidos os rins" e "acesas as lâmpadas" (Lc 12,35); de que maneira "se pode ser o servo fiel e prudente, que o Senhor pôs à frente dos seus criados para lhes dar de comer a seu tempo" (Mt 24,45).

Estes e muitos outros sacerdotes exemplares da Igreja do vosso País podem fazer-nos ver como o fundamento da nossa vocação e de todo o nosso serviço de bispos, sacerdotes ou diáconos é aquele esplêndido mistério do coração humano: o mistério da amizade com Cristo, e como através da força desta amizade cresce o verdadeiro amor de pastor pelo homem, amor puro e desinteressado de que o mundo de hoje está tão sequioso, e de modo particular a, nova geração.

Sei que inúmeros sacerdotes da Igreja do vosso País experimentam a alegria e a felicidade desta profunda afinidade espiritual com Jesus Cristo. Mas sei também que pertencem igualmente à vida hodierna dos sacerdotes as horas de tribulação, cansaço e perplexidade, de ambição excessiva e desilusão. Estou persuadido de que isto faz parte também da vida daqueles sacerdotes que procuram com todas as suas forças ser fiéis à própria missão, que desempenham as tarefas do seu ministério com muita consciência. Devemos porventura admirar-nos que aquele, que está tão profundamente unido a Jesus Cristo na sua missão, tenha parte também nas horas de Jesus no Monte das Oliveiras?

4. Que remédio posso oferecer-vos nesta situação? Nem um aumento exterior de actividade, nem esforços arrojados, mas aprofundada meditação sobre o sentido da vossa vocação, sobre aquela amizade com Cristo e sobre a amizade entre vós. Mediante vós o próprio Cristo quer tornar-se visível como amigo de todos no meio de vós e no meio das vossas comunidades. "Já não vos chamo servos, mas amigos".! (Jn 15,15). Esta palavra, que ressoa ainda no âmago da vossa ordenação sacerdotal, deve; ser a nota fundamental da vossa vida. Ao amigo posso dizer tudo, posso confiar-lhe pessoalmente tudo: todas as preocupações e necessidades até os problemas inexplicáveis e as experiências dolorosas comigo mesmo. Posso viver da sua palavra, do sacramentos da Eucaristia e não está em último lugar o da Penitência. Este é o terreno sobre o qual estais erguidos. Tende confiança em Jesus Cristo, confiai que Ele não vos abandona, que faz frutificar o vosso ministério, mesmo onde exteriormente não vedes algum progresso imediato. Crede n'Ele; crede que espera tudo de vós, precisamente o que um amigo espera dos amigos.

A amizade por Jesus tem como fruto e consequência a amizade de uns pelos outros. Os sacerdotes constituem um presbitério em redor do seu bispo. O bispo é aquele que representa de maneira especial Cristo por vós e convosco. Quem é amigo de Cristo não pode deixar de ter em conta a missão do bispo. Muito mais, torna-se sensível à necessidade de não opor as próprias opiniões e os próprios critérios à missão dada por Cristo ao bispo. A unidade com o bispo e a unidade com o sucessor de Pedro são o fundamento sólido de uma fé que não pode ser vivida sem a amizade de Cristo. Esta unidade é também uma premissa para que o nosso ministério, o ministério dos bispos, e o ministério do Papa, possa exercer-se, no que vos diz respeito, numa doação aberta, fraterna e compreensiva.

Todavia esta amizade requer ainda mais. Requer aquela abertura fraterna, com o auxílio a levar a carga dos outros, aquele testemunho comum em que são superados juízos, pensamentos de prestígio e desconfianças. Estou convencido que, se realizardes o vosso ministério com espírito de amizade e de fraternidade, conseguireis muito mais do que se cada um quiser trabalhar sozinho. Com a força de uma amizade como esta para com o Senhor podereis "vigiar", como o Senhor do Evangelho espera do "bom servo".

5. Esta "vigia" do servo — do amigo — à espera do Senhor refere-se à futura vinda definitiva e ao mesmo tempo ao curso desta história, a cada instante. O Senhor pode vir "na segunda ou na terceira vigília" (Lc 12,38).

Através deste ensinamento do Concílio Vaticano II toda a Igreja tornou evidente que a vossa missão é dirigida ao momento presente, ou seja a um mundo que se desenvolve constantemente, e de modo especial é dirigida às expectativas do homem neste mundo: à sua alegria e esperança, mas também aos seus erros e às suas culpas (cf. Gaudium et Spes GS 1).

505 O ministério do pastor desperto e vigilante significa, portanto, também ter os olhos bem abertos para tudo aquilo que é bom e puro, para tudo o que é verdadeiro e belo, mas também para tudo o que é difícil e doloroso na vida dos homens; e significa fazer isto com pleno amor e plena disponibilidade, estarmos próximos e solidários até ao ponto de oferecer a própria vida (cf. Tg Jc 10,11).

O serviço vigilante do pastor significa também a disponibilidade para defender contra o lobo feroz como na parábola do Bom Pastor ou contra o ladrão, para que não arrombe a casa (cf. Lc Lc 12,39). Com isto não quero dizer um pastor de almas que guarde o rebanho, que lhe foi confiado, com olhar rígido e duro e grande desconfiança, mas um pastor que deseja libertar do pecado e da culpa com o anúncio da reconciliação, que dá aos homens sobretudo o sacramento da reconciliação, o sacramento da penitência. "No lugar de Cristo" o sacerdote pode e deve bradar a um mundo não reconciliado e que parece irreconciliável: "reconciliai-vos com Deus!" (2Co 5,20). Manifestamos assim aos homens o coração de Deus, do Pai, e somos portanto imagem de Cristo, o Bom Pastor. A nossa vida inteira pode então tornar-se sinal e instrumento da reconciliação, "sacramento" da unidade entre Deus e os homens.

Juntamente comigo deveis todavia constatar com dolorosa preocupação que a frequência pessoal ao sacramento da Penitência nas vossas comunidades diminuiu muito nestes últimos anos. Peço-vos, pois, do íntimo do coração, ou melhor exorto-vos a fazerdes todo o possível para que a frequência ao sacramento da Penitência na confissão pessoal se torne novamente habitual para todos os baptizados. A isto querem levar as liturgias penitenciais que assumem um lugar muito importante na praxe penitencial da Igreja, mas que em condições normais não podem substituir a recepção pessoal do sacramento da Penitência. Preocupai-vos no entanto, também vós próprios, por um regular acolhimento do sacramento da Penitência.

6. A vigilância do bom pastor é esperada de vós como ponto central de toda a actividade sacerdotal, a celebração da Sagrada Liturgia. Precisamente depois da ampla reforma das funções religiosas deparam-se-vos importantes tarefas espirituais. Deveis antes de tudo familiarizar-vos vós próprios com cada, um dos ritos aprovados, mediante o estudo e atento exercício. Deveis estar em condições, como liturgistas, de servir no sentido de se alcançar fé mais profunda, uma esperança mais sólida e maior caridade no povo de Deus. Quero agradecer-vos todos os esforços que fizestes até agora por estes importantes objectivos, cujos bons frutos eu próprio já pude constatar entre vós. E ainda mais lamentável, que a festividade do mistério de Cristo, em vez de criar unidade e obter conquistas entre vós, provoque às vezes divisões e litígios. Nada é mais contrário do que isto à vontade e ao espírito de Cristo.

Peço-vos, pois, meus irmãos e amigos no sacerdócio; que sigais responsavelmente e mantenhais livre de todos os subjectivismos deformadores o caminho da Igreja, que ela decidiu seguir hoje na fidelidade à sua antiga tradição. Quereria todavia acentuar também que as normas litúrgicas particulares, pedidas pelos bispos alemães por motivações pastorais, foram concedidas pela Sé Apostólica e por conseguinte são lícitas.

Esforçai-vos sobretudo, de acordo com a comunidade inteira da Igreja, por anunciar, com uma celebração reverente e devota do Oficio Divino, Jesus Cristo, a quem vós próprios estais ligados por amizade.

7. Dilectos irmãos, dilectos filhos no Senhor!

Quanto devemos amar o nosso ministério e a nossa vocação! Quero dizer isto a todos vós: a vós mais velhos; que talvez já estejais cansados e gastos sob a carga do trabalho, a vós que estais ainda no vosso pleno vigor, e a vós que estais precisamente agora para começar o vosso caminho sacerdotal. Refiro-me também a vós discípulos, que ouvis a chamada misteriosa de Cristo: quero encorajar-vos a acolher esta chamada ainda mais sólida e profundamente na vossa vida e a segui-la definitivamente e para sempre.

Das maravilhas desta vocação, fala-nos hoje de maneira particularmente clara a primeira Leitura da Liturgia, tirada do livro do Profeta Jeremias. Um diálogo misterioso mas real entre Deus e o homem. Deus-Javé diz: "Antes que fosses formado no ventre de tua Mãe, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei, e te constitui profeta entre as nações".

O homem-Jeremias, responde: "Ah! Senhor Javé, não sei falar, porque sou ainda uma criança".

Deus-Javé replica: "Não digas: sou ainda uma criança — por quanto irás aonde Eu te enviar, e dirás o que Eu te mandar. Não os temas, porque estarei contigo para te livrar" (Jr 1,5-8).

506 Quão profunda é a verdade que se encontra neste diálogo!

Deveríamos, certamente fazer dela a verdade da nossa própria vida! Deveríamos agarrá-la com as duas mãos e com todo o coração, vivê-la, fazer dela o objecto da nossa oração e tornarmo-nos uma só coisa com ela.

É-nos aqui enunciada ao mesmo tempo a verdade teológica e psicológica da nossa vida: o homem, que reconhece a sua vocação e a sua missão, fala a Deus da própria fraqueza.

8. Os vários propugnadores de uma imagem do sacerdócio que se diferencia daquela imagem desenvolvida pela Igreja e conservada principalmente na tradição ocidental, parece hoje fazerem desta fraqueza princípio fundamental de todas as outras coisas, quase declarando que é um direito do homem.

Cristo, pelo contrário, ensinou-nos que o homem tem antes de tudo direito à própria grandeza, direito àquilo que o supera. De facto, precisamente aqui se revela a sua particular dignidade; assim se manifesta o maravilhoso poder da graça: a nossa verdadeira grandeza é um dom da força do Espírito Santo.

Em Cristo, o homem tem hoje direito a tal grandeza: E a Igreja, mediante o mesmo Cristo, tem direito à oferta deste homem: oferta, mediante a qual o homem se dá totalmente. a Deus, e na qual escolhe também o celibato "pelo reino dos Céus" (
Mt 19,12), a fim de se tornar o servo de todos.

O homem e a Igreja têm direito a isto. Não devemos enfraquecer em nós tal consciência e tal convicção! Não podemos anular esta sublime herança da Igreja nem dificultá-la nos corações dos jovens. Não abandoneis a confiança em Deus e em Cristo! O Senhor diz: "não os temas, porque estarei contigo para te livrar" (Jr 1,8). Depois destas palavras o Senhor toca nos lábios do homem e diz: "Eis que ponho as Minhas palavras nos teus lábios" (Jr 1,9). Não experimentámos porventura nós exactamente a mesma coisa? Não põe acaso nos nossos lábios as suas palavras — as palavras da consagração eucarística — durante a ordenação sacerdotal? Não sigila por acaso os nossos lábios e o homem inteiro com a força da sua graça?

Connosco estão também os santos da Igreja: os padroeiros das vossas dioceses, os grandes pastores de almas do vosso País, as mulheres famosas no amor pelo próximo e especialmente Maria, Mãe da Igreja.

Quando o evangelista Lucas, depois da Ascensão do Senhor, descreve a comunidade dos apóstolos, a sua ora perseverante e concorde, recorda explicitamente que estavam "com Maria, a Mãe de Jesus" (Ac 1,14). Ela, a Mãe do Senhor, a Mãe de todos os crentes, a Mãe também dos sacerdotes, quer estar connosco, para que possamos ser sempre mandados de novo no Espírito Santo a este mundo e aos homens com as suas necessidades.

9. Dilectos irmãos, dilectos filhos no Senhor!

As leituras da Liturgia desta festividade. falam-nos por fim também do prémio para os pastores que estavam vigilantes. O apóstolo Pedro fala da "coroa de glória que jamais se ofuscará" (1P 5,4).

507 Ainda mais impressionantes são contudo as palavras de Cristo na parábola dos servos vigilantes: "felizes aqueles servos que o senhor, quando vier, encontrar vigilantes. Em verdade vos digo: cingir-se-á, mandará que se ponham à mesa e servi-los-á. E se vier na segunda ou na terceira vigília e assim os encontrar, felizes serão eles! (Lc 12,37-38).

Prometei-me nada tirar nem acrescentar a estas palavras. Quero confiar-me todavia à vossa oração e à vossa consideração do profundo da alma. Assim seja.



Homilias JOÃO PAULO II 498