Homilias JOÃO PAULO II 748


VISITA PASTORAL À PARÓQUIA ROMANA

DE NOSSA SENHORA DE COROMOTO


749
Domingo, 15 de Março de 1981




1. "Participa comigo dos trabalhos do Evangelho" (
2Tm 1,8).

Com estas palavras, ouvidas na segunda Leitura bíblica da Liturgia hodierna, São Paulo dirige-se a Timóteo.

Ao vir hoje à vossa paróquia, desejo repetir as mesmas palavras.

A visita do Bispo à Paróquia tem como finalidade reconfirmar os vínculos, que unem a vossa Comunidade à Igreja Romana, mas tem igualmente a finalidade de promover a reanimação deles, de modo que represente um novo impulso para a vida cristã, para a participação na evangelização, isto é naquelas fadigas e contrariedades de que fala o Apóstolo, suportadas pelo Evangelho.

Neste espírito, saúdo a vossa Paróquia, que tenho ocasião de visitar no segundo Domingo da Quaresma. A minha saudação vai antes de tudo para o Cardeal Vigário e para o Bispo da zona, D. Remígio Ragonesi, que tão bem prepararam o nosso encontro de hoje. Saúdo também cordialmente o Pároco e os Presbíteros seus colaboradores, os quais se prodigam com zelo pelo bem desta Comunidade. Além disso, merecem especial menção as Religiosas e os Religiosos, que realizam aqui apreciada e benemérita actividade pastoral. Saúdo igualmente, de modo particular, os membros do Conselho Pastoral, os Catequistas cuja obra é tão valiosa, e os representantes das organizações católicas.

Todos em conjunto, cooperais para o crescimento cristão desta Paróquia, que é grande, mas jovem e rica de energias. Os nomes que a definem são significativos: o de Nossa Senhora de Coromoto, Padroeira da Venezuela, foi assumido para homenagear o contributo proveniente daquele generoso povo da América Latina; o nome de São João de Deus, o primeiro a ser-lhe atribuído, recorda a todos a caridade para com aqueles que sofrem, dado que a Paróquia se encontra numa zona de Roma entre as mais povoadas de hospitais. E assim, o bairro dos "Colli Portuensi" está sob valiosa protecção, que se torna também estímulo para o compromisso cristão de todos, especialmente neste tempo quaresmal.

2. A Quaresma é apresentada na Liturgia de hoje como se fosse semelhante a um caminho — como aquele caminho para o qual Deus chamou Abraão.

Na primeira Leitura, de facto, escutámos as palavras do Senhor: "Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar" (Gn 12,1). E Abraão pôs-se a caminho sem demora, e sem outro amparo a não ser a promessa divina. Pois bem, também para nós a Quaresma é um caminho, que somos convidados a enfrentar com resolução e confiança nos projectos que Deus tem a nosso respeito. Embora a viagem seja cheia de provações, São Paulo assegura-nos, na segunda Leitura, que, assim como Timóteo, também cada um de nós é "fortificado pelo poder de Deus" (2Tm 1,8). E a terra para a qual somos encaminhados é a vida nova do cristão, vida pascal, que só pode ser realizada pelo "desígnio" e pela "graça" de Deus. Trata-se de um poder misterioso, "que nos foi dado em Jesus Cristo antes de todos os séculos, e que agora se manifestou com a aparição do nosso Salvador, que destruiu a morte e irradiou luz de vida e imortalidade por meio do Evangelho" (ib. 1, 9-10). A Carta a Timóteo, em seguida, precisa que a terra da vida nova nos é dada em virtude de uma vocação misericordiosa e de uma entrega por parte de Deus, "não devido às nossas obras, mas em virtude do Seu desígnio e graça" (ib. 1, 9). Por conseguinte, devemos ser homens de fé, como Abraão: isto é, homens que não confiam tanto em si mesmos quanto, pelo contrário, na graça e no poder de Deus.

3. O Senhor Jesus, vivendo na terra, descobriu pessoalmente, com os seus discípulos, este caminho. Nele se verificou também aquele insólito acontecimento, descrito no evangelho de hoje: a transfiguração do Senhor.

"O Seu rosto resplandeceu como o Sol e as Suas vestes tornaram-se brancas como a luz. Nisto, apareceram Moisés e Elias a conversar com Ele" (Mt 17,2-3). Mas no centro do acontecimento há as palavras divinas, que lhe conferem o seu verdadeiro significado: "Este é o Meu Filho muito amado, no Qual pus todo o meu enlevo; escutai-O" (ib. 17, 5). Compreendemos assim que se trata de uma cristofania; isto é, a transfiguração representa a revelação do Filho de Deus, do qual a narração põe em luz algumas coisas: a glória, em virtude do esplendor alcançado; a centralidade e quase o compêndio da história da salvação, significados da presença de Moisés e de Elias; a autoridade profética, legitimamente proposta pelo convite peremptório: "Escutai-O"; e sobretudo a qualificação de "Filho", que acentua as estreitas e únicas relações existentes entre Jesus e o Pai celeste.

750 As palavras da transfiguração, além disso, repetem as já presentes na narração do baptismo no Jordão, quase a significar que também depois de ter percorrido um caminho preciso na sua vida pública, Jesus permanece o mesmo "Filho predilecto", como já tinha sido proclamado no início.

Os apóstolos manifestam a própria felicidade: "É bom estarmos aqui" (
Mt 17,4). Mas Cristo dá a saber que o acontecimento do monte Tabor se encontra apenas no caminho para a revelação do mistério pascal: "Não conteis a ninguém o que acabastes de ver, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos" (Mt 17,9).

O caminho da Quaresma, que o Senhor Jesus percorreu, durante a sua vida na terra, juntamente com os discípulos, continua a percorrê-lo com a Igreja. A Quaresma é o período de uma presença de Cristo, particularmente intensa, na vida da Igreja.

4. É necessário, pois, procurarmos, de modo especial neste tempo, a vizinhança de Cristo: "É bom estarmos aqui" (Mt 17,4). É preciso vivermos em intimidade com Ele; abrirmos-Lhe o próprio coração, a própria consciência; falar com Ele assim, como ouvimos no Salmo Responsorial da Liturgia hodierna: "Desça sobre nós, Senhor, a Vossa misericórdia, / segundo a esperança que temos em Vós" (Ps 32,22).

A Quaresma é precisamente um período em que a graça deve estar de modo particular "sobre nós". Para isto, é necessário que nos abramos simplesmente a ela; de facto, a graça de Deus não é tanto objecto de conquista, quanto de aceitação disponível e generosa, como para uma oferta, sem interpor impedimentos. Concretamente isto é possível, antes de tudo, mediante uma atitude de profunda oração, que precisamente comporta o entrecruzar-se de um diálogo com o Senhor; depois, mediante uma atitude de sincera humildade, porque a fé é exactamente a adesão da mente e do coração à Palavra de Deus; e, por fim, mediante um comportamento de autêntica caridade, que deixe transparecer todo o amor, do qual nós mesmos já fomos tornados objecto por parte do Senhor.

5. Como Abraão, a quem Deus mandou se pusesse a caminho, também nós nos encaminhámos, de novo, por este caminho da Quaresma, no fim do qual está a Ressurreição.

Vê-se a Cristo, o Filho muito amado, no Qual o Pai pôs todo o seu enlevo (cf. Mt Mt 17,5).

Vê-se a Cristo, que destrói a morte e irradia luz de vida e imortalidade por meio do Evangelho (cf. 2Tm 1,10).

E portanto: fortificados pelo poder de Deus, devemos tomar parte nas fadigas e nas contrariedades suportadas pelo Evangelho! (cf. ib. 1, 8).

Estas palavras da Carta a Timóteo desvelam também um nobre e empenhativo programa para cada cristão na sua vida de cada dia. É o programa da evangelização, ou seja de se participar na difusão da mensagem evangélica. Como Cristo "irradiou luz de vida e imortalidade por meio do Evangelho" (ib. 1, 10), assim devemos fazer também nós; assim deve fazer a Paróquia inteira. Isto é, trata-se de mostrar à sociedade e ao mundo que o Evangelho, com a sua luz projectada sobre o caminho da humanidade (cf. Sl Ps 119,105), é fonte de vida, e de vida imortal. É necessário que o cristão mostre a todos a verdade da exclamação de Pedro: "Senhor, para quem havemos de ir? Tu tens palavras de vida eterna" (Jn 6,68). Os homens deveriam compreender que, aderindo a Cristo não só não têm nada a perder, mas tudo a ganhar, porque com Cristo o homem torna-se mais homem (cf. Gaudium et Spes, GS 41). Mas para isto é-lhes necessário um testemunho; e este só o podem dar os discípulos mesmos de Jesus, ou seja os cristãos, aos quais já São Paulo escrevia: "Deveis brilhar como astros no mundo, ostentando a Palavra de vida" (Flp 2, 15-16).

Isto pode fazer-se em milhares de modos, segundo as várias ocupações de cada um: em casa e no mercado, na escola e na fábrica, no trabalho e no tempo livre.

751 E como Jesus Cristo é "o Primogénito de muitos irmãos" (Rm 8,29), esperamos e pedimos que, assimilando-nos a Ele, também nós possamos ser incluídos por Deus entre os seus filhos muito amados (cf. Mt Mt 17,5).

Amém.



VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE

À TERNI (ITÁLIA)

(19 DE MARÇO DE 1981)

CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA PARA AS FAMÍLIAS

NO ESTÁDIO DESPORTIVO "LIBERATI"




Terni, 19 de Março de 1981




1. "Felizes os que moram em vossa casa (Senhor): podem louvar-vos continuamente" (Sl 83/84, 5).

Caros Irmãos e Irmãs

Depois do encontro de manhã no lugar do trabalho, reunimo-nos agora neste amplo estádio a fim de participarmos na Eucaristia. Mais uma vez desejo exprimir-vos gratidão, porque — no dia em que a Igreja venera São José, "homem justo", que em Nazaré trabalhou junto do banco de carpinteiro — me foi dado encontrar-me convosco dentro da sede de uma das fábricas, onde se encontra o banco de trabalho de tantos homens, residentes em Terni, e nas localidades circunstantes. Este nosso encontro foi centrado no grande problema do trabalho humano, para o qual o dia de hoje dirige de modo particular os nossos pensamentos e os nossos corações.

Aqui vos saúdo pela segunda vez num círculo mais amplo: acompanhados pelas vossas famílias, pelas vossas mulheres e pelos filhos, pelos vossos familiares, parentes, vizinhos e conhecidos. José de Nazaré, "homem justo" — cuja solenidade nos permite olhar com os olhos da fé para a grande causa do trabalho humano — é ao mesmo tempo chefe da casa, chefe da famílias da Sagrada Família; assim como cada um de vós, meus Irmãos e Irmãs, é marido e pai, ou esposa e mãe, responsável pela família e pela casa. Há estreito laço entre o trabalho e a família: entre o vosso trabalho e a vossa família. É São José, a título particular, patrono deste laço. E por isso bem é que, depois do nosso encontro matutino, que nos viu recolhidos à volta do banco do vosso trabalho, nos possamos encontrar aqui para dedicar às famílias a Santa Missa da solenidade. A cada família e a todas as famílias.

Precisamente estas famílias desejo eu convidar de modo mais cordial para a comunidade eucarística, que exprime a nossa unidade familiar com Deus, Pai de .Jesus Cristo e nosso Pai — e ao mesmo tempo manifesta a unidade recíproca dos homens, sobretudo daqueles que formam uma só família.

2. A Eucaristia manifesta e realiza a unidade familiar de toda a Igreja.Para participar no sacrifício de Cristo, para alimentar-se do Seu Corpo e do Seu Sangue, a Igreja reúne-se como uma família junto da mesa da Palavra Divina e junto da mesa do Pão do Senhor.

Hoje, nesta solene assembleia eucarística participa, e modo particular, toda a Igreja de Terni, Narni e Amélia.

Desejo saudar cordialmente esta Igreja como a família do Povo de Deus com o Bispo, Santo Bartolomeo Quadri, que é o seu pastor, e com todo o presbitério. Saúdo os membros dos Cabidos, os Educadores do Seminário, os Párocos e os seus Colaboradores. Saúdo também os Religiosos e as Religiosas das Ordens e das Congregações, que realizam o seu trabalho na região, oferecendo e seu precioso contributo à edificação do povo de Deus. Dirijo um deferente pensamento às Autoridades civis, que desejaram honrar com a sua presença esta nossa Celebração. Uma palavra de saudação quero reservar para a representação da paróquia de Castelnuovo di Conza, vítima do recente terremoto, com a qual os fiéis desta Terra se ligaram louvavelmente como gémeos, para a solidariedade. Saúdo também com particular cordialidade os leigos comprometidos no apostolado, especialmente os que entre si aceitaram inserir-se activamente nas várias formas associativas que operam a nível quer diocesano quer paroquial. E saúdo os jovens, que vejo aqui presentes tão numerosos: saibam eles conservar o coração sempre aberto aos valores anunciados no Evangelho, empenhando-se por construir sobre eles um futuro mais digno do homem. Uma saudação, enfim, a todos os fiéis das Comunidades diocesanas que, no quotidiano desempenho das suas tarefas familiares e sociais, atestam diante dos irmãos a solidez das suas convicções cristãs.

752 As Igrejas de Terni, Narni e Amélia podem orgulhar-se de antigas tradições de fé, seladas pelo sangue de Mártires ilustres: Valentim, Juvenal e Firmina são nomes que vos são bem conhecidos; evocam a recordação de tempos difíceis, em que a adesão a Cristo comportava o sacrifício até da própria vida. O exemplo de impávida fortaleza, que os vossos santos Patronos vos deixaram como património imperecedouro, seja, para todos os filhos desta terra, constante incitamento àquela corajosa coerência de vida, sem a qual não é possível sentirmo-nos e sermos autenticamente cristãos. A exemplo daqueles antigos cristãos que morreram, pela fé, sabei vós, hoje, viver a fé!

3. A leitura do Evangelho segundo São Mateus convida-nos a meditar num momento particular da vida de José de Nazaré, momento cheio de conteúdo divino e ao mesmo tempo de profunda verdade humana. Lemos: "O nascimento de Jesus deu-se do seguinte modo: Maria, Sua Mãe, tornara-se noiva de José e, antes de terem vivido em comum, encontrara-se grávida, por virtude do Espírito Santo"' (
Mt 1,18). Quando ouvimos estas palavras, vêm-nos à mente aquelas outras bem conhecidas, que rezamos quotidianamente na oração da manhã, do meio-dia e da tarde: "O Anjo do Senhor anunciou a Maria e Ela concebeu por obra do Espírito Santo".

Por obra do Espírito Santo foi concebido o Filho de Deus para se tornar homem: filho de Maria. Este foi o mistério do Espírito Santo e de Maria. O Mistério da Virgem, que às palavras da anunciação respondeu: "Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38).

E assim aconteceu: "E o Verbo fez-se homem e habitou entre nós" (Jn 1,14). E sobretudo veio habitar no seio da Virgem que — permanecendo virgem — se tornou mãe: "achou-se que tinha concebido por virtude do Espírito Santo" (Mt 1,18).

Este foi o mistério de Maria. José não conhecia este mistério. Não sabia que n'Aquela de quem ele era esposo, ainda que, em obediência à lei hebraica não a tivesse ainda acolhido sob o seu tecto, se tinha cumprido aquela promessa da Fé feita a Abraão, de que fala na segunda leitura de hoje São Paulo. Isto é, que se tinha cumprido nela, em Maria da estirpe de David, a profecia que em tempos o profeta Natán dirigira a David. A profecia e a promessa da Fé, cuja realização esperava todo o Povo, o Israel da divina eleição, e toda a humanidade.

Este foi o mistério de Maria. José não conhecia este mistério. Não lho podia transmitir Ela, porque era mistério superior às capacidades da inteligência humana e às possibilidades da língua humana. Não era possível transmiti-lo com algum meio humano. Só se podia aceitá-lo de Deuse crer. Assim como creu Maria.

José não conhecia este mistério e por isto muitíssimo sofria interiormente. Lemos: "José, o esposo dela, que era justo e não queria expô-la à difamação, resolveu repudiá-la em segredo" (Mt 1,19).

Mas chegou certa noite, quando também José creu. Foi-lhe dirigida a palavra de Deus e tornou-se claro para ele o mistério de Maria, da sua Esposa e Cônjuge. Ele acreditou que n'Ela se tinha cumprido a promessa da fé feita a Abraão e a profecia que ouvira o Rei David. (Ambos, José e Maria, eram da estirpe de David).

"José, filho de David, não tenhas receio de trazer Maria, tua Esposa, para junto de ti, pois o que nela se gerou é fruto do Espírito Santo. Dará à luz um Filho, ao qual porás o nome de Jesus, pois Ele há-de salvar o seu povo dos Seus pecados" (Mt 1,20-21).

"Assim que despertou do sono — conclui o Evangelho — José fez como lhe ordenara o Anjo do Senhor" (Mt 1,24).

4. Nós, aqui reunidos, ouvimos estas palavras — e veneramos José, homem justo: José que amou mais profundamente Maria, da casa de David, porque aceitou todo o seu mistério. Veneramos José, no qual se espelha mais plenamente do que em todos os pais terrenos a Paternidade de Deus mesmo. Veneramos José que ao Verbo Eterno construiu a casa familiar na terra — assim como Maria Lhe deu o corpo humano. "O Verbo fez-se homem e habitou entre nós" (Jn 1,14).

753 Deste grande mistério da fé dirigimos os nossos pensamentos para as nossas casas, para tantos casais e famílias. José de Nazaré é particular revelação da dignidade da paternidade humana. José de Nazaré, o carpinteiro, o homem do trabalho. Pensai nisto vós — precisamente vós —, homens do trabalho de Terni, de Narni, de Amélia e de toda a Itália, toda a Europa e todo o mundo. Sobre a dignidade da paternidade humana — sobre a responsabilidade do homem, marido e pai, assim como também sobre o seu trabalho — apoia-se a família. José de Nazaré dá-nos disso testemunho.

As palavras que Deus lhe dirige "José, filho de David, não tenhas receio de trazer Maria, tua Esposa, para junto de ti" (
Mt 1,20) não são porventura dirigidas a cada um de vós? Caros Irmãos, maridos e pais de família! "Não tenhais receio de trazer...". Não abandoneis! Foi dito no princípio: "Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher" (Gn 2,24), E Cristo acrescenta: "Aquilo, pois, que Deus uniu não o separe o homem" (Mc 10,9). A solidez da família, a sua estabilidade é um dos bens fundamentais do homem e da sociedade. Na base da solidez da família está a indissolubilidade do matrimónio. Se o homem, se a sociedade procuram os caminhos que privam o matrimónio da sua indissolubilidade e a família da solidez e da estabilidade, então cortam quase a raiz mesma da sua salvação, privam-se de um dos bens fundamentais, sobre que é construída a vida humana.

Irmãos queridos! Aquela voz, que ouviu José de Nazaré naquela noite decisiva da sua vida, chegue até vós sempre, em particular quando está iminente o perigo da destruição da família, "Não temais perseverar"! "Não abandoneis"! Comportai-vos assim como fez aquele Homens justo.

5. José, filho de David, não tenhas medo de trazer Maria para junto de ti e Aquele que foi gerado nela (cf. Mt Mt 1,20), Assim diz Deus-Pai ao homem, com que, em certo modo, partilhou a Sua paternidade. Deus, caros Irmãos, partilha em certo sentido a Sua paternidade com cada um de vós. Não do modo misterioso e sobrenatural, como o fez com José de Nazaré... Contudo, toda a paternidade na terra, toda a paternidade humana, d'Ele toma o seu princípio, e n'Ele encontra o seu modelo. A vossa paternidade humana, caros Irmãos, relaciona-se sempre com a maternidade. E aquele que é concebido no seio da mulher-mãe une-vos a vós esposos, marido e mulher, com um particular laço que Deus-Criador do homem abençoou "desde o princípio". Este é o vínculo da paternidade e da maternidade, que se forma desde o momento em que o homem, o marido, encontra na maternidade da mulher a expressão e a confirmação da sua paternidade humana.

A paternidade é responsabilidade pela vida: pela vida primeiro concebida no seio da mulher, depois dada à luz, para que nela se revele um novo homem, que é sangue do vosso sangue e carne da vossa carne. Deus que diz "Não abandones a mulher, tua esposa", diz ao mesmo tempo: "acolhe a vida concebida nela! Assim como o disse a José de Nazaré, embora José não fosse o pai carnal d'Aquele que foi concebido por obra do Espírito Santo em Maria Virgem.

Deus diz a cada homem: "Acolhe a vida concebida por tua obra! Não te permitas suprimi-la!". Deus diz assim com a voz dos seus mandamentos, com a voz da Igreja. Mas Ele diz assim sobretudo com a voz da consciência. A voz da consciência humana. Esta voz é unívoca, não obstante tudo o que se faça para impedir que ela seja ouvida e para sufocá-la, isto é, para que o homem não oiça e a mulher não oiça esta voz simples e clara da consciência.

Os homens do trabalho, os homens do trabalho duro, conhecem esta voz simples da consciência. O que eles sentem do modo mais profundo é precisamente aquele laço que une o trabalho e a família. O trabalho é para a família, pois o trabalho é para o homem (e não vice-versa) — e exactamente a família, e primeiro que tudo a família, é o lugar próprio do homem. É o ambiente em que ele é concebido, nasce e cresce; o ambiente pelo qual ele assume a responsabilidade mais séria, no qual ele se realiza quotidianamente; o ambiente da sua felicidade terrena e da humana esperança. E por isso hoje, no dia de São José, conhecendo os corações dos homens do trabalho, a sua honestidade e responsabilidade, exprimo a convicção de que precisamente eles assegurarão e consolidarão estes dois bens fundamentais do homem e da sociedade: a solidez dá família e o respeito da vida concebida sob o coração da mãe.

6. "Felizes os que moram em vossa casa, Senhor" (cf. Sl 83/84, 5).

Desejo-vos, caros Irmãos e Irmãs, a felicidade. Desejo-vos aquela felicidade que brota da consciência pura. Desejo-vos aquela felicidade que oferece o lar doméstico. Desde a casa nazaretana de José, de Maria e de Jesus, desde aquele modesto banco de trabalho, unido com ela, traço no pensamento e no coração quase uma linha contínua até estes modernos estaleiros do trabalho industrial, nos quais vós vos esfalfais — e levo-a mais longe: até às vossas casas, às vossas famílias.Reine nelas a felicidade que provém de Deus. Seja ela mais forte que todas as provas da vida, das quais nunca está isento o homem na terra. E sobretudo nas vossas casas, nas vossas famílias, desenvolva-se o homem segundo a medida própria da sua dignidade.

Da dignidade que lhe deu Jesus de Nazaré... Jesus de quem se falava como do "filho do carpinteiro" (Mt 13,55). Apesar de Ele ser da mesma substância do Pai, o Filho de Deus que encarnou e nasceu como homem da Virgem Maria por obra do Espírito Santo.

E crescia em Nazaré ao lado de José. Sob o seu olhar vigilante e desvelado.



XV CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE SÃO BENTO E SANTA ESCOLÁSTICA


754
Basílica de São Paulo fora dos Muros

Domingo, 22 de Março de 1981




Veneráveis Irmãos e Filhos caríssimos

1. Et benedicam tibi..., erisque benedictus (
Gn 12,3). Como coroamento dos vários encontros e das palavras que, em datas diversas, tive ocasião de pronunciar durante o ano centenário dos Santos Bento e Escolástica em Núrsia, em Montecassino e em Subiaco, apraz-me tomar — como há pouco fez a Sagrada Liturgia — esta bela expressão bíblica que contém uma das arcanas promessas feitas por Deus ao patriarca Abraão, e aplicá-la ao patriarca do monaquismo ocidental, bendito no nome e nas obras. Considero, de facto, muito oportuno e significativo o rito desta tarde, junto do Túmulo do Apóstolo das Gentes, a fim de honrar mais uma vez Bento, e concluir dignamente as frutuosas celebrações comemorativas, como fizera, nesta mesma Basílica, o meu Predecessor Pio XII, de venerada memória, em Setembro de 1947, no XIV Centenário da sua piíssima morte. Após o dramático conflito que tinha devastado e ensanguentado tantas nações, ele quis invocar, precisamente aqui, a especial protecção de Bento, Europae altor et pater, para a recuperação espiritual e material não só do Continente europeu, mas também do mundo inteiro (cf. Pio XII, Discursos e Radiomensagens, vol. IX, PP 237-241).

2. A todos vós aqui presentes, Bispos, Sacerdotes, Religiosos e Leigos, desejo apresentar a minha cordial saudação: dirijo-me, em primeiro lugar, à Comunidade Beneditina local com o seu Abade Ordinário e com o Abade Presidente da Congregação Cassinense. Saúdo a seguir os superiores e os membros das Famílias monásticas masculinas e femininas de Roma, aqui reunidos com tantos outros representantes de Ordens e Congregações religiosas, para celebrarem no espírito da verdadeira comunhão fraterna o grande mestre da vida consagrada. E saúdo, por fim, os fiéis da Paróquia de São Paulo, aos quais os próprios Padres Beneditinos do Mosteiro contíguo dedicam por uma tradição ultra-secular o seu prezado serviço, dando deste modo testemunho do ideal monástico e também da sua capacidade de irradiação apostólica.

Com efeito, o instituto monástico é chamado, nesta Basílica, a dar prova da sua consistência: é chamado a oferecer o exemplo do mais esmerado estilo litúrgico, do mais assíduo empenho no indispensável ministério sacramental da reconciliação, do acolhimento hospitaleiro aos peregrinos e visitantes, provenientes de todas as partes do mundo; mas é chamado, ao mesmo tempo, a preparar um programa apropriado de encontros religiosos, de iniciativas em defesa da convivência familiar, de colóquios ecuménicos. E tudo isto constitui um contributo precioso não só para a pastoral diocesana, mas também para a animação de toda a Igreja. Aqui, mais do que noutros Mosteiros colocados no coração da vida eclesial e civil, a espiritualidade da contemplação é posta ao serviço do empenho apostólico, segundo o ensinamento de São Gregório Magno, o qual, a pouca distância da morte do Patriarca Cassinense, empenhou os monges na árdua empresa da evangelização da Inglaterra, dando impulso àquela admirável série de viagens missionárias que abriram a Europa ocidental ao cristianismo e à civilização, assim como, na oriental, actuaram com igual fervor pastoral os grandes apóstolos do mundo eslavo, Cirilo e Metódio.

3. Como fruto do ano centenário, no decurso do qual a figura e a obra de São Bento difundiram na Igreja e na sociedade uma mensagem surpreendente de luz, podemos já advertir mais claramente a necessidade de o monaquismo reviver as suas genuínas e múltiplas tradições, quer de vida estritamente claustral, quer de presença activa nos sectores da pastoral, do artesanato ou da agricultura, da pesquisa científica, etc. Tudo isto terá aplicação mais fácil e eficácia mais segura, só se forem afirmados o primado da busca de Deus na liturgia e na lectio divina, o respeito das exigências conaturais à vida comunitária e o apego fiel ao trabalho nas suas diversas formas.

Voltando ao que foi afirmado no término do Simpósio que, no passado mês de Setembro, viu reunidos os Abades e as Abadessas e os Superiores beneditinos, cistercienses e trapistas, formulo de bom grado votos por que "as comunidades monásticas proclamem que todas as gerações, mentalidades, raças e classes sociais podem encontrar-se em Cristo; sejam elas centros de oração, onde a Palavra de Deus é compreendida e recebida; estejam, com a simplicidade da sua vida, junto dos oprimidos e dos pequenos deste mundo; procurem a paz e a justiça para todos; sensibilizem os nossos contemporâneos aos males do consumismo, do individualismo e da violência" (cf. Mensagem do Simpósio monástico).

Como no fim da idade antiga São Bento e os seus monges souberam fazer-se construtores e guardiães da civilização, também nesta nossa idade, assinalada por uma rápida evolução cultural, é urgente tomar consciência dos desafios que nos vêm do mundo moderno e rebater, ao mesmo tempo, a sincera adesão aos valores perenes. O primeiro e inexaurível valor é a Palavra de Deus, que deve ser escutada todos os dias para a contínua conversão da vida, em referência exacta aos problemas presentes e aos que se delineiam no horizonte: o Terceiro Mundo, a crise da família, o dilatar-se da droga e da violência, a ameaça dos armamentos e mesmo as dificuldades de ordem económica.

Se, como em São Bento, for verdadeiramente profunda a espiritualidade no cristão, no religioso, no sacerdote; se cada um for — como deve — "homem de Deus", então poderá ser realmente "servo do homem". A escuta atenta a Deus que fala, abrirá a sua alma ao discernimento dos sinais dos tempos, como aconteceu neste mesmo Mosteiro a 25 de Janeiro de 1959, quando o Papa João XXIII anunciou, além do Sínodo da diocese de Roma, o grande Concílio Ecuménico, que foi o Vaticano II, com todos os copiosos frutos que já deu e dará ainda ao inteiro Povo de Deus.

A credibilidade da mensagem cristã depende da integração entre a catequese, a liturgia e a justiça aperfeiçoada na caridade. A proclamação da palavra nas celebrações sagradas, a reflexão iniciada nas nossas catequeses, devem ser obra de testemunhas de justiça e de caridade, de Comunidades decididas à contínua conversão na caridade e na misericórdia. A Palavra deve conduzir o ouvinte à consciência pessoal dos problemas e dos compromissos, deve estimular a comunidade a escolhas de serviço, de preferência para com os pobres — como diz o Evangelho (cf. Mt Mt 11,5 Lc 4,18).

755 4. A este ponto parece-me que — por uma singular e, direi, providencial coincidência — o fim do Centenário de São Bento pode introduzir, com particular atenção à pobreza, o VIII Centenário do nascimento de São Francisco, que se iniciará no próximo mês de Outubro. De facto, trata-se de uma das exigências de maior realce, que emergiram dos encontros Monásticos do já decorrido Centenário Beneditino: de resto, não era possível fechar os olhos diante da vaga de materialismo, de hedonismo, de ateísmo teórico e prático que alastrou dos Países ocidentais a todo o resto do mundo. Os monges da grande árvore beneditina, os filhos das várias famílias franciscanas, em geral todos os Religiosos têm a responsabilidade de introduzir de novo na sociedade, com unívoco testemunho, por meio da conversão do coração e do estilo de vida, os valores da pobreza real, da simplicidade de vida, do amor fraterno e da generosa compartilha. Também aqui, fazendo próprias as palavras contidas na Mensagem dos Beneditinos e das Beneditinas da Ásia, desejo que o exemplo dos Santos Bento e Francisco nos leve a "tomar consciência da nossa chamada a sermos pobres com Cristo pobre, e nos solicite a segui-1'O alegremente através de uma maior solidariedade com os mais pobres dos nossos países e de todo o mundo. Deste modo cremos poder chegar, juntamente com toda a humanidade, a compreender mais profundamente o amor de Deus pelos homens e a empenhar-nos concretamente em favor dós nossos semelhantes". Aliás, a este mesmo empenho em favor do homem e da sociedade humana também deram relevo os Bispos da Europa na mensagem "Para uma Europa dos homens e dos povos", difundida de Subiaco em Setembro passado.

5. Mas é evidente, Irmãos e Filhos caríssimos, que este empenho global e os particulares deveres e ministérios em que ele se articula reenviam todos e sempre à sua fonte espiritual. Quem não sabe que a acção supõe a contemplação? E esta, especialmente nas Ordens monásticas e mendicantes, não exige, porventura, não pressupõe uma viva celebração eucarística, uma fiel liturgia coral e uma empenhada forma comunitária, para evitar o predomínio do "fazer" sobre e "ser", ou o desenvolvimento de um activismo desequilibrado em relação ao primado da vida interior? Sim, porque em todos os ministérios apostólicos, por quem quer e em qualquer forma que sejam desempenhados, o serviço precisa da catequese, e o empenho da oração, a fim de a caridade não se reduzir a simples filantropia, mas o amor do próximo ser orientado, animado e enriquecido pelo amor de Deus.

Por isso, nós queremos também agora rezar, devemos rezar. Se o centenário beneditino, que já se concluiu, nos chamou a atenção — digo a nós Pastores da Igreja de Deus e a vós todos Religiosos e Religiosas, e também a vós Leigos que sentis mais forte a vocação ao apostolado — para esta dimensão primária como base e pressuposto de qualquer actividade ministerial, nós podemos imediatamente e com muita oportunidade servir-nos da suprema palavra do Evangelho que acabámos de ouvir. É o próprio Jesus, de facto, que está a orar no Cenáculo e nos oferece um insuperável modelo de estilo e de conteúdo em ordem às nossas orações, sejam elas pessoais ou comunitárias, litúrgicas ou particulares. Tendo já chegado ao momento culminante da sua missão, pridie quam pateretur, ele ensina-nos neste trecho conclusivo da assim chamada "oração sacerdotal" que coisa devemos Pedir, por quem devemos pedir e porque devemos pedir. Em colóquio directo com o Pai, em íntimo contacto com Ele (tu in me et ego te), Jesus ora não só pelos seus apóstolos que vê reunidos à sua volta, mas também por aqueles que, graças à sua pregação, acreditarão n'Ele: isto é, ora pelos fiéis de todas as idades e gerações sucessivas, e "para que sejam uma só coisa".

Quantas vezes ressoa neste texto sublime a invocação ou, melhor, o apelo e a aspiração à unidade? É a unidade dos "seus"; é a unidade como nota distintiva da "sua" Igreja; é a unidade que, com simultânea eficácia, une intimamente aqueles que já têm fé e ao mesmo tempo solicita o mundo, ou seja aqueles que ainda não crêem, a aceitar a fé: ut omnes unum sint... ut credat mundus (v. 21)....et cognoscat mundus (v. 23). O Senhor diz-nos tudo acerca da unidade: o mundo e a medida, a natureza e o efeito, a causa exemplar que é a unidade existente entre ele próprio e o Pai, causa final que é a fé a suscitar naqueles que ainda não a têm.

Ora, como negar que tais palavras assumem um grande relevo e uma força particular neste lugar sagrado e numa circunstância como esta? Além de um modelo de oração, elas constituem um programa de trabalho, elas têm o valor e o mérito de harmonizar contemplação e acção. E impressiona-nos ainda mais, primeiro porque este é o lugar em que repousa o Apóstolo Paulo, que foi infatigável mensageiro, entre as gentes, da unidade da Igreja de Cristo, na visão superior desta como corpo místico e como esposa mística (cf.
1Co 12,12-27 Ga 3,28 Ep 4,1-5); e depois, porque a circunstância que aqui nos reuniu é o centenário de Bento de Núrsia, o santo do ora et labora, o qual rezou e trabalhou pela unidade com o Evangelho e com a cruz, contribuindo eficazmente para a unidade do mundo europeu, que constituía grande parte do mundo então conhecido.

Eis por que razão esta palavra oração de Cristo, nosso Mestre e Senhor, bem depressa tomada e difundida por Paulo, mais tarde ouvida e cumprida por Bento, deve ser gravada no nosso espírito, como indeclinável termo da nossa própria oração e permanente parâmetro da nossa operosidade apostólica. Ut omnes unum sint! Esta palavra, que encerra e exprime o sacramentam unitatis (cf. São Copriano, De Ecclesiae catholicae unitate, cap. 7; PL tom. IV, Col 504), é como que uma palavra de ordem e, pela circunstância em que foi antes pronunciada, tem o valor de um legado testamentário, e por conseguinte deve iluminar e guiar cada uma das iniciativas pastorais e ecuménicas, coordenando e orientando tudo para a dimensão suprema da caridade: "a fim de que o amor, com o qual me amaste, esteja neles" (v. 26). Isto — não o esqueçamos nunca — é o ponto de chegada, isto é, a meta final, porque a unidade e a caridade na vida eclesial vão com o mesmo passo. A unidade é caridade, e a caridade unidade.



Homilias JOÃO PAULO II 748