Homilias JOÃO PAULO II 531


SANTA MISSA PARA OS UNIVERSITÁRIOS


Basílica Vaticana

19 de Dezembro de 1980




1. «O Radix Iesse, qui stas in signum populorum, super quem continebunt reges os suum, quem gentes deprecabuntur: veni ad liberandum nos, iam noli tardare!».

Com estas palavras, a hodierna liturgia do Advento saúda aquele que deve vir, aquele que é o objectivo da nossa expectativa. Ponderando estas palavras da liturgia de hoje, desejo 'encontrar-me convosco, que formais o ambiente universitário de Roma. convosco, venerados Professores e Investigadores, convosco, caros Estudantes. Desejei muito este encontro do Advento.Considero-o acto indispensável do meu ministério na Igreja romana. Considero-o também ocasião especial para manifestar esta unidade, esta «communio» espiritual, que vos une à volta de Cristo, e mediante isto vos une também entre vós, e de maneira mais forte que as variadas divisões e diferenças, a que estão submetidas a vida pública e a opinião social. Nestas diferenças manifesta-se evidentemente a dignidade humana e cívica. E necessário todavia estar-se muito atento para que elas não se tornem factor que torne impossível a acção para o bem comum e paralise o indispensável laço social.

Alegro-me portanto com a vossa presença, meus amados Irmãos e Irmãs e, ao mesmo tempo, Filhos e Filhas, dado que, na qualidade de Bispo de Roma, no qual se manifesta também a paternidade da nossa família espiritual, me é lícito chamar-vos também deste modo. Alegro-me com a vossa presença desta tarde na Basílica de São Pedro, e gozo juntamente convosco daquela alegria do Advento; que, sobretudo nos últimos dias deste período, se faz sentir particularmente na liturgia. De facto, nestes dias torna-se o Advento verdadeiramente o período da expectativa gozosa.

532 2. Enquanto vos contemplo de novo aqui reunidos, não posso apartar este encontro do contexto mais largo dos encontros ligados ao meu ministério pastoral em diversos lugares da Itália e do mundo. Tenho no espírito os diversos encontros que no passado, e em particular no decurso deste último ano, se realizaram em diversos países e também em diversos continentes. São todavia semelhantes aos nossos encontros do Advento e da Quaresma na Basílica de São Pedro, quer pelo que respeita ao carácter do ambiente, com que me foi dado encontrar-me durante as minhas visitas fora de Roma, quer também pelo que respeita à semelhança dos assuntos, que tais ambientes apresentam dado o carácter universitário deles.

Conservo portanto bem na memória o Continente africano é os encontros em Quinxassa, no Zaire, e também, um pouco mais tarde, os de Abidjão na Costa do Marfim. Pelo que diz respeito à visita, feita no mês de Julho ao Brasil, a grande concentração de jovens em Belo Horizonte não dizia respeito só à juventude académica mas a toda a juventude local e também à que viera das diversas partes daquele imenso país. Por outro motivo não posso, todavia, passai em silêncio o encontro especial com os representantes qualificados do mundo da ciência e da cultura no Rio de Janeiro. Voltando ao continente europeu, tenho vivo na memória aquele «colóquio» nocturno com 50.000 jovens franceses no Parc-des-Princes, e além disso a visita ao Instituto Católico, em Paris. Por fim, recentemente, na Alemanha, tenho na mente o encontro na catedral de Colónia e depois o de Munique na Baviera.

Recordo tudo isto nesta tarde a fim de pôr em evidência também o carácter essencial do nosso encontro do Advento. Como Bispo de Roma aprecio muito estas tardes de oração comum convosco, e de comparticipação da Palavra de Deus e da Eucaristia, que me permitem haurir delas inspiração para os outros encontros semelhantes, e a estes encontros vêm buscar a dimensão e o tema. Mas em todos estes caminhos a que nos conduz o diálogo com o homem contemporâneo sobre o tema da cultura, da ciência e, ao mesmo tempo, das fundamentais dimensões da sua existência espiritual, eu sou sempre principalmente o Bispo de Roma, isto é o vosso Bispo. A cultura, a ciência, o serviço da verdade e da beleza são, com efeito, muitas vezes a expressão ignorada do Advento para o homem, são a manifestação de ele viver numa expectativa que, ao mesmo tempo, é aspiração; e a medida desta aspiração é maior que a forma só material da produção e do consumo, que a civilização contemporânea procura impor à vida humana. E por isso aprecio tanto que na Sé Apostólica exista a Pontifícia Academia das Ciências e outros organismos, que servem a causa da cultura e da ciência. E muito contente estou de sobre estes assuntos ter podido falar, no ano que está a findar, em Paris diante da Assembleia geral da UNESCO. A vós, que formais o ambiente universitário de Roma, ficarei especialmente grato pelo pensamento dirigido a estes importantes problemas juntamente comigo, vosso Bispo, pela busca, que fazeis juntamente comigo, dos caminhos para o futuro do homem, os caminhos do advento humano.

Nestes caminhos, de facto, encontra-se precisamente Aquele que a Igreja, na hodierna antífona do Advento, invoca, bradando quase do fundo de cada homem, da profundidade da sua humanidade mesma:

«O Radix Iesse, qui stas in signum populorum..., veni!».

3. As leituras litúrgicas desta tarde, como acontece algumas vezes, põem em confronto dois acontecimentos distintos no tempo, mas dalgum modo semelhantes e reciprocamente próximos. Um deles liga-se com o nascimento de Sansão, que, na época dos Juízes, depois da chegada de Israel à Terra prometida, foi chamado a defender o seu povo dos filisteus. Depois, o segundo acontecimento liga-se com o nascimento de João o Baptista.

Todo o Advento se mantém na perspectiva do nascimento. Sobretudo daquele nascimento em Belém, que representa o ponto culminante da história da salvação. Desde o momento deste nascer, a expectativa transformara-se em realidade. O «vem» do Advento encontra-se com o. «ecce adsum» de Belém.

Todavia, esta primeira perspectiva do nascimento transformou-se numa posterior. O Advento prepara-nos não só para o nascimento de Deus, que se faz homem. Prepara também o homem para o próprio nascimento vindo de Deus. De facto, o homem deve constantemente nascer de Deus. A sua aspiração para a verdade, para o bem, para o belo e para o absoluto, realiza-se neste nascimento. Quando chegar a noite de Belém e depois o dia de Natal, a Igreja dirá, diante do Recém-nascido, que, como todo o recém-nascido, Ele mostra a fraqueza e a insignificância: «A todos os que O receberam... deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (
Jn 1,12). 0 Advento prepara o homem para este «poder»: para o seu próprio nascimento vindo de Deus. Este nascimento é a nossa vocação. E a nossa herança em Cristo. O nascimento que dura e se renova. O homem deve nascer sempre de novo em Cristo, de Deus; deve renascer de Deus.

O homem caminha para Deus — e este é o seu advento não só como para um Absoluto desconhecido do ser. Não só como no sentido dum ponto simbólico, o ponto «Ómega» da evolução do mundo. O homem caminha para Deus, de maneira que chegue a Ele mesmo: ao Deus Vivo, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. E chega quando Deus mesmo vem a ele, e este é o Advento de Cristo. O Advento, que supera a perspectiva da transcendência humana, supera a medida do advento humano.

O Advento de Cristo realiza-se tornando-se Deus homem, nascendo Deus como homem. E ao mesmo tempo, completa-se nascendo o homem de Deus, renascendo o homem constantemente de Deus.

Uma vez, no princípio da sua história, o homem, varão e mulher, ouviu as palavras da tentação: «Sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal» (Gn 3,5). Ele deixou-se levar desta tentação. E continua a segui-la constantemente. Agora, no meio da história da humanidade, veio Cristo reconduzir o homem, dos caminhos da tentação, para a estrada da Promessa e da Aliança, a fim de mostrar aquilo que naquela tentação foi falso, e ao mesmo tempo revelar como deve realizar-se o advento do homem à estrada da Promessa divina e da Aliança. De que outro modo pode o homem «ser como Deus», senão unicamente «nascendo» de Deus, senão unicamente como «filho no Filho Unigénito»? Como pode ser doutro modo?

533 A tentação perene do homem é necessário contrapor o Advento de Cristo: é necessário nascer de Deus e incessantemente renascer de Deus.

E se no meio destas vastas perspectivas, que estende diante de nós o progresso da cultura ou da ciência, o qual desperta a legítima alegria e o desenvolvimento da civilização da produção e do consumo juntamente com o desenvolvimento da civilização da ameaça e da violência, se, repito, no meio de tais perspectivas tenho, nesta tarde do Advento, alguma proposta particular para vos dirigir, é a seguinte: não cesseis de viver, nascendo constantemente de Deus e renascendo de Deus!

O Advento de Cristo manifesta-se na ansiedade do homem pela verdade, pelo bem e pelo belo, pela justiça, pelo amor e pela paz. O Advento de Cristo manifesta-se nos sacramentos da Igreja, que nos permitem nascer de Deus e renascer de Deus.

Vivei o Natal, regenerados em Cristo no sacramento da Reconciliação! Vivei o Natal, absorvendo o conteúdo mais profundo do mistério de Deus, para o qual definitivamente se abre todo o advento do homem!

«O Radix Iesse..., veni ad liberandum nos, iam noli tardare!».

4. No anúncio do nascimento de João o Baptista, o seu pai Zacarias ouve estas palavras: «Será grande aos olhos do Senhor... será cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe e reconduzirá a muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus. Irá à frente diante d'Ele, com o espírito e o poder...» (
Lc 1,15-17).

Esta é ainda outra direcção da estrada, para a qual nos encaminha o Advento. O homem não só caminha para Deus através daquilo que está nele: através da sua imperfeição, da sua ameaça e ao mesmo tempo do carácter transcendental da sua personalidade, dirigido para a verdade, o bem e o belo; através da cultura e da ciência; através do desejo e da aspiração por um mundo mais humano, mais digno do homem.

O homem não só caminha para Deus (muitas vezes aliás sem o saber ou mesmo negando que o faça) através do seu próprio advento: através do grito da sua humanidade. O homem vai para Deus, caminhando, da história da salvação, diante de Deus: diante do Senhor, como ouvimos no Evangelho a respeito de João o Baptista, que devia caminhar diante do Senhor com o espírito e a força.

Esta nova direcção do caminho do advento do homem está ligada de tal modo particular com o Advento de Cristo. Todavia o homem caminha «diante do Senhor» desde o princípio e caminhará diante d'Ele até ao fim, porque é simplesmente imagem de Deus. Caminhando portanto pelas estradas do mundo, ele diz ao mundo e dá testemunho a si mesmo de Quem ele é imagem. Caminha diante do Senhor dominando a terra, porque de facto a mesma terra, assim como toda a criação, está sujeita ao Senhor e o Senhor deu-a em domínio ao homem.

Ele caminha diante do Senhor, enchendo a sua humanidade e a sua história terrestre com o conteúdo do seu trabalho, com o conteúdo da cultura e da ciência, com o conteúdo da investigação incessante da verdade, do bem, do belo, da justiça, do amor e da paz. E caminha diante do Senhor, enredando-se muitas vezes em tudo o que é negação da verdade, do bem e do belo, negação da justiça, do amor e da paz. Por vezes sente estar muito enredado nestas negações. Quase por contraste adverte, então, todo o peso da imagem desfigurada de Deus na sua alma e na sua história.

O advento do homem encontra-se com o advento de Cristo.

534 «O Radix Iesse, qui sias in signum populorum..., quem gentes deprecabuntur, veni ad liberandum nos, iam noli tardare!».

O Advento de Cristo é indispensável, para que o homem reencontre nele a certeza de que, ao caminhar pelo mundo, vivendo de dia para dia e de ano para ano, amando e sofrendo..., ele caminha diante do Senhor, de quem é imagem no mundo; a certeza de dar testemunho d'Ele diante de todo o criado.

5. Caros participantes neste encontro do Advento. Terminando esta meditação, desejo a vós, e a todo o ambiente por vós representado, que o Natal renove em cada um a certeza desta estrada, pela qual caminhais, pela qual vos guia Cristo.

Vós todos, os vossos compatriotas e, juntamente, todos aqueles a quem chegou, no decurso deste ano que se está a aproximar do fim, o meu serviço, readquiri a coragem e a alegria desta estrada na qual caminhais, na qual vos guia Cristo.

Prossegui, constantemente e de modo cada vez mais ponderado, «caminhando diante do Senhor».

Sim! Caminhai «diante do Senhor».

Amen.



SANTA MISSA DA NOITE DE NATAL


24 de Dezembro de 1980




1. Amados Irmãos e Irmãs, reunidos aqui na Basílica de São Pedro, em Roma, e
todos vós que me ouvis neste momento, em qualquer parte do orbe terrestre:

Eis que estou diante de vós, eu, servo de Cristo e administrador dos mistérios de Deus (cf. 1Co 4,1), como mensageiro da Noite de Belém: A noite de Belém em 1980.

535 É a noite do Nascimento de Jesus Cristo — Filho de Deus — que nasce de Maria Virgem, da casa de David, da estirpe de Abraão pai da nossa fé, da geração dos filhos de Adão.

O Filho de Deus, consubstancial ao Pai, vem ao mundo como homem.

2. É uma noite de mistério profundo:

«O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para os que habitavam na terra da escuridão uma luz começou a brilhar», são palavras do profeta Isaias.

De que maneira se cumprem estas palavras na noite de Belém? Eis que as trevas envolvem a região de Judá e as terras vizinhas. Num único lugar aparece uma luz. E esta luz chega somente a um pequeno grupo de homens simples.

São os pastores, que viviam na mesma região e «guardavam de noite o rebanho» (
Lc 2,8). Somente para eles se realiza, naquela noite, a profecia de Isaias. Vêem uma grande luz: «a glória do Senhor cercou-os de luz, e eles tiveram muito medo» (Lc 2,9).

Esta luz deslumbra os seus olhos e, simultaneamente, ilumina os seus corações: «Hoje nasceu... na cidade de David, um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2,11).

Eles foram os primeiros a saber isto.

Hoje já o sabem milhões de homens do mundo inteiro. A luz da noite de Belém já chegou a muitos corações; e, contudo, ainda permanece, ao mesmo tempo, a escuridão. Por vezes, esta até parece intensificar-se...

Pelo que é que posso orar nesta noite de Belém, em 1980, eu, servo de Cristo e administrador dos mistérios de Deus, por que intenções poderei orar mais em particular, juntamente convosco, os que participais na luz desta Noite, senão para que esta mesma luz chegue a toda a parte, para que ela tenha acesso a todos os corações e para que ela volte de novo para onde parece ter-se apagado...?

...Para que ela desperte!

536 Para que ela faça acordar, como fez acordar os pastores nos campos dos arrabaldes de Belém.

3. «Multiplicastes a sua alegria e aumentastes o seu contentamento», são ainda palavras de Isaías (
Is 9,2).

Aqueles que nessa Noite O acolheram tiveram uma grande alegria. A alegria que promana da luz. A escuridão do mundo desfeita pela luz do Nascimento de Cristo.

Não importa que esta luz, de momento, seja participada apenas por alguns corações: não importa que dela participem somente a Virgem de Nazaré e o seu Esposo, a Virgem à qual não foi concedido dar ao mundo o próprio Filho sob o tecto de uma casa em Belém, «porque não havia lugar para eles na hospedaria» (Lc 2,7); e que com eles, participem desta alegria os pastores, iluminados por uma grande luz nos campos próximos da cidade.

Não importa que naquela primeira noite, a .noite do nascimento humano de Deus, a alegria de um tão grande evento tenha chegado somente a estes poucos corações. Não importa.

Essa luz é destinada a todos os corações humanos. Ela é a alegria do género humano — uma alegria sobre-humana! Poderá haver, porventura, uma, alegria maior do que esta, poderá haver uma Nova melhor do que esta — que o homem foi assumido por Deus, para ser filho, neste Filho de Deus que se tornou homem?

Uma tal alegria é também cósmica. Ela enche todo o mundo criado: criado por Deus — que fora afastado de Deus por causa do pecado — e agora restituído de novo a Deus, mediante o nascimento de Deus (em Cristo) com corpo humano.

É alegria cósmica, sim!

Ela enche toda a criação, a qual nesta Noite é chamada novamente a compartilhá-la por aquelas palavras que descem do céu: «Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens que Ele ama» (Lc 2,14).

Esta noite, desejo afirmar-me particularmente presente a vós — a todos vós que sofreis:

a vós, os atingidos pelo terramoto,
537 a vós que viveis sob o medo das guerras e das violências,
a vós que vos achais privados da alegria desta Santa Missa da Meia-Noite do Natal do Senhor,
a vós, os que estais amarrados ao leito do sofrimento,
a vós que caístes no desespero, na dúvida quanto ao sentido da vida e quanto ao sentido de tudo o mais.

Presente de modo particular a todos vós!

Para todos vós, realmente, é destinada de maneira especial esta Alegria, que encheu os corações dos pastores de Belém — ela é sobretudo para vós. Porque ela é a alegria dos homens de boa vontade — daqueles que sofrem perseguições por causa da justiça.

Que se realizem para vós as palavras de Isaías: «Multiplicastes a alegria, aumentastes o contentamento» (cf. Is
Is 9,2).

4. «Rejubilem na Vossa presença, como exultam no tempo da colheita», são também palavras de Isaías.

Os homens simples, que vivem do trabalho das suas mãos, não se apresentam diante do recém-nascido em Belém de mãos vazias. Não se apresentam com os corações vazios. Levam os presentes que oferecem.

Correspondem com os presentes ao Dom.

Amados Irmãos e Irmãs, vós aqui reunidos na Basílica de São Pedro e vós que me escutais neste momento, em qualquer parte do orbe terrestre: Nesta Noite, a humanidade inteira recebeu o Dom maior que há!

538 Nesta Noite, todos e cada um dos homens recebem o Dom maior que pode haver! O próprio Deus se torna Dom para o homem. Ele faz de Si mesmo o Dom para a natureza humana. Entra na história do homem, não já simplesmente mediante a palavra que d'Ele provém e chega ao homem, mas mediante o Verbo que se fez homem.

Pergunto a todos vós: tendes a consciência deste Dom? Estais prontos a corresponder com o dom ao Dom, à semelhança do que fazem aqueles pastores de Belém...?

Desejo-vos, do mais profundo do coração, que nesta noite de Belém, em 1980, aceiteis o Dom de Deus, que se tornou homem. E faço os mais ardentes votos que correspondais com o dom ao Dom!



SOLENE RITO EXEQUIAL EM SUFRÁGIO

DO CARDEAL EGÍDIO VAGNOZZI


Basílica Vaticana

31 de Dezembro de 1980




"Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas" (Lc 12,35).

Caros Irmãos e Irmãs, estas palavras de Jesus, que acabámos de ouvir pela leitura do Evangelho segundo Lucas, dão o tema e o tom à nossa meditação sobre a Palavra de Deus no quadro desta celebração litúrgica. Estamos, com efeito, aqui reunidos para as exéquias do nosso Venerado Irmão no Episcopado, o Cardeal Egidio Vagnozzi, que improvisamente nos deixou no passado dia 26 de Dezembro, logo após o Santo Natal.

Os rins cingidos e as lâmpadas acesas, conforme a linguagem bíblica e com eficaz imagem poética, estão respectivamente a significar a nossa disponibilidade para a viagem, como se verificou no povo de Israel antes do êxodo do Egipto, e a nossa situação de expectativa: "semelhantes aos homens que esperam o seu senhor, ao voltar das núpcias, a fim de lhe abrirem a porta, assim que ele chegar e bater" (Lc 12,36). Esta foi certamente a atitude interior do Cardeal Vagnozzi durante toda a sua longa vida. Além disso, ele realizou aquela definição honorífica de "servo", com a qual Jesus, no Evangelho há pouco lido, se refere aos seus fiéis que estão prontos para O acolher: "Felizes aqueles servos que o senhor, quando vier, encontrar vigilantes" (Lc 12,37). Trata-se daqueles que, embora depois de terem feito quanta deviam fazer, sabem dizer com humildade segundo o ensinamento de Jesus: "Somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer" (Lc 17,10). E, em verdade, o Cardeal Vagnozzi prodigalizou-se com incansável solicitude, fazendo quanto podia, nos longos anos de serviço à Santa Sé.

É-me grato antes de tudo recordar que ele era romano: de nascimento e de formação, tendo frequentado os Seminários diocesanos. Pertencia, por isso, a pleno título, num certo sentido a título nativo, àquele Clero ilustre, ao qual todos os Cardeais da Igreja Católica espalhados no mundo se honram de pertencer, mesmo se só a título de participação adquirida por eleição pontifícia. Ao colocar-se ao serviço da Sé Apostólica, teve a possibilidade de a representar em vários continentes: em primeiro lugar nos Estados Unidos da América, onde vários anos depois foi Delegado Apostólico por um decénio; depois em Portugal; em seguida na França, onde, em Paris teve como Superior e mestre o Núncio Apostólico Angelo Giuseppe Roncalli; mais tarde esteve na Índia e depois nas Filipinas, onde foi o primeiro titular da Nunciatura Apostólica ali erigida.

Criado Cardeal pelo Papa Paulo VI em 1967, passou a outras delicadas funções de responsabilidade; como a de Presidente da Prefeitura dos Assuntos Económicos da Santa Sé, recebendo o Título Presbiteral de São José na Via Trionfale. No desempenho destas várias missões mostrou sempre a sua reconhecida competência, ricamente acumulada nas preciosas e multíplices experiências precedentes, e não alheia a um sadio bom humor. Foi também sua característica um admirável espírito pastoral, que distinguiu sempre a sua actividade. Suportou generosamente muitos sofrimentos, compreendeu a importância de novos centros de educação católica, esteve atento às exigências e às esperanças oferecidas pelos jovens.

Hoje, portanto, elevamos de coração ao Senhor a nossa oração de sufrágio pela sua alma, enquanto lhe somos reconhecidos por todo o profícuo trabalho desenvolvido em benefício desta Sé Pontificia e, em definitivo, de toda a Igreja.

539 A primeira leitura bíblica desta Liturgia, tirada do Livro da Sabedoria, exprimia-se assim: "A sabedoria é que faz os cabelos brancos, e a verdadeira velhice é uma vida imaculada" (Sg 4,9). Pois bem, a vida intensa do Cardeal Vagnozzi, que agora está perfeitamente terminada diante de nós e mais ainda diante dos olhos de Deus, ensina-nos a seguir estas palavras bíblicas como luz e guia também para a nossa existência terrena. As muitas experiências, que por divina providência a entremeiam, seriam inúteis, se não nos conduzissem a uma sólida maturidade interior, que o Hagiógrafo denomina metaforicamente "cabelos brancos" isto é, a confirmar sempre mais a nossa adesão de fé ao Senhor e a fecundar sempre cada vez mais o nosso serviço de amor aos irmãos, na Igreja e no mundo.

Neste último dia do ano, além disso, somos oportunamente de novo chamados a firmar os nossos pés sobre a rocha perene que é Deus; só Ele é mais firme que qualquer mudança dos tempos, e o Profeta compara-O com exactidão a "um cipreste sempre verdejante" (Os 14,8). Somos convidados a estar sempre prontos para a nossa definitiva comunhão com Ele, tendo também nós "os rins cingidos e as lâmpadas acesas". Mesmo numa "idade avançada" podemos manter a verdadeira juventude, se permanecemos firmemente ancorados, diria agarrados, a Nosso Senhor Jesus Cristo, sobre Quem sabemos que "a morte já não tem mais domínio" (Rm 6,9). De facto, como nos recordava a segunda Leitura, "se morrermos com Ele, também com Ele reviveremos" (2Tm 2,11). "Porque para este fim é que Cristo morreu e ressuscitou: para ser Senhor dos mortos e dos vivos" (Rm 14,9). N'Ele, portanto, tanto quem morre como quem vive se encontra unido num só e indissolúvel vinculo de comunhão, uma vez que o Senhor, segundo a confortadora palavra de Jesus, "não é Deus de mortos, mas de vivos" (Mc 12,27).

Neste espírito de fé celebramos as exéquias do Cardeal Egidio Vagnozzi, para quem imploramos confiantemente com a Liturgia, "o lugar da bem-aventurança, da luz e da paz". Amém!



SANTA MISSA DE FIM DE ANO

«TE DEUM» DE ACÇÃO DE GRAÇAS


Quarta-feira, 31 de Dezembro de 1980




1. «Filhinhos, esta é a última hora» (1Jn 2,18).

Ouvimos estas palavras no princípio da primeira leitura, tirada da Carta de São João, e pensámos: Que actuais que elas são! Como estão em concordância com o que nós todos vivemos hoje, 31 de Dezembro! O último dia do ano, a última hora — e se esta hora em que nos encontra-mos, em conformidade com a tradição romana, na igreja do «Gesú», não é ainda exactamente a última — em todo o caso está muito perto da hora que, como verdadeiramente «última», encerrará o ano de 1980.

E embora se trate só de mudança de data no calendário, como, depois da meia-noite, o ano de 1980 cederá o lugar ao ano de 1981, não podemos isolar este acontecimento de tudo o que está em nós e à nossa volta. O último dia do ano, que está para terminar, coloca-nos de maneira particular, diante da evidência do «passar»: «Passa a aparência deste mundo» (1Co 7,31) e passa, neste mundo, o homem.

Pensemos neste momento em todos os homens, para quem o ano de 1980 foi a última data da história da vida deles na terra, isto é, foi a data da morte. Ao mesmo tempo, pensemos nos diversos acontecimentos que neste período passaram através da Itália, dos outros países do continente europeu, da minha pátria a Polónia, e através de todos os continentes do globo. Os acontecimentos que abalaram profundamente a opinião pública, que provocaram abatimento e porventura, às vezes, esperança. Os acontecimentos que tiveram o seu fim, ou antes perduram nas suas consequências, constituindo um desafio, colocando diante dos homens novas missões.

Pondo de parte todo o resto, baste recordar aquele terrível acto de violência que foi a destruição da estação em Bolonha ou o terramoto que feriu a Itália Meridional...

Seria difícil recordar tudo.

Eis que é «a última hora». sabemos que todos esses acontecimentos passarão à história com a data de 1980. Sabemos que, juntamente com esta data, serão encerrados nos limites do passado do homem e do mundo

540 O dia de hoje constitui certamente um termo. É o dia de certo encerramento.E nós todos vivemo-lo com esta característica.

2. E desejamos vivê-lo assim nós, que estamos aqui reunidos na igreja do «Gesú», para participar na liturgia eucarística, no Sacrifício de Cristo, que é, ao mesmo tempo, o «nosso» sacrifício, e permite-nos exprimir diante de Deus, do modo mais pleno, aquilo que, neste dia, o nosso coração e a nossa consciência sentem o desejo de manifestar.

Na liturgia eucarística nós podemos exprimir a Deus no modo mais pleno a nossa acção de graças e pedir perdão. De facto, temos, sem dúvida, alguma coisa para agradecer, mas temos também de pedir perdão.

E, por isso, conteúdo particularmente vivo, da nossa hodierna participação na Santa Missa, tornam-se as palavras do prefácio: «É verdadeiramente coisa boa e justa, nosso dever... dar-Vos graças...». A Vós. Precisamente a Vós, Pai, Filho e Espírito Santo. Agradecemo-vos toda a abundância do mistério do Nascimento de Deus, a cuja luz está passando o ano velho e nasce o novo. Como é eloquente que o dia, que humanamente fala sobretudo de «passar», dê testemunho do Nascimento com o conteúdo preciso da liturgia da Igreja! De Deus num corpo humano, e ao mesmo tempo de nascer de Deus o homem: «A todos os que O receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (
Jn 1,12).

E, ao mesmo tempo que este acto de acção de graças, tornem-se conteúdo particular, da nossa hodierna participação na santa Missa, todas as palavras da propiciação, começando pelo «Confiteor» inicial, através do «Kyrie eleison», até ao «Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo» e ao nosso «Senhor, não sou digno...». Encerremos nestas palavras tudo o que vivem as nossas consciências, o que pesa sobre elas, o que só o próprio Deus pode julgar e perdoar. E não fujamos a estar aqui hoje diante de Deus com a consciência da culpa, na atitude do publicano do Evangelho. Assumamos essa atitude. Corresponde exactamente à verdade interior do homem. Traz a libertação. Isto, precisamente isto, relaciona-se com a esperança.

Sim. A esperança do homem e a esperança do mundo contemporâneo, a perspectiva do futuro verdadeiramente «melhor» e mais humano, dependem do «Confiteor» e do «Kyrie eleison». Dependem da conversão: das muitas, muitas conversões humanas, que são capazes de transformar não só a vida pessoal do homem, mas a vida dos ambientes e da sociedade inteira: desde os ambientes mais restritos até aos cada vez maiores, até compreenderem a inteira família humana.

3. Coisa significativa: no dia em que pensamos, primeiro que tudo, no termo, no fim — porque termina o ano de 1980 —, a liturgia chama a si as palavras que falam do princípio:

«No princípio já existia o Verbo, e o Verbo era Deus. Ele estava, no princípio, com Deus» (Jn 1,1-2).

O fim ordena que se suba com o pensamento ao princípio. O fim do ano ao seu princípio. O termo da vida ao seu início. Todavia, o prólogo do Evangelho de São João ordena-nos voltar àquele Princípio, que existe antes do tempo, antes do mundo, antes de tudo o que vive neste mundo e morre, tem um início e um fim... Ordena-nos que voltemos ao Princípio de todas as coisas, o qual está em Deus. No próprio Deus.

Precisamente, o Verbo:

«Tudo começou a existir por meio d'Ele e, sem Ele, nada foi criado. N'Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens» (Jn 1,3-4).

541 Mas eis que esse Princípio absoluto e incondicionado (não relativo e temporal) de tudo — proclama em seguida o Evangelho — ligou-se com o tempo do homem. Com o passar. Com a sua vida e com a sua morte.

E o Verbo fez-se homem e habitou entre nós» (
Jn 1,14).

Desde tal momento devemos contar o nosso tempo de outro modo. De outro modo compreender e avaliar a nossa vida. De outro modo viver o nosso passar: o nascimento e a morte do homem e de tudo o que é humano.

A nossa existência está radicada não só no mundo que passa, mas também no Verbo que não passa.

E por isso, no fim deste ano, quando ouvimos as palavras «Estava no mundo... mas o mundo não O conheceu» (Jn 1,10), devemos perguntar: Que fizemos para conhecer melhor, no ano que está a acabar, este Verbo que se fez carne? Que fizemos para que, mediante nós, os outros O conhecessem melhor? Que fizemos para que a vida humana reencontrasse a sua forma plena e definitiva — aquela que lhe confere o Verbo?

Ouçamos ainda:

«Veio ao que era Seu e os Seus não O receberam» (Jn 1,11).

E novamente devemos perguntar: Recebemo-l'O? ou antes afastámo-l'O e repelimo-1'O? Introduzimos na vida este Verbo que se fez carne por nós e pela salvação de todos os homens? Que fizemos para que os outros O recebessem?

4. Terminemos aqui. Sim. Terminemos com esta pergunta. Com essas poucas perguntas que pode cada um multiplicar no seu coração e na própria consciência.

Terminemos deste modo o ano de 1980, que está a acabar. Pois assim o abriremos de maneira melhor para o futuro: para o futuro imediato, que principiará dentro de poucas horas, e para o definitivo, que está em Deus, em Deus mesmo.

O Verbo é o futuro definitivo do homem e do mundo. Foi este Verbo que na noite de Belém se fez homem.






1981



SOLENIDADE DE MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS

XIV DIA MUNDIAL DA PAZ


Basílica de São Pedro

Quinta-feira, 1º de Janeiro de 1981


1. .. Quando o tempo chegou à sua plenitude, Deus enviou o Seu Filho, nascido de uma mulher...". - São palavras de São Paulo, reproduzidas pela liturgia de hoje (Ga 4,4).

"A plenitude do tempo..."

Estas palavras têm hoje particular eloquência, dado que pela primeira vez nos é concedido pronunciar a nova data, isto é, o nome do novo ano solar: 1981. Assim acontece cada ano no dia 1° de Janeiro. Passam os anos, mudam as datas e decorre o tempo. Com o tempo passa também toda a natureza, nascendo, desenvolvendo-se e morrendo. E passa também o homem; mas ele passa conscientemente. Tem a consciência do seu passar, a consciência do tempo. Com a medida do tempo mede a história do mundo e sobretudo a própria história. Não só os anos, os decénios, os séculos e os milénios, mas também os dias, as horas, os minutos e os segundos.

A liturgia de hoje diz-nos, com as palavras de São Paulo, que o tempo, que é a medida do passar dos seres humanos no mundo, está submetido também a outra medida, quer dizer, à medida da plenitude, que provém de Deus: a plenitude do tempo. De facto no tempo – no tempo humano, terreno – Deus leva a que se cumpra o Seu eterno projecto de amor. Mediante o amor de Deus, o tempo está sujeito à Eternidade e ao Verbo.

O Verbo fez-se carne... no tempo.


Homilias JOÃO PAULO II 531