Homilias JOÃO PAULO II 755


VISITA À PARÓQUIA ROMANA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO NO BAIRRO EUR


Domingo, 22 de Março de 1981




1. ... Vinde, prostremo-nos em terra, / adoremos o Senhor que nos criou. / Pois Ele é o nosso Deus / e nós o Seu povo, ovelhas do Seu rebanho (Sl 94/95/, 6-7).

Com estas palavras da liturgia de hoje, dirijo-me a vós, caros Irmãos e Irmãs, Paroquianos da Comunidade da EUR, que é dedicada a São Pedro e São Paulo.

Exprimem o convite a adorarmos Deus, que nos criou. É o convite a uma particular adoração de Deus, neste período de redenção e graça que é a Quaresma.

Ela, de facto, é o "tempo propício" (2Co 6,2), em que o Senhor se revela a quem se esforça por o conhecer e amar. É o tempo do "memento", de nos recordarmos d'Ele de modo eficiente. É metanóia: dirigirmo-nos a Ele com toda a alma para O servir e Lhe agradecer. Isto significa adorar o Senhor, e por este motivo a Igreja não se cansa de repetir com o Salmista:

756 "Vamos à Sua presença e demos graças, / ao som de cânticos aclamemos o Senhor" (Sl 94/95, 2) e ainda: "Vinde, prostremo-nos em terra, adoremos..." (Sl 94/95, 6). A adoração de Deus forma a razão de ser da Igreja e de cada homem, que não pode dar plena expressão à sua existência sem manifestar este acto amoroso, espontâneo e consciente, a Deus, seu Criador. E este acto de adoração realiza-se sobretudo na comunidade, recolhida para a celebração do banquete do Senhor, na fractio panis, que também nós dentro de pouco renovaremos.

2. Neste espírito saúdo a vossa Comunidade paroquial chamada de São Pedro e São Paulo. Ela, como todos sabem, é bastante jovem, tendo sido aberta ao público a igreja em 1955, elevada a Paróquia em Dezembro de 1958 e erguida à dignidade de Basílica em 1965. Saúdo o Cardeal Vigário, que também aqui se sente em família como em qualquer outra Paróquia da Diocese; o Bispo Auxiliar do Sector Sul, Dom Clemente Riva, que terminou agora mesmo de encerrar a semana preparatória deste encontro dos fiéis da EUR com o Papa; saúdo de modo especial o Pároco, Padre Fausto Casa, juntamente com o grupo dos Franciscanos conventuais que o ajudam na animação cristã deste Bairro. Sei que não param em difundir as riquezas da sua preparação cultural e da sua experiência humana e religiosa. Graças à dedicação deles e à colaboração de outros sacerdotes, associados a vário título à actividade pastoral, a vida da Paróquia foi-se progressivamente reforçando e produziu frutos espirituais, que permitem esperar muito para o futuro, embora na presença de tantos problemas postos pela tendência, bastante difundida em numerosas famílias, de se isolarem e de darem talvez a preferência a certo tipo de individualismo.

Ao registar o caminho percorrido, dirijo o meu pensamento para os membros das diversas Associações, em particular os da Acção Católica, da Ordem Franciscana Secular, do Apostolado da Oração, da Associação de São Vicente e dos Escuteiros. Graças a tais organismos, o laicado está presente na pastoral da Paróquia. Uma palavra de saudação, ainda, para os Religiosos e Religiosas que têm os próprios Institutos neste Bairro e se aplicam à formação dos jovens ou a outras iniciativas benéficas, trazendo deste modo importante contributo para o esforço comum de promoção cristã e social dos fiéis.

A todos, por fim, mas especialmente a quantos sofrem por causa da doença, da solidão e da pobreza, asseguro o meu afecto e a minha constante lembrança na oração. E agora voltemos ao comentário das leituras bíblicas, que acabamos de escutar.

3. "Hás-de fustigar esse rochedo, e dele sairá água" (
Ex 17,6).

A longa viagem dos Hebreus no deserto forma o contexto imediato do trecho do Éxodo. Uma das maiores dificuldades que apresentou uma viagem no deserto a um povo tão numeroso, que levava consigo rebanhos e gado, foi certamente a falta da água. É compreensível por isso que, nos dias em que a fome e a sede se faziam sentir de modo mais agudo, os Israelitas tenham chorado o Egipto e murmurado contra Moisés. Deus, que manifestara em tantos modos a Sua particular benevolência para com aquele povo, exige agora a fé, o abandono absoluto n'Ele e a superação das próprias garantias humanas. E precisamente no momento em que ele já não pode contar com os próprios recursos, está desfalecido e abatido, e à volta não há senão nua rocha estéril, árida e sem vida, Deus intervém, torna-se presente e faz brotar, daquela rocha, água abundante que dá a vida. É precisamente àquela rocha compacta que os Hebreus poderão ir buscar água na viagem para a terra prometida, como do Coração de Cristo, sedento na cruz, brotará água que salva aqueles que empreenderam a caminhada com fé. Devido a esta semelhança, Paulo identifica a rocha com o próprio Cristo, novo Templo e nascente que dessedenta na vida eterna (cf. 1Co 10,4). Eis como o poder de Deus se manifesta no mistério da água viva, que jorra para a eternidade, porque é a água regeneradora da graça e reveladora da verdade.

Como no tempo do Éxodo, também hoje os homens sofrem a sede desta água salvadora e libertadora que provém de Cristo, e a Igreja, em resposta, não descansa de anunciá-l'O a todos os povos de todos os tempos. Ela está presente no mundo, essencialmente "para ajudar os homens a crerem que Jesus é o Filho de Deus, a fim de que, mediante a fé, eles tenham a vida no Seu nome, para educá-los e instruí-los nesta vida e constituir assim o Corpo de Cristo. A Igreja não cessou de consagrar a este propósito as suas energias" (Catechesi Tradendae CTR 1).

4. Da água que jorra para a vida eterna fala Cristo à Samaritana junto do poço de Sicar. Ele, cansado da viagem, senta-se na borda do poço. Os discípulos tinham ido sós à cidade para compras. Jesus pede a uma Samaritana, vinda buscar água, que lhe dê de beber. Ela não cabe em si de espanto. Como pode ele, Judeu, pedir alguma coisa a uma Samaritana? Havia séculos que Judeus e Samaritanos viviam numa inimizade implacável. Jesus mostra-se porém superior a este preconceito, como também à opinião judaica que julgava indecoroso para um mestre falar publicamente com uma mulher. Para Ele não conta a distinção de nação e de raça, nem sequer a existente entre homem e mulher. Da água natural, elemento material, que Jesus começa por pedir à mulher, leva, o assunto para o plano da revelação, para a água verdadeiramente viva. A expressão "água viva" indica na língua dos profetas os bens da salvação do tempo messiânico (cf. Is Is 12,3 Is 49,10 Jr 2,13 Jr 17,13). Todavia a mulher, não podendo compreender essa linguagem, pensa numa água milagrosa que mate a sede do corpo, água que já não será preciso vir tirar. Deste modo, Jesus despertou nela o desejo do Seu dom: "Senhor, suplicou a mulher, dá-me desta água, para eu não tornar a ter sede e não ter de voltar aqui tirá-la" (Jn 4,15).

Jesus revela então à mulher que Ele em pessoa é a nascente mesma da água viva. E mostra como se chega à fé n'Ele: passando através do reconhecimento da Sua missão divina. Ele manifesta o Seu conhecimento profético, próprio de um enviado de Deus. Ela teve cinco maridos e com um sexto vive ilegalmente. A mulher começa a reflectir: tal conhecimento dos corações não é o de um homem comum, e ela prorrompe num comovido acto de fé: "Senhor, vejo que tu és Profeta" (Jn 4,19). E depois irá anunciar, aos habitantes da sua cidade, ter encontrado o Messias; convida-os a "virem ver Jesus" (Jn 4,29). Neste estupendo trecho evangélico, que atinge um vértice sublime pela beleza formal e pela profundidade doutrinal, encontram-se traços pedagógicos interessantes para qualquer educador da fé. A revelação pessoal origina-se do lado de Jesus, partindo Ele da situação concreta para levar a uma revisão ideal da vida: revisão vista à luz da verdade, porque só na verdade se pode efectuar o encontro com Cristo que personifica a verdade mesma.

5. É precisamente quando a Samaritana se dirige a Jesus, com as palavras "Dá-me dessa água" (Jn 4,15), que o Mestre não tarda a indicar o caminho que a ela conduz. É o caminho da verdade interior, o caminho da conversão e das obras boas. "Vai chamar o teu marido" (Jn 4,16), diz o Senhor à mulher: é convite para examinar a própria consciência, para perscrutar no íntimo do coração, para despertar nele as expectativas mais profundas, as que ela supõe ocultar debaixo da resposta evasiva. Faz que esta mulher descubra a necessidade de ser salva e se interrogue sobre o caminho que a pode conduzir à salvação. Cristo faz com ela um verdadeiro "exame de consciência", ajudando-a a chamar pelo nome aos pecados da sua vida. Por isso insta: "Disseste bem 'não tenho marido', pois tiveste cinco maridos e aquele que tens agora não é teu" (Jn 4,17-18). Assim a mulher não só reconhece o seu estado de pecado, mas é ajudada a chamar pelo nome aos pecados da sua vida. Santo Agostinho, num seu admirável sermão, assim exprime o trabalho interior dessa mulher: "Primeiro foste guiada pelos sentimentos da carne; depois chegaste à idade em que se deve usar a razão, e não conseguiste a sabedoria; pelo contrário, caíste no erro; por isto, depois daqueles cinco maridos, aquele que agora tens não é o teu marido. E se não era marido, que coisa era senão um adúltero? Portanto, chama, mas não o adúltero, chama o teu marido, para que com inteligência tu possas compreender-me e o erro não haja de procurar-te uma falsa opinião de Mim... Fora, portanto, o adúltero que te corrompe, vai chamar o teu marido. Chama-o, volta aqui com ele, e compreender-me-ás" (In Io. Evang. Tr. 15, 22) .

Nesta situação, Jesus eleva-se de repente para além da resposta imediata a fim de anunciar que fica superado o culto considerado verdadeiro, cedendo o lugar a uma nova forma de adoração: a que insiste no coração mais que nos sacrifícios, adoração provocada pelo espírito, precisamente a adoração "em espírito e verdade" (Jn 4,24). Adorar em espírito significa colocar-se sob o influxo da acção de Deus, isto é, do dom da vida operado pelo Espírito e chama a atenção para a vida sobrenatural de que desfrutam os cristãos, a qual é condição indispensável para serem "verdadeiros" adoradores. Adorar em verdade significa colocar-se na ordem da revelação do Verbo: aquela revelação em que está empenhada a acção do Espírito de verdade. O novo lugar da adoração é o templo espiritual, isto é Cristo-verdade, sob a iluminação do Espírito de verdade. A condição requerida por Jesus para um culto válido é a de uniformizar-se com a Sua pessoa, reveladora de uma fé operada pelo Espírito. Aqueles que souberem acolher o admirável "dom de Deus" (Jn 4,10), que é a água viva do Espírito Santo, serão transformados como a Samaritana, tornar-se-ão os verdadeiros adoradores, encontrando o centro do culto no corpo de Cristo ressuscitado e transformado pela força do Espírito.

757 6. Que é que produziu na Samaritana a água viva que jorra para a vida eterna? Atendendo ao novo desenvolvimento da situação espiritual da mulher, pode-se responder que o fruto foi grande. Encontra-se, de facto, nela uma verdadeira metanoia que a leva até reconhecer em Jesus o Messias: "Vinde ver — diz aos seus concidadãos — um homem que me disse tudo quanto fiz. Não será ele o Messias?" (Jn 4,29). E a interrogação supõe no seu pensamento uma resposta afirmativa, porque liga esta confissão com a chamada pelo nome aos seus pecados: disse-me tudo o que fiz. Reconhece em si nova força, novo entusiasmo que a leva a anunciar aos outros a verdade e a graça que recebeu: vinde ver. Torna-se, em certo sentido, mensageira de Cristo e do Seu Evangelho de salvação, como a Madalena na manhã de Páscoa.

Também a nós é hoje dirigido o convite a vivermos desta água viva da verdade, a purificarmos a nossa vida, a mudarmos de mentalidade e a colocarmo-nos na escola do Evangelho, onde o Senhor, como fez com a Samaritana, nos interpela, fazendo-nos descobrir as mais altas exigências da verdade e do espírito.

7. Caros Irmãos e Irmãs

No terceiro domingo da Quaresma, a Igreja convida-nos a particular adoração de Deus, a prestarmos particular adoração ao Pai "em espírito e verdade".

Esta adoração não pode ser apenas externa. A adoração "em espírito de verdade" deve tocar as nossas consciências. E por isso oiçamos uma vez mais o Salmo responsorial, quando diz:

"Quem dera ouvísseis hoje a minha voz: / 'Não endureçais os vossos corações' " ...(Sl 94/95, 8).

Pensemos a quem de nós se referem estas palavras. Pensemos naqueles nossos irmãos e irmãs, que estão ausentes, mas a quem estas palavras se referem — e imploremos para nós e para eles o encontro com Cristo, semelhante àquele encontro da Samaritana junto do poço de Sicar.

Escutemos ainda as palavras do Apóstolo Paulo na Carta aos Romanos: "Nós fomos justificados pela fé e, por isso, estamos em paz com Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi por Ele que, na fé, tivemos acesso a esta graça em que nos encontramos, e o nosso orgulho é ter a esperança de participar na glória de Deus" (Rm 5, l-2).

Se a algum de nós se referem estas palavras — e penso que se referem a muitos — então peçamos para perseverar na esperança e na observância da paz com Deus, assim como ensina o Apóstolo.

E, por fim, escutemos as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo que diz: "Erguei os olhos e vede: os campos estão brancos para a ceifa. O ceifeiro já recebe o salário e recolhe o fruto para a vida eterna, de modo que o semeador se alegra juntamente com o ceifeiro" (Jn 4,35-36).

E peçamos — peçamos a Ele com toda a alma esta ceifa, assim como pediu a Samaritana para ter água viva, a água para a vida eterna. E olhando para "os campos que estão brancos para a ceifa" (Jn 4,35), pensemos que são precisos ceifeiros, assim como no princípio foram necessários semeadores. E digamos a Cristo, que nos remiu com o Seu Sangue: Senhor, aqui estou! Acolhe-me como semeador e como ceifeiro do Teu Reino. Senhor, eis-me aqui! Manda operários para a messe. "Manda operários para a Tua messe" (cf. Mt Mt 9,37).

758 Renovem-se, mediante a Quaresma, as nossas consciências e reviva o zelo dos verdadeiros discípulos de Cristo.



SANTA MISSA EM PREPARAÇÃO PARA A PÁSCOA DOS UNIVERSITÁRIOS


Basílica Vaticana

Quinta-feira, 26 de Março de 1981




1. Glória a Ti, ó Cristo, Verbo de Deus!

O tempo da Quaresma é o período de intensa catequese. Assim foi já para os antigos catecúmenos. E assim ficou sendo. Também o nosso encontro quaresmal, que se tornou agora um hábito, é expressão disso. A catequese deve fazer que seja aproximado o mistério divino revelado em Jesus Cristo. O tempo pascal encerra uma especial profundidade deste mistério e é uma sua singular condensação. No coração do cristão deve corresponder-lhe particular sensibilidade.

Isto refere-se a todos aqueles que se manifestam por Cristo, em todas as gerações e vocações. De modo especial refere-se também ao vosso ambiente. A universidade é ambiente em que se cultiva a ciência e se adquire a instrução superior. Em tal contexto, é necessário criar novas condições e novas possibilidades para, o encontro com o mistério de Cristo e para poder viver em intimidade com ele. É importante que a luz do conhecimento de Cristo não seja ofuscada, mas encontre sempre força, proporcional nas inteligências que se ocupam da múltipla problemática dos estudos universitários. Mais, é importante que se aperfeiçoe o conhecimento da Palavra de Deus nestas inteligências, segundo a justa proporção, ainda mais plenamente. É importante, por fim, que os nossos corações conservem aquela simplicidade e as consciências aquela limpidez, que são fruto da palavra de Deus, quando esta Palavra opera nelas sem encontrar obstáculo.

Precisamente por isto nos encontramos aqui hoje. Saúdo cordialmente todos os presentes, quer os Professores, os homens de ciência, quer os Estudantes. Saúdo aqueles que neste encontro estão presentes não pela primeira vez. E saúdo também os que hoje vieram pela primeira vez.

Glória a Ti, ó Cristo, Verbo de Deus! Juntamente convosco presto adoração a Cristo-Verbo, que mediante o meu ministério nos quer falar na hodierna catequese quaresmal. Glória a Ti, ó Cristo, Verbo de Deus!

2. Esta catequese concentra-se primeiro que tudo no mistério da Criação: "Vinde, regozijemo-nos no Senhor... / Vinde, prostremo-nos em adoração, / de joelhos diante do Senhor, que nos criou. / Porque Ele é o nosso Deus; / e nós somos o povo de quem Ele é o pastor, / as ovelhas que as Suas mãos conduzem" (Sl 94/95, 1.6-7).

Venite adoremos!

A Igreja inicia a sua quotidiana oração litúrgica, a Oração das Horas, precisamente com estas palavras do Salmista. Nelas encerra-se um convite dirigido à inteligência humana e ao mesmo tempo à vontade e ao coração. É o convite mais fundamental: sai fora e vai ao encontro com Deus, que é o Criador! O teu Criador! Com Deus, a quem tudo o que existe deve a existência. Com Deus, que, sendo Criador, está "acima" de toda a criação, acima do cosmos, e ao mesmo tempo abraça e penetra este cosmos até ao fundo último, até à essência de todas as coisas.

759 Sai ao encontro com Deus, que é o Criador! Este é o primeiro e fundamental convite da inteligência iluminada pela fé; melhor, é também o primeiro convite da inteligência que sinceramente procura a verdade pelos caminhos da ciência e da reflexão filosófica. Poder-se-ia encontrar a confirmação disto nas declarações dos homens de ciência no decorrer dos séculos e também na nossa época.

Newton, por exemplo, afirmava textualmente que "um Ser inteligente e poderoso... governa todas as coisas, não como alma do mundo, mas como Senhor do universo, e por causa do Seu domínio costuma chamar-se-lhe Senhor Deus, pantocrator. Por seu lado, Einstein, que defendia que "a ciência sem a religião é trôpega, e a religião sem a ciência é cega", chegou a dizer: "Desejo saber como criou Deus o mundo. Não estou interessado neste ou naquele fenómeno, nem no espectro de um elemento químico. Quero conhecer o pensamento de Deus, o resto é pormenor".

Pois bem, a catequese da Liturgia de hoje centra-se no mistério da Criação e, ainda que isto seja nela expresso de modo conciso, poder-se-ia chamar discreto, todavia é necessário desenvolvermos este ponto na nossa meditação; mais, desenvolvermo-lo constantemente na nossa, consciente vida interior. Esta é, de facto, a primeira verdade da fé, o primeiro artigo do nosso Credo: "Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra".

Do Criador dão testemunho as criaturas. No convite litúrgico do Salmo — deste Salmo hodierno e dos outros — está encerrada a justa convicção de que quanto mais se deixa o mundo arrebatar pela eloquência das criaturas, pela sua riqueza e beleza, tanto mais cresce nele — e deve crescer! — a necessidade de adorar o Criador: "de joelhos diante do Senhor, prostremo-nos em adoração". Estas palavras não são excessivas. Confirmam os perenes caminhos da lógica fundamental da fé e, ao mesmo tempo, da lógica fundamental de pensar no mundo, no cosmos, no macro e no microcosmos. Talvez precisamente aqui se exprima e confirme a fé de modo particular como rationabite obsequium.

Acrescento ainda que o convite do Salmo não colide de facto com a "justa autonomia das coisas criadas". Vasto é este problema a que desejo aqui aludir apenas. Todavia, ao mesmo tempo, peço-vos para lerdes de novo com atenção as respectivas passagens do ensinamento do Concílio Vaticano II, encerradas na Constituição Gaudium et Spes, e que penseis nelas. Isto deixo-vo-lo como exercício para casa. Não pode haver sólida catequese sem os exercícios, sem o trabalho pessoal daqueles que nela participam.

Hoje, pelo contrário, peço-vos que penseis nesta desproporção, que efectivamente existe em áreas gigantescas da civilização contemporânea: o homem, quanto melhor conhece o mundo, tanto menos parece sentir-se obrigado a "dobrar os joelhos" e a, "prostrar-se" diante do Criador.

É necessário portanto perguntar: porquê? Acaso se julga que, só o conhecer o mundo e usufruir dos efeitos deste conhecimento, tornam homem senhor das coisas criadas? Mas não se deveria pensar, antes, que aquilo que o homem conhece — as riquezas fantásticas do microcosmos e as dimensões do macrocosmos — o encontra já no cosmos, o toma nele, por assim dizer, "já pronto", já feito, e que, com base nisto, o que ele próprio em seguida produz, o deve a toda aquela riqueza das matérias-primas, que encontra no mundo criado?

Porque não é ele capaz — assim como as inteligências mais altas — de cair no pasmo diante da transcendência, diante do primado daquela Sabedoria criadora, uma vez que, para penetrar nos efeitos do seu proceder, foram necessários os esforços de inúmeras inteligências humanas no curso de gerações inteiras e de séculos?... e quanto fica ainda de caminho diante delas? Mas é possível que não pense nisso precisamente o homem contemporâneo, que, em toda a orientação do desenvolvimento da sua civilização e da sua mentalidade (que são definidas com múltiplos nomes), possa haver uma fundamental "injustiça": a "injustiça" diante do Criador?

"Vinde, prostremo-nos em adoração, / de joelhos diante do Senhor, que nos criou".

3. Na obra da criação foi inscrito, enxertado, o Reino de Deus. Por isso, a catequese da Liturgia de hoje centra-se também no mistério do Reino.

Este Reino, que teve o seu início na história das coisas criadas juntamente com o homem, tem longa história. No ápice de tal história encontra-se Cristo. "O reino de Deus está perto" (
Mc 1,15). Do mesmo modo fala Ele desde o princípio do Seu ensinamento messiânico, e anuncia, com perseverança, incansavelmente, este Reino ao povo eleito. Anuncia, e contemporaneamente está consciente de que, à volta do problema daquele Reino, cresceu um fundamental equívoco, e este continua a durar e é necessária a conversão para poder encontrar a verdade plena sobre o Reino de Deus. Por esta verdade, no fim de contas, dá Ele a vida.

760 A passagem do Evangelho hodierno é, deste ponto de vista, muito significativa e eloquente. Diante dos sinais que realizava Jesus, libertando os homens do poder de múltiplos males, algumas pessoas começaram a difundir a opinião de aquilo, que Ele fizera, provir da potência do espírito maligno. "É por Belzebu, príncipe dos demónios, que Ele expulsa os demónios". "Outros — continua, o evangelista —, para O experimentarem, pediam-Lhe uns sinal do Céu" (Lc 11,15-16).

Então, pronuncia Cristo estas palavras sobre reino dividido e lacerado, misteriosas mas ao mesmo tempo penetrantes, que lemos no Evangelho de hoje: "Todo o reino dividido contra si mesmo será devastado e cairá casa sobre casa. Se Satanás também está dividido contra si mesmo, como há-de manter-se o seu reino? Pois vós dizeis que é por Belzebu que Eu expulso os demónios. Se é por Belzebu que expulso os demónios, por quem os expulsam os vossos filhos? Por isso, eles mesmos serão vossos juízes. Mas, se Eu expulso os demónios pelo dedo de Deus, então quer dizer que o reino de Deus chegou até vós" (Lc 11,17-20).

Palavras misteriosas e ao mesmo tempo penetrantes! Exigiriam uma exegese mais pormenorizada. Podeis aceitar também isto como exercício para casa, no decurso dos encontros dos vossos grupos bíblicos. Sei que existem.

Digamos imediatamente, todavia, aquilo que mais conta. Cristo confirma a existência do espírito maligno e do seu reino, que se deixa guiar por um programa próprio. Este programa exige rigorosa, lógica da acção, lógica tal que o "reino do mal" se possa manter. Mais, que possa desenvolver-se nos homens a quem é dirigido. Satanás não pode actuar contra o seu próprio programa, não pode o espírito maligno expulsar o espírito maligno. Assim diz Cristo. E deixa aos ouvintes tirar as conclusões definitivas, terminando com esta frase: "Se Eu expulso os demónios pelo dedo de Deus, então quer dizer que o Reino de Deus chegou até vós".

A controvérsia sobre o reino e Deus terminou Sexta-feira Santa. No Domingo da Ressurreição é confirmada a verdade das palavras de Cristo, a verdade de ter chegado a nós o Reino de Deus — a verdade de toda a Sua missão messiânica. A luta entre o reino do mal, do espírito maligno, e o Reino de Deus não cessou todavia, não está acabada. Entrou só num período novo — melhor no período definitivo. Neste período a luta é dura nas gerações sempre novas da história humana.

Devemos acaso demonstrar de propósito que esta luta perdura também nos nossos tempos? Sim. Perdura certamente. Melhor, desenvolve-se à medida da história da humanidade em cada povo e nação. Perdura também em cada um de nós. E seguindo esta história, compreendidos os tempos que nos são contemporâneos, podemos também definir em que modo o reino do espírito maligno não está dividido, mas por diversos caminhos procura uma unidade de acção no mundo, procura produzir os seus efeitos no homem, nos ambientes, nas famílias e nas sociedades. Como no princípio, assim também agora influi o seu programa sobre a liberdade do homem... sobre a sua liberdade aparentemente ilimitada.

Todavia, disto não nos ocuparemos mais. Deixemos também este problema à ulterior meditação de cada um. Pelo contrário — dado crermos que em Cristo Jesus chegou a nós o Reino de Deus (cf. Lc Lc 11,20) — pensemos com que unidade ele deve distinguir-se em cada um de nós para poder perseverar, crescer e desenvolver-se organicamente. Este é precisamente o tema central da Quaresma. Este período existe para nós penetrarmos, especialmente a fundo, no programa do Reino de Deus, porque buscamos esta unidade que ele deve constituir em nós e entre nós, em cada cristão e na comunidade da Igreja.

4. No Evangelho de hoje Cristo diz (e estas são as últimas palavras do trecho que lemos): "Quem não está comigo está contra Mim; e quem não junta (isto é, não acumula) comigo, dispersa" (Lc 11,23).

Criar o reino de Deus quer dizer estar com Cristo. Criar a unidade, que ele deve constituir em nós e entre nós, quer dizer precisamente: juntar (acumular!) ao lado d'Ele. Eis o programa fundamental do Reino de Deus, que na Sua enunciação contrapõe Cristo à actividade do espírito maligno em nós e entre nós. Esta actividade executa o seu programa sobre a liberdade do homem, aparentemente ilimitada. Lisonjeia o homem com uma liberdade que não lhe é própria. Lisonjeia ambientes completos, sociedades e gerações. Lisonjeia para manifestar no fim que esta liberdade não é senão adaptar-se a uma múltipla constrição: à constrição dos sentidos e dos instintos, à constrição da situação, à constrição da informação e dos vários meios de comunicação, à constrição dos esquemas correntes de pensar, avaliar e comportar-se, nos quais esquemas se faz calar a pergunta fundamental: se, numa palavra, tal comportamento é bom ou mau, digno ou indigno.

Gradualmente o mesmo programa julga com antecipação e sentencia sobre o bem e o mal, não segundo o verdadeiro valor das obras e das questões, mas segundo as vantagens e as conjunturas, segundo o "imperativo" do gozo ou do resultado imediato.

Pode ainda o homem despertar? Pode dizer com clareza a si mesmo que esta "liberdade ilimitada" se torna, no fim de contas, escravidão?

761 Cristo não lisonjeia os seus ouvintes, não lisonjeia o homem com a aparência da liberdade "ilimitada". Diz: "Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á" (Jn 8,32) — e de tal modo afirma que a liberdade não é só dada ao homem como dom, mas como exercício. Sim. Ela é dada a cada um de nós como aquele exercício, em que eu e cada um de vós somos dados como exercício a nós mesmos. É a tarefa à medida da vida. E não é uma propriedade que se possa usufruir em qualquer modo e se possa "esbanjar".

Este exercício da liberdade — tarefa maravilhosa — realiza-se segundo o programa de Cristo e do seu Reino no terreno da verdade. Ser livre quer dizer produzir os frutos da verdade, actuar na verdade. Ser livre quer dizer também saber render-se, submeter-se cada um à verdade — e não: submeter a verdade a si mesmo, às próprias veleidades, aos próprios interesses e às próprias conjunturas. Ser livre — segundo o programa de Cristo e do seu Reino — não quer dizer gozo, mas fadiga: a fadiga da liberdade. À custa desta fadiga o homem "não desperdiça", mas juntamente com Cristo "recolhe" e "acumula".

À custa desta fadiga o homem obtém ainda, em si mesmo, aquela unidade que é própria do Reino de Deus. E, ao mesmo preço, atingem semelhante unidade os matrimónios, as famílias, os ambientes e as sociedades. É a unidade da verdade com a liberdade. É a unidade da liberdade com a verdade.

Meus caros Amigos! Esta unidade é o vosso exercício particular, não quereis ceder, se não quereis render-vos à unidade daquele outro programa, o que procura realizar no mundo, na humanidade, na nossa geração e em cada um de nós — aquele que a Sagrada Escritura chama também "pai da mentira" (Jn 8,44).

Por isso a chamada da Quaresma — chamada fundamental — é a chamada a "recolher com Cristo" (ou "acumular com Cristo"). Não permitais que vos seja destruída esta unidade interior, que, mediante o Espírito Santo, Cristo elabora na consciência de cada um de vós: a unidade em que a liberdade cresce a partir da verdade, e a verdade é a medida da liberdade.

Aprendei a pensar, a falar e a actuar segundo os princípios da simplicidade e da clareza evangélica: "Sim, sim; não, não". Aprendei a chamar branco ao branco, e preto ao preto — mal ao mal, e bem ao bem. Aprendei a chamar pecado ao pecado, e a não lhe chamar libertação e progresso, ainda que toda a moda e a propaganda lhe fossem contrárias. Mediante tal simplicidade e clareza constrói-se a unidade do Reino de Deus — e esta unidade é, ao mesmo tempo, completa unidade interior de cada homem, é o fundamento da unidade dos cônjuges e das famílias, é a força das sociedades: das sociedades que talvez já sintam, e sintam cada vez melhor, como se procura destruí-las e desorganizá-las a partir de dentro, chamando mal ao bem, e pecado manifestação do progresso e da libertação.

5. Cristo não estabelece o programa do Seu Reino sobre a aparência. Constrói-o sobre a verdade. E a liturgia da Quaresma, dia após dia, com as palavras do Profeta — palavras bem ardentes! — recorda-nos a verdade do pecado e a verdade da conversão.

Assim faz também a Liturgia hodierna, dando a palavra, primeiro, ao mais trágico dos Profetas, Jeremias, para acrescentar depois, com as palavras de Joel, o convite à penitência:

"Convertei-vos ao Senhor, vosso Deus, porque Ele é clemente e misericordioso" (Jl 2,13).

O direito da conversão corresponde à verdade sobre o homem.Corresponde também à verdade interior do homem. Aquilo que a Igreja implora ardentemente (em particular durante a Quaresma) é também que o homem não permita que seja abafada em si esta verdade sobre si mesmo e não se prive da própria verdade interior. Que não deixe roubarem-lhe esta verdade sob a aparência "da liberdade ilimitada". Que não perca em si o apelo da consciência como voz da Verdade que o supera, mas que ao mesmo tempo decide sobre ele: que o faz homem e decide sobre a sua humanidade.

A Igreja pede que o homem, cada homem (em particular os jovens, mas também todo o homem em geral!) não confunda com a aparência da liberdade e a aparência da libertação, a liberdade verdadeira e a libertação construída sobre a verdade, a libertação em Jesus Cristo. A Igreja pede isto todos os dias:

762 "Oxalá ouvísseis hoje a Sua voz: / Não endureçais os vossos corações / como em Meriba, como no dia de Massa no deserto, / onde os vossos pais Me provocaram e Me tentaram, / embora tivessem visto as Minhas Obras" (Sl 94/95, 8-9).

Sim, que o homem, testemunha da Criação — o homem-cristão, testemunha da Cruz e da Ressurreição (testemunha, isto é, alguém que viu e observa), tenha o coração aberto e a consciência límpida. Tenha em si aquela liberdade, pela qual Cristo o libertou (cf. Gál
Ga 5,1).

E pedi isto, caros Amigos, primeiro que tudo para vós mesmos, quando deveis receber o Sacramento da Penitência e unir-vos mediante a Eucaristia na unidade do Reino de Deus.

Pedi o mesmo também para os vossos amigos, para as vossas escolas, para os ambientes em que viveis, para todos os homens que são vossos irmãos e irmãs, na vocação à dignidade humana e à salvação eterna em Cristo Crucificado e Ressuscitado.



Homilias JOÃO PAULO II 755